CAPÍTULO 4

Existe algo de comum na reprodução
simbólica das sociedades modernas?

O PROBLEMA DA reconstrução da reprodução simbólica das modernas sociedades capitalistas é a questão de reconstruir “o quê?” e “como?”. Em um contexto onde até o bem-estar das nações é percebido sob o modelo da empresa capitalista a partir da medição de seu PIB, ou seja, de seu “lucro”, ou onde todas as esferas simbólicas são, em grau variável, “colonizadas” – na metáfora habermasiana não muito longe das usadas por Simmel – pelo dinheiro e pelo poder,171 como perceber as “fontes morais”, as quais, paralelamente ao dinheiro e ao poder, também influenciariam de modo importante todas as nossas ações, julgamentos e comportamentos?

Um ponto de partida teórico, que para mim sempre foi de grande ajuda nesse terreno, foi a contribuição dos teóricos neo-hegelianos da teoria crítica filosófica e sociológica de vanguarda conhecida por alguns como “teoria do reconhecimento social”,172 na qual despontam os nomes de Axel Honneth e Charles Taylor. Para meus fins aqui me interessa especialmente a contribuição deste último. Na sua obra máxima sobre as Fontes do Self,173 Taylor reconstrói o que para ele seriam as fontes morais do comportamento de todo indivíduo moderno. Duas dessas fontes174 nos interessam de perto: a busca por “dignidade” e a busca por “autenticidade”.

Vale a pena reconstruir seu argumento passo a passo. Afinal, o leitor pode legitimamente se perguntar: Taylor sonhou e acordou com essa visão? Ela não seria tão arbitrária quanto qualquer outra? Para comprovar sua não arbitrariedade, é necessário desenvolver dois de seus pressupostos filosóficos, os quais são intimamente relacionados. O primeiro é o da pressuposição hegeliana da existência de um contexto ético e moral subjacente a toda ação humana.175 Isso significa que nos avaliamos a nós mesmos e aos outros segundo uma “hierarquia valorativa” opaca e, portanto, invisível à consciência cotidiana. Se isso é verdade, construiríamos tanto nossa autoestima quanto o valor relativo de nós mesmos e dos outros, ou seja, o “reconhecimento social”, próprio e alheio, segundo uma hierarquia que, longe de ser arbitrária, nos constrangeria a todos de modo “objetivo”, isto é, “intersubjetivo” e compartilhado.

Um leitor cético pode aqui, nesse ponto da argumentação, se perguntar também legitimamente: se é, efetivamente, uma hierarquia opaca e invisível, como sabemos que existe? A resposta mais óbvia é aquela que diz e comprova que essa hierarquia moral não é visível nem consciente – Taylor prefere dizer que é “inarticulada” –, mas que, ainda assim, sabemos que existe, pois percebemos sua “eficácia”, posto que a “sentimos” mesmo que não possamos articulá-la, ou seja, ainda que não possamos reconstruí-la de modo refletido e claro.

Que todos nós temos “sentimentos e emoções morais” nem nosso amigo e cético leitor imaginário poderia negar. Afinal, ele mesmo, como todos nós, sente, por exemplo, “culpa” e “remorso” e pode chegar a ter noites sem dormir ou consequências muitos piores por conta disso. Se surpreendido em uma mentira ou ato reprovável, pode sentir “vergonha” e enrubescer o rosto sem a mediação de sua vontade. Não existe, portanto, dúvida “razoável” acerca da existência de “sentimentos morais” que nos constrangem a todos e que desempenham um papel relevante em nossas vidas.

A questão passa a ser a de como compreender e “articular”, de modo claro e consciente, aquilo que “sentimos” de fato. Essa articulação consciente e refletida, por sua vez, pressupõe a reconstrução explícita da “hierarquia valorativa”, que nos comanda sem que saibamos de modo consciente, ainda que a sintamos nos seus “efeitos” e “consequências”. Afinal, se o primeiro passo para o conhecimento é a separação entre o importante e o secundário – senão nos perderíamos na multiplicidade infinita e caótica do que existe –, é a construção de uma hierarquia clara entre os valores mais e menos importantes que pode nos indicar quais e de que modo eles interferem na nossa vida prática.

Desse fato advém, precisamente, a importância de que saibamos quais são as “fontes morais” que comandam nosso comportamento moral, ainda que as percebamos apenas em seus “efeitos” sem que tenhamos clareza acerca da hierarquia valorativa da qual eles constituem o vértice. Esse elemento, aliás, da mera possibilidade da “compreensão prática” do sentido de nossas ações, mesmo sem a mediação da consciência, é um dado que demonstra a influência extraordinária – implícita ou explícita – de filósofos como Merleau-Ponty e Wittgenstein não apenas em Taylor, mas em praticamente todos os pensadores efetivamente criativos e sofisticados da segunda metade do século XX, como Pierre Bourdieu, Jürgen Habermas e Michel Foucault.

Aqui o inimigo comum é a tendência racionalista e intelectualista, ainda dominante seja na filosofia seja nas ciências sociais, ou ainda, muito especialmente, no senso comum, cartesianamente anacrônico, da vida prática e cotidiana. Enquanto a tradição intelectualista, nesses campos do conhecimento e da vida prática, tende a perceber a compreensão de uma regra social, seja de fundo moral ou pragmático, como um processo que se consuma no nível das representações e do pensamento, abstraindo seu componente corpóreo e contextual, tanto Wittgenstein quanto os autores influenciados por ele enfatizam o elemento da “prática”.176 Obedecer e compreender uma regra social é antes de tudo uma prática aprendida, e não um conhecimento. A “prática” pode ser articulável, pode explicitar razões e explicações para seu “ser deste modo e não de qualquer outro”, quando desafiada a isto. Mas na maior parte das vezes esse pano de fundo inarticulado permanece implícito, comandando silenciosamente nossa atividade prática e abrangendo muito mais que a moldura das nossas representações conscientes.

Assim, a reconstrução dessa “hierarquia valorativa”, cujo vértice é composto pelas “fontes morais” que comandam de forma silenciosa nossa vida prática, é a chave para que compreendamos o como e o por que – tendo consciência desse fato ou não – nos sentimos como de fato nos sentimos e nos avaliamos a nós mesmos mutuamente do modo como – mais uma vez, com consciência ou não – de fato nos avaliamos em todas as ocasiões. A reconstrução dessa hierarquia valorativa equivale a uma chave que nos permite ter acesso ao segredo social e individual mais importante para cada um de nós: entender quem somos e por que agimos como agimos.

Mais ainda. A reconstrução explícita dessa hierarquia valorativa nos permite mostrar a falsidade daquilo que “aparece” a cada um de nós como evidente, mas que, na verdade, representa uma distorção e um falseamento de nossa percepção do e no mundo que todos compartilhamos. Assim, não somos vítimas impotentes de construções paradoxais hoje dominantes nas ciências da “ordem” e no senso comum, como “subjetivismo ético”, que imagina, absurdamente, que indivíduos podem “criar” valores – dado que moralidade e ética pressupõem uma coletividade que compartilha uma dada “ética” ou “moralidade” sempre supraindividual – e que cada qual pode ter uma compreensão moral “só sua” (!). Nesse caso, a “aparência”, a distorção do sentido, a “patologia social”, enfim, apenas por ser “compartilhada”, transforma a doença – a produção de sentido superficial, paradoxal e distorcida – em sanidade.

A reconstrução dessa “hierarquia valorativa” permite demonstrar o doentio mesmo se a doença for o normal, ou seja, mesmo se o comportamento patológico for também o mais generalizado socialmente. O alcance crítico e de possibilidade de aprendizado político e social é, portanto, enorme. Para que este desafio reconstrutivo, no entanto, fique claro e evidente para o leitor mais cético – desde que também leitor de boa-fé e amante da verdade –, é necessário proceder a três passos inter-relacionados: a) proceder a reconstrução histórica e institucional dessas fontes morais que comandam os indivíduos sob sua égide; b) mostrar sua realidade concreta e empírica insofismável tanto através da empiria indireta – que permite deixar claros pressupostos que atingem a todos nós sem distinção – quanto através dos resultados que já obtivemos sob a forma de trabalho empírico direto; e, finalmente, c) demonstrar teórica e empiricamente a problemática específica do tema da existência de uma “fronteira objetiva da dignidade humana”, a qual estaria presente em todas as sociedades modernas, ainda que em graus distintos de institucionalização. Este último aspecto comprovaria a tese de distinções “quantitativas”, e não de “qualidade” entre sociedades centrais e periféricas.

a) A reconstrução histórica e institucional
das fontes morais do mundo moderno

Para tentar evitar mal-entendidos talvez seja necessário dizer, desde o início, que não me interessa o uso que Taylor faz de suas investigações no contexto do debate sobre o multiculturalismo – tema em relação ao qual ele é, talvez, mais conhecido. Aqui me interessa seu ponto de partida comunitarista como uma hermenêutica do espaço social a partir da sua crítica ao “naturalismo” que perpassa tanto a prática científica quanto a vida cotidiana. É este ponto de partida que permite articular precisamente a configuração valorativa implícita ao racionalismo ocidental, que dá ensejo, como veremos, a um tipo específico de hierarquia social e uma também singular noção de reconhecimento social baseada nela. São, portanto, precisamente as consequências “universalistas” do argumento de Taylor que me interessam, ao contrário do seu uso pelo próprio autor.177

Sua crítica à concepção reificada de Estado e mercado enquanto grandezas sistêmicas – como vemos tanto em Luhmann quanto em Jürgen Habermas, por exemplo – parece-me certeira e de importância decisiva para uma compreensão mais adequada do processo de expansão do racionalismo ocidental do centro para a periferia, a qual se realiza pela exportação dessas instituições enquanto “artefatos prontos” no sentido weberiano do termo.178 A negação do caráter simbólico e cultural contingente materializado na prática dessas instituições – a negação, portanto, da hierarquia valorativa opaca, mas por isso mesmo extremamente eficaz, que se atualiza nessas instituições e na sua prática cotidiana –, percebendo-a como uma grandeza regida segundo critérios de eficácia, equivaleria a reduplicar, na dimensão conceitual, o efeito do “naturalismo”, ou seja, a negação de qualquer eficácia prática das realidades morais na vida prática.

Fundamental na empreitada tayloriana é que ele consegue reconstruir a hierarquia valorativa subjacente e opaca que se materializa, antes de tudo, nessas duas instituições centrais do mundo moderno, a qual comanda irrefletida e inconscientemente nossas disposições e nosso comportamento cotidiano. Nesse esforço reconstrutivo, o que torna a reflexão tayloriana de interesse para as ciências sociais é que sua reconstrução da “história das ideias”, acerca das fontes morais do mundo moderno, não é um fim em si. Sua estratégia é compreender a gênese ou arqueologia das concepções da “boa vida” e de como essas evoluíram e adquiriram eficácia social. Este ponto é crucial. Não interessa a Taylor uma mera história das ideias, mas como e por que estas lograram tomar os corações e as mentes das pessoas comuns. Daí sua empresa ser sociologicamente relevante. Ele se interessa, portanto, em primeiro lugar, pela eficácia das ideias morais efetivamente institucionalizadas e de fato internalizadas e “incorporadas” – literalmente tornadas “corpo” e realidade pré-reflexiva que atualizamos o mais das vezes sem o saber –, e não por seu conteúdo ou “doutrina”. Este último só é importante na medida em que explica as razões da sua aceitação coletiva.

Nesse sentido, o estudo dos autores não é perseguido como uma “exegese da obra”, mas a partir ou de seus “efeitos práticos” na realidade institucional e cotidiana das pessoas comuns ou pelo seu caráter de “exemplaridade” enquanto espelho de concepções destinadas a guiar a vida prática. Platão é uma figura central nesse contexto. Ele é percebido por Taylor como o primeiro grande sistematizador da ideia fundante de toda a concepção moral do Ocidente, qual seja, a ideia de que o eu é visto como ameaçado pelo desejo (em si insaciável), devendo, portanto, ser subordinado e regido pela razão. A importância dos escritos platônicos sobre essa noção singular de virtude e de bem não é consequência do fato de que as pessoas passaram a “ler Platão” e se deixaram influenciar por suas ideias. Não é deste modo que as ideias morais adquirem importância prática. As pessoas que sabem ler – especialmente na antiguidade – e que se interessam por este tipo de leitura são, e sempre foram, uma ínfima minoria. As ideias morais têm que ser “institucionalizadas” para adquirirem real eficácia prática e social.

Assim, a concepção de virtude platônica só foi decisiva para a história social e política do Ocidente porque o cristianismo adotou a perspectiva platônica da dominância da razão sobre as paixões enquanto específico “caminho da salvação” cristão. A noção de santidade e de virtude cristãs passaram a ser expressas nos termos da pureza platônica. Sociologicamente, o decisivo, portanto, é que a Igreja, ou seja, cada padre e cada pequena paróquia no mundo inteiro passou a estimular o comportamento “prático” de sua clientela em um sentido muito específico. É desse modo que as “ideias” adquirem importância prática e concreta.

Ao mesmo tempo, Santo Agostinho, ao se apropriar da tradição platônica, engendra uma novidade radical que será fundamental para a especificidade do Ocidente: a noção de interioridade. Foi essa vinculação entre uma noção muito singular de virtude com a necessidade religiosamente motivada – o interesse ideal na salvação de parte de todos os fiéis – que tornou a linguagem da interioridade e a noção de virtude como repressão dos afetos do “corpo” irresistível.

O vínculo entre as ideias dominantes no Ocidente e a sua eficácia são percebidos – uma óbvia correspondência com Max Weber – como um processo interno à racionalização religiosa ocidental. Desse modo, as concepções de bem, articuladas idealmente – moralidade e ideia –, são vinculadas a “interesses ideais” específicos a partir do “prêmio” religioso da salvação. A reconstrução desse vínculo é fundamental para a percepção adequada da eficácia das ideias na vida prática, pois as pessoas comuns não costumam guiar suas vidas e seu comportamento cotidiano porque se “convenceram da justeza de certas ideias”. Ao contrário, as pessoas seguem certos ideários porque satisfazem seus interesses práticos, sejam estes materiais ou ideais, percebidos por todos como os mais fundamentais para a vida cotidiana. É preciso existir um “componente afetivo” – quase sempre a mera legitimação da vida que se leva –, como Durkheim afirma contra Kant, para que a ideia moral possa lograr obediência generalizada.

É esta circunstância que explica o lugar paradigmático de Santo Agostinho na empresa tayloriana. O processo de institucionalização da virtude platônica e o processo de constituição da ideia de uma “interioridade” do sujeito individual iniciado por Agostinho são radicalizados por Descartes. A partir dele existe uma mudança fundamental nos termos e na forma como a virtude é concebida.179 Essa mudança é radical, posto que inverte as noções de virtude e de bem que imperavam até então. A ética da honra e da glória da antiguidade é reinterpretada em termos do ideal cartesiano de controle racional. A racionalidade deixa também de ser substantiva e passa a ser procedural. Racional passa a significar pensar de acordo com certos cânones. É esse novo sujeito moral que Taylor chama de “self pontual”. Locke será o sistematizador do novo ideal de independência e autorresponsabilidade, interpretado como algo livre do costume e da autoridade local, transformando o “self pontual” no fundamento de uma teoria política sistemática.

O self, o “eu”, é pontual, posto que “desprendido” de contextos particulares e, portanto, remodelável por meio da ação metódica e disciplinada. A essa nova maneira de ver o sujeito, desenvolvem-se uma filosofia, uma ciência, uma administração e técnicas organizacionais, destinadas a assegurar seu controle e disciplina. A noção de self desprendido – de passado, família e classe como no sujeito liberal clássico –, por estar arraigado em práticas sociais e institucionais, é “naturalizada”. Essas ideias germinadas durante séculos de razão calculadora e distanciada e da vontade como autorresponsabilidade, que somadas remetem ao conceito central de Taylor de self pontual, não lograram dominar a vida prática dos homens até a grande revolução da Reforma Protestante.

Aqui outro óbvio ponto em comum com Max Weber. Para os dois pensadores a Reforma Protestante foi a parteira tanto da singularidade cultural quanto moral do Ocidente. A Revolução Protestante realiza na prática, no espaço do senso comum e da vida cotidiana, a nova noção de virtude ocidental. Daí que, para Taylor, a noção de self pontual tenha que ser acrescida da ideia de “vida cotidiana” para a compreensão da configuração moral que nos domina hoje. O tema da vida cotidiana está em oposição à concepção platônica ou aristotélica que exaltavam a vida contemplativa por oposição à vida prática. A revolução de que fala Taylor é aquela que redefine a hierarquia social a tal ponto que agora as esferas práticas do trabalho e da família, precisamente aquelas esferas nas quais todos sem exceção participam, passam a definir o lugar das atividades superiores e mais importantes.

Ao mesmo tempo, ocorre um desprestígio das atividades contemplativas e aristocráticas anteriores. A sacralização do trabalho, especialmente do trabalho manual e simples, de origem luterana e depois genericamente protestante, ilustra a transformação histórica de grandes proporções para toda uma redefinição da hierarquia social que é nosso fio condutor neste texto.

Taylor percebe que as bases sociais para uma revolução de tamanhas consequências devem-se à motivação religiosa do espírito reformador. Ao rejeitar a ideia do sagrado mediado, os protestantes rejeitaram também toda a hierarquia social ligada a ela. Este é o fato decisivo aqui. Como as gradações da maior ou menor sacralidade de certas funções (papa, cardeal, bispo, padre) é a base da hierarquia (religiosa) das sociedades tradicionais, desvalorizar a hierarquia baseada nesta ordem é retirar os fundamentos da hierarquia social como um todo, tanto da esfera religiosa em sentido estrito quanto das outras esferas sob sua influência.

Desse modo, abre-se espaço para uma nova e revolucionária (dado seu potencial equalizador e igualitário) noção de hierarquia social que passa a ter por base o “self pontual” tayloriano, ou seja, uma concepção contingente e historicamente específica de ser humano presidido pela noção de calculabilidade, raciocínio prospectivo, autocontrole e trabalho produtivo como os fundamentos implícitos tanto da sua autoestima quanto do seu reconhecimento social. O fato de estes fundamentos serem implícitos não retira sua validade e eficácia prática. Ao contrário, a aumentam na medida em que retira a possibilidade de sua crítica racional.

Seu caráter implícito ou opaco significa apenas que teremos que estudar seus “efeitos práticos” para perceber sua eficácia. As representações conscientes e intencionais vão tender a desempenhar um caráter legitimador e distorcido da realidade, “inflando o ego” do super-homem comum que se pensa livre, autônomo, independente, autotransparente, consciente de si e do mundo e criador dos valores e das escolhas que guiam sua própria vida. Os comerciais de cigarros e de carros todos se valerão desse tipo de autorrepresentação superficial e infantil de si mesmo que marca a personalidade moderna.

Os suportes sociais dessa nova concepção de mundo, para Taylor, são as classes burguesas da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França, disseminando-se depois pelas classes subordinadas destes países e depois por diversos países com desvios e singularidades importantes.180 A concepção do trabalho nesse contexto enfatizará não o que se faz, mas o “como se faz o trabalho” (Deus ama advérbios). O vínculo social adequado às relações interpessoais passa a ser de tipo contratual (e por extensão a democracia liberal contratual como tipo de governo). Em linguagem política essa nova visão de mundo será consagrada sob a forma de direitos subjetivos e, de acordo com a tendência igualitária, definidos universalmente. Taylor chamará o conjunto de ideais que se articulam nesse contexto de “princípio da dignidade”. Dignidade designará, portanto, a possibilidade de igualdade tornada possível ainda que nunca efetivamente realizada – o autor não realiza essa crítica da dialética entre aparência e realidade –, por exemplo, nos direitos individuais potencialmente universalizáveis. Em vez da “honra” pré-moderna, que pressupõe distinção e privilégio, a dignidade moderna pressupõe pelo menos a possibilidade de reconhecimento universal entre iguais.181

Mas esta não é a única fonte da moralidade moderna para Taylor; essas fontes para ele são duas e estão, antes de tudo, em contradição uma com a outra. Toda sua genealogia da hierarquia valorativa do Ocidente, umbilicalmente ligada a um diagnóstico da modernidade que enfatiza, além de suas conquistas, também suas contradições e perigos, está ancorada em uma ambiguidade e contradição central constituída pela oposição entre a concepção instrumental e pontual do self e a configuração expressivista do mesmo. No expressivismo, a ideia central, por oposição ao tema da dignidade do self racional e pontual que é universalizável, é a da originalidade de cada pessoa; aqui o tema é a “voz” particular de cada um, enquanto tal, única e inconfundível.

O contexto de concorrência com a noção de dignidade do self pontual tem a ver com o fato de que o caminho para o acesso à fonte da moralidade é o mesmo nos dois casos, ou seja, implica a virada à interioridade e à subjetivação comum a todas as formas modernas de dotação de sentido e moralidade. Apesar de ambas pressuporem as noções de subjetividade e interioridade – o que para Taylor apenas aprofunda a rivalidade entre as duas configurações –, o “bem moral” é antinômico e não poderia ser mais diverso. E é precisamente por ser internalizada e única, referindo-se portanto a uma realidade original e particular, que a normatividade que daí se abstrai é aquela que exige que “se deve viver de acordo com essa mesma originalidade”.182

Para que esse contexto adquira força normativa, isto é, seja percebido como obrigatório e vinculante pelas pessoas que vivem sob sua égide, é necessária a revolução histórica que permite renomear as paixões em sentimentos. Em vez de conceber a natureza interna como um campo de pulsões incontroláveis e perigosas, o que equivale à denominação negativa das paixões, descobre-se, diferentemente, um campo fundamental que passa a ser percebido como a fusão do sensual e sentimental com o espiritual, no qual os aspectos sensual e sentimental passam a ter a proeminência. A experiência e a expressão das “profundezas interiores” passam a ter também um conteúdo normativo. A novidade radical em jogo aqui é que a compreensão do que é certo ou errado passa a ser percebida não apenas como um assunto que requer reflexão distanciada e cálculo instrumental, mas também, e em especial, como algo ancorado nos nossos sentimentos. Moralidade passa a ter de certo modo uma voz interna.183

Essa realidade inexiste antes de sua articulação e não devemos esperar por modelos externos para ela. O acesso às “profundezas do self” só é possível ao sujeito dotado de poderes expressivos. Mas todos nós estamos sob a égide da atração da concepção da “personalidade sensível”, ainda que ela assuma formas pasteurizadas como nas novelas, nos best-sellers e na propaganda. Que exista uma forma kitsch que procura “vender” aquilo que não se compra, isso mostra, pelo avesso, a penetração e a importância objetiva da fonte moral expressiva para todos nós. Pierre Bourdieu, inclusive, transformou a busca expressiva degradada em “procura pela distinção” no mecanismo universal do racismo de classe que legitima todo tipo de privilégio injusto na França moderna.184

Apesar de as duas formas de interioridade implicarem uma radicalização do subjetivismo, são também rivais e se excluem mutuamente enquanto tipos puros, apesar de a regra empírica ser o compromisso e a interpenetração. Exercer uma forma de maneira consequente é abdicar da outra. O sujeito moderno que reconhece as duas fontes está, portanto, constitutivamente em tensão.185

A localização e explicitação desses princípios pode nos ajudar a identificar os mecanismos operantes, de forma opaca e implícita, na distinção social entre classes, gêneros, “raças” e grupos sociais distintos em sociedades determinadas. Podem nos ajudar a identificar os “operadores simbólicos” que permitam a cada um de nós na vida cotidiana hierarquizar e classificar as pessoas como mais ou menos, como dignas de nosso apreço ou de nosso desprezo. O acesso a essa “hierarquia valorativa” equivale a devolver a “transparência” e “reculturalizar” o que foi tornado “opaco” e “naturalizado” no mundo moderno: nada mais nada menos que o critério mais importante da vida social, que são os princípios que esclarecem o que “classifica” ou “desclassifica” as pessoas. Não existe nada mais importante que o desvelamento dos princípios que, ao mesmo tempo, justificam e encobrem todo tipo de privilégio injusto no Ocidente e nas sociedades ocidentalizadas. Voltaremos ao expressivismo mais adiante. Por enquanto nos interessa o princípio da dignidade e sua importância jurídica e política no mundo moderno.

Assim, ao contrário, por exemplo, do critério hierarquizador da civilização hindu tradicional, no qual o princípio da pureza ritual classificava, e ainda classifica, em alguma medida, as distintas castas sociais,186 no Ocidente passa a ser o compartilhamento de uma determinada estrutura psicossocial, que Taylor denomina de “princípio da dignidade”, o fundamento implícito do reconhecimento social. É essa estrutura psicossocial que é o pressuposto da consolidação de sistemas racionais-formais, como mercado e Estado, e depois produto principal da eficácia combinada dessas instituições. Sem a efetiva incorporação das disposições sociais pressupostas no “princípio da dignidade”, como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, não existe sucesso possível, seja na escola, seja no mercado de trabalho mais tarde. Nosso estudo teórico e empírico sobre os excluídos no Brasil comprova essa realidade sobejamente, como teremos ainda ocasião de argumentar com mais detalhes.

É a generalização dessas mesmas precondições que torna possível falar em cidadania, o conjunto de direitos e deveres no contexto do Estado-nação, supostamente compartilhável por todos, em uma pressuposição de efetiva igualdade. É aqui, precisamente, que a comparação entre sociedades mais ou menos igualitárias – como a brasileira – permite entrever a singularidade social destas últimas, como veremos adiante. As considerações de Taylor sobre a dignidade, enquanto fundamento da autoestima individual e do reconhecimento social, remetem, portanto, à relação entre o compartilhamento de uma economia emocional e moral contingente à possibilidade de reconhecimento social para indivíduos e grupos. É neste ponto que uma reflexão amputada do direito que se vincula apenas ao ordenamento positivado mostra toda sua superficialidade: afinal, para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada.

b) A realidade concreta e empírica das fontes morais

Existem três limitações fundamentais para um aproveitamento consequente do ponto de partida tayloriano na sociologia. No nível de abstração da reflexão levada a cabo por Taylor, não fica claro de que modo essa nova hierarquia que passa a ser implementada por mercado e Estado se torna eficaz como base da classificação social e do valor diferencial entre indivíduos e classes sociais. A reconstrução hermenêutica de Taylor, por mais importante que efetivamente seja, apresenta pelo menos três dificuldades para seu aproveitamento sociológico e empírico consequente:

1) Não fica claro como essas fontes morais são “institucionalizadas” e transformadas em “prática institucional” cotidiana, de modo a serem internalizadas – de modo consciente ou pré-reflexivo – pelos agentes;

2) Também não fica claro de que modo as “fontes morais” são “incorporadas”, literalmente, como se tornam “corpo”, comportamento automático e pré-reflexivo pelos agentes;

3) Nem como as mesmas fontes, na medida em que constituem a hierarquia social responsável pela atribuição de reconhecimento social e autopercepção de autoestima de cada um de nós, se transforma em mecanismo de legitimação de privilégios e desigualdades injustas.

Sem que possamos esclarecer devidamente esses três passos, não podemos também explicar por que Taylor simplesmente não “sonhou” e acordou na manhã seguinte convencido da eficácia dessas categorias, mas que elas, de fato, para além de qualquer dúvida razoável, são partes orgânicas e substanciais da vida prática de todos em todas as sociedades modernas, centrais ou periféricas, quer tenhamos disto consciência ou não. Esses passos de concretização são necessários para lograr transformar a filosofia hermenêutica filosófica tayloriana em uma sociologia crítica da realidade de qualquer sociedade moderna, central ou periférica.

Para responder a essas três questões, intimamente interdependentes entre si, e avançarmos ainda mais um passo no nosso esforço de concretização de análise, gostaria de usar as investigações de Michel Foucault e Pierre Bourdieu – de modo seletivo e para meus próprios objetivos – a fim de complementar e concretizar o argumento tayloriano. Aspectos centrais da obra desses dois autores permitem tematizar a questão fundamental que possibilita pensar como e de que modo tanto o reconhecimento social quanto o sentimento de autoestima, objetivamente produzidos, podem ser implementados de forma institucional e, enfim, serem inscritos nas disposições individuais – automáticas e pré-reflexivas – que esclarecem o comportamento dos indivíduos concretos. A partir da compreensão desses passos, torna-se, por sua vez, possível perceber a tese central deste texto: a existência de uma “hierarquia valorativa” opaca, mas por isso mesmo muito eficaz, como núcleo da condição de possibilidade de se estabelecerem distinções sociais a partir de signos sociais opacos, mas perceptíveis por todos de maneira pré-reflexiva. Essa “hierarquia valorativa”, em seus traços mais gerais pelo menos, é o que perfaz a dimensão simbólica de qualquer sociedade moderna, seja ela central ou periférica.

Sob vários aspectos, a união das perspectivas desses três autores parece-me interessante. Essas perspectivas me parecem, antes de tudo, complementares, no sentido de desenvolverem aspectos que suprem deficiências importantes uma da outra. Se falta a Taylor uma teoria contemporânea da luta de classes, na medida em que fala do ponto de vista do intelectual canadense do final do século XX, quando é suposto que as sociedades centrais estivessem pacificadas internamente dos conflitos de classe mais virulentos, e estariam entrando em uma fase de rearticulação das suas lutas políticas,187 temos em Foucault e Bourdieu uma sofisticada análise da forma opaca e refratada que a dominação ideológica, mascarando seu caráter de classe, assume na modernidade tardia.

A perspectiva desses dois estudiosos franceses nos permite, acredito, ir além de um conceito de reconhecimento que assume, pelo menos tendencialmente, como realidade efetiva a ideologia da igualdade prevalecente nas sociedades centrais do Ocidente. Ao mesmo tempo, por outro lado, a genealogia da hierarquia implícita que comanda nosso cotidiano, desenvolvida de forma soberana por Taylor, ajuda a esclarecer o calcanhar de Aquiles de todo o argumento de Foucault e de Bourdieu. Afinal, ambos autores franceses, cada um a seu modo, acabam por transformar qualquer realidade valorativa em mero epifenômeno de uma concepção totalitária do poder, no caso de Foucault, ou, como ocorre em Bourdieu, retira qualquer autonomia da instância moral percebida como um disfarce mais ou menos sutil de interesses contextuais de poder. A favor de Taylor e também de autores como Axel Honneth neste particular, há que se perceber que a concentração unicamente no aspecto instrumental da disputa por poder relativo entre as classes em luta por recursos escassos não deixa perceber que esta mesma luta ocorre em um contexto que pressupõe sempre algum aprendizado moral produzido de forma intersubjetiva – o que mantém sua contingência e, assim, a necessidade de seu aperfeiçoamento crítico, mas retira o dado arbitrário de mera imposição de poder do mais forte.188

A teoria do reconhecimento pode, nesse sentido, dar conta do mecanismo generativo do “consenso normativo mínimo” compartilhado intersubjetivamente e que, na realidade, contextualiza e filtra as chances relativas de monopólio legítimo na distribuição dos recursos escassos pelas diversas classes sociais em disputa em dada sociedade, mecanismo este secundarizado e não devidamente tematizado por Foucault ou Bourdieu. Apesar da sua unilateralidade, no entanto, a contribuição de autores como Foucault e Bourdieu para uma compreensão da dominação simbólica específica à modernidade tardia, seja central ou periférica, parece-me, por outro lado, também fundamental.

Tentarei responder as duas primeiras questões a que nos propusemos anteriormente para um esforço de concretização da fonte moral da “dignidade” neste subcapítulo, deixando a terceira para a última parte do capítulo. Recordando: como a noção objetiva mas inarticulada de dignidade se transforma em “imperativos institucionais”, constrangendo de tal modo todos os indivíduos que vivem sob sua égide que estes mesmos imperativos são tornados “carne e osso”, se transformando em disposições pré-reflexivas que comandam – sem que o agente tenha, quase sempre, consciência disso – seu comportamento prático e cotidiano?

Os dois conceitos, um de Foucault e o outro de Bourdieu, respectivamente, que ajudam a esclarecer essas questões centrais são o de “poder disciplinar” e o de “habitus”. O surgimento do poder disciplinar é percebido por Foucault no contexto da mudança da punição na passagem do que ele chama de “período clássico” para a época moderna.189 Foucault nota que dentro de um tempo histórico muito exíguo mudam as formas de punição de modo flagrante. Em vez da teatralização do suplício e do espetáculo público da punição temos, quase que de uma hora para a outra em termos históricos, o advento do espírito contrário: punir passa a ser indecoroso e deve ser mantido em segredo. A interpretação clássica – e “a posteriori” – deste processo fala de uma “humanização” da punição e da sociedade como um todo.

Esse tipo de interpretação legitimadora não convence Foucault. Ele parte do princípio que o tema da punição e sua mudança estrutural são excelentes pontos de partida para a descoberta das regras opacas que regem a sociedade moderna. Desse modo, Vigiar e punir não é apenas um livro sobre a prisão, mas também sobre uma específica articulação saber/poder que muda radicalmente a forma como se realiza a dominação e a legitimação da ordem social como um todo. Quais as razões profundas da nova economia do punir? Essa é a verdadeira questão desse livro já clássico da teoria crítica contemporânea. A resposta do autor se concentrará nas razões para uma nova economia do controle social como um todo. Ela passa a se exercer agora não mais sobre o “corpo”, mas sobre a “alma” do criminoso.

Como essa nova “técnica do poder” se alastra para toda a sociedade e abrange não apenas as prisões, mas ainda as fábricas, as escolas, os hospitais, os tribunais assim como todas as práticas sociais, estamos diante do processo que constitui, através de novas práticas e técnicas institucionais, não apenas o criminoso, mas o “indivíduo moderno” enquanto tal. O objetivo explícito de Foucault é produzir a história da alma moderna, partindo – mas não se limitando – da elaboração de uma genealogia desse novo poder de julgar.190 A punição e o complexo punitivo são percebidos como uma função complexa, opaca e abrangente compreensível apenas a partir de uma nova tecnologia do poder baseada no “conhecimento do homem”. E mais ainda, a prática punitiva é compreendida como uma maneira de perceber as enormes transformações implícitas na maneira como o “corpo” é investido e reinventado pelas relações de poder.

O projeto não poderia ser mais atraente nem nos interessar mais de perto: trata-se de compreender como uma nova ideia e uma nova legitimação moral que se articula a ela – uma nova “hierarquia moral” no sentido de Taylor, portanto – constrói e transforma instituições e práticas sociais de modo a “fabricar” um novo tipo de ser humano que corresponde a essa nova hierarquia. Quais os estímulos institucionais que tornam possível a “incorporação” dessa nova hierarquia pelos sujeitos? De que modo os estímulos não apenas “negativos” – ligados à punição – mas também os “positivos” do novo dispositivo de poder ajudam a sustentar toda uma nova visão de mundo e de sociedade?

O segredo da produção dessa nova tecnologia do corpo é a construção de corpos “dóceis e produtivos”, afinal, o corpo só pode ser percebido como força útil se for simultaneamente submisso e produtivo. Ao mesmo tempo, a “docilidade” só pode ser conseguida se o “corpo não tiver consciência” de sua própria submissão. Esse é precisamente o alfa e ômega que perfazem a nova tecnologia do poder e o novo edifício da dominação social. Como a nova tecnologia do corpo pressupõe que o próprio agente participe ativamente da própria submissão, ela só é eficaz se seus mecanismos constitutivos permanecerem no limbo e nas sombras da percepção ordinária.

Como esta “opacidade” é produzida? De diversas maneiras. Primeiramente, essa tecnologia é uma espécie de “microfísica do poder”, como a chama Foucault para relevar seu caráter difuso e de difícil percepção que se atualiza em práticas institucionais e sociais concretas, mas que nunca ousam dizer de sua efetiva intenção e dinâmica. Como esse tipo de poder se atualiza antes em uma rede tensa de relações opacas à consciência, e não através de privilégios explicitamente assumidos, sua forma de ação é a de uma “estratégia”, cujo funcionamento obedece ao jogo de disposições, manobras, táticas e técnicas capilares, realizadas em “pequeno”. Esse modo de perceber o funcionamento do poder moderno é diametralmente oposto à forma dominante tanto para a consciência cotidiana quanto para as ciências afirmativas do mundo para as quais o Estado teria o monopólio do poder na sua relação com os cidadãos.

Para essa percepção dominante, o poder é “externo” ao agente, se impondo de “fora para dentro”. Para Foucault essa é a concepção de poder do que ele chama de período clássico, onde a crueldade do poder exposta nas torturas públicas e suplícios se destinava a esconder a própria fragilidade como mecanismo de submissão. Frágil precisamente porque dependente de coerção externa, necessitando de vigilância constante posto que é percebido como explícita heteronímia. O poder disciplinar é “invisível”, cujo caráter heterônomo escapa à consciência já que exercido como se fosse em benefício do submetido. É uma técnica a tal ponto ubíqua e intermitente que termina por se “naturalizar” como naturalizamos a respiração e o piscar de olhos.

No entanto, a “política dos tolos” que imagina o centro do poder no Estado, na verdade mera “teatralização do poder”, esconde a realidade de dois modos: primeiro é cega em relação ao jogo de interesses e influências que pré-decidem e antecipam aquilo que depois se torna política explícita – ou também quando não se tornam eficazes precisamente por jamais se tornarem “política explícita” – e depois, no ato mesmo de concentrar toda a atenção ao “teatro do poder” e não a sua prática, se torna um dos elementos fundamentais para a opacidade e invisibilidade desta última para a consciência cotidiana.

Ainda outra forma de produzir a opacidade da nova tecnologia dos micropoderes é a sua associação saber/poder. Como a nova forma de poder está sempre associada à produção de saberes, que controlam, classificam, julgam e hierarquizam os sujeitados, e o senso comum e as ciências da ordem imaginam que só há “saber” quando o “poder” se ausentou, a ideologia do “desinteresse do saber” serve como uma luva para tornar invisível sua verdadeira ação nos novos mecanismos de “sujeição voluntária”.

E como se realiza, na vida concreta, a lógica da nova dinâmica institucional do mundo moderno sob a égide do poder disciplinar? Dito de outro modo, como se criam “corpos dóceis”, plásticos, remodeláveis, “flexíveis” – o eufemismo preferido hoje em dia – para que possam ser usados, de acordo com as exigências do dia, para a reprodução do mercado e do Estado? Mais ainda, como mascarar a tal ponto a heteronomia e a arbitrariedade dos imperativos da reprodução de mercado e de Estado a tal ponto que esses imperativos sejam percebidos como desejados, queridos e realizados em proveito do submetido a sua égide? A resposta a essa questão é o segredo da dominação “sutil” do poder disciplinar para Foucault. Um corpo dócil para Foucault é aquele que pode ser submetido, sujeitado e, a partir disso, utilizado, transformado e aperfeiçoado. No advento da modernidade, mudam a escala e a amplitude do processo de disciplinarização de maneira tão dramática que toda a sociedade passa a ter a disciplina e os processos disciplinadores como sua lógica principal. É esta sociedade que Foucault chamará de “sociedade do poder disciplinar”. Como vimos, a “elegância” e a “inteligência” deste poder é que ele não se mostra como poder, pois, diferentemente das formas mais pessoais e, portanto, mais óbvias de dominação, como os diversos modos de escravidão, servidão ou vassalagem, a dominação pela disciplinarização, que tem na “impessoalidade” e “universalidade” suas características principais, não se fundam na apropriação violenta e custosa dos corpos. Com isso se evita o “capricho” e a arbitrariedade do dominador pessoal. Precisamente por conta disso se quebra a “resistência” presente em todas as formas de dominação pessoal, seja de maneira latente ou manifesta. Além disso, poderíamos acrescentar, a “disciplinarização” passa a ser percebida como de “interesse” do disciplinado, na medida em que as possibilidades abertas pela disciplinarização do corpo para seu uso econômico e útil implicam em compensações materiais muito palpáveis. E o que a cegueira da dimensão moral em Foucault não o permite perceber é que também as compensações “imateriais” que se referem ao ganho em “reconhecimento social” e prestígio, associadas a esta mesma utilidade social, são decisivas para sua opacidade como instrumento de dominação e asujeitamento.

A percepção individual dos lucros ligados a essa forma de dominação impessoal é o que explica a “docilidade” não apenas econômica – autotransformação e flexibilização constante para fins econômicos –, mas também de uma “docilidade” política naturalizada e pensada como sendo exercida em proveito próprio. Além disso, a disciplina e o poder disciplinar são polimorfos. Podem assumir as formas de “cercamentos” e das instituições fechadas típicas da modernidade, como a escola, o quartel, o hospital e as fábricas, e pode também trabalhar o espaço de modo muito mais flexível e fino. O dado principal é a instauração de um “procedimento” (e não do resultado) que propicie o conhecimento, a dominação e a utilização dos corpos. A disciplina organiza um espaço “analítico”.191 Esse procedimento inaugura um princípio de apropriação da força de trabalho em todas as suas virtualidades – vigor, habilidade, rapidez, constância – de tal forma que se possibilite sua contabilização, apreciação e julgamento constantes. Esse tipo de controle se torna possível tanto por meio da separação entre o trabalhador e os meios de produção, analisada por Marx no contexto do mercado, quanto pela separação do burocrata dos meios de administração, analisada por Max Weber no contexto do aparelho estatal.

A disciplina permite a classificação e o cálculo da força de trabalho dispondo os corpos em uma “rede de relações hierárquicas”. Cada ato deve ser passível de decomposição em seus elementos constituintes. A posição do corpo, de cada membro, das articulações, cada movimento e cada “escolha” passa a ter seu tempo adequado, uma direção, uma amplitude. O “tempo” penetra o corpo e, com ele, todos os controles minuciosos do poder disciplinar.192 É precisamente essa “penetração” de uma lei heterônoma no corpo que produz o “automatismo disciplinar”.

É esse automatismo, por sua vez, que leva ao esquecimento da gênese e do caráter heterônomo da disciplina, explicando a “naturalização” do controle em “autocontrole”. Não existe mais “inimigo externo” que impõe seu arbítrio, e por isso mesmo estimula a resistência contra ele. A imposição do controle externo, depois de internalizada e “incorporada” (tornada corpo naturalizado e automatizado como o ato de respirar), é percebida como uma lei orgânica, natural e “nossa”, e não imposta ou estranha, exercida em nosso próprio nome e interesse. Sem que se perceba esse processo de tornar “natureza” a “cultura” disciplinar, não se percebe a singularidade de todas as práticas institucionais e sociais do mundo moderno. Como o poder heterônomo não é mais percebido como externo, arbitrário e estranho nem se trata mais de uma “apropriação física”, onde o dominador é visível e claro, a nossa “vontade” é seduzida por dentro, de modo sutil e imperceptível. É esse “pequeno” e “astuto” poder que passa a invadir as grandes estruturas impessoais e a determinar a sua lógica.

O poder disciplinar tornado espírito e ethos de todas as formas de práticas institucionais modernas – espírito este tanto mais eficaz, posto que não percebido enquanto tal – atualiza, na verdade, a entronização do princípio da “dignidade” no sentido de Taylor. Como vimos, o autor explora o sentido que este termo possui no senso comum – “digno” como aquilo que é nobre e valorável – e explica precisamente aquilo que escapa ao senso comum, que são a gênese e a causa de toda atribuição objetiva – no sentido de que todos nós a fazemos, quer queiramos ou não – de “valor social”. Taylor indica a gênese da “dignidade” moderna, não mais como qualquer “conteúdo” material, mas como um “procedimento”, exatamente como Foucault também percebe a entronização do poder disciplinar.

Passível de reconhecimento pelos seus pares – outros seres humanos nas condições da sociedade moderna ocidental, seja ela central ou periférica – é todo aquele ou aquela que tenha efetivamente “incorporado”, no sentido preciso que estamos usando o termo neste livro, o de realmente “tornar corpo” o autocontrole, a disciplina e o pensamento prospectivo. Esses são, afinal, como mostra Foucault sobejamente, os pressupostos para qualquer ação útil no mundo do trabalho, assim como, poderíamos acrescentar, para qualquer comportamento político “adequado” no mundo moderno. Disciplina e autocontrole são pressupostos necessários para o desempenho escolar e para o exercício de qualquer função produtiva no mercado. Mas também a noção de “cidadania” moderna, que implica o respeito ao espaço e aos direitos alheios, pressupõe a existência dessas disposições para o comportamento.

O que importa perceber é que este conceito procedural de “dignidade” substitui na sociedade moderna a atribuição de respeito e valor dependente de conteúdos específicos, por exemplo, independente da beleza, da bravura, do heroísmo, do estoicismo ou de qualquer tábula de virtudes que imperavam nos contextos pré-modernos. Importa também perceber que esta atribuição de valor ou de “reconhecimento social”, como preferem os neo-hegelianos, é tão “objetiva”, ubíqua e universal quanto o “poder disciplinar” descrito por Foucault. Em outras palavras, todos julgamos a nós mesmos e aos outros segundo os mesmos critérios. E isso não porque Taylor “dormiu” e acordou com essa ideia abstrusa ou “bateu a cabeça” e passou a defender essa hierarquia de valores estranha à consciência cotidiana, mas porque a lógica das instituições modernas, no mercado ou no Estado, pressupõem esse tipo de incorporação de disposições para o comportamento – é isso, afinal, que toda entrevista de emprego procura perceber: a “economia emocional” adequada à empresa ou ao Estado – como pressuposto em todos aqueles indivíduos que poderão ser utilizados pelo mercado ou pelo Estado.

Como a incorporação desses pressupostos psíquico-emocionais não é perceptível para o sujeito e seu uso como mecanismo de poder é imperceptível para a sociedade – como Foucault demonstra –, nós, que compomos o senso comum, não percebemos que estamos sob a égide e o comando deste poder disciplinar. Ele nos faz de “tolos”, na medida em que não temos consciência, e, portanto, nenhum controle das forças sociais que nos comandam a vida em todas as dimensões, mas isso não significa que este poder não exista. Ao contrário, é apenas porque ele nos faz de tolos que existe de modo tão eficiente.

c) O problema da dignidade humana em perspectiva comparada

Vimos que a “dignidade” existe ainda que esta seja “procedural” e vazia de conteúdo valorativo específico. “Digno” no mundo moderno é todo aquele passível de ser utilizado produtivamente pelas organizações do mercado e do Estado. Se isso acontece, essa pessoa é “útil” e o produto do trabalho dela contribui para o bem-estar social como um todo. De que modo preciso isso ocorre desde a socialização em casa, na escola, nas fábricas, nas firmas, nos hospitais, nos exércitos, na justiça, na administração do Estado em todos os níveis é precisamente o que Foucault analisou sob a forma de “poder disciplinar”.

Mas de que modo, poderia perguntar ainda teimosamente nosso leitor cético imaginário, esse poder disciplinar “entra” nas pessoas e não apenas explica o sentido e o objetivo da ação das instituições sobre nós, mas também a) por que nos sentimos como sentimos e por que nos avaliamos a nós mesmos e aos outros segundo essa hierarquia valorativa cujo vértice é o conceito procedural de dignidade? Mais ainda, b) como perceber, para além de qualquer dúvida razoável, a importância social e política desta questão para as sociedades modernas em geral e, muito especialmente, para as sociedades muito desiguais, como as periféricas semelhantes ao Brasil?

Para responder a primeira questão temos que compreender melhor o terceiro elo causal e explicativo, caminhando do nível mais abstrato ao mais concreto conforme estamos desenvolvendo neste texto. Primeiro a reconstrução histórico-hermenêutica, empreendida por Taylor, das fontes morais inarticuladas, redundando em uma “hierarquia valorativa” opaca à consciência cotidiana, que percebemos, não obstante, nos seus “efeitos”, como já vimos. Depois, no segundo momento, a reconstrução histórica, filosófica e sociológica de Foucault que percebe o produto principal do “poder disciplinar”, o sujeito plástico e remodelável que Taylor havia identificado como produto da noção procedural de “dignidade”.

Que Foucault não perceba os efeitos de “reconhecimento social” e, portanto, de moralidade “prática” que o sujeito “disciplinado” e “digno” aufere nas relações sociais práticas não é importante aqui. Afinal, podemos usar os autores de modo complementar de tal maneira que a combinação de suas perspectivas possa enriquecer a resposta às “nossas” questões, as quais são, por sua vez, diferentes das dos autores. Mais ainda falta um terceiro elemento nesse esforço de concretização. Esse elemento deve explicar de que modo essa hierarquia valorativa, reconstruída filosoficamente por Taylor e analisada por Foucault como o componente essencial do mecanismo de poder disciplinar institucional moderno, pode ser “incorporado” – literalmente tornar-se “corpo” automático e não refletido como respirar e piscar os olhos – nos sujeitos de modo “pré-reflexivo”. Se essa demonstração for possível, então poderemos mostrar a eficácia desta moralidade opaca em todas as dimensões da explicação sociológica.

Quem melhor compreendeu como certas “economias emocionais” que levam a uma percepção e avaliação do mundo muito peculiar em cada caso se torna “carne” e “sangue” nos indivíduos agentes foi, para mim, sem nenhuma dúvida, Pierre Bourdieu. Esta é, afinal, a questão central da sociologia como ciência: como a sociedade se “inscreve” em cada indivíduo e se reproduz a partir dele como se fosse “vontade livre” desse mesmo indivíduo? Descobrir isso equivale a penetrar um pouco mais no segredo mais bem-guardado de todas as sociedades, que é sua estrutura de reprodução de privilégios injustos. Na sociedade moderna os indivíduos se acreditam, como vimos, “sujeitos” do próprio destino, mas o são – quando o são – apenas em um nível muito pequeno. Na sociedade moderna os indivíduos creem em uma igualdade de oportunidades para quem “realmente quer vencer na vida”, mas também isso é, na enorme maioria dos casos, já pré-decidido por vantagens acumuladas desde o berço. A ideologia da “meritocracia”, que resulta desta crença ingênua, transforma constantemente privilégio social em “talento individual”. Como se explica a constituição de sujeitos – Foucault diria “assujeitados” – tão dóceis e inconscientes da dominação social da qual são, ao mesmo tempo, participantes e vítimas? Como a dominação impessoal e opaca da sociedade disciplinar toma conta da “alma” – e por extensão do corpo – de cada um de nós e nos transforma a todos, em alguma medida variável, em “marionetes” de um drama que atualizamos todos os dias, mas cujo sentido último nos escapa?193

O conceito de habitus em Bourdieu pretende dar conta precisamente deste segredo. O segredo mais bem-guardado de uma forma de dominação social que se apresenta como “justa”, “humana”, “democrática” e “igualitária”. Onde reside sua “sutileza” e extrema “astúcia”? Bourdieu desenvolve seu conceito por oposição às duas outras posições antagônicas na sociologia: por um lado o objetivismo, que pressupõe uma lógica que se impõe aos indivíduos sem que estes tenham participação; e por outro lado, o subjetivismo, que “compra” a percepção ingênua dos atores sobre si mesmos – como seres “livres” que “escolhem” sua própria vida – na dimensão da vida cotidiana. Exemplos de objetivismo são as diversas formas de “estruturalismo”. Exemplos de subjetivismo são as diversas formas de fenomenologia social e as teorias de escolha racional que abundam na economia e na ciência política.

A meu ver, Bourdieu não consegue efetivamente unir as duas perspectivas por razões que não podemos adentrar aqui.194 Sua perspectiva é majoritariamente objetivista, dada sua ênfase na “reprodução” da vida social. Não vejo qualquer problema nisso para nossos propósitos neste livro. Primeiro porque o núcleo da vida social é efetivamente reprodução – ainda que a mudança social seja um desafio importante para a teoria social – e a maior parte do que se apresenta como novo é o velho em outros disfarces. Depois, nossa questão neste texto é compreender como uma estrutura cognitiva e avaliativa de perceber o mundo, presente, por exemplo, no que Foucault chama de sociedade disciplinar, penetra na alma e nos corpos dos sujeitos de modo “sutil” e “imperceptível à consciência”, permitindo precisamente a reprodução do mundo tal qual ele é.

Se compreendermos isso, compreenderemos também como as “estruturas sociais” se introduzem “dentro” dos sujeitos e são, por sua vez, reproduzidas por eles. O objetivismo de Bourdieu é refinado o bastante para não pressupor nenhuma característica da “natureza humana” como explicação para a ação individual coordenada socialmente, mas sim o trabalho emocional e cognitivo que permite à socialização, especialmente a socialização familiar desde tenra idade, nos fazer quem realmente somos. Como isso é feito? Como as “hierarquias” do mundo, como a “hierarquia valorativa” que estamos pressupondo neste texto, penetram nos sujeitos mesmo que não tenham nenhuma consciência que é devido a elas que agem da forma como agem e que avaliam do modo como avaliam?

Existe efetivamente, em uma dimensão mais óbvia, todo um sistema de sanções e prêmios inscritos objetivamente nas práticas institucionais – por exemplo, salário, prestígio, distinções etc. – que permite estruturar, em grande medida, a experiência prática dos indivíduos e conduzi-la em certo caminho predeterminado. Mas esta é apenas a dimensão mais óbvia de como a estrutura social se “inscreve” nos sujeitos. É preciso mostrar como a “instituição” está “instituída” a partir de “dentro” do sujeito e não apenas “fora” dele. O habitus é a instância que explica como todo um sistema de estruturas cognitivas e motivadoras, ou seja, um sistema de disposições duráveis inculcadas desde a mais tenra infância, pré-molda e pré-decide possibilidades e impossibilidades, oportunidades e proibições, liberdades e limites de acordo com as condições objetivas. A comunidade consciente pressupõe uma comunidade inconsciente, ou seja, um conjunto não tematizado de competências linguísticas e culturais que permite não só a comunicação consciente, mas também o funcionamento semiautomático e irrefletido da vida cotidiana.

Fruto de dada condição econômica e social, o habitus implica a inscrição dessas precondições, especialmente as relativas às experiências infantis, que passam a ser traduzidas no sujeito como um conjunto de estruturas perceptivas e avaliativas que servirão como uma espécie de filtro para todas as outras experiências ulteriores. O habitus seria, portanto, um esquema de conduta e comportamento que passa a gerar práticas individuais e coletivas. Nesse sentido, o que parece ser para a perspectiva do realismo das estruturas a ação independente destas seria, na realidade, assegurada pela presença ativa desse depositário de experiências anteriores, que inscreve em cada organismo, sob a forma de esquemas de percepção, pensamento e ação, a garantia da “correção” de práticas no decorrer do tempo. É este princípio de continuidade e reprodução que o objetivismo percebe sem poder dar conta de sua gênese.

O habitus é o passado tornado presente, a história tornada corpo e, portanto, “naturalizada” e “esquecida” da própria gênese.195 A reprodução institucional só é possível dada a existência dessas disposições ajustadas a uma finalidade, revivendo e revigorando a letra morta depositada nessas instituições. É o habitus que produz a “mágica social” que faz com que pessoas se tornem instituições feitas de carne. Nesse sentido, o filho mais velho e herdeiro, o homem por oposição à mulher, são diferenças instituídas que tendem a se transformar em distinções naturais. As instituições, desse modo, precisam estar objetificadas não apenas em coisas e lógicas de funcionamento que transcendam os agentes, mas têm que estar também representadas nos “corpos” e em disposições de comportamento durável.

A meu ver, o grande aporte crítico da teoria do habitus é a ênfase no aspecto “corporal” e automático do comportamento social. O que para grande parte da tradição sociológica é “internalização de valores”, o que evoca tendencialmente uma leitura mais racionalista que enfatiza o aspecto mais consciente e refletido da reprodução valorativa e normativa da sociedade, para Bourdieu seria, ao contrário, o condicionamento pré-reflexivo, automático, emotivo, espontâneo, “inscrito no corpo”, de nossas ações, disposições e escolhas. Nossos corpos são, nesse sentido, na sua forma, dimensão, apresentação etc., a mais tangível manifestação social de nós mesmos. Nossos hábitos alimentares moldam nossa figura, nossa cultura e socialização formam todas as nossas manifestações expressivas em gestos, escolha de vestuário, corte de cabelo, forma de andar e falar, transformando o conjunto de nossas expressões visíveis em sinais sociais. É com base nesses sinais visíveis que classificamos as pessoas e os grupos sociais e lhe atribuímos prestígio ou desprezo.

Essa corporação ou incorporação de sentidos, significados e esquemas avaliativos dá-se desde a mais tenra infância, quando se aprende a treinar o corpo como “reservatório de valores”.196 Bourdieu localiza a base de sua sociologia primariamente nesses valores “tornados corpos”, fruto da persuasão invisível de uma pedagogia implícita que pode inscrever e naturalizar toda uma cosmologia, por estarem além da percepção consciente e se mostrarem apenas em detalhes tidos como insignificantes, como de comportamento físico, maneiras de falar, andar e se portar. Esses detalhes, aparentemente insignificantes, apontam, no entanto, para características essenciais do comportamento social.

Desse modo, o corpo funciona como uma espécie de “operador analógico”197 das hierarquias prevalecentes no mundo social. Assim, a oposição homem/mulher é manifestada em posturas, gestos, formas de sentar, andar, na maneira de ver direta do homem que se contrapõe à reserva feminina, por exemplo. Essa manifestação se dá em hábitos aparentemente inexpressivos como a forma de comer, que no homem se dá com toda a boca, de garfo cheio, enquanto na mulher a contenção indica reserva ou dissimulação, já que, como observa Bourdieu, as virtudes dos dominados são sempre ambíguas. O corpo é, enfim, o campo de forças de uma hierarquia não expressa – entre sexos, classes ou grupos de idade –, contribuindo decisivamente para a naturalização da desigualdade em todas as suas dimensões.

d) A linha invisível da dignidade

Como identificar, para além de qualquer dúvida razoável, a importância desta noção do funcionamento da sociedade moderna para a questão da percepção da “hierarquia valorativa” que ela pressupõe, seja para sociedades centrais, seja para sociedades periféricas? Toda a reconstrução prévia, do nível mais abstrato ao mais concreto, implicava poder perceber por que e como obedecemos a estruturas valorativas que não construímos e que respeitamos em grande medida sem o saber. O que importa é perceber que obedecemos efetivamente e nos avaliamos segundo os critérios dessa hierarquia opaca.

Como parece “natural” às práticas institucionais às quais estamos todos submetidos, e está “naturalizada” em nós mesmos nos mecanismos que constroem nosso habitus, só a identificamos nos seus “efeitos”. Mas esses efeitos podem ser tornados explícitos pela reflexão científica. No seu estudo sobre as hierarquias opacas efetivas na sociedade francesa moderna198, Bourdieu utilizou a segunda fonte moral descrita por Taylor como “autenticidade” ou “expressivismo”. Para Bourdieu se tratava de perceber a luta de classes na França e a legitimação de privilégios injustos a partir da luta pelo monopólio na definição da “personalidade sensível”, ou seja, pela definição do “bom gosto” como fruto do “talento individual”. Essa definição fazia com que o acesso a todo tipo de recurso escasso, seja ele material ou não material, aparecesse como “merecido” por aqueles que se percebiam e eram efetivamente percebidos como “mais sensíveis” e, portanto, “melhores” seres humanos.

Em um país como o Brasil, onde também há uma luta pela “distinção social” nos termos que Bourdieu analisou na França, existe também, certamente de modo muito mais virulento do que em países como a França ou a Alemanha, uma “luta pela dignidade”, no sentido procedural que explicitamos anteriormente. Afinal, antes da luta social pela “personalidade sensível”, sob a égide da busca pela “autenticidade”, existe a luta pela “personalidade útil”, sob o manto da busca pela dignidade. Essa luta não é consciente, assim como a luta pela distinção também não o é, mas produz seus efeitos terríveis todos os dias em sociedades como a brasileira. Em nossos trabalhos coletivos procuramos perceber a importância do tema da “dignidade” a partir das classes sociais que se definem por sua “falta”.199

A hipótese que estamos desenvolvendo quer dizer que produzimos avaliações “objetivas”, socialmente construídas, ainda que estejam em nós mesmos, no nosso habitus, dentro de nós. Mas não as “escolhemos” livremente como pensa o subjetivismo ético do senso comum. Também não classificamos essas pessoas meramente pela sua “renda” como pensam quase todas as ciências sociais “economicistas” de hoje em dia e quase todos os especialistas que falam nos jornais. A sociedade e todos nós em alguma medida desprezamos – ou temos “pena”, o que é apenas o outro lado da moeda de quem não merece nossa admiração e respeito – quem não é “disciplinado”, autocontrolado, e que não incorporou na sua economia emocional aquelas qualidades emocionais e psíquicas que formam o “cidadão digno” e o “trabalhador útil”.

Mais uma vez: a “dignidade moderna” está ligada não a valores substanciais como a “honra”, mas a um conjunto de qualidades e disposições para o comportamento “incorporadas”, em grande medida pré-reflexivas, que formam, no entanto, uma economia emocional, moral e cognitiva singular e produto de dado momento histórico. Também de modo pré-reflexivo, reagimos todos, quer tenhamos consciência disto ou não, à existência ou à falta dessas disposições com atitude de respeito, por um lado, ou de desprezo ou pena, por outro. Também as instituições reagem do mesmo modo, seja em uma entrevista de emprego no mercado, seja em um concurso público para o Estado.

A palavra “dignidade” é controversa posto que o senso comum a povoa com um sentido difuso quase sempre ligado a valores substantivos como honestidade, altivez, honradez etc. Como o senso comum fragmentado não percebe a dimensão pré-reflexiva da vida social, essa alusão a valores substantivos é não só compreensível, mas necessária. Por outro lado, apesar de sua invisibilidade enquanto elemento constitutivo de nosso comportamento prático, o termo “dignidade” é interessante precisamente porque materializa o “respeito” objetivo para todo aquele ou aquela que possui essas disposições e que, portanto, pode contribuir como “produtor útil” para o bem geral sob as condições da competição capitalista. A transformação de si mesmo como “meio para todos os fins” heterônomos que marcam o trabalho, seja no mercado, seja no Estado, é aqui o elemento decisivo.200

Mais importante ainda para nossos propósitos neste livro é o fato de que essa “linha invisível” pode ser tornada visível e perceptível pelo trabalho empírico teoricamente informado e crítico. A pesquisa empírica bem-construída possui vários inimigos que não são privilégio de brasileiros ou de cientistas da periferia. Também em nível mundial a realidade dos excluídos é tornada invisível pelos mesmos “inimigos”: a percepção liberal da sociedade, que universaliza as disposições de comportamento da classe média para todas as classes subalternas, permitindo “culpá-las” pelo próprio fracasso, e, por outro lado, a percepção “politicamente correta”, apenas superficialmente crítica, que assume o discurso do excluído sobre si mesmo como sua verdade.

Os estudos “politicamente corretos” são especialmente insidiosos, posto que se pretendem “críticos” e de “esquerda” e consideram “progressista” a atitude ingênua de aceitar como verdade o discurso do oprimido sobre si mesmo. No entanto, a descrição do excluído abaixo da condição de “dignidade” sobre sua própria condição é necessariamente “reativa”, ou seja, tende a negar subjetivamente a condição sub-humana que vive em seu cotidiano. O distanciamento reflexivo da própria condição só é possível para quem tem acesso à possibilidade de mudar a própria vida. Para quem não tem acesso a “outros possíveis”,201 resta fantasiar ou negar a própria realidade. No entanto, essa perspectiva é francamente dominante nos estudos sobre os excluídos tanto no Brasil quanto no mundo afora.202

Em nossa pesquisa empírica realizada entre 2004 e 2008, levada a cabo em diversas regiões brasileiras, desenvolvemos um método empírico original baseado nas pesquisas de Pierre Bourdieu na Argélia203 e de Bernard Lahire204 na França. Essa metodologia implicou em entrevistas sucessivas com os mesmos entrevistados de todos os tipos sociais que compõem a “ralé brasileira”. Nossa principal atenção foi dirigida precisamente para os fatores sociais que implicam a construção de um “habitus precário” – ou seja, um habitus incapaz de incorporar as disposições que perfazem a dignidade no seu sentido procedural – para toda essa classe. Se nas primeiras entrevistas a vida familiar era invariavelmente pintada em tons cor-de-rosa com pais amorosos e dedicados, as entrevistas subsequentes permitiam mostrar rachaduras cada vez mais visíveis no idílio construído pelos excluídos sobre a própria realidade.

Assim, os pais amorosos e dedicados eram, em muitos dos casos estudados, substituídos paulatinamente por pais ausentes ou abusadores sexuais das filhas e filhos e por mães instrumentais e competidoras das filhas. O aproveitamento consequente de uma metodologia de pesquisa empírica autorreflexiva e crítica nos permitiu, por meio do estudo das lacunas e contradições do discurso dos indivíduos dessa classe, “reconstruir” – apesar do autoengano compreensível de quem não tem defesa contra a própria humilhação social de que se é vítima – o sentido da vida nas condições extremas de exclusão social em que vive cerca de 1/3 da população brasileira.205 Menos compreensível é que um especialista com vinte ou trinta anos de estudos sistemáticos seja vítima da mesma armadilha.

É fundamental para a tese que estamos construindo aqui que não nos deixemos cegar por todos os preconceitos do “nacionalismo metodológico”, já que este tipo de cegueira preconceituosa quase nunca é “nacional”, mas sim “regional” e consubstanciada na categoria teoricamente injustificável de “Ocidente”, restrito à Europa ocidental e à América do Norte. Apesar de nossa pesquisa ter se circunscrito à sociedade brasileira, essa “classe de desclassificados”, abaixo da linha da dignidade, é um fenômeno mundial. Talvez, inclusive, a classe social mundialmente mais numerosa.

Essas classes de desclassificados sociais são construídas por motivos “modernos” e semelhantes em qualquer lugar. Afinal, é a ausência da incorporação dos modernos capitais impessoais, tanto o econômico quanto o cultural, que reduz os indivíduos dessa classe a “corpos” que são vendidos “enquanto corpos”, a baixo preço, para serviços desvalorizados. Esses serviços desvalorizados são, tipicamente, divididos em serviços sujos e pesados para os homens reduzidos a energia muscular, e serviços domésticos e sexuais para as mulheres, também reduzidas a corpos que não incorporaram conhecimento útil nos mercados competitivos.

Não se trata aqui do famoso “exército de reserva” marxista, já que essa classe de despossuídos, pelo menos em grande medida, não pode exercer funções produtivas no mercado competitivo do capitalismo, pois lhe faltam pressupostos até mesmo para a incorporação de capital cultural e técnico imprescindível para o adequado desempenho nos setores intensivos em tecnologia. Exemplo típico é o caso brasileiro de poucos anos atrás, quando se falava no “gargalo da mão de obra especializada” – que exigiu, na época, importação crescente de mão de obra estrangeira –, apesar de haver milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas no país. É, portanto, precisamente a impossibilidade de incorporação dos tipos de capitais culturais indispensáveis para a reprodução do mercado capitalista que implica uma realidade simbólica existencial e política precária para aqueles situados abaixo da linha divisória da “dignidade” no sentido tayloriano.

Essa classe de desclassificados parece ser construída, em primeiro lugar, na reprodução da “família desestruturada”, fruto da cegueira do debate científico e público dominante em países como o Brasil e do consequente abandono político dessa classe. A naturalização do abuso sexual dos mais velhos e mais fortes em relação aos mais novos e mais fracos – especialmente das meninas, mas também dos meninos – chocou todos os pesquisadores envolvidos na pesquisa. Esse tema é um tabu quase nunca veiculado pela mídia, o que apenas favorece sua perpetuação no tempo. De modo mais geral, uma atitude abertamente instrumental de todos em relação a todos no interior das famílias dessa classe não é incomum.206 As feridas na autoestima e na autoconfiança dos indivíduos dessa classe, resultantes dessa prática que se transmite de geração a geração cuidadosamente ocultada por um acordo silencioso entre vítimas e algozes, não são difíceis de serem imaginadas. Também os papéis sociais de pais e filhos com as obrigações recíprocas da família burguesa de classe média são apenas precariamente reproduzidos. Nesse contexto, adquire todo o sentido a retomada por Axel Honneth da importância das relações afetivas e emotivas familiares como pressuposto para o exercício de toda função pública, seja como produtor útil, seja como cidadão.207 O abandono social e político das famílias marcadas pelo cotidiano da exclusão parece ser o fator decisivo para a reprodução indefinida dessa classe social no tempo.

O fator fundamental ligado ao problema discutido acima é o não aprendizado de habilidades e capacidades fundamentais para a apropriação de capital cultural de qualquer tipo. No relato de vários de nossos informantes, não faltou a presença da instituição escolar. No entanto, era muito comum a observação de que, quando crianças, ficavam fitando o quadro-negro durante horas sem nada aprender. Com a repetição desse tipo de relato, que nos desconcertou no começo, aprendemos a perceber que o problema em jogo era a ausência da incorporação afetiva da “capacidade de se concentrar”, algo que os indivíduos de classe média tendem a perceber como uma “habilidade natural”, como se simplesmente nascêssemos com ela, como acontece com a capacidade de enxergar ou ouvir.

Como faltavam exemplos afetivos em casa, tornados possíveis pelo processo de identificação paterna e materna, essa capacidade ou disposição para se concentrar não era desenvolvida. Mesmo nas famílias mais bem-estruturadas dessa classe, onde os pais permaneciam juntos e se esforçavam para ter uma relação afetiva e de cuidado com os filhos, as marcas do abandono social se mostraram presentes. Como nunca se via o pai lendo, apenas fazendo serviços braçais e brincando com os filhos com os instrumentos desse tipo de trabalho, que tipo de sucesso escolar pode-se esperar dessas crianças? Ou quando a mãe os instava para estudar dizendo que apenas a escola poderia mudar a vida para melhor; que efeito possui esse tipo de exortação se a própria mãe, que havia tido algum tempo na escola, não havia conseguido mudar a própria vida? Percebemos claramente com nossos informantes que não são os “discursos”, proferidos da boca para fora, mas apenas as “práticas” sociais efetivas, moldadas por exemplos efetivos, os verdadeiros instrumentos de mudança individual e social.

A capacidade de concentração pressupõe tanto disciplina da vontade quanto autocontrole e pensamento prospectivo. Não é fácil nem “natural”, e depende também de estímulos e exemplos, além de um contexto social propício. O que as classes privilegiadas recebem desde o nascimento são as “armas” necessárias para a luta da competição diária por todos os bens e recursos escassos. Os excluídos entram “desarmados” nessa luta. Um exército de pessoas, como disse Bourdieu em seu livro acerca dos subproletários argelinos, “disposto a fazer todo tipo de serviço porque não aprendeu a fazer nenhum”.

A instituição escolar nesse contexto é ineficiente porque essas crianças já chegam como “perdedoras” nas escolas, enquanto as crianças de classe média já chegam “vencedoras” pelo exemplo e estímulo paterno e materno afetivamente construído. Mas não apenas isso. A instituição escolar pública – cada vez mais precária no Brasil e crescentemente também nos países ditos avançados – passa a ser marcada pela “má-fé institucional”, no sentido que Bourdieu e Foucault utilizam esse termo, de tal modo que prometem a redenção dessa classe pela educação enquanto, na verdade, possibilitam transformar, com o carimbo do Estado e anuência de toda a sociedade, o abandono social em “culpa individual” de alunos supostamente burros e preguiçosos.

Em nossa pesquisa abundam declarações tocantes de jovens que se imaginam incapazes de estudar, sem inteligência e incapazes de concentração por culpa própria. Constrói-se a partir disso um contexto em que, tanto na dimensão intersubjetiva da interação social face a face dos sujeitos quanto na dimensão das práticas institucionais de todo tipo, sejam elas policiais, médicas ou escolares, o desvalor objetivo dos indivíduos dessa classe despossuída existencial, moral e economicamente é reafirmado no cotidiano.

Esse exemplo empírico, confirmado centenas de vezes em nossas pesquisas, revela que não apenas a “sensibilidade”, como mostrou Bourdieu com maestria, mas também a “dignidade” no sentido sempre “procedural” que estamos utilizando, são construções de classe. Não são dados naturais de todo ser humano, como as habilidades de fala e de visão. A habilidade de se concentrar é um “privilégio de classe”, fruto de uma socialização diferenciada, construída para permitir sua incorporação invisível, mas extremamente eficaz porque é invisível.

O exemplo da capacidade de concentração poderia ser facilmente multiplicado. Nossas pesquisas empíricas sobre as classes populares brasileiras nos mostraram que o “pensamento prospectivo”, ou seja, a consideração do futuro como mais importante que o presente, também é uma construção e um privilégio de classe. Assim, temos literalmente “classes com futuro” e “classes sem futuro”. Todos sabemos, mesmo os mais privilegiados entre nós, que o futuro, ainda que cuidadosamente planejado, é incerto. Quem não planeja, ou sequer pensa no futuro, posto que está preso no aguilhão do “aqui e do agora”, efetivamente não tem futuro.

Em nosso segundo estudo empírico com amplitude nacional, realizado posteriormente à pesquisa dos desclassificados sociais brasileiros,208 dedicado ao estudo da “nova classe trabalhadora” brasileira, erroneamente chamada no debate público brasileiro de “nova classe média”, pudemos precisar ainda melhor os contornos fluídos da “linha invisível da dignidade”, usando como exemplo empírico a sociedade brasileira contemporânea. Essa suposta “nova classe média”, como foi apelidada no discurso oficial triunfalista do governo e da mídia brasileiros, refere-se à efetiva ascensão social de cerca de 40 milhões de brasileiros, que não só tiveram um aumento de renda, mas também levou a que cerca de metade deles entrasse no mercado formal, com proteção de leis trabalhistas, previdenciárias e sociais.

Esta foi, sem qualquer dúvida, a melhor notícia dos dez anos de elevado crescimento econômico do Brasil entre 2002 e 2012. Pela primeira vez em muitas décadas, o crescimento econômico beneficiou também os setores populares da sociedade brasileira. Políticas redistributivas, como o Bolsa Família, que beneficia mais de 46 milhões de pessoas, aliadas ao aumento real do salário mínimo em cerca de 70%, a políticas de microcrédito e de facilidades ao crédito de modo geral, além de políticas tópicas de acesso à educação superior para a população mais pobre, fortaleceram a base da pirâmide social brasileira e operaram importantes mudanças morfológicas na estrutura de classes da sociedade brasileira contemporânea.

Uma parte dos componentes dessa classe social – para além de setores da pequena burguesia que havia perdido expressão econômica desde os anos 1990 – foi formada precisamente por segmentos “superiores” da classe dos desclassificados sociais. Isso, de resto, comprova que não existe classe condenada para sempre e que condições econômicas e políticas favoráveis podem desempenhar papel decisivo. A confusão implicada na denominação desta classe como “nova classe média” reflete a influência dos discursos liberais que confundem “classe social” com “faixa de renda”. Como esta classe representa, em termos de faixa de renda, o segmento médio de ganho das famílias brasileiras,209 foi cunhado o termo manipulador e apologético de “nova classe média”.

Na realidade essa classe não possui quaisquer dos privilégios de nascimento das classes médias e altas. Ao contrário, seus membros típicos têm que trabalhar desde cedo, frequentemente já aos onze ou doze anos, e conciliar escola e trabalho. Muitos são também superexplorados com jornadas de trabalho de até catorze ou quinze horas por dia, acumulando mais de um emprego e fazendo “bicos” de fim de semana, e, quando têm acesso ao ensino superior, o fazem em universidades privadas – cuja qualidade é muito inferior às universidades públicas –, estudando à noite ou fazendo cursos à distância. As condições de trabalho e de exploração dessa mão de obra a aproximam muito do patamar de uma classe trabalhadora precarizada, típica da fase atual do capitalismo sob hegemonia do capital financeiro. Característica dessa fase é a legitimação, na qual muitos creem, de que são patrões de si mesmos, especialmente os que estão na posição de trabalhadores autônomos ou proprietários de pequeno negócio sob a base, quase sempre, de mão de obra familiar.

Se esta nova classe não é uma classe do privilégio, também não é uma classe de desclassificados. Ela parece materializar uma rápida mudança social que se nutre tanto de setores da pequena burguesia tradicional, que perdeu expressão econômica, política e social, de parte da classe trabalhadora “fordista” tradicional, que perdeu espaço e postos de trabalho de modo crescente na última década, quanto de novos segmentos ascendentes da classe marginalizada dos desclassificados. Em termos de perfil de ocupações essa mudança reflete mudanças estruturais – típicas certamente não apenas do capitalismo brasileiro – de destruição de emprego na indústria e criação de empregos novos na área de serviços, comércio, informática e, base da pirâmide desta classe, da construção civil.

É interessante notar, em especial, os fatores que entraram em cena nas dezenas de milhões de pessoas que tiveram a experiência de ascensão social e que compõem a maioria desta nova classe incluída economicamente no mercado formal e de consumo de bens duráveis, entre os quais o carro novo é o maior símbolo. Na pesquisa empírica que realizamos entre 2008 e 2010 em todo o território brasileiro acerca desta nova classe,210 nossa questão central foi precisamente compreender por que alguns logram ascender socialmente e outros não. No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores se concentrou na determinação das fronteiras que os separam da “ralé”, por um lado, e da classe média verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes importantes de “autoconfiança” individual e de solidariedade familiar baseada na socialização religiosa, temas negados por estudiosos conservadores.211

O tipo de religiosidade pentecostal, crescentemente importante nas classes populares brasileiras, tende a ser, nos “batalhadores”, dominado pelas denominações mais “éticas” – ao contrário da “ralé”, na qual predominam as denominações mais “mágicas” do pentecostalismo –, em que a “regulação racional da vida cotidiana” e a “crença na própria capacidade” passam a ser os valores máximos.212 Isso implica, nos melhores casos, na possibilidade de se conquistar tardiamente estímulos morais e afetivos que, nas classes do privilégio, são dados pelo horizonte familiar em tenra idade. O belo estudo de Maria de Lourdes Medeiros mostra como também a Igreja Católica no interior do Nordeste pode servir de incorporação de sólida ética do trabalho para muitas famílias.213 A religião também pode ser fundamental na redefinição da ética do trabalho de mulheres que o racismo havia condenado ao destino de objeto sexual.214

Assim, do mesmo modo que a não incorporação familiar, escolar e social dos pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno é o que produz e reproduz a ralé, os “batalhadores” representam a fração das classes populares que lograram sair deste círculo vicioso. Como as fronteiras aqui são muito fluídas, isso significa que não existe “classe condenada” para sempre. Com condições políticas e econômicas favoráveis, os setores que lograram incorporar, seja por socialização religiosa tardia, seja por pertencerem a famílias comparativamente mais bem-estruturadas – malgrado o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares –, as precondições para o desempenho do papel social do “trabalhador útil” podem ascender socialmente.

Além da importância inegável, para classes socialmente tão frágeis, da variável religiosa, procuramos perceber a dinâmica e os efeitos da incorporação – ainda que tardia – familiar e extrafamiliar, dos pressupostos emocionais, afetivos, morais e cognitivos para a “ação econômica racional” nas classes populares. Este é o caminho oposto de toda forma de economicismo, que simplesmente “pressupõe” e, portanto, “naturaliza” o “ator econômico universal”, escondendo a “luta de classes”, que implica, precisamente, uma incorporação diferencial e seletiva desses pressupostos. A maior parte do livro, inclusive, se dedica a compreender, levando em conta as desvantagens do ponto de partida das classes populares, como se aprende, na “prática”, com erros e acertos, por exemplo, a “ser um trabalhador” ou a calcular e a administrar um pequeno negócio de um trabalhador autônomo.215 Ou, ainda, na dimensão mais política e social, tentar responder à questão acerca das bases da solidariedade familiar pressuposta nas pequenas unidades produtivas. Ou como o trabalhador formal, mas precário, especialmente dos serviços e do comércio,216 é tornado refém de uma legitimação de um novo tipo de capitalismo que se expande precisamente para essas áreas do capitalismo moderno.217

Nosso segundo estudo acerca das classes populares brasileiras tratou da ascensão social, portanto, como um conceito “relacional”. Quando se trata o tema da ascensão de maneira relacional é possível perceber, por exemplo, como ela também traz consigo sofrimento, esforço, assim como o próprio medo de uma possível desclassificação social futura. Se tratamos o tema da ascensão social desta maneira, foi para demonstrar que ascensão não é uma categoria linear de um ponto ao outro, como um “trem social” que se pega de uma classe à outra. Ela não é uma “bala” que vai de um lugar a outro sem encontrar obstáculo. Qualquer entrevista no livro comprova isso. Para levar o conceito a sério, temos que considerar a ascensão social como uma prática em constante reafirmação, um jogo social, cujos participantes são postos à prova a todo o momento com o fantasma da queda social e da desclassificação sempre à espreita.

Politicamente, a “nova classe trabalhadora” paga um preço caro pela incorporação dos estímulos e disposições adequados à reprodução do capitalismo. O reverso desta moeda é que o “sacrifício do intelecto”, comum à maior parte das religiões, se desdobra, no caso do neopentecostalismo brasileiro, em um sentido tanto da não solidariedade social, por um lado, e, tanto por parte do neopentecostalismo quanto do pentecostalismo, no sentido da defesa de teses regressivas e conservadoras em relação ao casamento homossexual, ao aborto e a todas as bandeiras mais reacionárias que representam um ataque às liberdades individuais em nome de uma moral repressora. A não solidariedade da religiosidade neopentecostal tem a ver com a “doutrina da prosperidade”, na qual o aumento da riqueza individual é o indicador mais importante de salvação e o acesso ao consumo é interpretado como materialização da graça divina.

Por sua vez, é um contexto de ainda maior miséria material e simbólica o que explica não só o conservadorismo, mas também a impotência política da classe de desclassificados. Notamos em nossa pesquisa que existe um verdadeiro abismo entre os chamados “pobres honestos” – que aceitam vender sua energia muscular a preço pífio – e os “pobres delinquentes” – que se revoltam reativamente contra a estrutura que os condena. Em nenhum estrato social essa diferença é tão importante e decisiva quanto na “ralé” pesquisada. O drama cotidiano da imensa maioria das famílias da “ralé” – em particular das mais estruturadas entre elas – é precisamente o tema da “honestidade”, percebida como a fuga do destino de bandidos para os meninos, ou do destino de “bêbados” para os homens adultos, e do destino de prostituta para as meninas. Essas são as figuras paradigmáticas da delinquência nessa classe que está, por sua fragilidade e pobreza, especialmente exposta aos riscos e seduções da vida desviante.

Constrói-se com isso uma divisão insidiosa e virulenta dentro dessa classe, tornando especialmente difícil qualquer forma de solidariedade interna dessa camada negativamente privilegiada. Como praticamente toda família ou vizinhança tinha exemplos de vidas que “optaram” pela delinquência no sentido exposto acima, abundaram os relatos de mães que exploravam economicamente a filha prostituta ao passo que a acusavam pela escolha de vida, ou ainda de irmãos que não se falavam por terem optado por caminhos diferentes nas únicas duas opções possíveis para membros dessa classe. A hierarquia valorativa dominante, que pode ser exposta nos termos que viemos utilizando na oposição “digno”/“indigno”, não só transfere a culpa da “indignidade” de todos aos próprio indivíduo, mas também quebra e separa a classe como um todo, e, dentro dela, cada família, cada vizinhança, e, no limite, cada indivíduo em dois inimigos irreconciliáveis.

A “indignidade”, é sempre bom repetir, não se refere a “conteúdos materiais” de caráter ou personalidade. No mundo moderno, também a hierarquia valorativa não é “material”, mas “procedural”, são características ou disposições psicoemotivas que capacitam ou não os indivíduos a, por exemplo, serem capazes de “incorporar” conhecimento técnico útil (uma forma de capital cultural no sentido de Bourdieu). Sem a incorporação dessas precondições não se consegue nem sucesso escolar nem êxito no mercado de trabalho competitivo. Se o “corpo” não é perpassado por conhecimento e disposições psicoemotivas que tornem o sujeito capaz de aprendizado e de trabalho em condições de alta competitividade, esse corpo não é mais do que “um feixe de músculos”, que pode ser comprado a baixo preço em trabalhos sujos e pesados como acontece no Brasil.

Esses indivíduos, abandonados – a exemplo do que acontece com suas famílias e sua classe como um todo – por toda a sociedade “incluída”, que os vê apenas como perigo e ameaça, recebem, no fundo, o desprezo que toda a sociedade – em grau variável, e no Brasil esse grau é dos mais intensos – reserva aos seus “indignos”. Em sociedades onde a responsabilidade social pelos membros mais fracos tem forte tradição tanto religiosa quanto política, existe a consciência de alguns setores mais esclarecidos ou politizados de que ninguém “escolhe” a exclusão e a miséria. São sempre causas sociais – abandono secular, no caso brasileiro – que criam as misérias individuais dos excluídos.

No entanto, essa classe de destituídos não é uma classe social apenas “brasileira”. O contrário é verdade. Apenas a cegueira de uma ciência que se reproduz com pressupostos racistas – e que, portanto, não merece este nome – pode fragmentar a realidade social – seja ela nacional, regional ou mundial – a tal ponto que seus traços mais importantes se tornam completamente irreconhecíveis. Essa classe de destituídos é, talvez, a classe social mundialmente mais numerosa. Se chega a quase 30% em um país como o Brasil, provavelmente chega a 80% em vários, se não na maioria, dos países africanos, ou ainda 50% em várias sociedades asiáticas. É uma “classe social” porque em todo lugar os pressupostos de sua exclusão social são os mesmos. Até em países europeus ou nos Estados Unidos essa classe é cada vez mais representativa. Até o discurso contra quem recebe pelo programa Hartz IV na Alemanha ou quem recebe o Bolsa Família no Brasil é bastante semelhante. São os novos “preguiçosos”, que, por culpa própria, “escolheram” a humilhação e a vida indigna.

O caso dos excluídos sociais nos mostra que as sociedades modernas compartilham muito mais que a troca de mercadorias do comércio internacional ou do fluxo de capitais das bolsas de valores. Elas compartilham também de uma “hierarquia moral” comum ou semelhante, a qual, por exemplo, define quem será percebido, seja pelas instituições, seja pelos seus membros, como “digno” ou “indigno” de respeito e reconhecimento social. É exatamente a cegueira em relação a toda a “dimensão simbólica” do capitalismo que impede de se perceber e de se “articular” conscientemente sua hierarquia.

A existência de uma “fronteira da dignidade” comum – ou em grande medida compartilhada – mostra dois aspectos quase sempre tornados invisíveis pelas teorias sociais dominantes. Primeiro, o fato de que existe uma “hierarquia moral” pelo menos parcialmente compartilhada entre as sociedades tidas como centrais e periféricas. Segundo, que a “legitimação” dessa mesma hierarquia social também é, de modo geral, compartilhada. A “ideologia da meritocracia” como bastião da violência simbólica típica das sociedades modernas, na medida em que procura preservar a ilusão de justiça e igualdade que perpassa todas as sociedades modernas centrais ou periféricas, também se torna visível, por exemplo, na maneira como o preconceito contra os “dispensáveis” ou “marginalizados” sociais se atualiza nessas sociedades.

Se nosso argumento até agora é correto, então é legítimo afirmar que tanto a “hierarquia simbólica” (por exemplo, que decide quem é “digno” ou “indigno”) quanto a forma pela qual essa realidade injusta é legitimada (por exemplo, na ampla aceitação da “ideologia meritocrática”, pelo menos em grande medida, aceita tanto em sociedades tidas como centrais quanto em periféricas, como Alemanha e Brasil) são semelhantes nas sociedades centrais e naquelas ditas periféricas. Se isso é verdade, não estamos falando de dois aspectos superficiais das sociedades que estão sendo comparadas, mas de seus pilares mais importantes, na medida em que definem e legitimam a “estrutura de poder”, ou seja, os princípios ou critérios classificatórios que tornam possível a apropriação desigual e privilegiada de todos os bens e recursos escassos pelos quais todos nós lutamos as 24 horas do dia.

Não existe nada mais importante do que isso em uma sociedade. É esta questão que decide ou pré-decide o resultado provável de todas as lutas sociais. O acesso a todos os bens e recursos não apenas “simbólicos”, como, por exemplo, reconhecimento e autoestima, mas também todos os bens e recursos “materiais” só é possível de ser operado de forma legítima se os negativamente privilegiados – pelo menos sua ampla maioria – se “convencerem” de que as regras sociais que os discriminam são aceitáveis. Se isso é verdade em relação à “fronteira da dignidade”, então a percepção da semelhança em relação à “fronteira da distinção” é ainda mais visível.

Chamo de “fronteira da distinção” àquilo que Pierre Bourdieu logrou demonstrar em sua obra máxima, A distinção: que existe uma “legitimação dos privilégios sociais” de todo tipo a partir da noção da definição legítima de “personalidade sensível”. Os setores dominantes são também aqueles que logram determinar em próprio proveito que os privilégios que efetivamente desfrutam são todos “merecidos” pela sua “qualidade inata” do mesmo modo – ainda que com outros meios – que acontecia nas assim chamadas “sociedades pré-modernas”. Ainda que essa “personalidade sensível já tenha sido ‘colonizada’”, em grande medida, pela “indústria cultural”, a própria existência do kitsch comprova, pelo seu avesso, a necessidade objetiva da “referência à personalidade sensível”.

Em outras palavras, ainda que a própria referência à personalidade sensível tenha se tornado “mercadoria”, na medida em que o acesso a bens materiais ou às boas maneiras, ou ainda o bom gosto em relação aos vinhos mais adequados, dependa mais de dinheiro do que do acesso autêntico às fontes expressivas da personalidade, às quais são, por definição, únicas e infungíveis – ou seja, são o contrário da homogeneização e generalização que o mercado opera para vender seus produtos –, o próprio acesso ao mundo das mercadorias é permeado e mediado pela noção de unicidade da personalidade sensível. Qualquer anúncio de carro de luxo ou cigarro comprova o que está sendo dito. Nesse terreno da “distinção”, as semelhanças entre as sociedades centrais e periféricas são ainda mais visíveis. Existem propagandas em escala mundial de forma crescente. George Clooney anuncia para a Nespresso em Berlim e no Rio de Janeiro. Os sonhos de consumo dos jovens de classe média são cada vez mais parecidos em todo lugar.

Se estamos corretos e a reprodução simbólica das sociedades modernas, sejam elas centrais ou periféricas, apresentam essas duas “linhas invisíveis de classificação e desclassificação social”, extremamente eficazes porque invisíveis à consciência cotidiana e fragmentada, então estamos tratando de aspectos fundamentais tanto do processo de classificação/desclassificação quanto do processo de legitimação da dominação social nas sociedades modernas. Sejam mais ricas como a Alemanha, ou mais pobres como o Brasil, o que importa para a teoria sociológica crítica é perceber como a dominação social é construída e legitimada. Essas são as duas questões mais importantes para qualquer teoria social crítica.

A importância central dessas ideias tem a ver com sua capacidade de explicitar conflitos sociais e lutas de classe que de outro modo seriam invisíveis. Em sociedades como a brasileira e a indiana, as classes média e alta verdadeiramente roubam o tempo dos desclassificados incapazes de lutar no mercado competitivo, posto que lhes faltam os pressupostos mínimos que possibilitam todo aprendizado, o que acarreta a ausência de conhecimento técnico utilizável pelo mercado. Essa classe é reduzida por completo à “energia muscular” com um mínimo de conhecimento incorporado, que a condena aos “trabalhos domésticos”, no caso das mulheres, e aos serviços pesados, perigosos ou sujos, no caso dos homens. O “tempo poupado” às classes do privilégio pelo trabalho dos desclassificados as ajuda a reproduzir em escala ainda mais ampliada os próprios privilégios de nascimento. Os desclassificados se tornam ainda mais condenados a reproduzir a sua miséria.

Essa é uma luta de classes extremamente importante e, ao mesmo tempo, invisível. Mesmo o marxismo não a vê, de tão acostumado a inquirir acerca da “mobilização” e de “setores sociais mobilizáveis” para a luta através de sindicatos e partidos. As classes sem “consciência de si”, mas, por isso mesmo, superexploradas, são invisíveis na sua dor e no seu sofrimento. E tornar a dor e o sofrimento visíveis é o desafio maior de qualquer ciência verdadeiramente crítica. Perceber e reconstruir esses sistemas de classificação invisíveis a olho nu é um passo fundamental para a reconstrução da teoria social crítica em qualquer lugar, na periferia ou no centro do capitalismo.

Nesse desiderato, o brasileiro pode ver coisas que um francês ou alemão não percebe, pois, na periferia, o tema da fronteira entre dignidade/desprezo, por exemplo, é muito mais visível e ubíquo aqui do que lá. Nesse contexto, se nos libertamos do complexo de vira-lata que nos torna servis e colonizados até o osso, podemos inclusive começar a pensar e refletir com nossas próprias cabeças e compreender questões centrais que se veem muito melhor da periferia do sistema do que no centro.


171Habermas, Jürgen. Die Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt: Suhrkamp, 1986.

172Mattos, Patrícia. A teoria do reconhecimento social. São Paulo: Annablume, 2007.

173Taylor, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard Press, 1989.

174 Na verdade, Taylor se refere a algumas fontes morais e inclui a “busca religiosa por Deus” como uma dessas fontes. Decidi considerar apenas as fontes seculares e potencialmente universalizáveis a despeito de culturas religiosas particulares.

175Honneth, Axel. Kampf um Annerkenung. Frankfurt: Suhrkamp, 1994.

176Taylor, Charles. “To follow a rule”. In: Bourdieu: critical debates. Calhoun, Craig et al. (orgs.). Chicago: Chicago University Press, 1993.

177 Charles Taylor, afinal, é muito mais conhecido como um dos expoentes do “relativismo cultural” internacional. A minha apropriação enfatiza, ao contrário, o universalismo de suas ideias.

178Weber, Max. Hinduismus und Buddhismus. Tubinga: J.C.B. Morh, 1991.

179Taylor, Charles. Op. cit., 1989, pp. 159-176.

180Ibid., pp. 289-290.

181Taylor, Charles. “The Politics of Recognition”. In: Multiculturalism. Gutmann, Amy (org.). Princeton: Princeton University Press, 1994.

182Taylor, Charles. Op. cit., 1989, p. 375.

183Ibid., p. 28.

184Bourdieu, Pierre. A distinção. Zouk/Edusp, 2009.

185Taylor, Charles. Op cit., 1989, p. 390.

186Weber, Max. Op. cit., 1991, pp. 1-97.

187Para uma crítica das posições de Taylor e Fraser, veja Honneth, Axel. “Recognition or Distribution?”. In: Theory, Culture and Society, Nova Yotk, vol. 18, no. 2 e 3, 2001, pp. 52-53.

188Honneth, Axel. “Die zerissene Welt der symbolischen Formen: zum kultursoziologischen Werke Pierre Bourdieus”. In: Die zerissene Welt des Sozialen. Frankfurt: Suhrkamp, 1990.

189Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1991.

190Ibid., p. 23.

191Ibid., p. 123.

192Ibid., p. 129.

193Bourdieu, Pierre. O camponês e seu corpo. Revista de sociologia política, no. 26, 2006.

194Ver Souza, Jessé. Op. cit., 2006.

195Bourdieu, Pierre. The Logic of praxis. Stanford University Press, 1992, p. 56.

196Ibid., p. 68.

197Ibid., p. 71.

198Bourdieu, Pierre. Op. cit., 2009.

199Souza, Jessé et al. Op. cit., 2009/2011.

200 Como nós “naturalizamos” as disposições para o comportamento criadas a muito custo pela “sociedade disciplinar” (como a disciplina, o autocontrole, o pensamento prospectivo, onde o futuro é mais importante que o presente, além da capacidade de concentração indispensável para o sucesso escolar e no mercado de trabalho) do mesmo modo que naturalizamos o fato de termos dois olhos e dois braços, então nem sequer damos conta de que eles são construção social, e, mais importante ainda, um “privilégio” de classe.

201Bourdieu, Pierre. O desencantamento do Mundo. São Paulo: Perspectiva, 1979.

202Lahire, Bernard. Retratos sociológicos. São Paulo: Artmed, 2003.

203Bourdieu, Pierre. Op. cit., 1979.

204Lahire, Bernard. Op. cit., 2003.

205Ver levantamento estatístico de José Alcides para o livro A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009/2011.

206 Contexto semelhante já havia sido detectado por Florestan Fernandes em estudo pioneiro na São Paulo dos anos 1950. Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1979.

207Honneth, Axel. Der Kampf um Anerkennung: zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte. Frankfurt: Surhkamp, 1994.

208Souza, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010/2012.

209Neri, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2012.

210Souza, Jessé et al. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010/2012.

211Ver minha crítica ao trabalho de Lamounier, Bolívar e Souza, Amaury. A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier; Brasília: CNI, 2010, em Souza, Jessé et al. Ibid., 2010. p. 349 e seguintes.

212Ver o trabalho de Arenari, Brand e Dutra, Roberto em Souza, Jessé et al. Ibid.,p. 311 e seguintes.

213Ver o trabalho de Maria de Lourdes de Medeiros em Souza, Jessé et al. Ibid., p. 199 e seguintes.

214Ver o trabalho de Djamila Olivério em Souza, Jessé et al. Ibid., p. 173 e seguintes.

215Ver o trabalho de Fabrício Maciel em Souza, Jessé et al. Ibid., p. 173 e seguintes.

216Ver o trabalho de Ricardo Visser, em Souza, Jessé et al. Ibid., p. 61 e seguintes.

217Ver meu capítulo inicial em Souza, Jessé et al. Ibid., p. 19 e seguintes.