CAPÍTULO 1

A falsa ciência

Max Weber e o Brasil: ou como o “racismo científico”
da sociologia moderna é “engolido” e transformado
em pensamento social brasileiro.

OS SERES HUMANOS são animais que se interpretam.3 Isso significa que não existe “comportamento automático”, este é sempre influenciado por uma “forma específica de interpretar e compreender a vida”. Essas interpretações que guiam nossas escolhas na vida foram obras de profetas religiosos no passado. Nos últimos duzentos anos essas interpretações, que explicam o mundo e nos dizem como devemos agir nele, foram obras de intelectuais seculares. O mais importante desses intelectuais no Ocidente moderno foi – juntamente com Karl Marx – o sociólogo alemão Max Weber. Afinal, foi da pena de Weber que se originou a forma predominante como todo o Ocidente moderno se autointerpreta e se legitima. As ideias dominantes que circulam na imprensa, nas salas de aula, nas discussões parlamentares, nas conversas de botequim – em todo lugar – são sempre formas mais simplificadas de ideias produzidas por grandes pensadores.

Daí a importância de recuperar o sentido original dessas ideias que são tão relevantes para nossas vidas ainda que, normalmente, não nos demos conta disso. Afinal, a ciência herda o prestígio da religião no contexto pré-moderno e assume, em boa parte, pelo menos, o papel de explicar o mundo moderno. Não existe tema que seja discutido na esfera pública de qualquer sociedade moderna que não invoque a “palavra do especialista” que fala pela ciência. Assim, o potencial da ciência de produzir efetivo aprendizado individual e coletivo está ligado e muitas vezes decisivamente condicionado, por força de seu prestígio público, a servir de instância legitimadora e primeira e decisiva trincheira da luta social e política pela definição legítima de “boa vida” e “sociedade justa”. Em outras palavras: não existe ordem social moderna sem uma legitimação pretensamente científica desta mesma ordem.

Talvez o uso de Max Weber e sua obra seja um dos exemplos mais significativos do caráter bifronte da ciência: tanto como mecanismo de esclarecimento do mundo quanto como mecanismo de encobrimento das relações de poder que permitem a reprodução de privilégios injustos de toda espécie. É um atestado da singular posição que Weber ocupa no horizonte das ciências sociais perceber que, precisamente por ter captado a “ambiguidade constitutiva” do racionalismo singular ao Ocidente,4 ele tenha formulado os dois diagnósticos da época mais importantes para a autocompreensão do Ocidente até nossos dias: uma concepção liberal, afirmativa e triunfalista do racionalismo ocidental; e uma concepção crítica extremamente influente desse mesmo racionalismo, que procura mostrar sua superficial e unidimensionalidade.

Para a versão liberal e afirmativa, Weber fornece, por um lado, sua análise da “revolução simbólica” do protestantismo ascético; para ele, a efetiva revolução moderna, na medida em que transformou a “consciência” dos indivíduos e, a partir daí, a realidade externa, é a figura do protestante ascético, que com vontade férrea e armas da disciplina e do autocontrole cria o fundamento histórico para a noção do “sujeito moderno”. É esta ideia que gera a noção moderna de “personalidade” enquanto entidade percebida como um todo unitário com fins e motivos conscientes e refletidos. Essa ideia é o fundamento da noção de “liberalismo moderno”, uma espécie de “religião secular” da época, sendo a base de toda a ética e toda a lógica, seja na dimensão institucional, seja na individual.

A grande maioria das versões apologéticas do “sujeito liberal” nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do pioneiro protestante weberiano. Além disso, por outro lado, é Weber quem reconstrói sistematicamente a lógica de funcionamento tanto do mercado competitivo capitalista quanto do Estado racional centralizado, de modo a percebê-los como instituições cuja eficiência e “racionalidade” não teriam comparação. Ainda que a perspectiva liberal apologética se restrinja ao elogio do mercado, confluem, aqui, os aspectos subjetivos e objetivos (institucionais) que fundamentam, de modo convincente, a afirmação do “dado”, ou seja, do mundo como ele é.

Mas Weber, e nisso reside sua influência e atualidade extraordinárias, também compreendia, no entanto, o lado sombrio do racionalismo ocidental. Se o pioneiro protestante ainda possuía perspectivas éticas na sua conduta, seu “filho” e, muito especialmente, seu “neto”, habitante do mundo secularizado, são percebidos por Weber de modo bastante diferente. Para descrevê-los, Weber utiliza dois “tipos ideais”, ou seja, modelos abstratos – neste caso, modelos abstratos de condução de vida individual, os quais se encontram sempre misturados em proporções diversas na realidade empírica concreta. Esses “tipos ideais” que explicam o indivíduo típico moderno para Weber são, por um lado, o “especialista sem espírito”, que tudo conhece sobre seu pequeno mundo de atividade e nada sabe (nem quer saber) acerca de contextos mais amplos que determinam seu pequeno mundo, e, por outro, o “homem do prazer sem coração”, que tende a amesquinhar seu mundo sentimental e emotivo à busca de prazeres momentâneos e imediatos.5

Se a primeira leitura fornece o estofo para a apologia liberal do mercado e do sujeito percebido como independente da sociedade e de valores supraindividuais, a segunda marcou profundamente toda a reflexão crítica da sociedade moderna até nossos dias. A percepção do indivíduo moderno como suporte das ilusões da independência absoluta e da própria perfeição narcísica (quando, na verdade, realiza sem saber todas as virtualidades de uma razão instrumental que termina em consumismo e conformismo político) está na base de grande parte das vertentes críticas mais influentes do século XX.6

Neste primeiro capítulo, nosso interesse é examinar de perto o elemento apologético e o uso do prestígio científico weberiano para a afirmação de uma visão distorcida, conformista e superficial da realidade. Minha tese é a de que a própria construção de uma oposição substancial entre sociedades avançadas do centro – Europa ocidental e Estados Unidos – e sociedades atrasadas da periferia – por exemplo, as sociedades latino-americanas – foi feita, pelo menos na versão mais “moderna” e “culturalista”, em grande medida com base nas categorias weberianas.

Nesse sentido, as categorias científicas são utilizadas “por debaixo do pano”, ou seja, sem que seu real caráter fique efetivamente explícito, como justificação de uma violência simbólica que, ao fim e ao cabo, funciona como uma espécie de “equivalente funcional” do racismo. Estou consciente de que a aproximação entre “racismo” e “ciência” provoca desagrado a certos espíritos delicados. Talvez o desagrado seja, como quase sempre, simplesmente o “sintoma” de um problema real. Afinal, para o mesmo Weber que estamos discutindo, os ricos e felizes não querem apenas ser ricos e felizes, mas também ter o “direito” de ser ricos e felizes. O aspecto que mais caracteriza Weber como pensador crítico é precisamente sua atenção aos processos que “legitimam” o poder social fático e o tornam “sagrado” – no contexto das grandes religiões analisadas por Weber – e “científico”, ou seja, o equivalente a “sagrado” no mundo desencantado de hoje.

Assim, do mesmo modo que o “racismo científico”, que possuía projeção internacional até a década de 1920, partia da superioridade “racial” dos povos brancos e de olhos azuis, a versão “culturalista” do racismo parte da superioridade de certo “estoque cultural” das sociedades do “Atlântico Norte” como fundamento da “superioridade” dessas sociedades. Da mesma forma que no racismo de fundo “racial” é construída uma separação “ontológica” entre sociedades “qualitativamente distintas”, nas quais as diferenças não são de “grau”, ou seja, não são quantitativas, mas de “essência”, implicando a noção de “sociedade superior” – assim como de “indivíduos superiores” que a compõem – no sentido moral do termo.

É preciso notar, especialmente para certo tipo de leitor que receia uma “extensão indevidamente polêmica” do conceito de racismo, que o “procedimento” (a distorção simplificadora da realidade) e o “efeito” (a construção de uma fronteira entre “gente” e “subgente” de modo “ontológico”, funcionando como uma “pré-compreensão”, uma dimensão não discutida, de grande parte dos conceitos e noções que utilizamos) são precisamente os mesmos do “racismo científico”. Minha tese é, portanto, que a obra de Max Weber foi utilizada em sua versão apologética para conferir “prestígio científico” a uma visão de mundo atrelada a interesses particulares que se mascaram com a universidade e a neutralidade apanágio do prestígio científico. Isso fica claro quando o termo “universal” é atrelado às sociedades centrais, e o atributo de “particular” ou “regional” é reservado às sociedades periféricas. O objetivo deste texto é, nesse sentido, construir a categoria de “racismo culturalista” e demonstrar o caráter de violência simbólica desta visão científica hegemônica tanto no centro quanto na periferia do mundo atual.

Pretendo defender essa tese em dois passos: a) reconstruindo o debate central e periférico que usam essas categorias como seu eixo central; e b) demonstrando o potencial de distorção sistemática da realidade social dessas teorias hegemônicas no centro e na periferia, no discurso científico internacional.


3Taylor, Charles. Human Agency and language. Philosophical Papers 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

4 A palavra “racionalismo” para Weber significa a forma como determinada formação cultural percebe e avalia o mundo em todas as suas dimensões. Ver, sobre o tema, Souza, Jessé. Patologias da modernidade: um diálogo entre Weber e Habermas. São Paulo: Annablume, 1997 e, também, Schluchter, Wolfgang. Die Entwicklung des okzidentalen Rationalismus. Tubinga: J.C.B. Mohr, 1979.

5Ver Souza, Jessé. Patologias da modernidade: um diálogo entre Weber e Habermas. São Paulo: Annablume, 1997.

6 De Georg Lukács até a escola de Frankfurt, passando por Jürgen Habermas e Pierre Bourdieu é difícil se pensar em um grande expoente da teoria social crítica não influenciado por Max Weber. Ver, acerca dessa influência, Habermas, Jürgen. Die theorie des kommunikativen Handelns. Vol. II. Berlim: Suhrkamp, 1986.