2.
Ressentimento na Grã-Bretanha:
Hobsbawm e Thompson
Uma característica notável do público leitor inglês é o fato de que ele está sempre disposto a tratar os historiadores como líderes do mundo das ideias. Quando o recém-formado Partido Trabalhista tomou forma como força política no início do século XX, as populares histórias de H. G. Wells, os Webb e seus colegas fabianos transformaram o socialismo em sinônimo de “progresso”. A reescritura da história, com a mensagem socialista enterrada profundamente em seu interior, tornou-se uma espécie de ortodoxia da esquerda e A religião e o surgimento do capitalismo
(1926), de R. H. Tawney, foi o texto seminal de toda uma geração de intelectuais ingleses. Para Tawney, o movimento trabalhista caminhava lado a lado com as igrejas protestantes na oposição à “sociedade aquisitiva” que ele criticara em um livro anterior de mesmo nome. Foi um notório historiador, Arnold Toynbee, quem deu nome ao Toynbee Hall, sede da Associação Educacional dos Trabalhadores (WEA em inglês), onde Tawney morou com seu amigo William Beveridge, que se tornaria um dos arquitetos do Estado de bem-estar social. Desse modo, a história trabalhista e a WEA ficaram inextricavelmente ligadas e a ideia de que o modo de se unirem forças com os trabalhadores era lhes ensinar história se tornou quase um dogma da esquerda intelectual inglesa.
Entre os historiadores que trabalharam para estabelecer as fundações da Nova Esquerda na Grã-Bretanha, dois em particular se destacam, ambos pelo brilhantismo de seus textos e pelo continuado impacto de seu comprometimento. Eric Hobsbawm e E. P. Thompson foram acalentados pelo movimento comunista que acolheu tantos em seu abraço antes e durante a Segunda Guerra Mundial. E ambos foram ativos no apoio ao movimento pela paz nos anos em que esse era o objetivo-chave da política externa soviética. Mas, enquanto Hobsbawm era uma figura do establishment e um respeitado membro da academia, Thompson jamais se sentiu confortável no ambiente acadêmico e em 1971 deixou a Universidade de Warwick, em protesto contra sua comercialização. Ele se orgulhava de ser um intelectual freelance, nos moldes de Karl Marx. Seus textos surgiram em críticas e panfletos e sua
magnum opus
—
A formação da classe operária inglesa —
ficou bem longe da estrutura de história social acadêmica em voga em 1963, quando foi publicada.
Hobsbawm tem sido muito criticado, menos por suas simpatias comunistas que por sua inabalável lealdade ao Partido durante a exposição de seus crimes, abandonando a filiação somente quando não teve escolha, pois o Partido Comunista da Grã-Bretanha, constrangido, finalmente optou pela dissolução em 1990. Thompson, em contraste, deixou o Partido em 1956, em resposta à invasão soviética da Hungria, que o Partido Comunista da Grã-Bretanha se recusou a condenar e Hobsbawm afirmou aprovar (no
Daily Worker
de 9 de novembro de 1956), embora o fizesse “com o coração pesado”. Até sua morte em 2012, ele continuou a conceder essa aprovação de coração pesado às atrocidades que outros antigos comunistas viam com cada vez mais ultraje, e isso lançou certa sombra sobre sua reputação. Mas seu caso também ilustra quão longe se pode ir na colaboração com um crime, se ele for cometido pela esquerda. Os crimes cometidos pela direita não recebem tal absolvição e isso nos diz algo importante sobre os movimentos de esquerda, que parecem ter a capacidade assumida pelas religiões de tanto autorizar o crime quanto limpar a consciência daqueles que são coniventes com ele.
É, de fato, em termos religiosos que devemos entender a fascinação que o comunismo exerceu sobre os jovens intelectuais entre as duas guerras. Os espiões de Cambridge — Philby, Burgess, Maclean e Blunt — traíram muitas pessoas, causando suas mortes, e, ao revelar as identidades dos patriotas que, na esperança de um futuro democrático e não comunista, organizavam a resistência aos nazistas, asseguraram que Stalin seria capaz de “liquidar” os mais importantes oponentes de seu planejado avanço sobre a Europa Oriental.
Isso não causou remorso aparente nos espiões, que eram animados pelo repúdio compulsivo a seu país e suas instituições. Eles pertenciam a uma elite cujos membros haviam perdido a confiança em seu direito aos privilégios herdados e transformado em religião a negação dos valores instilados pela sociedade em que nasceram. Estavam famintos por uma filosofia que justificasse sua fixação destrutiva e o Partido Comunista a forneceu, oferecendo não apenas doutrina e compromisso, mas também filiação, autoridade e obediência — as próprias coisas que, em sua forma herdada, estavam determinados a rejeitar.
Organizações clandestinas criam um bando de anjos visitantes que se movem entre as pessoas comuns, coroados por um halo observável apenas para eles mesmos. Mas essa maçonaria dos eleitos não era a única fonte de apelo do Partido Comunista. Sua doutrina prometia tanto um futuro radiante quanto uma “luta” heroica a caminho dele. A sociedade europeia praticamente se destruíra durante a Primeira Guerra Mundial, da qual as pessoas comuns emergiram apenas com perdas, sem nenhum ganho compensatório. Para jovens intelectuais desiludidos com a realidade subsequente, a utopia se tornou um bem valioso. Era a coisa na qual se confiar, precisamente porque nada continha de real. Exigia sacrifício e compromisso e dava sentido à vida, ao fornecer uma fórmula que reescrevia cada negativo como positivo e cada ato destrutivo como ato de criação. A utopia fornecia instruções, secretas e implacáveis, mas autoritárias, que mandavam trair tudo e todos que ficassem no caminho — o que significava tudo e todos. A animação de tudo isso era irresistível para pessoas que queriam se vingar de um mundo que haviam se recusado a herdar.
Não foi somente na Grã-Bretanha que o Partido Comunista exerceu sua influência maligna. Em um livro vívido e perturbador, Czeszław Miłosz descreveu o poder satânico do comunismo sobre sua geração de intelectuais poloneses, fechando suas mentes a todos os argumentos contrários e extinguindo, uma por uma, as lealdades pelas quais seus compatriotas viviam — à família, à Igreja, ao país e à ordem legal.
9
Os escritores, artistas e músicos da França e da Alemanha também caíram sob esse feitiço. O Partido Comunista atraía não por causa de suas políticas concretas ou de qualquer programa de ação plausível dentro da ordem existente. Ele atraía porque se dirigia à desordem
interna
da classe intelectual, em um mundo onde não havia nada real em que acreditar.
A habilidade do Partido de transformar negativo em positivo e repúdio em redenção oferecia precisamente a terapia psíquica de que necessitavam aqueles que haviam perdido toda fé religiosa e afeição cívica. Sua condição negativa foi bem expressa, em benefício dos intelectuais franceses, por André Breton em seu segundo Manifesto Surrealista, de 1930:
Tudo ainda precisa ser feito e cada meio deve ser digno de tentativa, a fim de destruir as ideias de família, país, religião [...] [Os surrealistas] pretendem saborear integralmente o profundo pesar, tão bem encenado, com o qual o público burguês [...] saúda a firme e inflexível necessidade que demonstram de rir como selvagens na presença da bandeira francesa, de vomitar sua repulsa no rosto de cada padre e apontar para a procriação de “deveres básicos” a arma de longo alcance do cinismo sexual.
Por mais infantil que pareça em retrospecto, o manifesto é também um claro pedido de ajuda. Breton está pedindo um sistema de crenças que ofereça uma nova ordem e uma nova forma de filiação — uma que inverta todas essas negativas e as reescreva na linguagem da autoafirmação.
Hobsbawm tinha mais desculpas que a maioria dos novos recrutas do Partido Comunista. Nascido em Alexandria, de pais judeus, órfão ainda na infância e vivendo em Berlim com os familiares que o haviam adotado, ele sofreu o trauma da ascensão de Hitler ao poder em seus anos mais vulneráveis. Escapando por pouco com a família adotiva para a Inglaterra, viu-se desenraizado, traumatizado, com a mente esvaziada de todas as lealdades herdadas e, contudo, faminto por algo que desse sentido à vida intelectual à qual se adaptava tão perfeitamente e que também o recrutaria para a guerra contra o fascismo. Ele se ligou à causa comunista com inabalável devoção e estudou os modos pelos quais poderia defender essa causa através da erudição.
É impossível saber, e provavelmente imprudente perguntar, quantos intelectuais comunistas de sua geração estiveram envolvidos nas atividades subversivas que agora associamos ao círculo em torno de Philby, Burgess e Maclean. Surgiram suspeitas em relação ao historiador da guerra civil inglesa Christopher Hill, oficial do Ministério de Relações Exteriores durante os cruciais dois últimos anos da guerra, nos quais Stalin dependia de seus espiões em Londres para facilitar a tomada da Europa Oriental. Hill, subsequentemente diretor de Balliol, foi membro do Grupo de Historiadores do Partido Comunista de Oxford após a guerra, juntamente com Hobsbawm, Thompson e Raphael Samuel. Em 1952, ele e Samuel fundaram o influente jornal
Past and Present
, devotado à leitura marxista da história. Associado a esse trabalho estava o sociólogo radical Ralph Miliband, que chegara como refugiado da Bélgica em 1940 e cujo pai polonês lutara no Exército soviético contra seu próprio país na guerra polonês-soviética de 1920 — a guerra durante a qual Lenin tentara, sem sucesso, estabelecer a ponte que uniria os movimentos comunistas na Rússia e na Alemanha.
Miliband era colaborador ativo da
New Reasoner
, criada por E. P. Thompson e outros em 1958. Em 1960, ela se uniu à
Universities and Left Review
para se tornar a
New Left Review
(ver capítulo 7). Suas simpatias estavam com o movimento socialista internacional, mas, até onde sei, ele jamais foi membro do Partido Comunista, mesmo que estivesse inclinado a percorrer a revolucionária, em vez da parlamentar, “estrada para o socialismo”. Sua decepção com o Partido Trabalhista, ao qual se filiara em 1951, encontra cáustica expressão em seu livro
Capitalist Democracy in Britain
, publicado em 1982. Nessa obra, ele argumenta que o Partido Trabalhista, ao endossar as instituições da política inglesa, efetivamente silenciou a voz da classe operária e, dessa forma, ajudou a conter a “pressão vinda de baixo” que, em todos os outros lugares, irrompera como revolução. Ao mesmo tempo, relutantemente reconhece que a habilidade das instituições inglesas de conter os protestos vindos de baixo explica a paz sem paralelos vivida pelo povo inglês desde o fim do século XVII. Substitua “conter” por “responder a” e essa sentença seria o primeiro passo em uma resposta da direita a sua distorcida leitura de nossa história nacional.
Qualquer que seja a extensão de seu envolvimento na política comunista, esses escritores se distinguem dos espiões de Cambridge e de colegas viajantes por um fato principal, que é sua seriedade intelectual. Eles viram o comunismo como tentativa de colocar a filosofia de Karl Marx em prática e aceitaram o marxismo como primeira e única tentativa de elevar o estudo da história ao status de ciência. Seu interesse para nós hoje é inseparável de seu desejo de reescrever a história em termos marxistas e, ao fazê-lo, usar o entendimento histórico como instrumento de política social.
Nenhum leitor das obras históricas de Hobsbawm pode deixar de se sentir atraído por elas. Sua amplitude de conhecimento é acompanhada pela elegância de sua prosa, e é um testemunho de seus talentos como erudito e homem de letras que tenha sido eleito tanto para a Academia Inglesa quanto para a Real Sociedade de Literatura. Sua história em quatro volumes sobre o surgimento do mundo moderno —
A era das revoluções: 1789-1848, A era do capital: 1848-1875, A era dos impérios: 1875-1914
e
A era dos extremos: 1914-1991
— é uma notável obra de síntese, seriamente enganosa apenas no quarto volume, no qual a tentativa de embelezar o experimento comunista e jogar a culpa por todos os males na porta do “capitalismo” tem um aspecto parcialmente sinistro, parcialmente antiquado. Seu relato sobre a Revolução Industrial e seu alcance imperial —
Industry and Empire: From 1750 to the Present Day
— conseguiu lugar merecido como texto escolar sobre o assunto, reimpresso quase todos os anos desde a primeira publicação em 1968. Refletindo sobre o método adotado nesses livros, ele escreveu que “nenhuma discussão séria sobre história é possível sem fazer referência a Marx ou, mais exatamente, sem começar onde ele começou. E isso significa, basicamente [...], uma concepção materialista da história”.
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E é com essa alegação que qualquer avaliação da contribuição de Hobsbawm à vida intelectual deveria começar.
A teoria “materialista” da história foi uma resposta a Hegel, que via a evolução das sociedades humanas como impulsionada pela consciência de seus membros, consciência essa manifestada na religião, na moralidade, nas leis e na cultura. Não, respondeu Marx notoriamente. Não é “a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (
A ideologia alemã
). A vida não é um processo consciente ocorrendo no reino das ideias, mas uma realidade “material” enraizada nas necessidades do organismo. E a base da vida social é igualmente material, envolvendo a produção, distribuição e troca de bens. A atividade econômica é a “base” sobre a qual repousa a “superestrutura” da sociedade. Os fatores “mentais” ou “espirituais” tão frequentemente destacados como agentes de mudança histórica — movimentos religiosos, inovações legais, a autocompreensão e a cultura das comunidades locais e mesmo as instituições que formam a identidade de um Estado-nação — devem ser entendidos como subprodutos da produção material. As sociedades humanas evoluem porque as forças produtivas crescem, necessitando de constantes revoluções nas relações de propriedade, da escravidão ao feudalismo, dele ao capitalismo e além. A superestrutura muda em resposta às necessidades e oportunidades da produção, mais ou menos como as espécies se adaptam à pressão evolutiva. E a consciência de uma sociedade, na religião, na cultura e nas leis, é o resultado desse processo, motivado, em última análise, pelas leis de crescimento econômico.
Como extrair algum sentido disso é uma fascinante questão à qual, até onde sei, apenas um pensador moderno forneceu uma resposta plausível — G. A. Cohen, em
A teoria da história de Karl Marx: uma defesa
.
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Mas a ideia pode ser entrevista em alguns poucos exemplos. Considere as mudanças no direito imobiliário inglês durante o século XIX. As novas leis permitiam que arrendatários vitalícios vendessem suas propriedades sem ônus, possibilitando o uso da terra para mineração e produção industrial. Esse é um exemplo de forças econômicas causando uma mudança de longo alcance nas relações de propriedade e uma transferência de poder e iniciativa da aristocracia rural para a emergente classe média. Considere o surgimento do romance uma forma de arte durante a segunda metade do século XVIII. Ele tratava da autoimagem da sociedade emergente, entrincheirando ideias de liberdade e responsabilidade individual nos planos de vida da classe proprietária. Isso mostra a emergência de uma nova forma artística em resposta a mudanças fundamentais na ordem econômica. Considere as várias reformas eleitorais durante o século XIX. Elas serviram para consolidar o poder das novas classes proprietárias e assegurar que a legislação protegesse seus interesses. Isso mostra instituições políticas mudando em resposta à necessidade econômica.
Em todos esses exemplos, vemos a demanda das forças produtivas por instituições e culturas que facilitem sua expansão. A expansão das forças produtivas é o fato
básico
, aquele que explica todas as mudanças sociais que surgem em resposta a ele. Instituições e formas culturais existem porque oferecem suporte às relações econômicas, do mesmo modo que o telhado de uma casa suporta as paredes sobre as quais se apoia. E as relações econômicas existem porque permitem que as forças produtivas cresçam em resposta a mudanças tecnológicas e demográficas.
Contudo, uma coisa é afirmar que as instituições surgem porque são funcionais; outra é afirmar que desaparecem porque já não o são. Assim, quando a lei de herança passou a impedir o desenvolvimento dos recursos naturais na Inglaterra, ela já não era funcional. Como resultado, houve pressão para modificá-la. Mas isso não significa que a lei original tenha surgido porque era economicamente funcional. Pode ter sido — de fato, foi — uma resposta às demandas da ambição familiar e dinástica. Além disso, instituições sociais podem ser economicamente não funcionais e persistir, por causa das outras funções que desempenham ou meramente por causa da afeição que sentimos por serem “nossas”. Assim, a política do xogunato Tokugawa, que isolou o Japão da maior parte do mundo entre 1641 e 1853, foi economicamente não funcional, impedindo a explosão de comércio internacional que subsequentemente levaria à grande riqueza do país. Mas era funcional de outros modos, concedendo ao Japão um extenso período de paz que tem poucos paralelos na história de qualquer nação e encorajando o desenvolvimento da refinada cultura xintoísta, que criou um espaço tão consolador para os mortos.
Assim, a que se resume, exatamente, a teoria marxista da história? Existe uma indisputável rede de conexões entre a vida social e a vida econômica, mas não se pode determinar qual é causa e qual é efeito, pois não há experimentos para testar hipóteses. Na prática, portanto, a história marxista é menos uma explicação que uma mudança de ênfase. Onde outros podem estudar lei, religião, arte e vida familiar, os marxistas se concentram nas realidades “materiais”, ou seja, na produção de comida, casas, maquinário, mobília e meios de transporte. Se for suficientemente seletivo, você pode dar a impressão de que os bens materiais são o real motor da mudança social, dado que sem eles, afinal, nenhum outro bem pode existir. Embora seja um estímulo útil na busca por fatos relevantes, isso não chega a ser uma explicação causal e é bastante enganoso como relato da história moderna, na qual a inovação legal e política foi tão frequentemente tanto a causa quanto o efeito da mudança econômica.
Mais interessante ainda para os historiadores marxistas da geração de Hobsbawm era a ideia de classe. E, como veremos ao discutir Perry Anderson (capítulo 7), eles enfatizam períodos de levante e rebelião, esperando encontrar evidências de uma “luta de classes” que alimenta a agitação social e política. Nessa conexão, Marx distinguiu entre “classe em si” e “classe para si”. Em um sistema capitalista, o proletariado consiste em todos aqueles que nada têm para trocar, salvo seu poder de trabalho. Objetivamente falando, os membros do proletariado formam uma classe porque possuem interesses econômicos partilhados, em particular o interesse de se libertar da “escravidão do salário” e obter controle sobre os meios de produção. A burguesia forma uma classe pela mesma razão — ou seja, seu interesse comum de reter o controle sobre os meios de produção. Desses interesses rivais surge a “luta de classes”, uma competição no mundo das forças materiais da qual os próprios participantes não estão totalmente conscientes.
As pessoas não meramente
possuem
interesses econômicos. Às vezes, estão conscientes deles. E, ao se tornarem conscientes, desenvolvem elaboradas histórias para justificar seu direito e a justiça ou injustiça de sua situação. Quando isso acontece, e quando a consciência dos interesses econômicos partilhados também é partilhada, surge a “classe para si”. E isso, para Marx, é o primeiro passo na direção da revolução.
Isso é tanto poético quanto animador. Mas é verdadeiro? E, se for verdadeiro, indica uma nova maneira de fazer história? Hobsbawm, Thompson, Hill, Samuel e Miliband acharam que a resposta para ambas as perguntas era “sim”. Como resultado, decidiram reescrever a história do povo inglês como a história de uma “luta de classes”. O resultado é uma ênfase constante nos bens materiais e vantagens sociais da emergente classe média e no empobrecimento e degradação dos trabalhadores. Eis aqui um típico sumário de Hobsbawm, tratando do reinado de George IV. Ele se segue a uma prolongada zombaria da aristocracia rural, com suas caçadas, seus torneios de tiro e seus colégios internos:
Igualmente plácidas e prósperas eram as vidas dos numerosos parasitas da sociedade aristocrática rural, alta e baixa — o rural e interiorano trabalho dos funcionários e fornecedores da nobreza e da burguesia e as profissões tradicionais, sonolentas, corruptas e, com o prosseguimento da Revolução Industrial, cada vez mais reacionárias. A Igreja e as universidades inglesas continuaram inertes, amortecidas por suas rendas, seus privilégios e abusos e suas relações com seus pares, com sua corrupção sendo atacada com mais consistência na teoria que na prática. Os advogados, e o que se passava por serviço público, permaneciam sem reforma ou regeneração [...].
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Sem dúvida há verdade nisso. Mas o fato está inserido na linguagem da luta de classes e em termos que não concedem espaço para qualquer diferença nas pessoas descritas ou no sistema que as continha. Aqueles “parasitas” poderiam igualmente ser descritos como mercadores e comerciantes, e os profissionais “reacionários” como professores, médicos e agentes que, apesar de todas as suas falhas, asseguraram que o capital social fosse passado adiante e aprimorado durante todo o século XIX. E, em cada período, deve ter havido algumas pessoas boas entre eles, incluindo muitas avessas à corrupção. Hobsbawm admite que a corrupção na Igreja era vigorosamente criticada, mas ignora as críticas por serem mais consistentes “na teoria que na prática”. Quanto aos advogados e funcionários públicos, não lhes é dada atenção. Inclusive a extraordinária mobilidade social do século XIX inglês, que permitiu que Sir Robert Peel, pai do primeiro-ministro, passasse de pequeno proprietário rural independente a capitão da indústria, está envolta na mesma linguagem revanchista, como se culpasse o sistema de classes por estender suas boas-vindas aos que abrem caminho por ele.
A descrição da nova classe operária também é viciada, mas no sentido oposto. Seu mundo tradicional — e a velha “economia moral”, como E. P. Thompson a descreveria — fora destruído pela Revolução Industrial. Confinados nas novas cidades em expansão, lembrados a todo momento de sua “exclusão da sociedade humana”, condenados a trabalhar pela taxa de mercado definida pelos economistas liberais, que era a taxa mais baixa pela qual o trabalho podia ser trocado por dinheiro, os operários eram salvos da inanição, quando desempregados, pelas Leis dos Pobres, “que pretendiam não tanto ajudar os desafortunados quanto estigmatizar os autoconfessos fracassos da sociedade”.
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Essa foi, na verdade, a época das Sociedades Benevolentes e das Sociedades Construtoras, que criavam oportunidades para que os trabalhadores pudessem se tornar donos de suas casas e membros da nova classe média. Foi a época dos Institutos de Mecânica, criados por membros caridosos da classe média a fim de oferecer instrução aos que trabalhavam em tempo integral. Foi a época das bibliotecas para operários, das bandas das minas de carvão e das Leis das Fábricas, que, uma por uma, eliminaram a pior parte dos abusos tornados possíveis pelo processo industrial. Mas todas essas coisas são ignoradas por Hobsbawm, para quem constituem não gestos de bondade, mas simplesmente maneiras de prolongar a exploração.
Dessa maneira, ele é capaz de descrever o — admitidamente longe de indolor — processo pelo qual a Revolução Industrial foi acomodada por nossas instituições sociais e políticas como processo de “luta de classes”, embora direcionado, em todos os momentos, contra a classe operária. E onde os fatos contrariam diretamente a história marxista, ele explicitamente tenta evitá-los. Assim, temos a notória predição de Marx de que os salários cairiam sob o capitalismo, pois os trabalhadores seriam forçados a aceitar uma barganha ainda mais dura para gozar da “escravidão ao salário”, que era tudo que havia em oferta. Pesquisas refutaram essa predição e mostraram que os salários e os padrões de vida, com alguns poucos contratempos, elevaram-se de modo constante durante a Revolução Industrial.
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Em vez de aceitar isso e reescrever sua história de acordo, Hobsbawm coloca toda a questão entre colchetes, como que para impedir que contamine a pureza de suas crenças:
Se [sua pobreza material] realmente piorou ou não é algo que tem sido acaloradamente debatido entre os historiadores, mas o próprio fato de que a questão pode ser suscitada já fornece uma sombria resposta: ninguém argumenta seriamente que as condições se deterioraram quando elas claramente não o fizeram, como nos anos 1950.
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Em outras palavras, é suficiente para o historiador considerar o que foi debatido: não há necessidade de dar mais um passo e chegar à verdade.
Os fatos são mais interessantes e memoráveis quando fazem parte de um drama e, se a história quiser desempenhar algum papel na política, tem de ser o drama da vida moderna. Mas alegar que o resultado é novo, científico e baseado em teorias, ao contrário das antigas narrativas de realizações nacionais e reforma institucional, certamente é bastante injustificado. A história marxista pretende reescrever a história com as classes no topo da agenda. E isso envolve demonizar a classe superior e romantizar a inferior.
A reescrita da história por Hobsbawm, de acordo com o modelo marxista de “luta de classes”, envolve a desmoralização das fontes de lealdade que unem as pessoas comuns não a sua classe (como requer a doutrina marxista), mas a sua nação e suas tradições. A classe é uma ideia atraente para os historiadores de esquerda porque denota uma coisa que nos divide. Ao vermos a sociedade em termos de classe, estamos programados para encontrar antagonismo no âmago de todas as instituições por meio das quais as pessoas tentaram limitá-lo. Nação, lei, fé, tradição, soberania — essas ideias, por contraste, denotam coisas que nos unem. É nesses termos que tentamos articular a coesão fundamental que mitiga a rivalidade social, seja de classe, status ou papel econômico. Assim, tem sido um projeto vital da esquerda, ao qual Hobsbawm fez sua própria e distinta contribuição, mostrar que essas coisas são de certo modo ilusórias e não representam nada de durável ou fundamental na ordem social. Para falar em termos marxistas, o conceito de classe pertence à ciência; o de nação, à ideologia. A ideia de nação e suas tradições pertence à máscara estendida sobre o mundo social pela necessidade burguesa de percebê-lo equivocadamente.
Assim, em
Nações e nacionalismo desde 1780
, Hobsbawm tenta mostrar que as nações não são as coisas naturais que alegam ser, mas invenções com o intuito de fabricar uma enganosa lealdade a esse ou àquele sistema político prevalente. Em
A invenção das tradições
— uma coleção editada por ele e Terence Ranger
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—, uma variedade de autores afirma que muitas tradições sociais, cerimônias e símbolos de identidade étnica são criações recentes, encorajando as pessoas a imaginarem um passado imemorial do qual descendem e que dota a sua filiação social de uma enganosa forma de permanência. Esses dois livros pertencem a uma crescente biblioteca de estudos devotada à “invenção do passado”, incluindo clássicos como o de Benedict Anderson,
Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo
(1983), e o de Ernest Gellner,
Nations and Nationalism
(1983).
Essa literatura estabeleceu, para além de qualquer dúvida, que, quando as pessoas se tornam conscientes de seu passado e o reivindicam como possessão coletiva, elas não pensam como os historiadores empíricos e os estatísticos sociais. Elas pensam como profetas, poetas e criadores de mitos, projetando em seus antepassados o senso presente de sua identidade, a fim de reivindicar o passado como
seu
. Mas o que se segue disso? Exatamente o mesmo processo pode ser testemunhado nos textos historiográficos de Hobsbawm, Thompson e Samuel, nos quais o que é projetado no passado não é a consciência atual de nacionalidade, mas a experiência atual de classe. Há, nos ataques da Nova Esquerda à nação e à identidade nacional, uma falha em levar sua própria herança intelectual a sério. Marx distinguia a “classe em si” da “classe para si” precisamente porque acreditava que a estrutura de classes das sociedades modernas passou a existir muito antes de as pessoas estarem conscientes dela. O que o relato da Revolução Industrial feito por Hobsbawm ilustra é a maneira pela qual a moderna “consciência de classe” pode ser lida nas condições que a precederam e, desse modo, criar um senso de pertencimento a uma longa tradição de “luta” que une o professor atual aos túmulos dos mortos industriais, glorificando seu trabalho.
Da mesma forma, devemos distinguir a “nação em si” da “nação para si”. É claro que a última é uma invenção recente, a expressão de uma consciência que se desenvolve com o tempo e em resposta a emergências atuais. De modo algum isso demonstra que a lealdade nacional é mais ficcional que a solidariedade de classe que atrai escritores como Hobsbawm. Nas peças de Shakespeare, vemos uma versão inicial da consciência nacional que floresceria durante as guerras napoleônicas e, mais tarde, uniria o povo inglês na luta contra a Alemanha nazista.
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Ao ser desafiada pela ascensão do nazismo, essa “nação para si” se provou muito mais efetiva que a solidariedade internacional do proletariado, que se mostrou, por contraste, um mero sonho dos intelectuais.
É fácil afirmar que as tradições são inventadas quando os exemplos escolhidos são aqueles discutidos pelos autores reunidos em torno de Hobsbawm e Ranger. A dança campestre escocesa e o kilt das terras altas; a procissão de Lord Mayor e a Cerimônia das Nove Lições e Cânticos; os uniformes e costumes dos regimentos distritais — todas essas coisas, é claro, são produtos da imaginação. Mas a imaginação também nos fornece símbolos de uma profunda e perene realidade, e esses exemplos particulares de “tradição para si” são de pouca importância quando comparados à “tradição em si” que os conservadores desejam aprimorar e preservar.
Considere o exemplo que, propriamente compreendido, deixa a teoria da história marxista em ruínas: o direito consuetudinário das pessoas de língua inglesa. Ele não apenas existe há mil anos, com precedentes do século XII ainda autoritários nos tribunais do século XXI, como também se desenvolveu de acordo com uma lógica interna própria, mantendo a continuidade em meio à mudança e unindo a sociedade inglesa durante todas as emergências nacionais e internacionais. Ele se mostrou o motor da história e o iniciador da mudança econômica, e em nenhum aspecto pode ser relegado à epifenomênica “superestrutura” que os marxistas acreditam não possuir poder causal autônomo. Para mim, as grandes obras de Coke, Dicey e Maitland não deixam dúvidas nessa questão — e é claro que não são mencionadas na literatura de esquerda, uma vez que não deixam quase nada em pé no edifício construído por Marx.
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O direito consuetudinário é apenas um exemplo de tradição duradoura que vive
em
si mesma, seja ou não
para
si mesma. Outros exemplos incluem a liturgia da comunhão católica, a escala diatônica na música, a orquestra sinfônica, a banda de música, o
pas de basque
nas danças em formação, o terno de duas peças com gravata,
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os cargos no Parlamento, a coroa, o garfo e a faca, o molho
béarnaise
, saudações como
Grüß Gott
e
sabah an-noor
, a prece antes das refeições, as boas maneiras e a honra na paz e na guerra. Algumas são triviais, outras, absolutamente fundacionais na comunidade onde ocorrem, e todas dinâmicas, mudando com o tempo em resposta às novas circunstâncias daqueles ligados a elas, a fim de manter a comunidade unida em face de ameaças internas e externas. Estude essas coisas, note quantas estão ausentes ou são depreciadas nas obras dos historiadores esquerdistas e você começará a se perguntar se o marxismo fez qualquer grande contribuição para nossa compreensão do desenvolvimento histórico.
Antes de deixarmos as obras de Hobsbawm, consideremos seu relato da Revolução Russa.
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Ele não descreve as políticas de Lenin detalhadamente, resumindo-as em novilíngua marxista. Assim, escreve que Lenin agiu em benefício das “massas”, em face da implacável oposição da “burguesia”: “Contrariamente à mitologia da Guerra Fria, que via Lenin essencialmente como organizador de golpes, o único ativo real que ele e os bolcheviques possuíam era a habilidade de reconhecer o que as massas queriam” (p. 61) e, “se um partido revolucionário não toma o poder quando o momento e as massas clamam por isso, em que difere de um partido não revolucionário?” (p. 63). Ele ignora a questão de quem são as “massas” e se realmente clamaram pela violência que o Partido estava prestes a impor. Cita a sinistra novilíngua do próprio Lenin com aprovação: “Quem — disse ele tão frequentemente — poderia pensar que a vitória do socialismo ‘seria possível [...] exceto pela completa destruição da Rússia e da burguesia europeia’?” E, sem parar para considerar o que significava essa “completa destruição”, ignora todas as objeções aos métodos de Lenin, como se jamais tivessem sido questionados:
Quem poderia se dar ao luxo de considerar as possíveis consequências de longo prazo, para a revolução, de decisões que tinham de ser tomadas agora
, caso contrário seria o fim da revolução e já não haveria consequências a considerar? Um a um, os passos necessários foram dados [...] (p. 64)
O que quer que os bolcheviques tenham feito foi realizado pelo “necessariamente implacável e disciplinado exército de emancipação humana” (p. 72) e, nesses termos, Hobsbawm é capaz de desconsiderar tudo que Lenin de fato
fez em seu caminho até a “completa destruição” da burguesia.
E que estranha forma essa “emancipação” assumiu! Como a história marxista não se preocupa com coisas como direito e processo judicial, Hobsbawm não vê necessidade de mencionar o decreto de Lenin de 21 de novembro de 1917, que abolia os tribunais, a ordem dos advogados e a profissão legal e deixava o povo sem a única proteção que já tivera contra a intimidação e a prisão arbitrárias. Afinal, era somente a burguesia, que de qualquer modo já estava a caminho da “completa destruição”, que recorria aos tribunais. Evidentemente, não são mencionadas a fundação da Cheka, precursora do KGB, e a autorização de Lenin para que empregasse todos os métodos terroristas necessários para expressar a vontade das “massas” contra a vontade das meras pessoas comuns. Nem a fome de 1921, a primeira de três grandes fomes causadas pelo homem na história inicial da União Soviética, usada por Lenin para impor a vontade das “massas” aos recalcitrantes camponeses ucranianos que ainda não haviam aceitado essa descrição para si mesmos. Lendo essas páginas de
A era dos extremos
, fico atônito que o livro não tenha sido um escândalo da mesma ordem que o embelezamento do Holocausto feito por David Irving. Mas, novamente, sou forçado a reconhecer que os crimes cometidos pela esquerda não são realmente crimes e que, de qualquer modo, aqueles que os desculpam ou os ignoram em silêncio sempre têm o melhor dos motivos para fazê-lo.
Isso me leva a E. P. Thompson. Se Thompson permanece importante para nós atualmente, é porque estava agudamente consciente dos problemas apresentados pela teoria de classes marxista e pela maneira descuidada como “em si” e “para si” haviam sido confundidos. Para ele, é a classe
para
si que importa. Na teoria marxista original, de acordo com a qual a classe é definida por uma posição nas relações de produção e por uma função econômica que une todos aqueles que a exercem, a classe operária inglesa deveria ter existido desde a primeira produção capitalista, na Inglaterra medieval.
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Thompson afirma que, ao contrário, nada existia naquela época que pudesse ser utilmente comparado à classe operária do século XIX. Em outros trechos, repreende os historiadores marxistas que, ansiosos para dar credibilidade à história esquemática de
O manifesto comunista
, tentam nos persuadir de que a economia da França antes da revolução (“burguesa”) era “feudal”. Ele acreditava que tais ideias mostravam uma fixação em categorias simples à custa da complexidade dos fenômenos históricos.
É difícil discordar. Mesmo assim, ele permanece convicto de que a teoria marxista de luta de classes é iluminadora e pode ser aplicada, em forma modificada, à história da Inglaterra. Em
A formação da classe operária inglesa
, Thompson argumenta que nenhuma ideia de classes “materialista” e simplista é adequada: “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, no fim, essa é sua única definição”. Em outras palavras, a classe em si surge com a classe para si, e a velha ideia marxista de que a classe precede a consciência de classe não tem autoridade. De outro modo, como poderia ter sentido a noção de que as classes estão sempre engajadas em uma “luta”? Robert Michels o disse de forma sucinta: “Não foi a simples
existência
de condições opressoras, mas o
reconhecimento dessas condições pelos oprimidos
que, no curso da história, constituiu o fator primário das lutas de classes”.
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Isso levanta a questão — crucial para a Nova Esquerda — sobre se as pessoas realmente podem ser oprimidas sem acharem que o são.
A classe operária inglesa, argumenta Thompson, foi produto de muitas coisas, não apenas das condições econômicas da manufatura industrial, mas também da religião não conformista que forneceu a todas as pessoas a linguagem com a qual expressar suas novas ligações, do movimento pela reforma parlamentar e eleitoral, das associações nas cidades manufatureiras e de mil outras particularidades que ajudaram a forjar uma identidade e uma determinação que articulariam as necessidades e queixas da força de trabalho industrial. Essa ideia de classe formada pela interação entre circunstâncias “materiais” e a consciência delas é certamente mais persuasiva que a adotada por Hobsbawm. Na aplicação de Thompson, apresenta um retrato da classe operária do qual ninguém precisa discordar: uma coleção de pessoas distinguidas em parte pelo trabalho assalariado com o qual ganhavam a vida, mas também envolvidas nos costumes sociais, instituições políticas, crenças religiosas e valores morais estabelecidos que as uniam à tradição nacional que partilhavam com seus compatriotas.
É difícil usar essa ideia para avançar a análise marxista da sociedade, de acordo com a qual o proletariado emerge como força inédita e internacional, sem laços locais ou identidade nacional e sem interesse em preservar a ordem política estabelecida. A interpretação “revisionista” da história inglesa feita por Thompson mostra o quanto nossas tradições políticas foram capazes de se adaptar às circunstâncias e dar expressão institucional a queixas que, desse modo, foram conciliadas e superadas. Uma classe operária moldada por valores não conformistas, ansiosa por representação no Parlamento e que conscientemente se identifica com os parlamentaristas do século XVII e com as obras de Bunyan não pode ser descrita como um dos lados da “luta de classes” marxista, a inimiga jurada de toda a ordem estabelecida e de todas as instituições que concedem legitimidade aos poderes constituídos. Mas Thompson insiste que sua interpretação atribui à classe operária o histórico papel que o mito esquerdista designou para ela: “Tais homens conheceram o utilitarismo em suas vidas diárias e buscaram combatê-lo, não cegamente, mas com inteligência e paixão moral. Eles lutaram não contra a máquina, mas contra os relacionamentos exploradores e opressores intrínsecos ao capitalismo industrial.”
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Os homens em questão formavam a classe operária inglesa, como Thompson a descreveu. Mas note a peculiar vagueza da observação final, que recuou da realidade concreta para a novilíngua marxista. Contra o que eles
estavam
lutando? Um mero “ismo” — o utilitarismo? Mas como se luta contra uma doutrina filosófica e quais eram as armas disponíveis para a classe operária industrial? Ou eles lutavam contra a exploração? Se o fizeram, como ela é definida? Os trabalhadores acreditavam que relacionamentos opressores eram “intrínsecos” ao capitalismo industrial? E o que significam “industrial” e “capitalismo”? O “comunismo industrial”, por exemplo, seria tão ruim quanto?
Thompson não dá nenhuma resposta clara a tais perguntas; a implicação de que a classe operária estava unida por sua oposição ao capitalismo é apresentada por prestidigitação. Certamente os operários reagiram, majoritariamente de forma negativa, às fábricas e às condições que prevaleciam nelas. Mas a propriedade privada dessas fábricas — que é tudo o que “capitalismo” significa nesse contexto — certamente era irrelevante para suas inquietações mais profundas. O que os incomodava eram as condições nas quais tinham de trabalhar a fim de ganhar seus salários, e eles teriam ficado igualmente incomodados se as fábricas fossem propriedade do Estado, de cooperativas ou de qualquer outro que alegasse estar de mãos atadas. O que realmente queriam era
um acordo melhor
e, gradualmente, compreenderam que só o conseguiriam com o aumento de seu poder de barganha. A resposta não jazia na propriedade pública das fábricas, mas na sindicalização da força de trabalho. Como a história subsequentemente deixou claro, os sindicatos defendem os interesses de seus membros somente onde os salários são o preço de mercado do trabalho: em outras palavras, somente em uma economia livre (“capitalista”).
Isso nos leva de volta a Hobsbawm e à teoria marxista de classes. A análise da classe operária inglesa feita por Thompson finaliza por descrevê-la como agente coletivo que faz coisas, opõe-se a coisas, luta contra coisas e pode ter sucesso ou fracassar. Em outro texto (“As peculiaridades dos ingleses”, em
A miséria da teoria
), ele expressa saudável ceticismo em relação a essa visão antropomórfica dos processos históricos que persistiu na teoria marxista de “luta de classes”. Mas usar essa “metáfora”, como Thompson a descreve, ainda implica coisas que podem não ser verdadeiras. A história certamente contém agentes coletivos que agem como um “nós” e possuem um senso de objetivo comum. É uma importante tese conservadora o fato de que as classes não estão entre eles.
O que, então, une as pessoas mais efetivamente como um “nós” e permite que combinem suas forças em um senso de destino comum e interesses partilhados? Como Thompson deixa claro, os fatores mais significativos são precisamente os que não fazem parte das condições “materiais”: linguagem, religião, costumes, associações e tradições de ordem política — em suma, todas as forças que absorvem indivíduos em competição na identidade partilhada de uma nação. Identificar a classe operária como agente, mesmo que “metaforicamente”, é ignorar o verdadeiro significado da consciência nacional como genuíno agente de mudança.
A sentimentalização do proletariado tem sido parte integral da historiografia do trabalho e Thompson não foi, de modo algum, imune a ela. Ele se via como parte de uma grande obra de emancipação que o uniria aos operários em um laço de grata afeição. Essa obra, que o atraíra ao Partido Comunista, mais tarde exigiria que se posicionasse contra as maquinações do capitalismo internacional, muito depois de ter reconhecido que a União Soviética não era o aliado natural de alguém que buscava ser amigo da classe operária. Em
A miséria da teoria
, escreve:
[Marx] parece propor não uma natureza angelical, mas homens que, dentro do contexto de certas instituições e culturas, conseguem pensar em termos de “nosso”, e não “meu” ou “deles”. Fui testemunha participante, em 1947, na eufórica sequência de uma transição revolucionária, de exatamente tal transformação de atitude. Os jovens camponeses, estudantes e operários iugoslavos, que com muito ânimo construíam sua própria ferrovia, indubitavelmente possuíam esse conceito afirmativo de
nasha
(“nosso”), embora esse
nasha
— como pode ter se provado afortunado para a Iugoslávia — fosse, em parte, o
nasha
da consciência socialista e, em parte, o
nasha
da nação.
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Esse hábil contrabando do nasha
da consciência socialista para o argumento, quando a única evidência real é que as pessoas trabalhavam juntas, como fazem quando são libertadas da ocupação estrangeira, é evidência da necessidade emocional de Thompson.
É fácil concordar que, “dentro do contexto de certas instituições e culturas”, as pessoas pensam em termos de “nosso”, e não de “meu” ou “deles”: o reconhecimento dessa verdade é o que une conservadores e nacionalistas contra a “consciência socialista” que, naquele momento, era ensinada aos iugoslavos. Pois, como agora sabemos, eles estavam sendo enganados. Todo o processo de reconstrução estava sendo manipulado pelo marechal Tito, o croata que Stalin ajudara a chegar ao poder depois que vira a morte dos patriotas cujos nomes e localizações obtivera com Philby e Blunt no Foreign Office.
O país fabricado por Tito não criou nem o “nosso” da consciência socialista nem, se é que existe tal coisa, aquele da nação. Quando os reais
nasha
de sérvios, croatas, eslovenos e montenegrinos finalmente se afirmaram, foi uns contra os outros e em profunda rejeição pela monstruosa ordem que Stalin e Tito haviam imposto. A referência ao “
nasha
da consciência socialista” é nada mais que uma sentimentalização, reminiscente do heroico operário que olha severamente para o futuro do assustador pôster na parede. Duvido que houvesse qualquer falante nativo de uma língua eslovena na geração pós-guerra que não ouvisse tal frase suprimindo um amargo sorriso.
Isso não significa que a historiografia de Thompson é mera propaganda. Longe disso. Como Hobsbawm, ele tinha uma bela mente investigativa, afinada com os fatos empíricos e com uma magistral capacidade de reuni-los. Ele eloquente e poderosamente afirmou a obrigação de todo historiador de descartar suas organizadas teorias quando entram em conflito com as evidências. E denunciou vigorosamente o florescente charlatanismo da Nova Esquerda, exemplificado da forma mais grotesca em Althusser (ver capítulo 6). Foi parcialmente por essa razão que foi expulso da
New Left Review
por Perry Anderson e jogado à própria sorte, onde havia rumores de que meros “empiristas” conseguiam sobreviver com magros restos de informação, sem o benefício das “grandes teorias”. Todo leitor de
A miséria da teoria
deve se sentir grato por esse pensador de esquerda que estava determinado a pensar dentro dos limites do bom senso e da honestidade intelectual.
Ao mesmo tempo, uma autoilusão simplificadora assombra as páginas do volume em que esse ensaio foi publicado. Essa autoilusão é mais manifesta nos lamentos a respeito dos operários que revelam a verdadeira fonte do elo “institucional e cultural” que os une.
Na ação dos doqueiros nas docas Victoria e Albert, que ameaçaram se recusar a atender quaisquer navios que não estivessem decorados em honra à libertação de Mafeking — os mesmos doqueiros cujo apoio Tom Mann buscou obter para fundar um internacionalismo proletário —, já podemos ver as avassaladoras derrotas à frente.
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Em outras palavras, os operários, que deveriam expressar sua verdadeira natureza na causa do “internacionalismo proletário”, haviam retornado ao antiquado patriotismo da ideologia burguesa. Eu me pergunto: será que poderiam ser curados com uma pitada de nasha
?
A autoilusão de Thompson também está manifesta em sua carta aberta a Kołakowski, na qual o comunista veterano, que acreditara e depois vira através do credo marxista quando aplicado à Europa Oriental, é censurado por sua “apostasia”:
Meus sentimentos possuem um tom ainda mais pessoal. Tenho, ao virar suas páginas em
Encounter
, um senso pessoal de mágoa e traição. Meus sentimentos não lhe dizem respeito: você deve fazer o que acha certo. Mas explicam por que escrevi não um artigo ou polêmica, mas esta carta aberta.
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Somente alguém que apostou alto demais, que se identificou com uma doutrina sem justificativa suficiente para crer nela, pode adotar um tom magoado. Nessa carta e em artigos posteriores sobre o desarmamento,
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testemunhamos a
necessidade
que animava sua escrita: a necessidade de acreditar no socialismo como filosofia do proletariado e no próprio proletariado como paciente inocente e agente heroico da história moderna.
Essa necessidade de acreditar assumiu formas surpreendentes. Talvez nenhuma seja mais notável que sua recusa em considerar a evidência exposta por escritores como Kołakowski: a evidência de que a tirania comunista derivou sua natureza precisamente da mesma atitude sentimental sobre os operários e da mesma simplificadora denigração do “capitalismo” e de tudo que parece estar implicado nele, que inspiraram seus textos. Thompson acreditava no poder das ideias. Mas se recusava a reconhecer as consequências das ideias que lhe eram mais caras.
Sua atitude pouco crítica em relação a seu próprio pregacionismo é similar a sua atitude em relação ao marxismo. Pois, em última análise, foi o marxismo que tornou possível inventar o passado. Os seres humanos surgem na história marxista somente como “forças”, “classes” e “ismos”. Instituições legais, morais e espirituais possuem lugar apenas marginal ou são colocadas em discussão somente quando podem facilmente ser vistas em termos de abstrações que falam através delas. Categorias mortas, impostas à matéria viva da história, reduzem tudo a fórmulas e estereótipos. Thompson descreve um passado revestido pela grade de suas próprias emoções.
A marginalização marxista das instituições, da lei e da vida moral não ficou confinada aos historiadores da Nova Esquerda na Grã-Bretanha. Os historiadores franceses dos
annales
, que preferem estatísticas sociais a grandes narrativas; a teoria da “dominação” de Foucault; o relato da práxis revolucionária feito por Gramsci; e o ataque da Escola de Frankfurt à “instrumentalização” do mundo social tiveram o efeito de depreciar as instituições e colocar mecanismos fictícios em seu lugar. Somente em um lugar do mundo pensadores recentes da esquerda viram a operação e a reforma do direito como assunto-objeto principal da política: os Estados Unidos da América. Graças à constituição americana e à longa tradição de pensamento crítico inspirada por ela, o esquerdismo americano tem adotado frequentemente a forma de um argumento legal e constitucional, entremeado por reflexões sobre a justiça que, misericordiosamente, estão livres do ressentimento de classe que surge nas obras da esquerda europeia. Assim, mesmo que defendam um papel cada vez maior para o Estado na vida das pessoas comuns, os americanos de esquerda são descritos não como socialistas, mas como liberais, como se fosse liberdade, e não igualdade, o que prometem. No capítulo que se segue, explorarei em que, nos anos recentes, isso se traduziu.