3.
Desdém nos Estados Unidos:
Galbraith e Dworkin
O triunfo da constituição dos Estados Unidos foi tornar a propriedade privada, a liberdade individual e o estado de direito características inamovíveis não apenas do cenário político americano, mas também de sua ciência política. Em tempos recentes, quase toda a filosofia americana de tendências esquerdistas foi fundada nessas preconcepções liberais clássicas e desafiou muito pouco as instituições fundamentais da sociedade “burguesa” como concebidas pelos marxistas. Em vez disso, chamou a atenção para a patologia da sociedade livre — o “consumismo”, o “consumo conspícuo” e o mundo da sociedade e da publicidade de massa. De Veblen a Galbraith, o que afligiu os críticos da economia livre foi não a propriedade privada — pedra fundamental de sua própria independência —, mas a propriedade privada dos outros. Nos últimos tempos, foi o espetáculo da propriedade nas mãos de pessoas ordinárias, grosseiras e incultas que preocupou os críticos domésticos do capitalismo americano.
Longe de ver esse “consumismo” como resultado necessário da democracia, a esquerda tentou mostrar que ele consiste não em democracia, mas em uma forma patológica dela. Nos Estados Unidos, a propriedade é muito palpável e factual e, embora alguém possa se iludir sobre os corações e as mentes das pessoas comuns, é impossível permanecer iludido sobre o lixo que elas espalham em seus quintais. Para o visitante da Costa Leste, os subúrbios texanos são uma horrível afronta à civilização: através da propriedade, da publicidade e da mídia, o americano comum põe a si mesmo em evidência, prejudicando a ilusão de igualdade. Ele claramente não pertence à mesma espécie do liberal diante dele e essa é uma verdade dura que, mesmo assim, precisa ser engolida.
Uma solução para esse dilema que fez sucesso durante os anos 1960 entre pensadores como Baran, Sweezy e Galbraith foi ver a sordidez americana moderna como produto de um “sistema” de poder estabelecido.
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Não é a demanda popular que promove a cultura de consumo, mas um propósito político. Capitalistas e políticos desavergonhadamente encorajam as pessoas a expandirem seus apetites, a despeito dos decisivos argumentos por sua contenção. Ao lutar contra a cultura de consumo, portanto, os liberais não estão menosprezando os americanos comuns, mas atingindo os poderes que os oprimem.
O marxista europeu, olhando para as misérias do início da Revolução Industrial na Inglaterra, muito provavelmente será tentado, pela visão de Hobsbawm e Thompson, a ver uma “luta de classes” em cada tumulto social. Mas, com exceção de um breve período durante a Depressão, a visão marxista jamais teve ampla aceitação entre a esquerda americana. Os Estados Unidos não apresentam as múltiplas barreiras ao progresso social que existiram na Europa; o país oferece espaço, recursos, determinação e oportunidades abundantes e, em particular, uma estrutura política avessa à criação de elites hereditárias permanentes. O resultado é que as “classes” permanecem fluidas, temporárias e sem atributos morais aparentes.
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Há uma espécie de teologia envolvida no discurso da “luta de classes”. Forças cósmicas se chocam no espaço de trabalho e nas ruas das grandes cidades industriais inglesas e precisam se concentrar em falanges opostas como as dos anjos em guerra do
Paraíso perdido
de Milton. Para que isso aconteça, o trabalhador precisa identificar seu patrão como antagonista, com interesses opostos ao seu em cada instância, e o intelectual deve ficar ao lado do trabalhador em busca da justiça pela qual ambos lutam.
Essa história faz pouco sucesso nos Estados Unidos, onde tanto empregador quanto empregado estão subindo a escada do sucesso, diferindo apenas em seu avanço relativo. Assim, os oponentes intelectuais da cultura americana de trabalho duro e mobilidade social não gozam da “solidariedade entre intelectuais e proletariado” que foi tão poderosa durante a criação da agenda do socialismo europeu. Eles precisam se dirigir diretamente aos poderes estabelecidos. Conseguiram isso com a criação de um “antiestablishment” cuja autoridade social supera o mero dinheiro da classe capitalista. É assim que devemos ler a
New York Review of Books
, cujo desdenhoso resumo da aridez cultural americana tem moldado a postura oposicionista de professores universitários e jornalistas desde os anos 1960: sua mensagem é que eles têm o dinheiro, mas
nós
temos os cérebros.
No mesmo espírito, os Estados Unidos produziram uma impressionante tradição de economistas sarcásticos, comentadores instruídos e espirituosos da grande colmeia produtiva que paga tão generosamente por seu escárnio. Thorstein Veblen começou a tradição com um estudo clássico —
A teoria da classe ociosa
(1899) — no qual elogia a utilidade dos vícios peculiares da extremidade superior da escala social. Sua ironia tinha o mesmo tom da de Mandeville em
A fábula das abelhas
, mas com uma virada no enredo. O “consumo conspícuo” de sua “classe ociosa” é útil precisamente para a perpetuação da classe ociosa, ao reciclar os lucros obtidos com o trabalho alheio. Não que ele visse alguma alternativa ou desejasse um esquema sem classes. Cético demais para adotar tal solução e crítico implacável do que considerava ser a fraude intelectual do marxismo, ele permanecia distante da realidade americana, rindo baixinho da perfeição simbiótica com que o organismo se mantinha vivo.
É um grande elogio a J. K. Galbraith dizer que, em seu auge, ele foi tão espirituoso e envolvente quanto Veblen. O que lhe faltava em insight sociológico sobrava em audácia e, como seu grande predecessor, ele ampliou constantemente sua perspectiva por meio da busca deliberada pela controvérsia. Sua teoria era global, nos mesmos amplos moldes da “economia política” concebida por Smith, Ricardo e Mill. Como Veblen, não era esquerdista ortodoxo. Mesmo assim, suas conclusões e os argumentos apresentados em defesa delas foram de grande importância para a formulação da posição da esquerda durante os anos 1960. Na época, Galbraith (embora nascido e criado no Canadá) havia sido nomeado embaixador americano na Índia pelo presidente Kennedy. Em seguida, serviu como conselheiro econômico dos governos da Índia, do Paquistão e do Sri Lanka. Tornou-se palestrante do programa de rádio
Reith Lectures
da BBC em 1966 e, ao morrer em 2006, aos 98 anos, recebera cinquenta diplomas honorários de universidades em todo o mundo. Ele pode ser descrito como o mais notório crítico do establishment a receber sua aclamação, rivalizando, nesse status, apenas com Edward Said e Ronald Dworkin.
Galbraith acreditava que a teoria econômica tradicional, com sua ênfase nos mercados competitivos, não podia ser aplicada às dinâmicas do “novo Estado industrial”, expressão que cunhou para denotar tanto as “economias capitalistas” do Ocidente quanto as “economias socialistas” do império soviético. Além disso, a tradicional ênfase na produção como critério de sucesso social, econômico e político não era melhor que a ideologia, uma crença conveniente que azeitava as engrenagens de um novo tipo de Estado ao mesmo tempo que envenenava as fontes de contentamento.
Galbraith ofereceu uma análise de todo o sistema socioeconômico de produção industrial, levando em conta vários fatores que, segundo ele, foram previamente ignorados: “oligopólios”, “poderes de equilíbrio”, processo centralizado de tomada de decisões e declínio constante tanto da motivação pelo lucro quanto da efetividade da competição. Daí emerge sua análise — espalhada em vários livros importantes —, uma imagem que lentamente entra em foco da sociedade industrial como sistema impessoal, controlado por uma “tecnoestrutura” com velado interesse na produção. A legitimidade desse sistema depende da propagação de mitos políticos — em particular o mito da “Guerra Fria”, por meio do qual a corrida armamentista e a consequente superprodução de tecnologia, com seu efeito incidental sobre a produção de todas as outras coisas, estão firmemente entranhadas no processo político. Esses mitos são subprodutos de mudanças estruturais profundas dentro das economias subjacentes do mundo “capitalista”, que se afastaram progressivamente do paradigma empreendedor assumido por Marx, Marshall, Böhm-Bawerk e Samuelson.
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Cada vez mais, argumenta Galbraith, o “mercado” é suplantado como determinante fundamental dos preços e da produção. Conforme a capacidade se desenvolve e manipula a demanda, a indústria se livra de sua influência limitante. O consumidor é reduzido de soberano a súdito e as empresas começam a obedecer a um processo autogerador de planejamento que se espalha pelo sistema industrial e não tem outro propósito senão sua própria expansão.
Nas economias modernas, segundo ele, a propriedade e o controle estão quase que inteiramente separados: aqueles que tomam as decisões em benefício de uma empresa são cada vez menos aqueles que gozam dos lucros e não precisam ser pessoalmente responsáveis pelas consequências do que fazem. Os termos de emprego são fixados por forças impessoais que operam em toda a empresa e determinam as várias recompensas de seus membros — força de trabalho, gerência e direção. Nada, em princípio, evita que as recompensas oferecidas ao trabalhador ultrapassem aquelas recebidas pelo gerente. Desse e de outros modos, a preciosa ideia de “exploração” capitalista encontra sua nêmese, assim como a concepção marxista de classe. De fato, há duas classes na economia livre moderna: empregados e desempregados. Nenhuma delas tem monopólio de poder sobre a outra, dado que o processo político fornece a ambas proteção contra a coerção e existe máxima mobilidade social entre elas.
A economia resultante ilustra o que Galbraith chama de “poderes equilibrantes”. Para entender a estrutura de lucro e recompensa, argumenta ele, não devemos olhar nem para a propriedade nem para o controle, mas para a interação de poder dos produtores, com poderes “equilibrantes” que reivindicam o produto e negociam parte dele. Esses poderes não são forças de mercado, mas, ao contrário, forças que inerentemente distorcem a configuração do mercado. Duas em particular são politicamente significativas: os sindicatos, que negociam o preço do trabalho, e os compradores oligopólicos, que negociam o preço do produto. Mesmo que os poderes exercidos por essas duas forças sejam desiguais, elas estabelecem os preços por acordo, não pela força. Se o resultado é ou não um sistema de “justa recompensa” é algo que não pode ser estabelecido de maneira abstrata e certamente não pelas teorias marxistas que veem todas as relações em uma sociedade capitalista como formas veladas de coerção.
Socialistas sérios, confrontados pelo argumento de Galbraith, seriam forçados a reexaminar sua prometida alternativa ao sistema capitalista. Torna-se extremamente questionável que o controle centralizado de um sistema que já se emancipou do controle capitalista alteraria a real posição do trabalhador. Os planos socialistas meramente perpetuam o sistema dado de controle, aumentando o anonimato e a falta de responsabilidade pelos resultados de seu exercício. Daí o “socialismo ter passado a significar o governo pelos socialistas que aprenderam que o socialismo, como compreendido anteriormente, não é prático”.
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Além disso, a visão socialista é dependente, para ter força moral, de uma forma de capitalismo que já não existe: ela depende da imagem do empreendedor cruel, motivado apenas pelo lucro, que emprega somente aqueles que são compelidos pela necessidade a aceitar seus salários. O socialismo se definiu contra essa imagem e disso resultou que “o infortúnio do socialismo democrático tem sido o infortúnio do capitalismo. Quando o último parou de exercer controle, o primeiro deixou de ser uma alternativa”.
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Tais argumentos, é claro, são excessivamente simplificados. Mesmo assim, se a visão de Galbraith sobre a moderna economia capitalista for ao menos parcialmente verdadeira, a crítica socialista já não é relevante. E, dado que a visão de Galbraith é essencialmente a de Max Weber, tem sido irrelevante há bastante tempo.
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Mas Galbraith acrescenta uma extensa crítica própria, com uma força retórica que se equipara à do socialismo tradicional. Ele pretende destruir a imagem da economia capitalista como mecanismo de autorregulação estruturado por “forças de mercado”.
O poder de equilíbrio, argumenta, do tipo exemplificado pelos sindicatos, oligopólios e novas “tecnoestruturas” dentro da corporação, é autogerador, enquanto o poder de competição não é. Assim, no longo prazo, a economia “capitalista” será dominada por poderes com a tendência inerente de crescer e esvaziada da competição que os disciplinaria em nome do interesse público.
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O planejamento assumirá precedência sobre a interação e deixará de se contentar com a resposta de curto prazo do mercado. A “tecnoestrutura” que sustenta a corporação moderna se tornará cada vez mais ambiciosa, formando elos com outras empresas, com o governo e com cada organização que possa servir para ampliar seu poder. Por uma variedade de mecanismos, a corporação evitará a responsabilização de seus diretores e acionistas
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e embarcará na busca autônoma por seu próprio crescimento. Nem o lucro da empresa nem os incentivos pecuniários aos executivos contarão muito na determinação da direção da tomada de decisões:
[...] a realidade é que o presente nível de renda dos executivos permite a identificação (com os objetivos da empresa) e a adaptação (dos objetivos da empresa aos seus). Essas são motivações operacionais. Também são as únicas de caráter pessoal: o executivo não pode permitir que se pense que seu comprometimento com os objetivos da empresa é menos que completo ou que ele é indiferente à oportunidade de modelar esses objetivos. Sugerir que os subordina a sua resposta ao pagamento seria confessar que é um executivo inferior.
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Essa citação ilustra o principal mecanismo intelectual de Galbraith. Uma observação psicológica, expressa em tom irônico, é usada para apoiar uma teoria econômica de consequências imensas e de longo alcance. Se verdadeira, segue-se que a hipótese padrão — a companhia tende a maximizar o lucro — é falsa e a recebida teoria de economia de mercado é inválida. De acordo com Galbraith, as empresas tendem a maximizar não o lucro, mas o poder. Ademais, fazem isso não em competição, mas em cooperação com outras empresas, pois o poder não é da empresa individual, mas da “tecnoestrutura” comum a todas elas.
É justo dizer que a opinião econômica não está persuadida de que Galbraith está certo.
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Mais significativa que o valor de verdade de suas conclusões, contudo, é a qualidade das provas apresentadas em seu favor: nenhuma estatística, nenhuma análise detalhada da empresa moderna ou de exemplos específicos, nenhum exame da estrutura de tomada de decisão, nenhuma comparação entre a corporação privada e o monopólio estatal e nenhuma teoria sobre a personalidade legal das corporações no Estado moderno. Nada nos é oferecido além da psicologia social, expressa no irônico idioma de Veblen e nutrida pelo constitucional desdém do professor pela vida vazia dos executivos.
Da mesma atitude, vem sua convicção sobre uma “sabedoria convencional” cujos dogmas caricaturiza ou deixa sem definição. É essa “sabedoria convencional” que repreende em seu livro mais notório —
A sociedade afluente
— por sua ênfase na competição livre, nos mercados abertos e em virtudes indisputavelmente importantes como “equilíbrio orçamentário”. A “sabedoria convencional” é o principal instrumento de controle social, comparável à ideologia oficial de um Estado comunista.
Nos países comunistas, a estabilidade das ideias e do propósito social é conseguida pela aderência formal a uma doutrina oficialmente proclamada. O desvio é estigmatizado como “incorreto”. Em nossa sociedade, uma estabilidade similar é imposta bem mais informalmente pela sabedoria convencional.
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É difícil dizer quão sério ele é em tais pronunciamentos. De qualquer modo, uma característica importante deve ser notada, dado que anuncia a essência e a influência de obras posteriores: a ideologia comunista, diz ele, estigmatiza o desvio como “incorreto”, ao passo que nossa “sabedoria convencional” impõe
a estabilidade.
Assim, por prestidigitação, o “sistema capitalista” passa a parecer tão opressor quanto seu equivalente comunista. O fato de que milhões pagaram com suas vidas pelo “desvio” e outros continuaram a sofrer aprisionamento, perseguição e perda de cada vantagem social concebível pelo mais leve “erro” parece ter escapado a sua observação. Ao mesmo tempo, sua própria liberdade, não somente para expressar suas “pouco convencionais” (na verdade, bastante convencionais e keynesianas) opiniões, mas também para ascender às mais altas posições da influência e do poder intelectuais como resultado, é cuidadosamente ocultada atrás da palavrinha “imposta”.
A sociedade afluente
consiste no principal ataque de Galbraith ao ethos de produção que, segundo ele, “tornou-se um objetivo de proeminente importância em nossas vidas”, embora “não um objetivo que persigamos compreensiva ou mesmo refletidamente”.
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A impensada busca pela produção é responsável pelo caos e pela miséria das sociedades capitalistas modernas, nas quais os serviços públicos são sacrificados a uma superabundância de bens de consumo. Mais importante, essa busca trouxe a perigosa tentativa de garantir o crescimento constante da demanda. A ideia de que a demanda sempre crescerá para corresponder ao fornecimento é um dogma desacreditado da economia clássica, refutado pela teoria da utilidade marginal decrescente. Mas, em face da “ameaça” apresentada por essa teoria, a “sabedoria convencional” se mostrou brilhantemente engenhosa: “a decrescente urgência dos desejos não foi admitida”.
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Em vez disso, assumiu-se que os bens são algo importante e mesmo urgente a fornecer e, portanto,
devemos
produzi-los, a fim de que um imperativo moral tome o lugar de nossos apetites em declínio. Desse modo, os desejos saciados pelos bens de consumo são elevados a uma categoria superior, em que a lei da utilidade marginal decrescente já não se aplica. Embora uma pessoa possa ter vinho, água ou petróleo suficientes, a honra e as realizações estão sempre com estoques baixos.
Galbraith continua sua celebrada descrição da sociedade de consumo, na qual os desejos humanos já não são o motivo controlador da produção, mas o principal item de manufatura. O constante fluxo de bens é sustentado pela deliberada criação de desejos — por meio da publicidade, da constante variação de produtos e da vasta máquina de propaganda, que nos diz que somos desonrados por nossa falha em consumir:
Conforme a sociedade se torna cada vez mais afluente, cada vez mais desejos são criados pelo mesmo processo através do qual são satisfeitos [...] Assim, os desejos se tornam dependentes da produção. Em termos técnicos, já não se pode assumir que o bem-estar é maior em um nível mais elevado que em um menos elevado de produção. Pode ser o mesmo. O nível mais elevado de produção possui, meramente, um nível mais elevado de criação de desejo, necessitando de um nível mais elevado de satisfação de desejos.
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Essa é a atualização de uma tese que remonta ao Velho Testamento — a tese de que o homem, em sua condição de caído, está sujeito à tirania dos apetites, porque seus apetites não são realmente seus, mas impostos a ele, magicamente, por outros, notavelmente pelos ídolos e fetiches do mercado.
Essa história transforma a prova de nossa liberdade — ou seja, o fato de que podemos obter o que queremos — em prova de nossa escravidão, dado que nossos desejos não são realmente nossos. Algo da mesma natureza é subjacente ao sarcasmo de Veblen sobre o “consumo conspícuo” e ao ataque à publicidade no altamente influente livro de Vance Packard,
A nova técnica de convencer
.
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É uma presença que assombra as teorias de alienação e de fetichismo da mercadoria de Marx. Encontraremos outra versão muito influente no capítulo 5, ao considerarmos a Escola de Frankfurt e sua crítica ao capitalismo cultural. E ela foi recentemente polida e renovada para uso dos consumidores pós-modernos em um brilhante livro de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy.
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Mas sua antiguidade também sugere sua futilidade como fonte das queixas modernas. A busca por uma política que supere o pecado original não é um projeto político coerente. E, se o problema diante de nós é que os seres humanos podem e querem ser manipulados, qual o benefício de substituir um estilo de manipulação por outro?
Galbraith argumenta que, a fim de combater a miséria pública, devemos gastar mais em serviços públicos, educação, bem-estar social e planejamento centralizado. Também devemos taxar a produção, a fim de equilibrar a urgência que dá origem aos problemas modernos e, ao mesmo tempo, financiar os serviços públicos que são sua cura.
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Mas, é claro, um imposto sobre a produção só pode financiar serviços públicos se o nível de produção for alto e, como no restante da solução de Galbraith, apenas julgamentos comparativos detalhados poderiam possivelmente lhe conceder algum fundamento — julgamentos que ele não tem interesse em fazer e que certamente mostrariam que sua “solução” é uma fantasia.
Isso é típico de sua abordagem. Apaixonado demais por sua sardônica psicologia para tirá-la da posição central que ocupa em seu pensamento, ele ao mesmo tempo está agudamente consciente de que é improvável que qualquer psicologia chegue aos ouvidos dos políticos. Somente o economista acadêmico pode exercer poder real sobre o sistema que o irrita, pois somente ele parece ter o conhecimento médico sobre suas doenças. Assim Galbraith, como Marx, disfarça a psicologia de economia e oferece suas ilógicas recomendações políticas como se tivessem toda a autoridade de um Hayek ou um Keynes.
Desse modo, a despeito de sua atitude desdenhosa em relação ao socialismo, Galbraith é capaz de entrar no território que o socialismo chama de seu. Ele começa por ver todo o organismo político dos Estados Unidos em termos econômicos, como um “sistema” cujos membros e tendões se movem em resposta aos imperativos comerciais. O mito central e paralisante do marxismo toma conta de sua imaginação e se torna a fundação de uma posição profundamente oposicionista. Lei, políticas, cultura e instituições passam para segundo plano em um grosseiramente descrito “sistema econômico” cujos imperativos impessoais supostamente governam toda a vida social. Essa visão forneceu a base teórica para um dos mais importantes dogmas da Nova Esquerda americana: a teoria de que o Estado “capitalista” é um sistema tão controlador quanto o comunista, dado que é servo das corporações e da necessária finalização de um processo de planejamento que se origina na tecnoestrutura da empresa oligopólica.
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A tecnoestrutura, por sua vez, passa a se identificar com o Estado
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e adquire o mesmo movimento centralizado e impessoal na direção de um plano completo e totalmente compreensivo. A produção americana gera, portanto (nas palavras que foram o presente de despedida do presidente Eisenhower à propaganda soviética), um “complexo industrial e militar” e, com ele, uma “cultura armamentista” com a qual legitimar os vastos gastos com defesa. O principal instrumento desse processo de legitimação é o “mito da Guerra Fria”, por meio do qual a contínua expansão da economia é justificada por imperativos militares. Essa “guerra sem lutas claramente anula o perigo de que as lutas possam acabar”
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e, desse modo, justifica o avanço tecnológico constante e, com ele, a infinita variedade da produção e a incessante renovação do desejo de consumir.
A descrição do “sistema” americano mantido pelo “mito da Guerra Fria” permite que Galbraith dirija aos Estados Unidos as mesmas críticas que, na época, eram feitas à União Soviética. Ele reconhece que “ninguém pode minimizar a diferença representada pela primeira emenda”.
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Mas acrescenta que os sistemas de gerenciamento econômico são totalmente comparáveis. Ambos estão sujeitos aos “imperativos do planejamento”, o que significa, em ambos os casos, “deixar de lado os mecanismos do mercado em favor do controle de preços e do comportamento econômico individual”.
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A breve referência à primeira emenda serve meramente para marginalizar a diferença política e chamar a atenção para a semelhança econômica, que, para ele, é a verdade
profunda
tanto dos Estados Unidos quanto de sua rival soviética. Enquanto elabora sua fantasia, torna-se claro que as semelhanças entre a União Soviética e os EUA, que ele vê como
profundas
, são precisamente as mais superficiais, ao passo que o que ele vê como tão superficial que mal se pode notar — a presença ou ausência de liberdade de expressão, governo constitucional e estado de direito — é o mais profundo em ambos os arranjos.
Previsivelmente, suas críticas ao sistema americano lhe renderam uma posição segura dentro dele. Mas sua nomeação como embaixador na Índia, em 1961, impôs certa medida de realismo a sua visão e ele ficou momentaneamente consciente da verdade que um século de pensamento marxista tentara negar: não é o sistema econômico de uma nação que determina seu caráter, mas suas instituições políticas. Ele também viu que uma ordem política que confere honras a seus críticos é de uma natureza radicalmente diferente de uma que os envia para a morte em campos de trabalhos forçados.
Durante seu tempo no cargo, Galbraith fez palestras sobre desenvolvimento econômico em várias universidades indianas, apoiando a agora desacreditada tese de que o auxílio estrangeiro é uma preliminar necessária para a “decolagem” das economias do Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, admitiu uma verdade que — graças à obra de escritores como P. T. Bauer, Elie Kedourie e, mais recentemente, Dambisa Moyo
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— se tornou amplamente reconhecida: o fato de que o auxílio estrangeiro é ineficaz sem as instituições estrangeiras e, particularmente, sem o estado de direito, a segurança dos contratos e os processos parlamentares levados ao Terceiro Mundo pelos imperialistas europeus (alguns deles, ao menos) e subsequentemente ameaçados de destruição.
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Essas palestras, portanto, demonstraram a falsidade do mito que floresce no discurso “econômico” de Galbraith — o mito de que a corporação é um monstro sinistro, expansionista e incontrolável cujos propósitos impessoais governam nossas vidas e satisfações. Ele reconhece a real diferença entre a corporação em uma economia capitalista e o “coletivo” do sistema soviético, qual seja, que a primeira é uma genuína personalidade legal, e a segunda, um tipo de ficção opressora.
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O coletivo comunista, seja fábrica, fazenda, sindicato ou ramo do Partido, era protegido das consequências reais de suas ações, gozava de extensa e implícita imunidade em relação às emendas legais e não podia ser censurado por nenhum de seus inferiores.
Isso se relaciona a uma das conquistas da civilização europeia e do direito romano do qual ela surgiu. Os poderes no Estado ocidental são identificados, sempre que possível, como pessoas jurídicas e, desse modo, estão subordinados à lei. A corporação pessoal pode ser acusada de — e, portanto, arruinada por — suas próprias ações insolentes e, por essa razão, Galbraith justamente nos urgiu a protegê-la.
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Foi precisamente a impessoalidade das instituições comunistas que as tornou não responsabilizáveis, assegurando que nada pudesse controlá-las ou limitá-las, com exceção da coerção, que tinha de ser aplicada
de fora
. Esta é a real verdade da Guerra Fria: a de que o governo pessoal, confrontado com um poder expansionista, mas totalmente impessoal, não conseguia proteger a si mesmo através da negociação e da diplomacia, mas somente por meio de uma estratégia de dissuasão.
Galbraith se justificou como crítico necessário da comunidade de negócios. Como disse certa vez: “Aqueles que afligem os confortáveis servem igualmente com aqueles que confortam os aflitos.”
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Mas quem está realmente confortável no establishment americano: o homem de negócios ou seu crítico acadêmico, o coração produtivo do sistema ou o parasita alimentado por seu trabalho?
Nenhum dos críticos do arranjo americano fez essa pergunta de modo mais pertinente que Ronald Dworkin. Nascido em Massachusetts em 1931, ele passou da prática legal para a academia em 1962, tornando-se professor Hohfeld de jurisprudência de Yale em 1968. Em 1969, foi para Oxford como professor de jurisprudência, combinando essa posição com a de professor da Universidade de Nova York de 1967 até sua morte, em 2012. Como Galbraith, colecionou doutoramentos honorários às dezenas, juntamente com prêmios prestigiados do tipo que o establishment de esquerda concede a seus membros. E, por meio de seus polêmicos textos na
New York Review of Books
, exerceu ampla influência sobre o entendimento público da herança legal dos Estados Unidos e, desse modo, sobre a direção da política americana.
Dworkin não era, como Galbraith, um satirizador espirituoso. Ele não ria de seus oponentes conservadores reais ou imaginários, mas os banhava em um fluxo contínuo de desprezo. Valorizava a imagem de si mesmo como crítico prolífico e devastador de uma herança legal conservadora que não tinha argumentos intelectuais próprios. Mas sua melhor obra, que data de seus primeiros anos na academia, tende na direção de conclusões opostas às que pretendia. Nela, ele apresenta uma teoria do processo judiciário que, longe de minar as hipóteses da jurisprudência conservadora, fornece um novo modo de lhes dar fundamento.
De Bentham e Austin a Kelsen e Hart, a jurisprudência acadêmica tem sido dominada por várias formas de “positivismo legal”
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, cujos dogmas principais são identificados por Dworkin como: primeiro, a lei se distingue dos padrões sociais por sua conformidade a uma “regra-mestre” — como a regra de que o que é prescrito pela rainha no Parlamento é lei. Segundo, todas as dificuldades e indeterminações da lei são resolvidas por “discernimento judicial”, e não pela descoberta de respostas genuínas a questões legais independentes. Terceiro, uma obrigação legal existe quando, e somente quando, uma lei estabelecida a impõe.
Juntos, esses três dogmas definem a ideia de lei como sistema de comando, não respondendo a nenhum limite interno além da consistência e sendo emitida por uma autoridade suprema e soberana com o objetivo de regular o comportamento social. A sentença é uma questão de estabelecer primeiro a lei; em seguida, os fatos; e, finalmente, a aplicação da primeira aos segundos. Essa ideia é errônea, argumenta Dworkin, assim como os três dogmas de que deriva. Uma “regra-mestre” não é necessária nem suficiente para um sistema legal. Não é necessária porque a lei pode surgir, como fez nosso próprio sistema de direito consuetudinário, inteiramente do raciocínio judicial, que observa primariamente os precedentes judiciais e sua “força gravitacional”. Tampouco é suficiente, dado que uma legislatura suprema pode criar leis somente se houver tribunais para aplicá-las, e os juízes desses tribunais devem empregar “princípios” que não são deriváveis da regra-mestre.
Os princípios, para Dworkin, são menos mutáveis que as regras e mais fundamentais para o caráter do sistema legal. Sem eles, a sentença seria impossível ou cheia de brechas inaceitáveis. A existência desses princípios é provada pelos “casos difíceis” em que o juiz deve determinar direitos e responsabilidades das partes sem o benefício de qualquer lei que os defina explicitamente. A sentença, em tal caso, não é um exercício de “discernimento”, mas uma tentativa de determinar os reais e independentes direitos e deveres das partes — ou assim, ao menos, devem pensar os juízes se quiserem exercer seus poderes judiciais. Os juízes não devem pensar em si mesmos como inventando os deveres e direitos que definem, nem que estão exercendo algum tipo de “discernimento” de que não necessitam na condução normal de seus gabinetes. Eles devem evocar os princípios, que possuem uma autoridade diferente da autoridade das leis criadas pela legislatura. Esses princípios (como o de que ninguém pode se beneficiar de seus próprios malfeitos) são características permanentes do processo judiciário, evocados na aplicação da lei mesmo em casos centrais e problemáticos.
Dworkin acredita que tais considerações servem para mostrar que as teorias da “regra-mestre” e do “discernimento judicial” são mitos. Além disso, o inescapável fato dos casos difíceis serve para refutar o terceiro dogma do positivismo legal, o de que toda obrigação legal é criada por uma regra legal preexistente e preestabelecida. Em casos difíceis, a lei não é tanto aplicada quanto descoberta. E esse processo de descoberta é responsável pela estrutura da jurisprudência e também da equidade. Ele é, portanto, a fundação sobre a qual os sistemas inglês e americano foram construídos.
Pode-se acrescentar que nenhum sistema de editos pode equivaler ao direito até que eles sejam aplicados por tribunais imparciais, de acordo com procedimentos reconhecidos de adjudicação. Os processos de raciocínio que são inseparáveis das decisões — a manifestação de ambos os lados, a perspectiva imparcial e a responsabilidade pública pelo veredicto — são, portanto, um componente essencial de todo verdadeiro sistema legal, estejam ou não incluídos, como no direito administrativo inglês, como “princípios de justiça natural”.
Podemos interpretar o argumento de Dworkin como defendendo uma visão procedimental da justiça. De acordo com essa visão, o direito exige uma sentença; a sentença requer uma atitude baseada em princípios em relação a um caso particular; a atitude baseada em princípios vê o julgamento não como decisão, mas como descoberta; finalmente, a descoberta convida à concordância de outros e responde à “força de atração” de outros julgamentos, com os quais pretende se harmonizar. Segundo esse atraente retrato (parte integral de muitas visões conservadoras da ordem política), o direito é a “busca comum pelo julgamento verdadeiro”, no qual as perenes disputas humanas são resolvidas por princípios que surgem natural e inevitavelmente na mente daqueles que as observam com imparcialidade.
Dworkin não chega a essa conclusão por motivo importante. Ele quer que seu leitor o tome não como porta-voz da “justiça natural”, mas como alguém que fornece a verdadeira interpretação da constituição americana — interpretação obscurecida pela confusão conservadora. Assim, ele escreve que:
Nossa constituição repousa sobre uma teoria moral particular, qual seja, a de que os homens possuem direitos morais contra o Estado. As difíceis cláusulas da Carta de Direitos, como as de devido processo legal e igual proteção, devem ser compreendidas como conceitos morais, e não concepções particulares; assim, um tribunal que assume o fardo de aplicá-las integralmente deve ser um tribunal ativista, no sentido de que deve estar preparado para expressar e responder a questões de moralidade política.
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Em outras palavras, a constituição americana autoriza a Suprema Corte a assumir uma abordagem “ativista”, livre para rejeitar qualquer legislação que não se conforme à “moralidade política” de seus membros. Para Dworkin, não houve nada inconstitucional na decisão da corte em Roe v. Wade
, o caso de 1973 que permitiu o aborto em toda a União, desafiando as legislaturas eleitas na maioria dos estados. Não é necessário examinar os detalhes da sinuosa decisão do juiz Blackmun, que dependia de se encontrar o “direito à privacidade” na constituição americana, a despeito de o documento não mencionar nada dessa natureza, e que arbitrariamente declarava que os não nascidos não possuíam direitos constitucionais. É suficiente que a “moralidade política” da corte nada tenha visto de errado no aborto e algo errado em sua proibição.
Em quase todos os textos de Dworkin, encontraremos esse pedido especial por ativismo judiciário, desde que os ativistas sejam políticos liberais. Alegando fornecer uma teoria geral do direito, seu real interesse é a defesa de uma posição política em relação à qual, na visão conservadora das coisas, o direito é no máximo neutro e, em alguns aspectos, profundamente antagônico. Ele sempre retorna à constituição, como se
esse
fosse o campo decisivo para as decisões legais, pois a constituição americana se espalha por mais de quatrocentos grossos volumes de casos jurídicos e pode ser lida como são lidos os textos sagrados, através dos óculos de milhares de teólogos.
Contudo, seu autoassumido status de “sacerdote da Constituição” é um disfarce. Em seus artigos iniciais, a maioria de seus exemplos é retirada de casos do direito civil inglês (como
Spartan Steel and Alloys Ltd.
v.
Martin
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) ou de casos americanos que aplicam princípios derivados de precedentes ingleses (como
Henningsen v. Bloomfield Motors Inc.
58
). Não pode estar certo, portanto, concluir que o processo judicial, como ele o descreve, é um ramo da constituição dos Estados Unidos. Seus argumentos, na verdade, derivam de uma posição que se pode chamar de “naturalismo procedimental” e que fundamenta a defesa conservadora da justiça de jurisprudência. De acordo com essa posição, o direito surge espontaneamente da tentativa de se chegar a uma conclusão unânime entre juízes imparciais, nas questões em que se crê que uma parte prejudicou a outra. Juízes independentes e imparciais não retiram suas decisões do nada, mesmo que não tenham nenhuma regra legal para guiá-los. Eles são orientados pela razão prática, que os obriga a reconhecer precedentes estabelecidos e diferenciar-se deles ou aplicá-los.
O resultante sistema de direito consuetudinário não depende da legislação nem para seu conteúdo como mecanismo de resolução de conflitos, nem para sua forma como sistema de imperativos. Tampouco depende de uma constituição escrita ou de qualquer coisa que se pareça, mesmo que remotamente, com a “moralidade política” que Dworkin discerne na constituição americana. Ele personifica soluções que surgiram com o tempo para os conflitos resultantes de nossas tentativas de vivermos juntos em sociedade. Oferece remédio para as partes prejudicadas e, desse modo, ajuda a manter o equilíbrio da ordem social. Para dizer de outro modo, o direito consuetudinário não é a expressão de uma revisionista “moralidade política” nem a aplicação de princípios contidos em uma constituição. Ele é a aplicação dos princípios inerentes à própria ideia de justiça imparcial e que são tacitamente assumidos em todas as nossas transações consensuais.
Essa visão conservadora do direito foi defendida em outros termos por Adam Smith em suas palestras sobre jurisprudência.
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E foi interessantemente revivida em nossa época por Hayek, um escritor inteiramente ignorado por Dworkin. O argumento de Hayek sobre o direito consuetudinário domina o primeiro volume de
Direito, legislação e liberdade
. “Para o homem moderno”, argumenta ele, “a crença de que as leis que governam a ação humana são produto da legislação parece tão óbvia que a afirmação de que a lei é mais antiga que a criação de leis tem quase o caráter de um paradoxo. Contudo, não há dúvida de que as leis existiram durante eras antes que ocorresse ao homem que ele podia alterá-las.”
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As pessoas não podem formar uma sociedade e então criarem leis para si mesmas, como Rousseau imaginou. Pois a existência de leis está pressuposta no próprio projeto de viver em sociedade — ou, ao menos, uma sociedade de estranhos. A lei é real, embora tácita, muito antes de ser escrita, e cabe ao juiz descobri-la ao examinar os conflitos sociais e expor as hipóteses partilhadas que permitem sua resolução. A lei em sua condição natural, portanto, deve ser construída no modelo do direito consuetudinário inglês, que precedeu os poderes legislativos do Parlamento e, durante muitos séculos, o viu não como corpo legislativo, mas como outra corte legal, cuja função era resolver as questões que não podiam ser respondidas pelo estudo dos precedentes existentes.
Hayek indica que a lei escrita e a legislação soberana foram tardias na sociedade humana e ambas abrem caminho para abusos que, no direito consuetudinário, usualmente são autocorrigidos.
61
A distinção entre direito e lei tem sido tacitamente reconhecida em muitas línguas europeias —
diritto
versus
legge
,
droit versus
loi
,
Recht
versus Gesetz
,
právo
versus
zákon
e assim por diante. De modo interessante, não existe uma diferença tão clara na língua inglesa, ainda que o direito inglês seja quase único na preservação dos procedimentos do direito consuetudinário. O legislador vê as leis como artefato humano criado para um objetivo e pode desejar usá-lo não apenas para retificar injustiças, mas também para criar uma nova ordem social, em conformidade com alguma “moralidade política” — que é essencialmente como Dworkin vê a constituição americana. Para ele, o código legal não é um sumário dos direitos, deveres e procedimentos implícitos no governo consuetudinário, mas sim uma planta-baixa para a nova sociedade liberal.
Não há nada para impedir que o legislador radical aprove leis que desafiam a justiça ao conceder privilégios, confiscar bens ou extinguir vantagens em nome dos interesses de alguma agenda pessoal ou política. Um sinal disso é a adoção da “justiça social” como objetivo do direito, em vez da justiça natural como limite procedimental. Para Hayek, por contraste, o objetivo do direito consuetudinário não é a engenharia social, mas a justiça no sentido próprio do termo, ou seja, a punição ou retificação de ações injustas. O juiz, ao examinar um caso específico, tenta encontrar a regra que o solucionará. De acordo com Hayek, tal regra é parte de uma rede de regras, todas implicitamente evocadas por aqueles que se engajam em transações livres. Os juízes, com razão, pensam em si mesmos como descobrindo a lei, pela razão de que não haveria casos para julgar se a existência de uma lei relevante não estivesse implícita na conduta das partes.
No sistema inglês, certamente é verdade que a lei é descoberta, e não inventada, pelo juiz.
62
É verdade também que é formulada como regra — como a regra em
Rylands v. Fletcher
, por exemplo, que nos diz que “aquele que, para seus próprios fins, levar até suas terras, colecionar ou manter qualquer coisa que possa causar danos em caso de fuga deve mantê-la por sua conta e risco e, se não o fizer, será responsável
prima facie
por todo o dano que for consequência natural da fuga”.
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Mas também é verdade que o juiz pode decidir por uma das partes sem formular explicitamente a regra que justifica seu julgamento: o
ratio decidendi
pode ser controverso mesmo em casos nos quais todos concordam que a decisão foi correta. Esse interessante fato fornece apoio adicional à ideia de que a lei é anterior a sua determinação judicial e de que a crença de que assim é tanto guia o juiz quanto limita suas ambições. Não é possível usar os procedimentos do direito consuetudinário para mudar a natureza da sociedade, redistribuir propriedade adquirida sem fraude ou coerção, violar entendimentos ordinários ou perturbar expectativas de longa data e relações naturais de confiança. Pois o direito consuetudinário é obra de regras já implícitas nessas coisas. É uma rede tecida por uma mão invisível.
As leis verdadeiras — “regras abstratas”, como Hayek as chama —, portanto, não são parte de um plano de ação, mas surgem da empreitada de cooperação social através do tempo. São parâmetros dentro dos quais a cooperação entre estranhos, para seu mútuo benefício, torna-se possível. E, como com o mercado, o benefício que conferem é parcialmente epistêmico. Ao seguirmos essas regras, nos equipamos com o conhecimento prático que será especialmente útil quando nos aventurarmos no desconhecido — ou seja, conhecimento sobre como nos comportar em relação aos outros, a fim de assegurar sua cooperação na obtenção de nossos objetivos.
Assim como os preços em um mercado condensam em si informações que, de outro modo, estariam dispersas na sociedade contemporânea, as leis condensam informações que estão dispersas no passado de uma sociedade.
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Dessa ideia, basta um pequeno passo para reconstruirmos a célebre defesa de Burke dos costumes, da tradição e do “preconceito” contra o “racionalismo” dos revolucionários franceses. Traduzindo o argumento de Burke para o idioma moderno, o conhecimento de que necessitamos em circunstâncias desconhecidas da vida humana não é derivado nem contido na experiência de uma única pessoa, nem pode ser deduzido
a priori
de leis universais. Esse conhecimento nos é transmitido pelos costumes, instituições e hábitos de pensamento que se formaram ao longo de gerações, por meio de tentativas e erros das pessoas, muitas das quais pereceram durante sua aquisição. Tal é o conhecimento contido no direito consuetudinário, um legado social que jamais poderia ser adequadamente substituído por uma doutrina, plano ou constituição, por mais entrincheirada que essa constituição possa estar em uma visão de direitos individuais.
Se acreditamos, como Smith e Hayek, que o direito jaz mais profundamente na psique que as leis e não está preocupado em impor um plano ou “moralidade política” independente da justiça natural que dita seus procedimentos, podemos compreender por que as revoluções sociais começam com a anulação do estado de direito e por que a independência judicial raramente é uma característica dos Estados que desejam recrutar a sociedade para uma agenda imposta de cima para baixo. Mas Dworkin, que deseja tirar vantagem das profundas verdades contidas no direito consuetudinário, também tem um objetivo ideológico e constantemente tenta enxertá-lo em um sistema legal que é inerentemente resistente a ele. O direito consuetudinário está preocupado em fazer justiça no caso individual, não em perseguir alguma reforma de longo alcance das maneiras, morais e costumes da comunidade como um todo. É uma presença discreta e vigilante na vida das pessoas comuns. Não busca ser invocado, mas, ao contrário, apresenta-se relutantemente quando é chamado a retificar um erro. Isso está tão distante da visão de Dworkin que é surpreendente que ele não procure em outra parte por sua concepção de direito. Mas ele argumenta como advogado, e não como filósofo: qualquer argumento que possa confundir seu oponente é útil, desde que ele possa empregá-lo para avançar na direção de seu objetivo.
O objetivo é claro: defender as causas liberais da vez. Na época de sua obra mais importante,
Levando os direitos a sério
, essas causas eram amplamente as do movimento de direitos civis e da oposição à guerra do Vietnã. Por isso incluíam a desobediência civil e a discriminação reversa. A liberdade sexual também era importante e, quando a agenda seguiu em frente, Dworkin acrescentou o feminismo, a defesa do “direito ao aborto” e mesmo (para consternação de muitas feministas) a pornografia. Em resumo, se os conservadores eram contra, ele era a favor. Ele forneceu fogos de artifício intelectuais, desdém aristocrático e zombaria cosmopolita em longos e abundantes floreios. E assumiu que nunca era ele, mas sempre seu oponente, quem tinha o ônus da prova. Para Dworkin, assim como para os escritores da
New York Review of Books
de modo geral, a posição liberal de esquerda estava tão obviamente correta que cabia aos conservadores refutá-la. Cabia a eles mostrar que havia uma convicção moral consensual contra a pornografia, que sua oposição aos direitos dos homossexuais (de qualquer forma que pudessem ser promovidos) era algo mais que “preconceito”, que a segregação estava contida no espírito da constituição ou que a recusa em saudar a bandeira ou prestar serviço militar não estava.
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Essas bordoadas na consciência conservadora chegam a extremos consideráveis. Assim, Dworkin escreve: “desde que os direitos estão em jogo, a questão é [...] se a tolerância destruiria a comunidade ou traria a ameaça de grandes danos, e me parece simplesmente irracional supor que as evidências tornam isso provável ou mesmo concebível.”
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Para um conservador, é uma questão de bom senso o fato de que a constante liberalização, a constante reforma das leis à imagem do estilo de vida da elite de Nova York, pode eventualmente trazer ameaça de danos à comunidade. Essa opinião é imediatamente descartada. É
irracional
supor que as evidências tornam isso provável; irracional até mesmo supor que tornam isso
concebível
. Esse é um julgamento notável. Os antropólogos demonstraram muitas vezes que a imposição de costumes urbanos à sociedade subsaariana destrói sua coesão. Mas, aparentemente, é irracional sequer
conceber
que a transferência dos costumes de Nova York para a Geórgia rural possa ter efeito comparável.
No artigo “Levando os direitos a sério”, que contém a essência do pensamento de Dworkin, ele discute o notório julgamento dos “Sete de Chicago”. Nesse julgamento, certos militantes de esquerda foram acusados de conspirar para cruzar as fronteiras interestaduais com a intenção de causar tumulto. Para Dworkin, era claro que os Sete de Chicago estavam protegidos pelo direito constitucional à livre expressão. Eis o que ele tinha a dizer àqueles que não concordavam:
Pode-se dizer que as leis antitumulto [os] deixam livres para expressar [seus] princípios de modo não provocativo. Mas isso é ignorar a conexão entre expressão e dignidade. Um homem não pode se expressar livremente quando não pode igualar sua retórica a seu ultraje ou quando deve modificar sua postura a fim de proteger valores que lhe parecem nulos perto daqueles que está tentando defender. É verdade que alguns dissidentes políticos falam de maneiras que chocam a maioria, mas é arrogante por parte da maioria supor que os métodos ortodoxos de expressão são a maneira adequada de falar, pois isso é uma negação do igual interesse e respeito. Se a essência do direito é proteger a dignidade dos dissidentes, então devemos fazer julgamentos sobre discurso adequado com as personalidades dos dissidentes em mente, e não a da “silenciosa” maioria para quem as leis antitumulto não representam nenhuma restrição.
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O argumento de Dworkin implica que o direito de expressão existe a fim de “proteger” a dignidade dos dissidentes. Ele é notável por sua conclusão velada: quanto mais “silenciosas” e seguidoras da lei forem suas atividades, menos você poderá protestar contra as afirmações provocativas daqueles que não dão a mínima para seus valores. A voz do dissidente é a voz do herói; foi para seu
benefício que a constituição foi projetada. O ensaio avança para a conclusão de que “qualquer tratamento duro dado pelo governo à desobediência civil, ou qualquer campanha contra os protestos vocais, pode contar contra sua sinceridade”. Em outras palavras, um governo verdadeiramente sincero, tendo aprovado uma lei, deve ser leniente em relação àqueles que a desobedecem.
Mas, claro, ele não está falando sério. Imagine que os Sete de Chicago fossem militantes de direita, criando desafetos em nome de uma causa detestável para Dworkin — contra o aborto, por exemplo, ou contra a imigração. Pode ter certeza de que não lhes seriam oferecidos direitos compatíveis com seu nível de indignação nem sua “dignidade” mereceria nada além de seu aprisionamento.
No ensaio sobre “desobediência civil”, ele lida de maneira peremptória com os conservadores que argumentam que deveríamos punir aqueles que encorajam a desobediência às leis. “Pode-se argumentar”, escreve, “que, se aqueles que aconselham a resistência à convocação ficarem livres de acusação, o número dos que resistem a ela crescerá, mas não creio que seria muito maior que o número daqueles que resistiriam de qualquer modo.”
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Ele está escrevendo sobre a guerra do Vietnã, argumentando que a “consciência está profundamente envolvida” e que “é difícil acreditar que muitos que aconselharam a resistência (à convocação) o fizeram com base em qualquer outra razão”. A implicação é que a consciência — porque se prestou, por mais que de maneira absoluta e impensada, a uma causa de tendências esquerdistas — merece a proteção da lei. Mais: pode até mesmo desafiar a lei, dado que, “se a questão toca direitos pessoais ou políticos fundamentais e se é possível discutir se a Suprema Corte cometeu um erro, um homem está dentro de seus direitos sociais ao se recusar a aceitar essa decisão como conclusiva”.
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Em outras palavras, a consciência liberal pode ficar satisfeita com uma mera opinião sobre o que a lei poderia ou deveria ser. A consciência conservadora, contudo, jamais tem direito à mesma indulgência, devendo sempre trabalhar sob o inamovível ônus da prova. Assim, a desobediência civil na causa da segregação perde automaticamente as credenciais da desobediência civil em uma causa liberal. “Se não tomarmos nenhuma ação contra o homem que bloqueia a porta da escola [...] violamos os direitos morais, confirmados pela lei, da estudante [negra] que ele bloqueia. A responsabilidade da leniência não pode chegar tão longe”.
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O oponente de Dworkin não pode se confortar com a visão de que a lei está, a esse respeito, “discutivelmente” errada. É
suficiente
que os negros tenham o direito moral, “como indivíduos”, de não serem segregados. É claro, cada convocado também tem o direito, como indivíduo, à presença dos colegas nas fileiras a seu lado. Mas esse direito, dá-se a entender, é “menos fundamental”. Além disso, ninguém pode realmente respeitar a personalidade que motiva o senso de direitos do segregacionista, dado que, “exceto em casos muito raros, um estudante branco prefere a companhia de outros brancos por possuir convicções sociais e políticas racistas ou sentir desprezo pelos negros como grupo”.
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Essa última observação — em si mesma uma descuidada indiferença por um grupo inteiro de americanos, em bases que poderiam facilmente ser caracterizadas como racistas — serve como premissa para a discussão da discriminação reversa. Essa era, na época, uma importante causa liberal, e Dworkin foi especialmente ardiloso em sua defesa. Uma prática na qual indivíduos de algum grupo historicamente “desfavorecido” recebem vantagens das quais outros, mais qualificados, são excluídos claramente apresenta um desafio à ideia de que há direitos humanos universais, pertencentes a cada pessoa como indivíduo. Dworkin admite que “os critérios raciais não são necessariamente os padrões corretos para decidir que candidatos devem ser aceitos nas faculdades de Direito”
72
e é reconfortante, para aqueles que acham o racismo desagradável, ler que os critérios raciais, em tal caso, não são
necessariamente
corretos. Mas a sintaxe já sugere para onde o argumento — ou melhor, a defesa — de Dworkin está se dirigindo. Ele prossegue da seguinte maneira:
[...] nem o são os critérios intelectuais ou, na verdade, qualquer outro conjunto de critérios. A justiça — e a constitucionalidade — de qualquer programa de admissão deve ser testada da mesma maneira. É justificada se serve a uma política adequada que respeita os direitos de todos os membros da comunidade de serem tratados como iguais, e não em caso contrário.
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Como pode ser assim? Dworkin apresenta duas razões. A primeira reside na distinção geral que faz entre “tratamento igual” e “tratamento como igual”, acreditando que a constituição visa assegurar o último, independentemente da cláusula de “igual proteção”. Assim, trato John e Mary igualmente quando, ao entrevistá-los para um emprego, considero apenas suas qualificações e a probabilidade de fazerem bem o trabalho. Mas isso pode não ser suficiente se pretendo tratá-los como iguais. Para chegar a esse padrão mais preciso, devo considerar a extensão em que as mulheres têm sido discriminadas e, portanto, em que extensão foi necessário, para Mary, um esforço maior para chegar ao mesmo estágio, em relação ao emprego, que John. Nesse caso, tratar os dois como
iguais
pode exigir que eu compense Mary pelas desvantagens injustas, dando-lhe precedência sobre John.
Esse argumento imediatamente transfere o conceito de direito do indivíduo para o grupo, de modo que os indivíduos já não são considerados meramente indivíduos quando se trata de estabelecer seus direitos, mas também membros de grupos, alguns dos quais podem sofrer com o fardo de uma desvantagem inamovível, especialmente os homens brancos. Mas Dworkin possui outro argumento além desse. No caso em consideração, defende ele,
não há
direitos relevantes. Não existe algo como o direito de ser considerado para uma vaga na faculdade de Direito com base no mérito intelectual. Portanto, se os direitos não nos fornecem um princípio orientador, devemos transferir nossa atenção do caso individual para a política geral. A política
serve
à causa dos direitos ou a
obstrui
?
Em virtude desses dois argumentos, variadamente aplicados e adequadamente adaptados às tentativas dos oponentes de refutá-los, Dworkin é capaz de se livrar do irritante obstáculo dos direitos individuais e devolver tudo à “teoria moral” contida, em algum lugar, de algum modo, na constituição. Essa teoria defende um direito predominante, que é o direito de ser tratado como igual e se traduz em um sistema de desvantagens e privilégios distribuídos de acordo com a filiação a um grupo, e não com o pertencimento a um país ou à raça humana.
Há, de fato, alguma plausibilidade na ideia de que um indivíduo não tem o direito de ser considerado por seus méritos ao se candidatar a um benefício educacional. Mas a razão é bem diferente da fornecida por Dworkin. O benefício é uma
doação
e é direito do doador distribuí-la como desejar. Se esse fosse o ponto de Dworkin, ele estaria argumentando de modo coerente com a grande tradição do liberalismo americano, contra a crença de que temos o direito de coagir os indivíduos a agirem de acordo com a política. Mas ele não hesita em aplicar tal coação. No exemplo fornecido, a faculdade de Direito certamente é obrigada a oferecer vagas em conformidade com os ditames da política. (Ela não pode, por exemplo, oferecer vagas somente para o sexo masculino ou para pessoas brancas.) Mas a política não é a meritocracia normal que vemos implícita na cláusula de igual proteção da constituição. Pois aplicar essa política é criar desigualdades sociais e “devemos cuidar para não empregar a cláusula de igual proteção em detrimento da igualdade”. Não devemos permitir que nossa preocupação com os direitos individuais obstrua políticas que (ao menos segundo Dworkin) irão gerar mais igualdade e direitos mais efetivos no longo prazo.
Esse exemplo é extremamente interessante. Pois ele mostra a facilidade com que o liberal pode privar seu oponente de sua única defesa. O liberal diz, com efeito: “Não reconheço nenhum argumento exceto os direitos individuais e as políticas necessárias para assegurá-los.” E, quando o conservador busca defender seus direitos, o liberal puxa o tapete sob seus pés, dizendo “esses
não são
direitos”. O conservador argumenta que, se um privilégio for concedido, ele é ou uma doação, caso em que o doador pode determinar como deve ser distribuído, ou um direito, caso em que a posição padrão estabelecida pela constituição é a de “igual tratamento”. A que equivale o igual tratamento no exemplo fornecido é uma questão separada, e judicial. Mas a hipótese é que isso significa conferir a cada pessoa os direitos garantidos pela constituição, nem mais, nem menos.
Em outro trecho, Dworkin ridiculariza o sentimento de que as concessões aos indivíduos e seus “direitos” podem às vezes ser anuladas por uma política projetada para assegurar estabilidade social e política. Ele argumenta, contra certos movimentos utilitaristas rotineiros, que nenhuma questão de mera política pode anular a reivindicação de justo tratamento feita por um indivíduo. “Não devemos confundir estratégia com justiça nem fatos da vida política com princípios de moralidade política.”
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Ou ao menos não ao criticar o argumento de Lord Devlin em favor da incorporação de elementos da moralidade sexual tradicional nas leis ou ao destilar escárnio contra “a indignação, intolerância e repulsa populares” (que, segundo ele, não devem ser confundidas com “convicção moral”). A estratégia que defende o desfavorecido pode passar brutalmente sobre quaisquer direitos nomeados pelos conservadores, pois, se os conservadores os nomearam, podemos estar certos de que não são “direitos”, assim como podemos estar certos de que, quando os conservadores buscam evitar algo, não é por convicção moral, que apenas os liberais possuem, mas por sentimentos de “indignação, intolerância e repulsa”.
É claro que há profundas e difíceis questões de filosofia política em jogo aqui. Dworkin pode muito bem estar certo em sua suposição de que os benefícios que os conservadores desejam defender não são direitos genuínos. Mas quais direitos
são
genuínos, e em que bases? Referir-se de maneira vaga à constituição americana e à alegada “teoria moral” sobre a qual foi fundada não é uma resposta a essa pergunta, especialmente quando os casos citados como ilustração foram decididos por tribunais ingleses. Dworkin é inflexível ao dizer que está argumentando a partir de princípios, e não de leis revogáveis, mas, quando a discussão entra no elevado reino da filosofia, precisamos saber como esses princípios são justificados. E essa é a questão da qual ele foge.
Em um livro subsequente,
O império do direito
, ele elabora uma nova estratégia para vencer discussões, que é ver o direito
hermeneuticamente
, “aberto à interpretação” em todos os aspectos e, portanto, sempre adequado à interpretação em favor dos liberais.
75
Segundo ele, uma interpretação é uma tentativa de dar a
melhor
leitura a algum artefato humano — a leitura que o mostra como mais adequado a seu objetivo final. Nessa visão, a interpretação crítica de uma obra de arte é uma tentativa de fazer a leitura que lhe conceda o maior valor estético. Em que consiste a “melhor” interpretação depende da atividade discutida. Obviamente, o direito não é uma busca por valor estético. Pelo que, então? Uma resposta seria justiça. Mas não é, ou não obviamente, a resposta que Dworkin fornece — novamente, confrontado com o desafio de falar claramente, ele recua para atalhos obscuros. Às vezes, enfatiza o papel do direito na “orientação e limitação do poder do governo” — ou seja, salvaguardando direitos individuais. Em outras, escreve sobre sua função de resolver conflitos, assim como o direito civil. Em passagens mais teóricas, descreve o direito como limitado por um ideal de integridade e, no fim, essa parece ser sua teoria favorita, embora obscura.
Essa busca pela “melhor” leitura do direito é feita em muitos níveis: nos tribunais (quando os juízes interpretam as leis, quando decidem casos difíceis e quando tentam reconciliar suas decisões com os precedentes relevantes); nas reflexões dos juristas (quando racionalizam ou criticam as decisões dos tribunais); e nos argumentos dos filósofos legais (quando buscam pelos princípios primordiais).
Para Dworkin, o direito deve ser visto não como comando, convenção, predição ou mero instrumento da política. O direito é antes (de acordo com seu humor) uma expressão de direitos civis, morais ou constitucionais; uma realização da “moralidade política”; ou uma expressão das “obrigações associativas” da comunidade sobre a qual é exercido. Se ele alterna tão rápida e confiantemente entre esses vários idiomas, é parcialmente porque tem uma teoria (que brilha grande, mas pálida, em um crepúsculo estilístico) segundo a qual todas as funções do direito coincidem.
Aqui e ali, ele expressa essa teoria em termos quase religiosos. “Nosso” direito, argumenta, é uma atividade “protestante”. Ao dizer isso, não menciona o fato de que o direito consuetudinário está conosco desde o auge do papado, gozando da explícita sanção do direito canônico da Igreja católica. Ele está preocupado em retomar as causas de
Levando os direitos a sério
e descrever o direito como arma nas mãos dos dissidentes. “Nós”, sugere, ao pertencermos a uma peculiar tradição legal que é “nossa”, subscrevemos uma moralidade altamente individualista que enfatiza os direitos do indivíduo contra a autoridade do poder soberano e que é totalmente “política” em sua força e aplicação. Essa condição de “moralidade política” define a comunidade à qual todos “nós” supomos pertencer. Como vimos, confrontado com um oponente que acredita que “nós” não somos todos leitores da
New York Review of Books
, Dworkin se mostra relutante em admitir que os direitos individuais podem triunfar sobre políticas liberais incorporadas. Mesmo assim, argumenta que o direito tem como objetivo preservar os direitos e responsabilidades que são reconhecidos dentro de uma “comunidade” e, portanto, assegurar a identidade dessa comunidade através do tempo — assim como cada indivíduo assegura sua identidade através do tempo ao assumir responsabilidade por suas ações passadas e futuras.
Em uma altamente carregada e enganosa analogia, ele compara o direito a um “romance coletivo” — um romance continuado por muitos autores, com o objetivo partilhado de produzir uma única e integrada obra de arte. Ao seguir um precedente, um juiz está engajado em um ato que tanto interpreta o que veio antes quanto modifica o contexto da interpretação. A restrição é que deve buscar expressar e manter a “integridade” da lei — em outras palavras, preservar os direitos e responsabilidades que foram resguardados naquela lei pela comunidade. A “integridade” da lei é, no fim, o mesmo fenômeno que a personalidade da comunidade a que ela serve.
Tendo resumido a teoria como a entendo, devo expressá-la com minhas próprias palavras. O direito, como “nós” o conhecemos, não é um corpo de regras, mas uma tradição, e sua importância jaz não em seus resultados, mas em seu “significado” — naquilo que recupera por meio da interpretação. O direito também expressa uma personalidade corporativa, que é a da comunidade em seu aspecto político. Ele resguarda direitos, responsabilidades e — deixe-me acrescentar, embora Dworkin caracteristicamente não o faça — deveres, e os leva adiante de geração em geração.
O processo de decisão judicial requer instituições específicas — por exemplo, independência judicial e um registro fidedigno das decisões do passado. Mas depende ainda mais de certo “espírito público”, gerado pela aliança partilhada das pessoas. Essa aliança não é nem contratual nem universal, mas o reconhecimento de um destino comum que une as pessoas em um Estado-nação.
Se observo que tal teoria do direito já foi defendida em nome do conservadorismo político, não é a fim de desconsiderar qualquer alegação de originalidade por parte de Dworkin — pois seu modo de chegar a essas conclusões foi marcado, em cada ponto, por seu característico e exuberante intelecto. É antes para chamar a atenção para seu isolamento de todas as tradições de pensamento fora dos campos da jurisprudência anglo-americana e da filosofia analítica. Ele teria poupado muitos problemas a seus leitores se tivesse percebido em que extensão suas conclusões foram antecipadas por Smith, Burke, Hegel e de Maistre. E, embora isso pudesse significar ter de renunciar a uma de suas posturas favoritas — a do liberal esclarecido que ainda não se convenceu da existência de algo como o conservadorismo intelectual —, também o teria forçado a confrontar a enorme desarmonia existente entre sua defesa de “nossa” tradição legal e sua combativa promoção das causas (como a discriminação reversa) que correntemente a debilitam.
O “nós” de Dworkin inclui todos os liberais anglófonos, mas talvez não todos os americanos fora das cidades costeiras. Seus exemplos, como já comentei, são retirados do direito inglês e americano e discutidos à luz dos princípios do direito consuetudinário de precedentes e
stare decisis
(ainda que sem referência à importante distinção entre direito consuetudinário e equidade). A maior parte do mundo é governada por sistemas legais que, ao menos ostensivamente,
não
obedecem a esses princípios. Muitos países europeus possuem sistemas legais baseados no código napoleônico, no qual a doutrina de precedentes é oficialmente repudiada (ao menos na forma adotada pelos tribunais ingleses). Mesmo assim, esses países são governados de modo legal e por um sistema de apelações destinadas a proteger os direitos individuais (embora talvez não os mesmos direitos embutidos no direito consuetudinário).
E aqui, creio, é onde vemos a profunda debilidade do modo de argumentar de Dworkin. É o modo do advogado, que emprega qualquer truque útil à mão, mas não o do filósofo, que mantém um olho na verdade universal. Ele jamais menciona o código napoleônico ou os muitos sistemas codificados similares. Tampouco menciona o direito romano, ainda que esse código contenha mecanismos interessantes por meio dos quais casos difíceis podem ser reconciliados com o princípio subjacente. Nem faz referência ao direito canônico — a fundação dos sistemas europeus de justiça criminal — ou, muito menos, ao direito islâmico, no qual há genuína interpretação e independência judicial, mesmo que “o que diz a lei” tenha sido repetido desde o Profeta. E, é claro, omite qualquer menção ao direito comunista — os sistemas de “legalidade socialista” instalados por Stalin, que não possuem precedentes fidedignos, nenhum registro legal propriamente mantido e nenhuma independência judicial. E por que jamais menciona o direito internacional, o mais controverso de todos os concorrentes ao título? Serão todos casos desviantes?
Se tivesse considerado ao menos alguns dos sistemas rivais, Dworkin teria sido forçado a concluir que “nós” somos um grupo menor do que ele imagina e que há necessidade de uma teoria mais ampla em escopo, mais rica em conceitos e menos dependente de uma dieta de exemplos unilaterais do que a teoria que ele nos deu. Mas isso também mostra que sua teoria da “interpretação” não é tanto uma verdadeira filosofia do direito quanto um instrumento de advocacia com o qual confiscar a constituição americana de seus devotos conservadores. Fora do contexto da defesa de suas causas, é impossível dizer como a teoria deve ser aplicada ou em que realmente consiste.
Um conservador, confrontado com a tarefa de desenvolver uma teoria do direito que fosse algo mais que advocacia, ficaria infeliz com um conceito de interpretação que está ligado a um contexto histórico específico e parece expressamente projetado para validar a “moralidade política” de Ronald Dworkin. Creio que ele começaria sua teoria com um conceito que não desempenha nenhum papel no relato de Dworkin: o de soberania. Soberania significa o poder legítimo de comandar obediência. Para aqueles, como Hobbes, Hegel e de Maistre, que olharam para o abismo, é o
sine qua non
da ordem legal, a condição a partir da qual começam as relações pacíficas e consensuais. Nem o terrorismo nem sua forma institucional em um governo totalitário lançam suas sombras sobre o império de Dworkin. O homem dworkiniano é uma criatura já seguramente governada pela lei e protegida por espertos juristas de seus comandos menos bem-vindos. Sua “moralidade política” é constituída quase inteiramente de direitos e reivindicações e deixa pouco espaço para as ideias de dever e obediência. Quando chega a hora de lutar por seu país, ele pode se apoiar na cláusula de escape da desobediência civil. Quando os conservadores tentam impor sua opressiva moralidade em matéria de sexo, casamento e aborto, ele pode facilmente descobrir o direito de fazer o que quiser, “interpretado” na constituição por obsequiosos juízes liberais.
Mas o que, no fim das contas, significa “interpretação”? Dizer que o objetivo de interpretar uma atividade é fornecer a “melhor” versão dela é dizer muito pouco. Não dizemos o que é futebol argumentando que o objetivo do futebol é jogar futebol bem. Precisamos de uma teoria mais concreta e mais detalhada sobre em que consiste o “melhor”. Dworkin, como Hans-Georg Gadamer (a quem se refere em uma passagem crucial), cita abundantemente o exemplo da linguagem.
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E é verdade, claro, que a linguagem fornece nosso exemplo central de interpretação. Mas qual é a “melhor” interpretação do discurso do outro? Não é necessariamente a interpretação que o torna verdadeiro, útil ou compatível com o que quer que a pessoa diga ou acredite. É a interpretação que nos diz o que aquele discurso significa.
Críticos literários estão acostumados com a ideia de que “o que um texto significa” não é o mesmo que “o que o autor
diz
que significa”. Todas as discussões em torno da falácia intencional e da “morte do autor”, contudo, passaram incólumes por Dworkin, e ele nos deixa com uma ideia de “melhor” interpretação que é inteiramente improvisada em torno de suas conclusões favoritas. É impossível derivar de seu argumento qualquer teoria sobre o que acontece quando, por exemplo, um juiz tenta circundar uma lei injusta ou opressiva invocando princípios de equidade. De fato, nenhuma parte da tradição incorporada em nossa Corte da Chancelaria é mencionada em seu argumento. E ele jamais nos diz o que acontece quando juízes aplicam uma lei porque
precisam
e não porque ela se harmoniza com outros aspectos do sistema legal — como quando são forçados a anular acordos contratuais em nome dos interesses da legislação social.
Suspeito que um verdadeiro acadêmico, preocupado com a ideia de interpretação, teria se afastado de suas causas favoritas para olhar para o conceito de
ijtih
ā
d
do direito islâmico. Até o triunfo dos teólogos asharitas no século X de nossa era e o destrutivo dogma de que “o portão de
ijtih
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está fechado”, os juristas das quatro escolas aceitas concordavam que a lei governando um caso particular devia surgir pela interpretação do Corão e dos hadiths, de acordo com certos princípios que harmonizariam a decisão com as declarações explícitas do Profeta. Muito trabalho acadêmico foi devotado a compreender exatamente como os juristas islâmicos iniciais procediam e teria sido interessante ler as opiniões de Dworkin a respeito — ou sobre qualquer outra coisa que não fossem os impetuosos floreios de sua advocacia liberal. Mas essas coisas serão buscadas em vão. Permanece incerto, até o fim de seu argumento, o que significa “interpretação” ou a quem se refere sua onipresente primeira pessoa do plural. Ele termina com estas palavras: “é isso o que o direito significa para nós; para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que buscamos ter”. A que a única resposta coerente é: fale por si mesmo.
Nas figuras de Galbraith e Dworkin vemos a emergência, nos Estados Unidos, de um beligerante establishment liberal. Ambos foram homens brilhantes, com domínio do raciocínio circunstancial. Ambos tiveram uma atitude descuidada em relação ao estudo acadêmico sério. Ambos despejaram escárnio sobre as ideias recebidas da sociedade americana, a fim de abrir caminho para a rebeldia. E ambos gozaram das enormes recompensas que estão disponíveis para aqueles que subvertem a antiga cultura de família, iniciativa, Deus e bandeira. Examine seus argumentos atentamente, contudo, e encontrará apenas atalhos, retórica e desprezo pelas opiniões contrárias. Apesar de toda sua esperteza, eles deixaram as reais questões intelectuais exatamente no mesmo lugar onde as encontraram.