4.
Libertação na França: Sartre e Foucault
Durante a última década do século XIX, o caso Dreyfus, no qual um oficial judeu do Exército francês foi exilado por falsas acusações de traição, suscitou a questão sobre o que significa ser francês. Que tipo de lealdade é necessária para que o país defenda a si mesmo? A questão foi feita após a humilhação da França pelos exércitos de Bismarck, provocando um patriotismo que chegou tarde demais para salvar o dia e que ainda estava incompleto durante a emergência seguinte, em 1914.
O notório artigo de Zola, “J’accuse”, publicado em 1898 em um jornal diário,
L’Aurore
, apontou o dedo para o governo francês e as classes políticas, acusando-os de antissemitismo. O patriotismo, argumentou Zola, não tinha nada a ver com raça e tudo a ver com cidadania. Seu artigo foi o ápice do conflito envolvendo a relação entre a ortodoxia católica e o status do cidadão judeu. Também suscitou questões sobre a própria natureza da França e da lealdade a ela, com a qual o país foi incapaz de contar em sua hora de necessidade.
77
No livro
Em busca do tempo perdido
, Proust retorna obsessivamente ao caso Dreyfus, como se fosse a única intrusão do mundo dos eventos públicos no reino interno de sentimentos requintados e luxúria destemperada que era sua principal preocupação. Ele associou o caráter “estrangeiro” do judeu na alta sociedade à vida do homossexual secreto em uma cultura católica. De fato, em nenhum lugar o caso Dreyfus é mais proeminente que nas páginas de
Sodoma e Gomorra
devotadas ao desejo homossexual — páginas que também são um sutil pedido por tolerância em relação àqueles cuja identidade íntima é escondida do restante da sociedade e que, consequentemente, vivem conscientemente à margem.
Proust e Zola eram patriotas urbanos, para quem a cidadania tinha precedência sobre a religião e a cultura. Entre os
dreyfusards
, havia escritores católicos que buscavam um tipo mais enraizado e menos legalista de patriotismo. Eles identificavam a França com o interior, seu modo de vida camponês, sua economia tradicional e as formas nativas de devoção católica. Embora fossem católicos sinceros, desejavam dar um caráter mais territorial a sua devoção e ligar sua fé ao cenário da França, em algo parecido com o modo como a fé anglicana fora ligada ao cenário da Inglaterra pelos romancistas e poetas vitorianos. Joana d’Arc, a virgem guerreira cuja bela história precedia a Revolução em três séculos e meio, tornou-se símbolo de sua nova forma de patriotismo, que deveria ser uma consagração da terra e do povo, assim como uma reafirmação de comprometimento católico.
A principal figura do movimento era Charles Péguy, fundador e editor dos notórios
Cahiers de la Quinzaine
, nos quais muitas das mais importantes obras da literatura francesa da primeira década do século XX foram publicadas — incluindo
Jean Christophe
, de Romain Rolland, e obras de Anatole France e Julien Benda.
Mystère de la charité de Jeanne d’Arc
, de Péguy, foi publicado em 1911, três anos antes de sua morte em batalha, e a canonização de Joana d’Arc pela Igreja em 1920 deveu-se, em grande parte, à influência e à campanha de Péguy. Sua síntese do catolicismo e do patriotismo exerceu grande influência sobre o filósofo Jacques Maritain e sua esposa Raïssa, e em torno deles se congregou um influente círculo de escritores e pensadores nos anos após 1918, quando a França lutava para se recuperar do massacre sem sentido da Primeira Guerra Mundial.
78
Esse
renouveau catholique
do pós-guerra incluía pintores (Georges Rouault), compositores (Charles Tournemire e Francis Poulenc) e escritores como Paul Claudel, Jean Cocteau, Francis Jammes, Charles du Bos, Gabriel Marcel e François Mauriac.
79
Seus esforços podem ser testemunhados em uma extraordinária publicação intitulada
Chroniques
, cujo primeiro volume surgiu em 1925, sob editoria de Claudel, Cocteau, Jacob, Maritain e (é estranho dizer) G. K. Chesterton — todos apaixonadamente católicos na época. A causa do nacionalismo francês entrou em um período conturbado, contudo, quando uma causa rival, mais secular e muitas vezes francamente ateísta, começou a ganhar ascendência. Essa foi a beligerantemente monarquista
Action Française
de Charles Maurras (movimento que fundara com um jornal de mesmo título em 1898 e que cresceu em força durante as duas primeiras décadas do século XX). Maurras era um antissemita que se unira entusiasticamente à condenação do capitão Dreyfus e tinha um temperamento singularmente violento, proferindo ameaças de morte contra políticos proeminentes que acabaram lhe rendendo uma sentença de prisão.
A crise da Segunda Guerra Mundial, com a capitulação dos franceses e o estabelecimento do regime de Vichy, significou que toda a ideia de nacionalismo francês passou a ser maculada pelo crime de colaboração. Muito da literatura francesa do pós-guerra foi reação a isso. Maurras, por exemplo, foi colaborador do regime de Vichy e julgado após a guerra por fornecer auxílio e encorajamento ao inimigo. Sua sentença de morte foi comutada para prisão perpétua, embora outros membros intelectuais de seu movimento tenham sido menos afortunados. Um deles, o ferozmente antissemita romancista Robert Brasillach, foi fuzilado, a despeito de um pedido de clemência ao general De Gaulle assinado por muitos dos mais importantes escritores da época, incluindo Paul Valéry e Jean Cocteau. Após a guerra, os escritores se dividiram em inocentes e culpados, com os inocentes sendo frequentemente autointitulados e incluindo muitos que haviam apressadamente inventado uma ficção de afiliação à Resistência. Os colaboradores mais declarados, como Maurras, Brasillach e o romancista Drieu la Rochelle, foram delatados por uma população cuja própria inocência era, em muitos casos, uma fabricação retrospectiva.
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Não surpreende, portanto, que muito da literatura francesa de guerra seja devotado às complexidades da traição, cometida por pessoas frequentemente mais dispostas a baixar os braços em nome da segurança pessoal que a sacrificar a vida por um amigo. Lembre-se da notória história
Bola de sebo
, de Maupassant, que narra a tentativa, por um grupo de respeitáveis burgueses, de sacrificar uma prostituta — a única patriota entre eles — aos avanços de um oficial alemão. Ou considere aqueles dois poderosos romances lançados entre as guerras mundiais,
Viagem ao fim da noite
, de Louis-Ferdinand Céline, e
La jument verte
, de Marcel Aymé, o primeiro falando do caos moral da Primeira Guerra Mundial, e o segundo, da traição entre vizinhos no conflito franco-prussiano de 1870-1871. Em ambos, vemos um país tomado pela suspeita, buscando por um patriotismo que tão frequentemente o elude e parecendo desprovido do espírito de sacrifício que anima (por mais melancolicamente que seja e com qualquer grau de autoengano) a literatura inglesa da Primeira Guerra Mundial.
Ilustrativo do trauma é o escritor Drieu la Rochelle. Ele lutou bravamente na Primeira Guerra Mundial, sendo ferido três vezes e recebendo a Croix de Guerre. Emergiu da experiência como uma das principais figuras literárias da Paris entreguerras. Mas não se sentia atraído pelo renascimento católico e, durante os vinte anos seguintes, levou uma vida desordenada, devotada à sedução de mulheres e à composição de sombrios romances nos quais as mulheres e sua sexualidade ocupavam o centro do palco. Ele repudiava as ideias nacionalistas que acreditava terem causado a Grande Guerra e defendia uma Europa unida e um novo internacionalismo como única maneira de conseguir um futuro pacífico.
Inicialmente, Drieu apoiou os comunistas como defensores evidentes da causa internacionalista e se uniu ao Partido, juntamente com tantos de seus contemporâneos. Quando saiu do Partido e se declarou fascista, não foi por repudiar aquilo em que um dia acreditara. Para ele, o socialismo internacional que o atraíra para o Partido Comunista estava sendo mais bem expresso pelos partidos fascistas em ascensão na Alemanha e na Itália. E ele dificilmente pode ser culpado por pensar assim, em uma época na qual nazistas e comunistas iniciaram sua aliança secreta. Há um tipo de desejo de morte, um desgosto pela vida, que une a política internacional e as sórdidas experiências de um personagem como Drieu.
81
Seu suicídio, que o salvou de ser julgado por traição, já estava implícito no
ennui
e na
nostalgie de la boue
que preenchem as páginas de
L’homme couvert de femmes
, um romance que expressa, já no título, o divórcio entre sexo e amor que definiu sua experiência. Sua vida, assim como sua arte, foi um registro de devastação espiritual para a qual ele buscou, em vão, um remédio político.
Os esforços de Péguy, Maritain e seus seguidores para unir catolicismo e nacionalismo em um abraço apertado eram inaceitáveis, não apenas para pessoas como Drieu la Rochelle, mas também para os intelectuais comuns de tendências esquerdistas. Muitos deles eram não crentes — com a cultura nacional já tendo sido parcialmente colonizada pelo deísmo de Auguste Comte e pelo ateísmo de Zola, Proudhon e Georges Sorel. A influência do marxismo foi sentida em toda a sociedade e, após a Revolução Russa, o Partido Comunista Francês passou a crescer rapidamente, recrutando muitos dos mais importantes intelectuais do país, incluindo o romancista e poeta Louis Aragon, o pintor Pablo Picasso e o surrealista André Breton.
Pode-se argumentar que a resultante
trahison des clercs
foi menos prejudicial que a dos espiões de Cambridge e seu círculo, dado que menos dependia da França que da Inglaterra durante a guerra e o período subsequente. Mas as consciências culpadas dos intelectuais franceses no pós-guerra podem ser vistas claramente em suas reações intensamente hostis a
O livro negro do comunismo
, organizado pelo ex-maoista Stéphane Courtois e publicado em 1997. Esse livro fornece a contagem de corpos dos crimes comunistas e descreve a parte dos intelectuais ao sancioná-los e inspirá-los. Também insiste na comparação (para Courtois uma quase identidade) entre comunismo e nazismo.
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Para muitos intelectuais franceses que se voltaram para o Partido Comunista em reação aos horrores do nazismo, essa comparação não foi apenas ofensiva; foi uma traição. Contudo, os comunistas foram em certa medida responsáveis pela erosão da vontade de lutar contra os nazistas, estando sob ordens indiretas de Hitler durante os meses cruciais da derrota francesa. (Foi graças ao PCF que as fábricas de munição entraram em greve quando Hitler — então beneficiário do pacto nazi-soviético — marchou para a França.)
As crenças, as campanhas e a autoimagem da geração de escritores do pós-guerra podem ser lidas contra esse doloroso pano de fundo. E, em quase todos eles, destaca-se a influência de Alexandre Kojève, um exilado russo cujas palestras sobre Hegel na
École Pratique des Hautes Études
durante os anos 1930 foram frequentadas por grandes nomes da literatura francesa do pós-guerra — Bataille, Lacan, Sartre, de Beauvoir, Lévinas, Aron, Queneau, Merleau-Ponty e muitos outros. Enquanto o Partido Comunista estava ocupado colocando o maquinário da indústria nas mãos dos sindicatos e do Estado socialista, Kojève — que era servidor público francês de alta patente e um dos arquitetos da União Europeia — amaciava a classe intelectual com dialética hegeliana, a fundação da religião marxista que tomara o poder em sua nativa Rússia. Fontes nos serviços de segurança franceses alegaram que era agente soviético. Mas não temos provas independentes disso. Afinal, ele declarou a todos ser seguidor de Josef Stalin, e que agente soviético diria tal coisa?
83
As palestras de Kojève sobre Hegel foram subsequentemente editadas e transformadas em livro por Raymond Queneau, o espirituoso autor de
Zazie no metrô
. Elas se dedicam a expor o argumento de
Fenomenologia do espírito
, de Hegel, em particular a dialética da liberdade, de acordo com a qual o ser humano se torna uma autoconsciência livre através do processo de conflito com o Outro. Duas ideias parecem ter pulado da boca de Kojève para as mentes de sua plateia, ressurgindo como temas na literatura do pós-guerra: a identidade entre liberdade e autoconsciência e a dialética de sujeito e objeto. É válido fazermos um breve resumo dessas duas ideias e seu lugar na filosofia de Hegel, dado que surgirão em muitas de minhas discussões em capítulos posteriores.
Para Hegel, o processo por meio do qual nos tornamos plenamente conscientes de nós mesmos como sujeitos e o processo por meio do qual “percebemos” nossa liberdade são um e o mesmo. Eu me conheço por meio de minhas ações livres e, agindo livremente, crio o eu que conheço. O autoconhecimento não é um solitário exercício de introspecção. É um processo
social
, no qual encontro e luto com o “Outro”, cuja vontade, em conflito com a minha, força-me a reconhecê-lo em mim mesmo. Em uma passagem justamente notória, Hegel argumenta que há, tanto na vida do indivíduo quanto na história mais ampla da humanidade, uma transição da “luta de vida e morte” entre vontades conflitantes para a relação de autoridade e servidão, na qual um lado se submeteu e o outro prevaleceu, e daí para a vida de labuta, na qual o escravo cria para si mesmo as condições de liberdade. O processo continua até que a escravidão dê espaço, por meio de sua própria dinâmica interna, à cidadania, à legalidade e ao acordo mútuo.
84
Hegel alcançou conclusões conservadoras em seu argumento e, de fato, forneceu alguns dos conceitos fundamentais da visão de direita que defenderei no capítulo final. Mas o que impressionou a plateia de ateus espiritualmente famintos de Kojève nos anos 1930 foi a visão que jaz dormente nas páginas de Hegel: a liberdade radical e o indivíduo autogerado. Eles perceberam que, explorando o eu e sua liberdade, era possível reencantar seu mundo desencantado e colocar o sujeito humano novamente no centro das coisas. Além disso, receberam uma visão da Queda com a qual explicar sua alienação. A Queda era o Outro, o Sujeito transformado em Objeto, a coisa contra a qual a liberdade define a si mesma e com a qual está em constante conflito.
Eu e Outro, Sujeito e Objeto, Liberdade e Alienação — os opostos se acumularam e se espalharam como fogo pelos cérebros ressecados dos devotos de Kojève, para ressurgirem transmutados na literatura do pós-guerra, quando uma nova onda de culpa e repúdio engolfou sua devastada terra natal. Para Simone de Beauvoir, a dialética do eu e do outro explicava pela primeira vez a sujeição da mulher — a
altérité
a que as mulheres eram condenadas pela maneira estabelecida de representá-las. Para Georges Bataille, a fascinação do sujeito com o objeto se tornou o componente principal do erotismo, a maneira pela qual o mundo das coisas é infectado por nossa liberdade. Para Lacan, a dialética hegeliana foi recontada na história do “estágio do espelho” da psique, o momento em que o sujeito se vê como objeto e, assim, torna-se Outro para si mesmo. E assim por diante com todos os escritores e pensadores que se sentaram aos pés de Kojève e aprenderam com ele a recuar de Marx para Hegel e ver que, o que quer que estivesse errado no mundo, era culpa do Outro.
É claro que é impossível reduzir um pensador tão complexo quanto Sartre a uma única influência. Juntamente com o hegelianismo de Kojève, ele estava profundamente imerso na fenomenologia de Husserl e seu radical retrabalho da estranhamente envolvente filosofia da “autenticidade” de Martin Heidegger. Estudou durante um ano com Husserl na Alemanha enquanto preparava uma tese sobre a imaginação, e então ensinou em escolas pela maior parte dos anos 1930, antes de ser convocado para o Exército francês e acabar capturado em Padoux em 1940. Foi libertado, tendo declarado más condições de saúde em função de sua visão defeituosa, retornou a Paris e voltou a ensinar no Lycée Condorcet. Foi ativo, mas não perigosamente, na Resistência, uma experiência que lhe deixou uma impressão duradoura, e seu envolvimento com os quadros comunistas no período imediatamente após o fim da guerra inspirou sua peça anticomunista
Les mains sales
.
Sartre prosperou sob a ocupação e foi capaz de publicar sua
magnum opus
,
O ser e o nada
, sem censura em 1943. Além disso, foi cofundador, em 1945, da bem-sucedida revista
Les Temps modernes
, que continuou a editar durante duas décadas. Tendo recusado a Légion d’Honneur em 1945, foi incapaz de recusar o Nobel de Literatura em 1964, dado que as regras não permitiam. Mas não compareceu à cerimônia de premiação em Estocolmo e entregou o prêmio em dinheiro a causas socialistas. Jamais foi membro do Partido Comunista, não acreditando em partidos ou qualquer outro tipo de instituição. Mas
Les Temps modernes
, sob sua direção, foi inflexível em seu apoio às campanhas comunistas. Além disso, suas próprias denúncias políticas (tipificadas por aquela feita contra seu antigo amigo e coeditor Albert Camus) eram brutalmente stalinistas, assim como sua visão do mundo moderno como utópico e míope: fatos que o aproximaram tanto do espírito do Partido Comunista Francês que tornaram sua autoproclamada distância apenas simbólica. Foi ao se congraçar com o Partido que ele retirou
Les mains sales
dos palcos.
Sartre anunciou
Les Temps modernes
como jornal devotado a
la littérature engagée
. Em nenhum sentido, contudo, essa frase descreve suas excursões literárias iniciais — o breve estudo sobre a imaginação publicado em 1936 e o romance
A náusea
, de 1938, ambos reflexões sobre a vida interior e sua separação do mundo da ação. É justo dizer que
A náusea
mudou o curso da literatura francesa ao lhe fornecer um novo tipo de centro narrativo. O herói do romance, Roquentin, está tomado de repulsa pelo mundo das coisas. Ele se sente maculado por sua encarnação, que o une flagrante e irreversivelmente a um mundo diferente dele mesmo. A experiência de náusea ocorre sempre que a existência perde seu “inofensivo ar de categoria abstrata” e se torna “a própria substância das coisas”. Ele vê então que “o que existe deve existir até o ponto de embolorar, inchar, tornar-se obsceno”. Aqui, pela primeira vez plenamente na obra de Sartre, encontramos sua peculiar transformação da versão kojeviana do Outro, o “não eu” que permanece inamovivelmente oposto ao “eu” da liberdade e da autoconsciência.
A repulsa de Roquentin — “
une espèce d’écœurement douceâtre
”
— contrasta com seu senso de liberdade interior. Ele sente que, dentro de si, existe a capacidade de repudiar o mundo, recusar seus excessos. Sua repulsa, portanto, adquire um foco mais específico: as outras pessoas, em particular as que considera “burguesas”, cujos rostos brilham com o que é para ele injustificada retidão. O burguês é o Outro encarnado, a onipresente negação do eu. Roquentin contempla a imersão da burguesia na família e no Estado, seu fácil consolo na religião, nas reuniões sociais e nos papéis — e sua resposta é uma determinada abnegação. A burguesia é o epítome da má-fé, o registro vivo de uma liberdade abjurada, o testemunho do eu traído. O que quer que aconteça,
ele
não trairá a si mesmo dessa maneira. A história de sua repulsa é a história de sua recusa em pertencer.
Roquentin foi o primeiro de muitas criações literárias dessa natureza — centros de consciência que observam sem pertencer. Assim é Meursault, o narrador de
O estrangeiro
(1942), de Camus, bem como o anônimo narrador em primeira pessoa de
Au moment voulu
(1951), de Maurice Blanchot, e o narrador “ausente” de
O ciúme
(1957), de Alain Robbe-Grillet, a obra que iniciou o
nouveau roman
e na qual nada realmente acontece e todos os sentimentos são implícitos. Para o cético leitor inglês, todos esses observadores em sofrimento parecem adolescentes introspectivos, que lisonjeiam a si mesmos pretendendo que sua repulsa é um tipo de santidade. Injusto, talvez, mas um modo de reconhecer que há uma maneira totalmente diferente de ver Roquentin, como manifestação do pecado capital do orgulho, o pecado do Satã de Milton, o pecado de Sartre, que ele procurou dignificar, durante toda a vida, com os mais altos títulos teológicos.
Com Roquentin, Sartre começou a tarefa de criar sua própria salvação a partir da premissa do eu. E foi essa tarefa que continuou em sua obra-prima,
O ser e o nada
(1943), e na notória palestra “Existencialismo e humanismo”, de 1945. Em uma extraordinária combinação de argumento filosófico, observação psicológica e evocação lírica, ele descreve o suplício e a tarefa da consciência em um mundo que não possui significado além daquele que eu, por meio de minha liberdade, imprimo a ele.
Os filósofos medievais tomaram de Aristóteles a ideia de que respondemos à pergunta “O que existe?” ao identificarmos a natureza essencial das coisas. Se isso diante de mim existe, então isso é algo. Se é algo, então há alguma coisa que isso é. E a coisa que isso é — um homem, um cão, um galho, uma pilha de areia — é definida por sua essência. Daí que “a essência precede a existência”: conhecemos o mundo compreendendo essências e buscando as coisas que as exemplificam. Mas essa maneira de ver as coisas, argumenta Sartre, depende de uma metafísica insustentável. Não existe natureza humana, dado que não existe um Deus para possuir uma concepção sobre ela. As essências, como construções do intelecto, desaparecem com a mente que as concebe. Para nós, portanto, nossa existência — nossa não conceituada individualidade, cuja realidade é a liberdade — é a única premissa de toda indagação e o único ponto de observação seguro em um mundo cujo significado ainda não foi estabelecido. A verdadeira premissa da filosofia é que “a existência precede a essência”. Minha existência não é governada por nenhuma moralidade universal e não possui nenhum destino prefigurado, como poderia ser contido em uma visão da natureza humana. O homem deve construir sua própria essência, e mesmo sua existência é, em certo sentido, uma realização: ele existe completamente apenas quando é o que pretende ser.
A consciência é “intencional”: ela postula um objeto em que vê a si mesma, como em um espelho. Como na dialética de Hegel, objeto e sujeito surgem juntos, em fundamental antagonismo. Sartre expressa esse antagonismo em termos já emprestados de Hegel por Marx. O antagonismo no coração do ser é aquele entre o “em-si” e o “para-si” (
en-soi
e
pour-soi
). Ao se estabelecer em relação a um objeto fundamentalmente “outro”, o eu cria uma separação em seu mundo, um tipo de fenda. Eu mesmo ocupo essa fenda: é o reino do nada,
le néant
, que “jaz enrodilhado no coração do ser, como um verme”.
Sartre revela um inesquecível retrato do dilema em que somos colocados pela autoconsciência no mundo dos objetos. Para a visão de mundo religiosa, a autoconsciência é uma fonte de alegria, prova de nossa separação da natureza, de nossa relação especial com Deus e de nossa redenção final, ao saltarmos do mundo para os braços de nosso criador. Para Sartre, a autoconsciência é um tipo de nada todo-dominante, uma fonte de ansiedade: prova de nossa separação, certamente, mas também de nossa solidão, que é uma solidão sem redenção, uma vez que todas as portas em nossas paredes internas foram pintadas por nós mesmos e nenhuma delas se abrirá.
Além disso, o eu, o
pour-soi
, jamais pode se tornar objeto de sua própria consciência. Ele é sempre o sujeito, a coisa que conhece, e não o objeto conhecido. Posso voltar minha atenção subitamente em direção a ele, esperando pegá-lo desprevenido. Mas ele rodopia para fora de minha visão antes que eu possa captá-lo. Pegar a consciência inconsciente é exatamente o que é impossível. A experiência do nada, portanto, é elusiva, assim como o ego é elusivo: o eu é o nada e o nada é o eu. Ocasionalmente, contudo — expectantes ou desapontados —, estamos conscientes da soberania do nada e da aterrorizante dependência mútua entre o nada e o ser. É somente a autoconsciência (um
para-si
) que pode trazer esse nada para o mundo. Para o organismo meramente sensível, não existe fratura entre sujeito e objeto. Com a fratura, contudo, surge o desafio existencial. Surge a questão: “Como devo preencher o vão que me separa do mundo?” A angústia que invade o eu em virtude dessa questão é a prova da liberdade. Não pode haver nada mais certo que minha liberdade, dado que nada existe para mim — nada é
outro
— até que a fratura esteja aberta, e minha liberdade, exposta.
A angústia se mostra no sentido de que os objetos não são adequadamente distintos uns dos outros, são inertes, não diferenciados, aguardando separação. Essa é a origem da peculiar náusea metafísica de Roquentin, da qual o objeto primário é a dissolução do mundo. O mundo se torna lodo — o
fango originale
de Boïto e o
Iago
de Verdi. Sartre conclui
O ser e o nada
com uma longa descrição do lodo (
le visqueux
), evocando a rainha dos pesadelos, que parece surgir da vala do nada e confrontá-lo com uma última negação. O lodo é um derretimento dos objetos, um “úmido e feminino sugar”, algo que “vive obscuramente sob meus dedos” e que “percebo como tontura”. O lodo
me atrai para si como o fundo de um precipício poderia me atrair [...] Em um sentido, é como a suprema docilidade do possuído, a fidelidade de um cão que
se dá
mesmo quando já não o querem, e, em outro sentido, há sob essa docilidade uma sub-reptícia apropriação do possessor pelo possuído.
85
No lodo, confrontamos a absorção do “para-si” pelo “em-si”: o mundo dos objetos coalesce em torno do sujeito e o arrasta para baixo de si.
O lodo, portanto, é uma imagem do “eu em perigo”: de uma liberdade perdida para o “caído” mundo dos objetos. Em reação a esse perigo, ao qual a própria liberdade me incita, posso me esconder de mim mesmo, enterrando-me em algum papel predeterminado, contorcendo-me para caber em um traje feito para mim, cruzando o abismo que me separa dos objetos apenas para me tornar eu mesmo um objeto. Isso acontece quando adoto uma moralidade, uma religião, um papel social que foi projetado por outros e fornece um enganoso refúgio de minha própria autenticidade. O resultado é a “má-fé” — o crime dos bons cidadãos sobre os quais Roquentin lança seu veemente desprezo. O lodo me repele e me atrai, precisamente porque é uma imagem da doce e pegajosa promessa da má-fé.
A falsa simulação do em-si pelo para-si (do objeto pelo sujeito) deve ser contrastada com o autêntico gesto individual: o ato livre por meio do qual o indivíduo cria tanto a si mesmo quanto a seu mundo, juntos, ao lançar um no outro. Não me pergunte
como
isso é feito, dado que o processo não pode ser descrito. O fim é o que importa e é isso que Sartre descreve como comprometimento (
engagement
). Mas comprometimento com o quê?
Não há resposta para essa questão que não contradiga a premissa da autenticidade. Qualquer adoção de um sistema de valores que seja representado como objetivamente justificado constitui uma tentativa de conferir minha liberdade ao mundo dos objetos e, consequentemente, perdê-la. O desejo por uma ordem moral objetiva é uma exibição de má-fé e uma perda da liberdade sem a qual nenhum tipo de moralidade seria concebível. A justificativa de Sartre para sua própria moralidade, portanto, é inerentemente contraditória — um fato que de modo algum o impede de expô-la nos termos mais passionais:
Emerjo sozinho e aterrorizado em face do único e primordial projeto que constitui meu ser: todas as barreiras e todas as balaustradas caem por terra, aniquiladas pela consciência de minha liberdade; não tenho e nem posso ter acesso a qualquer valor contra o fato de que sou eu que mantenho os valores em existência; nada pode me garantir contra mim mesmo; separado do mundo e de minha essência pelo nada que
sou
, tenho de perceber o significado do mundo e de minha essência: decido sozinho, sem justificativas ou desculpas.
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O comprometimento político é um resultado estranho para o culto da autenticidade. Para entender sua necessidade para Sartre, devemos vê-lo no contexto de sua absolutamente distorcida visão das fontes “objetivas” de valor, todas envolvendo algum tipo de autotraição. É como se ele procurasse uma resposta metafísica para a rendição francesa aos nazistas, na forma de uma rebeldia íntima ao Outro uniformizado. Seu argumento está enraizado nos termos que Kojève tomou de Hegel. Mas, ao contrário de Hegel, cuja filosofia era uma afirmação de tudo que é, Sartre foi o grande negador, o Mefistófeles da filosofia ocidental, acreditando que o amor, a amizade, o contrato e a ordem “burguesa” normal estão repletos de contradições.
Ele introduz a noção de “ser para os outros” a fim de descrever a peculiar posição em que eu, como ser autoconsciente, necessariamente me encontro. Sou a um só tempo sujeito livre a meus próprios olhos e objeto determinado aos olhos dos outros. Quando outro ser autoconsciente olha para mim, sei que busca em mim não o objeto, mas também o sujeito. O olhar de um ser autoconsciente, portanto, tem a peculiar capacidade de penetrar, de criar uma demanda. Essa é a demanda que eu mesmo, como subjetividade livre, revelo ao mundo. Ao mesmo tempo, minha existência como objeto corpóreo cria uma opacidade, uma barreira impenetrável entre minha subjetividade livre e o outro que busca se unir a ela. Essa opacidade é a origem da obscenidade, e meu reconhecimento de que meu corpo se apresenta para o outro como o dele se apresenta para mim é a fonte da vergonha.
Esses pensamentos levaram Sartre a sua incomparável descrição do desejo sexual. Se desejo uma mulher, argumenta ele, isso não é simplesmente uma questão de luxúria para me gratificar em seu corpo. Se fosse apenas isso, qualquer objeto adequado, mesmo um simulacro do corpo feminino, serviria do mesmo modo. Meu desejo me uniria então ao mundo dos objetos, assim como estou unido a ele e arrastado para baixo do lodo. Eu experimentaria a extinção do “para-si” na negra noite da obscenidade. No desejo verdadeiro, o que eu desejo é o
outro
,
ele mesmo
. Mas o outro só é real em sua liberdade e falsamente representado por cada tentativa de concebê-lo como objeto. Assim, o desejo busca a liberdade do outro a fim de se apropriar dele como se fosse seu.
Consequentemente, o amante — que deseja possuir o corpo do outro somente como e apenas até onde ele mesmo o possui — é restrito por uma contradição. Seu desejo se realiza somente ao compelir o outro a se identificar com seu corpo — a perder seu para-si no em-si da carne. Mas o que se possui então não é a liberdade do outro, mas simplesmente a casca da liberdade — uma liberdade negada. Em uma passagem notável, Sartre descreve o sadismo e o masoquismo como “recifes nos quais o desejo pode naufragar”.
87
No sadomasoquismo, uma parte tenta forçar a outra a se identificar com sua carne sofredora, a fim de possuir o outro no corpo, por meio do próprio ato de atormentá-lo. Novamente, contudo, o projeto não dá resultado: a liberdade oferecida é negada na própria oferta. O sádico é reduzido, por sua própria ação, a um espectador distante da humilhação do outro, separado da liberdade com a qual busca se unir através do obsceno véu da carne torturada.
A descrição do desejo sexual expressa as mais urgentes observações de Sartre e não tem comparações na literatura filosófica. É uma descrição que Mefistófeles poderia ter sussurrado no ouvido de Fausto enquanto ele arruinava a inocente Gretchen — tanto um paradigma da fenomenologia quanto uma sincera expressão de horror existencial. Para Sartre, todas as relações são envenenadas pelo corpo — o em-si espaçotemporal — que encarcera nossa liberdade. Todos os amores, e basicamente todas as relações humanas, são fundados nessa contradição, enquanto tentamos ao mesmo tempo ser e não ser essa coisa que somos. Sartre não estava argumentando a partir de sua própria experiência. Estava argumentando
a priori
, afirmando que é isso que o desejo deve ser na experiência de um sujeito autoconsciente.
Embora fosse feio, com corpo flácido e rosto de sapo, ele fazia muito sucesso entre as mulheres — uma das quais, Simone de Beauvoir, foi sua mentora e companheira por toda a vida. Seu arranjo livre permitiu que ela assistisse a suas muitas seduções e aproveitasse os próprios e frequentemente lésbicos relacionamentos, vivenciando, tanto como observadora quanto como participante, a prova cabal de que
pour-soi
jamais consegue se unir a
pour-soi
, o que quer que o
en-soi
esteja fazendo. O comprometimento, como de Beauvoir descobriu, não pode ter outro humano como seu objeto, mas somente... somente o quê?
Essa é a questão silenciosa que assombra a paisagem devastada da prosa de Sartre. E ele lutou durante alguns anos com a tentativa de lhe fornecer uma resposta ética, acreditando que deveria ser possível roubar, do invólucro da liberdade absoluta, a essência de ordem moral que ela escondia. Em seu postumamente publicado
Cahiers pour une morale
, composto em 1947-1948, ele explorou a ideia de que, ao justificar minha própria liberdade como fundação absoluta da vida pessoal, também justifico a do outro.
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Mas, em sua obra publicada, rejeitou tais compromissos em favor da demanda absoluta por autenticidade.
Um cético poderia responder argumentando que a autenticidade que Sartre valoriza tanto, assim como a liberdade que cria sua necessidade, é uma ilusão. Talvez não exista algo como a liberdade absoluta, nenhum ponto de partida incondicional para cada jornada individual na direção do comprometimento. Ou, se existe tal coisa, talvez devamos vê-la como Kant a viu: como fundação transcendental de uma moralidade objetiva que nos amarra uns aos outros em uma relação de respeito universal e nos força à submissão perante a lei moral. Mas Sartre, embora simpatizasse com a posição de Kant, via somente falta de autenticidade nesse último passo de submissão à lei que governa outros. Isso é apenas outra maneira pela qual o mundo envenena nossos esforços, compelindo-nos a nos identificarmos com algo que não nós mesmos.
Qual, pode-se perguntar, é a verdadeira fonte da repulsa de Sartre em relação a sua própria existência corpórea — uma repulsa exibida ora em um senso de obscenidade, ora no
post coitum triste
de um desejo que se sente nauseado por sua própria consumação? Que sentimento possui um foco tão específico e, contudo, também surge no desdém de Roquentin pela normalidade “burguesa” e em uma náusea metafísica que envolve toda a criação?
Parece-me que Santo Agostinho apresentou uma resposta melhor que a sugerida por Sartre. Para Santo Agostinho, é o sentimento do pecado original que causa nossa repulsa pelo mundo. Temos vergonha de nossa encarnação sempre que somos confrontados por ela e sentimos que nossa liberdade interior é “violada” por sua prisão carnal. Vemos a nós mesmos como exilados no mundo, constantemente atingidos pelo fedor da mortalidade. Além disso, é no ato sexual que o senso do pecado original nos invade mais completamente. Pois, sexualmente excitado, estou consciente de que meu corpo é opaco à minha vontade e se rebela contra ela. No sexo, o corpo me domina e controla, enchendo-me de vergonha por minha obscena subserviência.
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É no ato que nos engendra que nossa mortalidade é sentida de maneira mais aguda e é nele que o putrefato e lodoso caráter da carne é mais vergonhosamente apresentado à consciência.
Se reunirmos as mais poderosas observações de Sartre — e aquelas que desempenham o papel mais importante em sua metafísica da liberdade —, claramente não estaremos longe do espírito agostiniano: o espírito do anacoreta cristão bradando contra os prazeres do mundo e, contudo, incerto de ter realmente renunciado a eles. A assustadora consciência da conspurcação, que faz com que o anacoreta se volte para Deus, faz com que Sartre, que não vê nenhum Deus, volte-se para seu solitário santuário interior, onde o eu está resguardado entre os ícones atravancados de seu próprio faz de conta.
Em resumo, ele exige “comprometimento” para satisfazer uma necessidade religiosa. Foi afirmado muitas vezes — inclusive pelo grande amigo da juventude de Sartre, Raymond Aron — que o marxismo preenche a brecha deixada pela religião.
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Mas é nas obras mais tardias de Sartre que o significado dessa observação se torna mais aparente. De acordo com a metafísica exposta em
O ser e o nada
, a resposta correta para a pergunta “Com o que devo me comprometer?” deveria ser “Com qualquer coisa, desde que seja lei apenas para você mesmo”. Mas essa não é a resposta dada por ele, cujo comprometimento é com um ideal que está em tensão com sua própria filosofia — a revolução em nome da “justiça social”.
Ele é levado nessa direção não pela rota da afirmação, mas pelo sombrio caminho da negação. Tendo libertado o gênio da autenticidade, ele deve cumprir sua ordem secreta, e essa ordem é a destruição. Nada real pode ser “autêntico”. O autêntico se define em oposição ao Outro — o que significa em oposição ao mundo que outros criaram e onde se sentem em casa. Tudo que pertence aos outros é parcial, remendado e comprometido. O eu autêntico busca a solução
total
para o enigma da existência, de sua própria criação, sem reconhecer nenhuma autoridade ou legitimidade maculada pelo inaceitável mundo “deles”.
É essa postura de negação que leva o eu a adotar a filosofia revolucionária de Marx. Pois, mesmo que essa ação seja supremamente injustificada, ainda assim fornece a libertação mais fácil de uma situação de dor intolerável: a situação de estar completamente sozinho em um universo sem Deus. Há três características no marxismo que agradaram a Sartre. Primeiro, é uma filosofia de oposição, completamente saturada por um desprezo quase religioso pela ordem “burguesa”. Segundo, é total em sua solução e promete uma nova realidade, obediente a uma concepção perfeita de si mesma. Em outras palavras, o marxismo abole a realidade em favor de uma ideia. E essa ideia é modelada pela transcendental liberdade do “para-si”. A promessa de comunismo total é uma promessa
numênica
, um chamado fantasmagórico do Reino dos Fins. Nada sabemos sobre esse reino, exceto que todos os seus cidadãos são livres e iguais e que todas as leis são autenticamente escolhidas.
Finalmente — e, para Sartre, essa é a promessa mais encorajadora de Marx —, a comunidade do futuro será precisamente o que o “para-si” exige. Ela fornecerá o relacionamento permitido do qual a alma autêntica é separada por sua autenticidade e, ao mesmo tempo, manterá essa autenticidade intacta. O Reino dos Fins combinará, em um elo que é tanto incompreensível quanto necessário, a relação terrena com o proletariado e a liberdade transcendental do anti-herói existencialista. Esse relacionamento permitido não será maculado por convenções, papéis ou rituais — por nenhuma forma de “alteridade”. E, mesmo assim, será um relacionamento com a classe tornada sagrada pela história, cujo cálido propósito humano compensará toda a repulsa engendrada pela sombria tarefa da autenticidade. A promessa numênica que assombra a filosofia marxista é, portanto, uma promessa de redenção.
Não é acidental o fato de a força emocional do marxismo ser expressa tão naturalmente no idioma de Kant. Como demonstrarei mais tarde e com mais detalhes ao falar dos escritores da Escola de Frankfurt e de seu contemporâneo György Lukács, a moralidade marxista se apoia pesadamente na segunda versão do imperativo categórico de Kant, que nos ordena jamais tratar a humanidade como meio, mas sempre como fim. Do mesmo modo, Sartre, cuja filosofia começa com uma versão da liberdade transcendental de Kant, parece inexoravelmente atraído na direção da filosofia de acordo com a qual os imperativos numênicos um dia governarão o mundo. O “comunismo total” não é nada menos que o Reino dos Fins kantiano, e a promessa de Marx é a de uma liberdade transcendental tornada empiricamente real. Essa promessa oferece fé ao anti-herói existencialista; é a primeira e única resposta à angústia de Roquentin, para quem, como argumentou Iris Murdoch,
Todo
valor
reside no inalcançável mundo da completude inteligível que ele representa para si mesmo em simples termos intelectuais; ele não é (até o fim) iludido e levado a imaginar que
qualquer
forma de empreendimento humano seja adequada a sua ânsia de se unir à totalidade [...]
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O anti-herói existencialista que se entrega, ainda que com um floreio de “comprometimento”, a um projeto político a que outros também podem se unir está, à primeira vista, demonstrando má-fé. Ele peca contra o que há de mais sagrado, o eu, o néant
enrodilhado no coração do ser. Mas a expiação desse pecado não é tão difícil, afinal. O anti-herói precisa apenas se assegurar de que seu comprometimento não é a imperfeição fragmentada do real, mas a “totalidade” purificada da ideia abstrata. É suficiente comprometer-se com o que Kant chamou de uma “Ideia da Razão”, mas que podemos descrever igualmente como Utopia: ao fazer isso, você ganha um mundo sem perder a liberdade. Ao recusar a qualidade fragmentada do real, o existencialista conquista a salvação de que necessita — o ponto de vista “total” obtido no Reino dos Fins.
Para evitar que essa autenticidade seja questionada, contudo, o anti-herói deve prestar grande atenção à forma. Ele deve se assegurar de que sua servil submissão à ideologia de outro tenha a aparência de total rejeição. Assim, a submissão de Sartre a Marx — seu islã pessoal — é apresentada como crítica desafiadora à doutrina do profeta. A pretensiosamente intitulada
Crítica da razão dialética
, cujo primeiro volume foi publicado em 1959 e que jamais foi terminada, parece um exercício de sadismo intelectual no qual o filósofo amado é excruciantemente torturado, a fim de que sua essência subjetiva possa ser oferecida e abjurada.
Parece que Marx nos dá uma “totalidade”, mas em formas que ainda precisam ser apropriadas para uso autêntico. A ambição de Sartre é possuir essa “totalidade”, dominá-la, controlá-la e imprimir a ela sua própria autenticidade. Mas essa é uma ambição que não deve parecer facilmente realizável; afinal, “outros” estão observando e
não devem aprovar
. Assim, Sartre se prepara para a adoração no altar marxista com uma habilidosa litania de invocações sem sentido, amaldiçoando o tempo todo o deus que conjura, como fazem certas tribos que esperaram tempo demais pelas chuvas. O que se segue não é de modo algum atípico:
Mas, pela própria reciprocidade de coerções e autonomias, a lei termina escapando a todos e, nos agitados momentos de totalização, surge como Razão dialética, ou seja, externa a todos porque é interna a cada um, e como totalização em desenvolvimento, embora sem totalizador, de todas as totalizações totalizadas e de todas as totalidades destotalizadas.
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Uma palavra se destaca, particularmente carregada de inconfessa emoção — “totalização”, que encontraremos novamente nos textos de Lukács e que surge em
Crítica da razão dialética
como sortilégio crucial. Como muitas palavras de uso litúrgico, ela não é definida, mas meramente repetida e aplicada com tal mesmerizante falta de sentido para atrair uma falange de admiradores preparados para servirem como sacerdotes da fé. Repetidamente na
New Left Review
durante os anos 1960 e 1970, a cultura ocidental foi criticada por ser impermeável à visão de mundo “totalizante”.
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E se o mundo, assim recoberto pelos ardentes sentimentos do ideólogo, parecer ameaçador, não se iluda: ele é. “Totalização” é o nome de um desafio que, por sua própria abrangência, justifica todo esforço para impô-la. A oposição, que significa apenas a perspectiva “parcial” e “serial” da classe governante e seus lacaios, quando confrontada com a passional totalização do radical esquerdista,
não tem direitos.
É apenas um poder abandonado, sem amigos e pronto para a guilhotina. É assim que aquela Utopia, dotada de poder “totalizante”, triunfa antecipadamente sobre cada realidade.
Martin Jay argumentou, em benefício da Nova Esquerda, que a categoria da totalidade é
distinta
do marxismo.
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Tomada literalmente, tal afirmação certamente é falsa. Seria melhor seguir Weber, que identifica a importância da “revelação profética” em sua habilidade de representar o mundo como totalidade ordenada e vê o clero como um dos mediadores entre essa concepção total e a desordenada fragmentação do mundo natural.
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O marxismo partilha a categoria da totalidade não somente com a religião tradicional, mas também com seu próprio arqui-inimigo e irmão de sangue, o fascismo, a postura política defendida por Gentile como “concepção total da vida”.
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Em outro sentido, contudo, Martin Jay tocou uma importante verdade. O neomarxismo se distingue não pela categoria da totalidade, mas pelo
nonsense
ritual com que essa categoria é cercada e no qual suas defesas litúrgicas são escondidas. A retórica da totalidade esconde o lugar vazio no coração do sistema, onde Deus deveria estar. Para Sartre, a totalidade não é um estado nem um conceito, mas uma
ação
. Ela não reside na natureza das coisas, sendo levada até elas pela fúria “totalizante” do intelectual. A totalização é concebida em termos existencialistas, como ação transcendental do eu. Mas é também um momento milagroso no qual a fissura na realidade se fecha e o mundo é curado. Essa união mística, como a união entre lança e graal, une as metades anelantes de um universo partido. Quando o intelectual se abaixa para tocar as mãos estendidas do proletário, a mágica maligna da ordem “burguesa” é desfeita e o mundo se unifica.
Sartre afirma rejeitar o marxismo por seu relato parcial e mecânico da condição humana. Mesmo assim, expressa seu comprometimento “total” em categorias marxistas. Para ele, o mundo social ainda está dividido entre burguesia e proletariado, ainda depende das “relações de produção” e isso ainda significa que, sob o capitalismo, a extração de “mais-valia” do proletariado “alienado” age por “exploração” burguesa, levando a uma “luta” sempre mais intensa entre as classes. Ele repetida e acriticamente liga essas categorias marxistas às teorias de Marx. Sua rejeição da “razão dialética” (categoria importada para o marxismo por Plekhanov e Engels) é inteiramente destituída de substância intelectual. Sempre que sua prosa muda da submissão servil para o pretenso criticismo, decai para a ladainha sem sentido. “O totalizador” então aperfeiçoa sua própria “totalização” ao totalizar novamente totalidades destotalizadas, emergindo, finalmente, exatamente onde deveria saber que emergiria, como defensor impenitente da “práxis totalitária”.
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Ler
Crítica da razão dialética
é uma experiência sombria. Essa masmorra totalitária quase nunca é tocada pela luz do sol e os poucos bolsões de ar são onde o espírito de Sartre respira, dedicando-se livremente a exalações líricas, mas insubstanciais. A força do jargão consiste em desviar a atenção do leitor de tudo que é verdadeiramente questionável na visão marxista e criar um falso conflito em um mundo de sonhos. Em nenhum lugar as afirmações reais do marxismo são confrontadas. Em nenhum lugar a divisão da sociedade entre “proletariado” e “burguesia” é questionada, o mito da “luta de classes” examinado ou a teoria da “exploração” investigada. Mesmo a linguagem morta da economia marxista realiza seus deveres mistificadores sem ser atrapalhada pela observação crítica. Essa disfarçada aceitação do dogma marxista tampouco é redimida pelas imagens fenomenológicas:
A fraude da exploração capitalista é baseada em um contrato. E embora esse contrato necessariamente transforme o trabalho ou práxis em mercadoria inerte, formalmente ele é uma relação recíproca: uma troca livre entre dois homens que
reconhecem um ao outro em sua liberdade
; ocorre apenas que um deles finge não notar que o Outro é forçado pela necessidade a vender a si mesmo como objeto material.
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Naturalmente, é sempre como
objetos materiais que nos relacionamos com os outros e, se O ser e o nada
é um guia para a condição humana, então nenhuma transição para “relações socialistas de produção” poderia superar essa deficiência que nosso próprio corpo nos impõe. De qualquer modo, já não estamos cansados, a essa altura, da condenação tautológica da economia livre, que define o que pode ser comprado como coisa
e então diz que o homem que vende seu trabalho, ao se tornar uma coisa, deixa de ser humano? Deveríamos reconhecer que, de todas as desculpas desonestas oferecidas para a escravidão, essa é de longe a mais perniciosa. Pois o que é o trabalho não comprado, se não o trabalho escravo? Deveríamos reconhecer o enorme ônus de prova que reside com aquele que condena o mercado em favor de alguma alternativa intelectual. Quem exerce o controle nessa nova situação, e como? O que é capaz de extrair trabalho de uma pessoa que, de outro modo, o reteria, e como ela é reconciliada com a ausência de recompensa privada? Tais questões são precisamente as que não podem ser respondidas do ponto de vista de um Reino dos Fins, pois surgem das “condições empíricas” da natureza humana e não podem receber uma resposta “transcendental”.
O argumento com Marx, na verdade, interessa muito pouco a Sartre. De incontáveis maneiras — por meio do vocabulário, dos exemplos, da estrutura e, acima de tudo, do estilo —,
Crítica da razão dialética
mostra total rejeição das regras de investigação científica e é um voo determinado para longe da verdade. Supor que esse livro pode cumprir a promessa oferecida pelo título é uma grande impertinência. O leitor deve aceitar
inquestionavelmente
tudo que pertence ao comprometimento de Sartre, e disso resulta que apenas perguntas
irreais
podem ser feitas:
Como a práxis em si pode ser uma experiência tanto de necessidade quanto de liberdade se nenhuma delas, de acordo com a lógica clássica, pode ser compreendida em um processo empírico?
Se a racionalidade dialética realmente é uma lógica de totalização, como pode a História — o enxame de destinos individuais — surgir como movimento totalizador e como se pode evitar o paradoxo de que, a fim de haver totalização, já deve haver um princípio unificado, ou seja, o paradoxo de que somente as totalidades existentes podem totalizar a si mesmas?
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Um escritor que imagina que essas
são as perguntas desafiadoras que o marxismo precisa responder claramente está tramando algo. Está tentando desviar nossa atenção, não somente das reais críticas teóricas ao marxismo — que deixaram a teoria da história, do valor e das classes sociais mais ou menos em ruínas —, mas também das terríveis consequências práticas do marxismo, com suas vãs profecias milenares e sua visão “totalizante” de uma Utopia “pós-política”.
O comprometimento escolhido por Sartre é, na verdade, marxismo de um tipo totalmente ultrapassado. Encontramos, emergindo de suas páginas, as mesmas fantasias destrutivas, as mesmas falsas esperanças e o mesmo ódio patológico pelo imperfeito e pelo normal que caracterizaram todos os seguidores de Marx, de Engels a Mao. Devemos novamente supor que nosso mundo está sob controle “burguês”, unificado em sua oposição à “práxis comum dos operários”,
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e imaginar que esses operários (“a classe sem propriedade”) buscam “socializar” os meios de produção.
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As relações de mercado não são expressões de liberdade econômica, mas a escravização concreta do homem ao diabólico reino do Outro.
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A alteridade envenena todos os benefícios que o “capitalismo” nos oferece; nossa democracia não é verdadeira democracia, mas meramente “democracia burguesa” e, quando um homem vota sob nosso sistema de governo, sempre vota como Outro, e não como si mesmo.
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Contra o pano de fundo dessas gastas mentiras, disfarçadas na linguagem de Kojève, Sartre tenta induzir a aceitação automática da visão marxista da história moderna.
A erosão da verdade pelo utopismo comunista é vista em sua forma mais efetiva não em
Crítica da razão dialética
, mas nos ensaios subsequentes, reunidos em
Situações
VIII e IX e publicados como
Marxismo e existencialismo
.
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Nessa surpreendente obra, Sartre repete a desculpa padrão para as crueldades dos bolcheviques (tornadas necessárias pelo “cerco anticomunista”). Ele atribui a culpa pela persistência da crueldade comunista a Stalin e, subsequentemente, ao fato de que o Partido Comunista se tornou uma
instituição
— em outras palavras, um dos pontos focais da “alteridade” (ou “serialidade”, como a obra do Demônio agora é chamada) que resiste ao projeto “totalizante” do intelecto iluminado. Tal crítica é extremamente útil para salvar o que pretende condenar. O Partido Comunista é ruim, mas apenas do modo como os escoteiros, a Sorbonne e os bombeiros são ruins — por exigirem ação coletiva e inautêntica de acordo com normas institucionais. A real obra de assassinato e destruição do Partido não é importante, se comparada a essa característica que partilha com todo empreendimento social duradouro.
Assim, não devemos nos surpreender com seus comentários sobre a invasão soviética da Tchecoslováquia. A causa fundamental do “problema tcheco” não foi o socialismo, mas a imposição de um socialismo que não era “doméstico”. “As razões pelas quais o povo escolhe o socialismo importam comparativamente pouco; o essencial é que o construa com as próprias mãos.”
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O erro da União Soviética foi impedir que esse processo natural ocorresse. É inevitável que um jacobino moderno use a palavra “povo” como Sartre o faz — como palavra da novilíngua para denotar uma unidade abstrata que pode “escolher o socialismo” e construí-lo com suas próprias e coletivas, ou ao menos coletivizadas, mãos. E é inevitável que esse “povo” seja visto como forma de unanimidade. A alternativa — ação coletiva na ausência de acordo total — se parece demais com uma “instituição” para que Sartre a reconheça pelo que é, ou seja, o melhor que meros humanos podem fazer.
Mesmo assim, é um pouco surpreendente, à luz da experiência tcheca, que um intelectual humanista ainda feche a mente para um fato importantíssimo: o de que a maioria do “povo” pode na verdade
rejeitar
o socialismo, apesar de suas promessas e realizações. Um “povo” pode perceber que não quer a “socialização dos meios de produção” e pode suspeitar de uma “igualdade” que o priva de oportunidades e liberdades que até então considerou garantidas. Para Sartre, assim como para Hobsbawm, as crueldades do socialismo revolucionário derivaram das “necessidades da época” (mas quem criou essas necessidades?). O erro da União Soviética foi simplesmente compelir os tchecos a adotarem um sistema apropriado apenas para “os camponeses russos de 1920” e não para “os operários tchecos de 1950”
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— uma teoria que mostra mais desprezo pelos camponeses russos que respeito pelos tchecos.
O movimento tcheco de reforma figura de modo interessante na percepção de Sartre. Segundo ele, esse movimento conseguiu uma há muito ansiada “unidade entre os intelectuais e a classe operária”.
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Seu objetivo místico era a criação de “uma totalização concreta continuamente destotalizada, contraditória e problemática, jamais fechada em si mesma, jamais completa e, mesmo assim, uma experiência singular”.
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Os operários tchecos não estavam “pedindo o retorno do liberalismo burguês, mas, como a verdade é revolucionária, clamavam pelo revolucionário direito de dizer a verdade”.
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Lançar feitiços é a maneira de Sartre fortalecer sua fé. Toda a verdade se torna propriedade da revolução e nenhum operário, em sua hora de verdade, pode fazer nada além de se unir a ela. A possibilidade de ser “liberal burguês” ou antissocialista finalmente lhe foi roubada. O velho grito de guerra leninista agora é proferido ao contrário: aquele com quem estamos não está contra nós, mesmo quando luta até a morte contra o que fazemos.
O operário supostamente tem a ganhar em sua relação com o intelectual. Mas é primariamente o intelectual que se beneficia de um relacionamento no qual apenas ele dita os termos. Seu zelo compassivo (como Rousseau o descreve) é baseado em uma necessidade emocional vasta e urgente demais para não ser tirânica. Se os intelectuais se mostram impiedosos em relação aos operários nos quais conduzem seus experimentos, é parcialmente porque, vendo o mundo da perspectiva “totalizante” do Reino dos Fins, não conseguem perceber a existência real, mas empírica, de suas vítimas. O operário é reduzido a mera abstração, não pela labuta da produção capitalista, mas pela retórica impetuosa da esquerda intelectual. O operário é o meio para a exultação do intelectual e pode ser abolido sem escrúpulos se falhar em realizar sua tarefa. É essa completa aniquilação
intelectual
do meramente empírico operário que torna possível seu extermínio em massa no meramente empírico mundo.
O que é notável nos textos tardios de Sartre — ao menos na parte envolvida no jihad do “comprometimento” — é o copioso fluxo de novilíngua “totalizante”. Somente um assunto parece engajar seriamente suas emoções (seriamente o suficiente para levá-lo a escrever como se significasse algo): sua identidade interior com o proletariado. Essa identidade é o resultado final da guerra total contra a burguesia que iniciou na pessoa de Roquentin. Em seu satânico comentário sobre o escritor Jean Genet, Sartre descrevera o bem como “mera ilusão”, acrescentando que o “mal é um nada (
néant
) que se produz nas ruínas do bem”.
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Naquele livro, enfatizou sua profunda ligação com
la morale du Mal
. Pelo mecanismo místico de equivalências, ele sugere que nada pode ser dito a respeito do bem que também não possa ser dito a respeito do mal e que a escolha “autêntica” entre os dois deve mantê-los em equilíbrio. Pela lógica do desafio, o bem deve então partilhar do mal que destroça a realidade burguesa.
Sartre segue o caminho de Baudelaire (outra de suas obsessões, e uma com a qual é muito parecido espiritualmente). Seu caminho é o da alma que anseia pelo bem, mas cujo orgulho (que aceitará como bem apenas o que resultar de sua própria criação) sempre a força a destruí-lo. O bem chega até ele maculado pela nódoa da “alteridade” e, desse modo, ameaça a autenticidade do eu. Então ele precisa usar o mal para aniquilar o bem. A distante identidade com o proletariado é um tipo de promessa paradisíaca, a visão de uma inocência sagrada demais para ser descrita, jazendo por trás do bem e do mal e vislumbrada apenas em raros e sacros momentos, como nas barricadas de 1968.
Contudo, essa tão ansiada identidade não pode ser obtida de fato. Para entrar no Reino dos Fins, o proletário precisa primeiro ser tosquiado de suas condições empíricas — que são acessórios de escravidão. Ao fazê-lo, todavia, deixa de ser proletário. O encontro do intelectual com seu deus, consequentemente, é um episódio puramente interior, uma devoção privada da qual o proletário real, com seu desejo por conforto, por propriedade e pelas coisas do mundo, deve ser permanentemente excluído.
É natural, assim, que as discussões de Sartre sobre política moderna centrem-se na posição do intelectual e na questão de como ele deve se preparar para o rito de passagem ao reino prometido. O intelectual, argumenta, deve rejeitar toda “sensibilidade de classe” — e, em particular, a sensibilidade de sua própria classe, que é a
petite bourgeoisie
— em favor das “relações humanas de reciprocidade”, nas quais ele e o proletariado serão unidos por um laço sagrado.
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O inimigo do intelectual nesse processo de polimento não é o proletário real, empírico — que não tem voz na questão —, mas o “falso intelectual”, um “tipo criado pela classe dominante para defender sua ideologia particularista com argumentos que fingem ser produtos rigorosos do raciocínio exato”.
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Com essas palavras, Sartre desconsidera, sem nomear, escritores como Raymond Aron, Alain Besançon e Jean-François Revel, que tentaram romper as ilusões esquerdistas e sempre foram recebidos com raiva, desprezo ou indiferença.
Assim, fecha-se o círculo de sua aventura na direção do “comprometimento”. Ele anseia por uma autenticidade na qual o eu é tanto
causa sui
quanto
primum mobile
. Mas passa, em passos persuasivos, a acreditar em um “sistema”, um mundo criado de acordo com uma ideia abstrata. O mundo “totalizado” é o caramanchão paradisíaco de seu casamento transcendental. Ali ele se une, por fim, ao proletário de seus sonhos. Mas esse paraíso é abstrato, insubstancial e tomado por contradições, e o intelectual imediatamente combate a pessoa que lhe diz isso. Ao se aproximar do proletariado, portanto, Sartre encontra apenas seu velho rival intelectual, com o qual inicia, como sempre, uma mortal, porém inconclusiva, contenda:
O verdadeiro intelectual, como pensador
radical
, não é nem moralista, nem idealista: ele sabe que a única paz que vale a pena obter no Vietnã custará sangue e lágrimas e só chegará [...]
após
a derrota americana. Em outras palavras, a natureza de sua contradição o obriga a
se comprometer
em cada um dos conflitos de nosso tempo, porque todos eles — de classe, nacionais e raciais — são efeitos particulares da opressão dos subprivilegiados e porque, em cada um desses conflitos, ele se encontra, como homem consciente de sua própria opressão, ao lado do oprimido.
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Revel comenta a regularidade com que os intelectuais de esquerda, em sua luta contra a opressão, ficaram do lado que a exercia.
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E vemos esse processo em operação na prosa de Sartre. Ao reduzir seu “comprometimento” a uma questão puramente intelectual, um combate com falsos profetas que refutam seus argumentos, ele reduz as vítimas da opressão a uma ideia puramente abstrata — uma
desculpa
para sua própria presunção heroica. O destino de nenhuma pessoa real poderia ser melhorado graças a seus esforços numênicos.
O caso do Vietnã é apenas um exemplo. Quando onze membros do time israelense enviado às Olimpíadas de Munique foram assassinados em 1972, Sartre foi enfático na justificação do crime, fato que causou certa hesitação entre aqueles que normalmente corriam para endossar seus julgamentos. Em 1984, quatro anos após sua morte, Marc-Antoine Burnier reuniu os muitos exemplos de sua insanidade revolucionária.
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É com sombria incredulidade que lemos sobre seu apoio aos regimes de extermínio que uniram intelectuais e proletariado somente nos locais de “reeducação”, onde passavam suas últimas e miseráveis horas. “Por meio de documentos irrefutáveis, soubemos da existência de campos de concentração na União Soviética”, escreveu Sartre, vinte anos depois de a verdade ser de conhecimento comum entre aqueles que não se fechavam voluntariamente a ela. E, mesmo assim, urgiu seus compatriotas a “julgarem o comunismo por suas intenções, e não por suas ações”.
Em todas as campanhas que a União Soviética iniciou contra o Ocidente, qualquer que fosse o custo em vidas humanas e felicidade, Sartre ficou do lado soviético ou criticou a União Soviética em uma linguagem que apenas reiterava suas mentiras favoritas. Depois do Congresso Mundial da Paz de Viena, em 1954, ele viajou a Moscou, a convite soviético, retornando para relatar que “há total liberdade para críticas na URSS” — uma observação que talvez seja mais fácil de compreender quando nos lembramos do significado que dava à palavra “total”. Subsequentemente, ficou chocado com a intervenção soviética na Hungria, tão chocado que se dedicou a elogiar a ação do comunismo em outros lugares — primeiro em Cuba e então (quando seus olhos se abriram) na China, cuja única virtude distinguível era o fato de ainda ser desconhecida. Somente no fim da vida, quando se manifestou em apoio aos refugiados do Vietnã comunista — apertando publicamente a mão de Raymond Aron após uma ruptura de muitos anos —, ele parece ter desistido da luta. Mas, a essa altura, seu trabalho já estava terminado.
A retórica antiburguesa de Sartre mudou a linguagem e a agenda da filosofia francesa no pós-guerra e incendiou as ambições revolucionárias dos estudantes que haviam chegado a Paris vindos de antigas colônias. Um desses estudantes mais tarde retornou a seu nativo Camboja e colocou em prática a doutrina “totalizante” que tinha como alvo a “serialidade” e a “alteridade” da classe burguesa. E, na raiva purificadora de Pol Pot, não é desarrazoado ver o desprezo pelo ordinário e pelo real expresso em quase todas as linhas da prosa demoníaca de Sartre. “
Ich bin der Geist der stets verneint
”, diz Mefistófeles. O mesmo pode ser dito de Sartre, para quem
l’enfer c’est les autres
— o inferno são os outros (
Entre quatro paredes
, 1947). Como o Satã de Milton, Sartre viu o mundo transfigurado por seu próprio orgulho, e foi esse orgulho que o levou a desdenhar o prêmio Nobel, pois homenagens se originam no Outro e, consequentemente, não são dignas da atenção do Eu.
Apesar de todos os seus defeitos morais, contudo, não há como negar sua estatura como pensador e escritor. A obra que melhor mostra isso é
As palavras
, publicada em 1963, escrita em reação ao culto a Proust e com a intenção de retificar o crescente equívoco sobre o lugar das palavras na vida e no desenvolvimento de uma criança. Para Sartre, a infância não era o refúgio vitalício evocado por Proust, mas o primeiro de muitos erros, no qual todos os outros podiam ser premunidos. Ele escreve com uma concisão sardônica que, em si mesma, é uma reprimenda a Proust, e o resultado — fortemente influenciado pelo surrealista Michel Leiris — é uma obra-prima autobiográfica, digna de ser comparada a
Confissões de um comedor de ópio
, de De Quincey, e
Father and Son
, de Sir Edmund Gosse.
As palavras
demonstrou os verdadeiros poderes de Sartre como escritor e, nesse livro, ele se emancipou temporariamente da prosa sombria e cheia de jargões de
Crítica da razão dialética
. O livro foi escrito por um homem capaz de rir — e que deve ter se permitido rir quando o riso não era uma arma nas mãos do Outro. Mas, para ele, a vida não era matéria de riso. Querendo apenas o que era abstrato e “totalizado”, ele condenou o que era real à miséria e à servidão. No fim, a totalidade totalizada é o que parecia ser no começo: o comprometimento total com a “práxis totalitária”.
Olhando para a França do século XX a partir do ponto privilegiado oferecido por Sartre, somos imediatamente atingidos por duas características distintivas da esquerda francesa: inimizade e fervor revolucionário. Um profundo desapontamento com a realidade e o desejo de destruí-la em nome da Utopia tem sido a posição padrão da esquerda pensante na França, desde os jacobinos até hoje. Mas o século XX acrescentou uma nova dimensão à desilusão: uma crença de que todos os ideais e lealdades são meramente convites à traição e de que a redenção reside no interior do indivíduo, a ser concedida apenas por ele mesmo.
Na subsequente busca por autenticidade, há a permanente necessidade de um inimigo. O
gauchiste
sabe que os valores são ilusórios e encontra sua identidade em uma vida conduzida sem as fáceis trapaças que governam as vidas alheias. Como não tem valores, seu pensamento e sua ação podem ser dados somente como garantia negativa. Ele deve fortalecer sua posição desmascarando as fraudes dos outros. Além disso, esse desmascaramento não pode ser definitivo. Ele precisa ser perpetuamente renovado, a fim de preencher o vácuo moral que reside no centro da existência. Somente se houver algum oponente prontamente identificável e, por assim dizer, renovável essa luta por autenticidade — que, na verdade, é a mais aguda luta pela existência — pode ser mantida. O inimigo deve ser uma fonte de ilusões e trapaças e deve possuir um poder secreto e elaborado, sustentado pelo próprio sistema de mentiras que enfatiza seus valores. Tal inimigo merece ser desmascarado e há uma espécie de virtude heroica em seu agressor, que livra o mundo da camisa de força de influências secretas.
Já encontramos esse inimigo nos textos de Sartre, mas é à aristocrática França de Luís XIV que devemos o desdenhoso rótulo pelo qual é conhecido. O oponente renovável é o “burguês”: o pilar da comunidade, cuja hipócrita respeitabilidade e incompetência social inspiraram cada variedade de desprezo renovável. Essa criatura, é claro, sofreu considerável transformação desde que Molière ridicularizou pela primeira vez suas pretensões sociais. Durante o século XIX, adquiriu um complexo caráter duplo. Marx o representou como principal agente e beneficiário da Revolução Francesa — e também como novo escravagista, cujos tentáculos chegavam a cada bolsão de influência e poder —, enquanto os intelectuais de café continuavam, em tons mais amargos, a zombar mordazmente da aristocracia.
Épater le bourgeois
se tornou uma assinatura dos artistas descontentes, a garantia de suas credenciais sociais, com as quais demonstravam seus direitos aristocráticos e seu desprezo pela usurpatória dominação da ascendente classe média.
Em alemão, o termo
Bürger
não tem significado comparável, e a ideia iluminista de “sociedade civil” como reino da cidadania livre sob um legítimo estado de direito ressurge em Hegel como
bürgerliche Gesellschaft
. Por essa razão, o termo francês, com sua maculada história de desdém, sempre foi preferido pela esquerda europeia. Sob a dual influência de Marx e Flaubert, o burguês emergiu do século XIX como monstro, tão distante de suas humildes origens que já não podia ser reconhecido. Ele era o “inimigo de classe” do dogma leninista, a criatura cujo domínio a história nos ordena destruir. Também era o repositório de toda moralidade, toda convenção e todos os códigos de conduta que podem atrapalhar a liberdade e a efervescência de
la vie bohème
.
A teoria da ideologia marxista tentou unir as duas metades do retrato, descrevendo os “confortáveis” valores como disfarce social do real poder econômico. Mas era vaga e esquemática, sem possuir a qualidade concreta requerida pelo gratificante e renovável desprezo. Assim, muito do esforço da esquerda francesa no século XX foi devotado a completar o retrato. O objetivo tem sido criar o inimigo perfeito: o objeto contra o qual definir e aguçar a própria autenticidade, transformando-a em espirituosidade.
O trabalho de definir o burguês ideal, que Sartre começou em
A náusea
, foi completado em 1952 com a publicação de
Saint Genet
, a obra-prima do satanismo moderno, na qual o burguês é caracterizado por uma extraordinária complexidade de emoções, indo de uma heterossexualidade enraizada à hostilidade ao crime. Ele finalmente emerge como defensor de uma ilusória “normalidade”, preocupado em proibir e oprimir todos aqueles que, ao desafiar essa normalidade, desafiam também o domínio social e político que ela oculta.
O sentimento antiburguês que jaz nas raízes do pensamento francês de esquerda explica parcialmente sua rejeição de todos os papéis e funções que não são de sua criação. Sua principal base de poder tem sido não a universidade, mas o café, pois, durante muito tempo, ocupar posições de influência dentro das “estruturas” do Estado burguês foi considerado incompatível com as demandas de retidão revolucionária. Qualquer influência de que o
gauchiste
goze deve ser adquirida por meio de seu próprio trabalho intelectual, produzindo obras e imagens que desafiem o
status quo
. O café se torna o símbolo de sua posição social. Ele observa o show que passa, mas não se une a ele. Em vez disso, aguarda por aqueles que, atraídos por seu olhar, se separam da multidão e “se aproximam” de sua posição.
Pela mesma razão, devemos reconhecer a emergente dependência que começa a existir entre o
gauchiste
e a verdadeira classe média. O
gauchiste
, em seguida à escandalosa narrativa de Sartre, começa a ser visto como confessor da classe média. Ele apresenta uma imagem ideal da condição pecadora dessa classe. O “burguês” da iconografia de Sartre é um mito, mas possui semelhanças com o cidadão urbano comum que, vendo-se distorcido nesse retrato, fica preocupado com a ideia de possibilidades morais. Ele admite possuir propriedade, ser casado e tentar ser um marido semileal e um pai consciencioso. Confessa entusiasticamente crimes puramente hipotéticos. E começa a exaltar o
gauchiste
como absolvedor de sua corrupta consciência. O
gauchiste
, assim, torna-se o redentor da classe cujas ilusões ele foi nomeado para desmascarar.
Daí decorre que, em certo momento e apesar de sua grosseria — que, na verdade, não é nada além da virtude necessária a sua profissão —, o
gauchiste
começou a gozar de abundantes privilégios sociais. Passou a ser carregado nos ombros da burguesia cujos hábitos pisoteava e a gozar novamente do lugar do aristocrata ao sol. Comparecia às melhores festas parisienses, mas mesmo a pior recepção ocorreria contra estantes cheias de seus textos. Tão próxima, de fato, é essa relação simbiótica entre o
gauchiste
e sua vítima que chega a parecer com o anterior, e aparentemente indissolúvel, elo entre aristocrata e camponês. A maior diferença é que o aristocrata exaltava o camponês com palavras (criando o “pastor” idealizado cujas virtudes eram incessantemente exibidas nos palcos teatrais da corte) e, ao mesmo tempo, o oprimia com ações. O
gauchiste
reverte judiciosamente as prioridades: ele não faz nada além de latir para a mão que o alimenta. Nisso, demonstra sua grande sabedoria e um saudável instinto de sobrevivência.
Assim foram, de fato, os
gauchistes
cujos textos prepararam o caminho para os protestos estudantis de maio de 1968. Julia Kristeva, Philippe Sollers, Roland Barthes, Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet e todos os oponentes do
nouveau roman
— todos suaves representantes de um establishment cujo marxismo era envernizado com linguística estruturalista e recebia um apelo decididamente literário. Alguns eram ligados a instituições de ensino. Mas nenhum se gabava de títulos acadêmicos e todos mantinham a atitude distante e boêmia legada por Flaubert e Baudelaire. Entre essa geração de elegantes intelectuais, de longe o mais influente foi Michel Foucault, o filósofo social e historiador de ideias que levou adiante a retórica antiburguesa de Sartre e a transformou em componente fundacional dos currículos, primeiro na França e, subsequentemente, em todo o mundo, incluindo os Estados Unidos.
Identifico Foucault como importante pensador da Nova Esquerda, mas devo dizer que sua posição política mudava constantemente e ele sempre ficava satisfeito em rejeitar qualquer rótulo conveniente. Ao contrário de Sartre, era crítico (embora, até seus anos finais, um crítico bastante mudo) do comunismo. Mesmo assim, foi o mais poderoso e ambicioso dos que assumiram a agenda sartriana. Devotou sua obra ao desmascaramento da burguesia e a mostrar que todos os modos conhecidos de modelar a sociedade civil são reduzíveis, em última análise, a formas de dominação.
É tão difícil fazer justiça às realizações de Foucault quanto o é às de Sartre. Sua imaginação e fluência intelectual geraram teorias, conceitos e insights às dezenas, e a poesia sintetizadora de seu estilo se eleva acima da lama turva dos textos de esquerda como uma águia sobre o pântano. Além disso, essa flamejante adoção da visão mais alta representa grande parte de seu apelo. Ele é incapaz de encontrar oposição sem se alçar, sob o impulso de sua energia intelectual, a uma perspectiva “teórica” superior da qual a oposição é vista em termos dos interesses defendidos por ela. Oposição relativizada também é oposição ignorada. Não é o que você diz, mas o fato de dizê-lo que desperta o interesse de Foucault. “
D’où parles tu?
” é sua pergunta, e sua postura permanece além do alcance de qualquer resposta.
A linha unificadora de suas obras iniciais e mais influentes é a busca pelas estruturas secretas de poder. O poder jaz por trás de cada prática, instituição e linguagem, e o objetivo de Foucault é desmascará-lo e, desse modo, libertar suas vítimas. Ele originalmente descreveu seu método como “arqueologia do saber” e seu tema como a verdade — a verdade considerada produto (e não produtor) do “discurso”, retirando forma e conteúdo da linguagem que a transmite. Um problema surge imediatamente e se prova algo mais que mera questão de terminologia. O que se quer dizer com um “saber” que pode ser superado pela nova experiência e com uma “verdade” que existe somente dentro do discurso que a enquadra? A “verdade” de Foucault não existe no mundo independentemente de nossa consciência, sendo criada e recriada pelo “discurso” através do qual é “conhecida”.
Assim, em
As palavras e as coisas
(1966),
116
é-nos dito que o homem é uma invenção recente: uma ideia verdadeiramente original e preocupante! A inspeção revela que Foucault quer dizer apenas isto: que foi somente desde a Renascença que o fato de ser homem (em vez de, digamos, fazendeiro, soldado ou nobre) adquiriu o significado especial que hoje lhe concedemos. Usando tais argumentos, poderíamos demonstrar que o dinossauro também é uma invenção recente.
Existe, obviamente, um objetivo nessa observação. Foucault pretende enfatizar a extensão na qual as ciências que tomaram os seres humanos como objeto são invenções recentes e já estão cedendo espaço a outras formas de “saber” (
savoir
).
117
A ideia de homem é tão frágil e transitória quanto qualquer outra ideia na história da compreensão humana e deve ceder lugar, sob o impulso de uma nova episteme (uma nova estrutura de saber), a algo que ainda não podemos nomear. Para Foucault, cada episteme serviu a algum poder em ascensão e teve como principal função a criação de uma “verdade” que servisse a seus interesses. Daí não haver verdades recebidas que também não sejam verdades convenientes.
A teoria da episteme é uma reprise da teoria da ideologia marxista. Ela se oferece para categorizar cada forma de pensamento e cada sistema de conceitos, imagens e narrativas em termos de sua função de incorporar e manter a estrutura de poder de que cada ordem social depende. O poder em questão não é necessariamente o da classe governante, embora aqueles no topo sejam seus inevitáveis beneficiários. O poder é o que mantém as coisas unidas, definindo posições dominantes e subordinadas e, de modo geral, mantendo as hierarquias que distribuem privilégios de maneira desigual através do espectro social.
Marx contrastou ideologia com ciência, argumentando que a ideologia deve ser entendida por sua função, e a ciência, por sua verdade. Daí decorre que a ciência pertence à infraestrutura material da qual todas as instituições dependem, ao passo que a ideologia é mero subproduto do sistema. Foucault, contudo, não faz contraste claro entre episteme e alguma outra forma objetiva ou explicativa de “saber”. Parece não haver uma posição privilegiada a partir da qual se pode discernir a episteme de uma era que não esteja imbuída por uma episteme própria. Isso suscita uma questão — que acho jamais ter sido respondida por ele — sobre o método que justificaria suas observações e se ele obteve ou não o ponto de vista imparcial que realmente lhe permitiria fazê-las.
Certamente há muitos insights em seus textos iniciais. Mas o método relativista — que identifica a realidade com certa maneira de apreendê-la — nos faz duvidar se foram conseguidos com trabalho duro. Pois esse método lhe permite pular por cima da linha de chegada da investigação histórica sem percorrer a dura trilha da pesquisa empírica. Considere o que
realmente
teria de ser provado por alguém que acreditasse que o homem é um artefato, e bastante recente, aliás — ainda mais recente que os humanistas medievais e renascentistas que exaltaram suas virtudes. Uma avaliação adequada do pensamento de Foucault deve, portanto, tentar separar seus dois componentes: o floreio relativista (que nos levaria a simplesmente ignorá-lo) e a análise “diagnóstica” dos caminhos secretos do poder. É o segundo componente que nos interessa e é expresso na alegação de que cada sucessiva forma de “saber” é devotada à criação de um discurso favorável às — e simbólico das — formas prevalentes de dominação.
Em
História da loucura na idade clássica
(1961),
118
ele forneceu o primeiro vislumbre de sua tese. Nesse livro, traçou o confinamento do insano até suas origens no século XVII, associando-o à ética do trabalho e à ascensão da burguesia. Ele não tem paciência para as explicações causais comuns e as substitui por um tipo de metafísica idealista, implicando que é nosso modo de pensar sobre as coisas que as faz acontecer, dado que as coisas não são realmente distintas de nossas concepções. Assim, não diz que a reorganização econômica da sociedade causou o confinamento dos insanos. Em vez disso, escreve que “foi em certa experiência de trabalho que a indissolúvel demanda econômica e moral por confinamento foi formulada”.
Mais importante é o novo ângulo dado não apenas às ideias de Marx, mas também às do Hegel de Kojève. No período que Foucault descreve, nesse e em outros livros, como “idade clássica”, o insano é “outro”. Ele é outro porque aponta para os limites da ética prevalente e se aliena de suas demandas. Há, em sua recusa em ser “normal”, um tipo de virtuoso desdém. Assim, ele deve ser trazido à ordem. Por meio do confinamento, a insanidade é sujeitada ao império da razão, que é outro nome para a forma favorita de dominação. O insano agora está sob a jurisdição dos sãos, confinado por suas leis e instruído por sua moralidade. O recurso à razão nesse encontro íntimo é revelar à insanidade sua própria “verdade” — a verdade pela qual a razão a “conhece”. Não possuir razão é, para o pensamento “clássico”, ser um animal. O insano, portanto, deve ser obrigado a interpretar o papel de um animal. Ele é confinado em uma jaula e usado como besta de carga. Por esse confronto com sua “verdade”, torna-se saudável.
Cada era sucessiva encontra uma “verdade” similar com a qual confrontar aqueles que desafiam suas convenções. E cada era define a sanidade do modo exigido pelo sistema de poder prevalente: a sanidade é a forma de comportamento que respeita as estruturas estabelecidas de dominação. Mas, sugere Foucault, o estoque de “verdades” segundo as quais a insanidade pode ser confinada se exauriu. A insanidade saiu da jaula e nos confrontou com
nossa
“verdade”. No fim do drama, os deuses do Olimpo francês do pós-guerra entram no palco para mostrar a língua para a burguesia nos camarotes. Goya, Sade, Hölderlin, Nerval, Van Gogh, Artaud, Nietzsche: para ele, todos são prova de que a voz da irracionalidade (
déraison
) já não pode ser silenciada e o reino da normalidade burguesa chegou ao fim.
O que devemos concluir desse elogio à irracionalidade? De acordo com Foucault, estava claro para o século XVIII que, embora a insanidade estivesse buscando se expressar, não possuía uma linguagem com a qual fazê-lo além daquela fornecida pela razão. A única fenomenologia da insanidade residia na consciência dos sãos. Certamente, portanto, o século XVIII possuía uma intuição muito acurada sobre a natureza da insanidade. A província da linguagem e a província da razão são coextensivas, e, se a insanidade contém suas próprias “verdades”, como afirma Foucault, elas são essencialmente inexprimíveis. Ele alega que há uma “linguagem” da irracionalidade e que devemos ajustar nossos ouvidos a ela. Contudo, tal linguagem tornaria a autorreferência impossível. Seria um monólogo delirante, feito por uma voz
que não pertence a ninguém
. Não seria em nada parecido com a voz de Nietzsche em
O crepúsculo dos ídolos
ou a de Nerval em
As quimeras
, que falam conosco diretamente do mundo que partilhamos.
Durante o século XIX, segundo Foucault, a experiência da “irracionalidade” característica ao período “clássico” se torna dissociada: a insanidade é confinada no interior de uma intuição moral e a fantasia de um incessante monólogo da insanidade, em uma linguagem inacessível à razão, é esquecida, para ser ressuscitada, no início do século XX, pela teoria freudiana do inconsciente. No século XIX, na visão de Foucault, a insanidade se tornou uma ameaça a toda a estrutura da vida burguesa, e o insano, em sua falha em se submeter às normas prevalentes, foi marcado como culpado. A maior ofensa da insanidade é contra a “família burguesa” e é a experiência dessa família que dita a estrutura paternalista do hospício. O
ethos
de julgamento e reprovação no hospício é parte de uma nova atitude em relação à insanidade — ela é finalmente
observada
. Já não se pensa que o insano tenha algo a dizer ou simbolizar; ele é uma anomalia no mundo da ação, responsável apenas por seu comportamento visível.
No hospício, o homem racional é apresentado como adulto, e o insano, como criança, a fim de que a insanidade possa ser construída como um incessante ataque ao Pai. O insano deve ser levado a reconhecer seu erro e revelar ao Pai a consciência de sua culpa. Assim, há uma transição natural da “confissão em crise” característica do hospício para o diálogo freudiano, no qual o analista ouve e traduz a linguagem da irracionalidade que soa do inconsciente, mas no qual a insanidade ainda é forçada a se ver como desobediência e transgressão. Finalmente, infere Foucault, é porque a psicanálise se recusou a suprimir a estrutura familiar como única através da qual a insanidade pode ser vista ou conhecida que sua introdução de um diálogo com a insanidade leva ao não entendimento do que o insano está tentando dizer.
Por baixo de toda essa fascinante análise — parte insight, parte exuberante ficção —, é possível discernir uma persistente e simplificadora perspectiva histórica. A despeito de seu aparente academicismo, Foucault permanece fiel ao guia mitopoético para a história moderna apresentado em
O manifesto comunista
. O mundo se divide, convenientemente, em eras “clássica” e “burguesa”, a primeira começando no fim do Renascimento e terminando com a “revolução burguesa” de 1789. É somente depois disso que testemunhamos as características peculiares à vida moderna: a família nuclear, a propriedade transferível, o Estado legalmente constituído e as modernas estruturas de influência e poder. Engels fez uma heroica tentativa de dar credibilidade à ideia de “família burguesa” e, desde então, isso se provou útil para a demonologia de esquerda.
119
Mas o ícone de Engels agora está puído e desbotado, e é somente marginalmente mais persuasivo do que a ideia de que a Revolução Francesa envolveu uma transição entre os modos “feudal” e “capitalista” de produção, de uma estrutura social “aristocrática” para outra “burguesa” e da propriedade vinculada para a transferível.
Ainda menos persuasiva é a ideia de que a percepção “clássica” de Racine e La Fontaine é o principal expoente da cultura pós-renascentista e pré-revolucionária na França. Tudo isso é baseado em uma elaborada e (para um historiador) culpável simplificação dos dados históricos. A retórica de Foucault é calculada para nos mesmerizar em uma noção de que existe alguma conexão intrínseca entre “burguesa”, “família”, “paternalista” e “autoritária”. Fatos históricos — tais como a família camponesa ser mais autoritária e a família aristocrática ser mais paternalista que a assim chamada família “burguesa”, ou a classe média demonstrar uma habilidade de descontrair o ambiente doméstico que raramente foi encontrada nas pontas superior e inferior da escala social — são mantidos fora da análise.
O leitor não encontra nenhum argumento sobre evidências e nenhuma busca por exemplos ou contraexemplos que possam espalhar as sementes da dúvida. Pois elas esmaecem as imagens e apagam o contorno do tão necessário ícone. Quando a imagem se desvanece, o mesmo faz a ideia: já não podemos acreditar que o poder secreto que criou a categoria de doença mental, confinou o sofredor inocente e o lançou moralmente na “anormalidade” também gerou a família, a casa e as normas da vida moderna. Podemos acreditar menos ainda que a natureza desse poder esteja resumida na palavra “burguês”, que é introduzida como parte de uma liturgia da denúncia.
Mesmo assim, essa historiografia esquemática sobreviveu por todas as obras iniciais de Foucault. Em particular, ele faz uso abundante do conceito de época “clássica”. Em obras subsequentes, todavia, o inimigo que ronda suas páginas parece de algum modo perder sua vestimenta respeitável. Ele surge como poder nu, sem estilo, dignidade ou status. Se o termo “burguês” às vezes é aplicado, o é com um floreio, como um insulto lançado por um lutador a seu oponente. Já não há a mesma confiança libertadora na identidade do inimigo. Não obstante, o método e os resultados permanecem os mesmos e cada um de seus livros subsequentes durante os anos 1960 repete a agenda oculta de
História da loucura.
Em
O nascimento da clínica
(1963),
120
ele expande as ideias de “observação” e “normalidade” a fim de explicar o confinamento não apenas do insano, mas também do doente. (Em breve, ampliará a análise ainda mais, incluindo prisões e punições. Se parou antes das escolas e universidades, não foi por falta de convicção.) Que os pacientes tenham de ser reunidos para observação demonstra a necessidade de dividir o mundo entre normal e anormal e confrontar o anormal com sua “verdade”. Também há necessidade de classificação da doença, uma “linguagem calculada” com a qual distinguir cada enfermidade e torná-la visível.
Há verdade nessas ideias: quem negaria que o crescente entendimento sobre as doenças surgiu do isolamento, da observação e do tratamento seletivo? Mas que verdade simples e que fato inocente! Claramente, essa verdade precisa ser desmascarada como aspecto da sempre presente conspiração burguesa. Eis, portanto, em linguagem característica, aquilo que o hospital — certamente uma das mais benignas realizações humanas — se torna:
Sobre todos os esforços por parte do pensamento clínico para definir seus métodos e normas científicas, paira o grande mito de um Olhar puro que seria pura Linguagem: um olho falante. Ele percorreria todo o campo hospitalar, observando e reunindo os eventos singulares que ocorrem em seu interior e, ao ver, e ver cada vez mais claramente, transformaria em fala que declara e ensina; a verdade — cujos eventos, em suas repetições e convergências, seriam enfatizados sob seu olhar — seria, por esse mesmo olhar e essa mesma ordem, reservada, na forma de ensino, àqueles que não conhecem e ainda não viram. Esse olho falante seria servo das coisas e mestre da verdade.
121
Há uma retórica consumada aqui, um movimento rítmico que, usando o simples fato da observação científica, torna-se uma consciência perturbadora e opressora sobre a fonte oculta do poder.
Por trás desse conceito de Olhar —
le regard
, o termo introduzido por Sartre e Merleau-Ponty para significar a mais potente revelação da alteridade do Outro —, esconde-se uma grande suspeita, a mesma suspeita sobre as decências humanas que habita as páginas de
O ser e o nada
. Ela nos diz para não nos deixarmos enganar, para não acreditarmos que algo é feito ou conquistado, exceto nos interesses do poder. Contudo, quando Foucault, morrendo de aids, foi levado em junho de 1984 para La Salpêtrière — o hospital cujo uso anterior fora como o hospício que ele caracterizara tão maliciosamente em
História da loucura
—, foi a fim de escapar do Olhar público e receber, em seus últimos dias, a compaixão de que necessitava e que desprezara vinte anos antes como uma das máscaras do poder burguês.
O mesmo desejo de encontrar o poder por trás da máscara avança um passo em seu livro mais brilhante,
Vigiar e punir
, cujo subtítulo é “O nascimento das prisões”.
122
(O
surveiller
do título original [Surveiller et punir] é difícil de traduzir, mas se refere, novamente, ao Olhar dos guardas.) É natural que o surgimento quase simultâneo do sistema prisional, do hospital e do hospício não tenha passado despercebido ao desconfiado iconógrafo da burguesia. E há algo persuasivo em sua análise inicial da transição entre as punições exemplares da Europa renascentista para o sistema de confinamento físico. O fato de que tenha chamado as primeiras de “clássicas” e o segundo de “burguês” é de pouco interesse. Mas certamente é revelador ver o sistema inicial como incluindo um tipo de linguagem corporal do crime. O objetivo da tortura era imprimir o crime no corpo do culpado, na linguagem viva da dor, a fim de tornar o mal visível. Foucault a contrasta com o sistema prisional, que, em sua opinião, foi fundado em uma concepção jurídica de direitos individuais e cuja punição tem caráter de privação. Não se pode fazer sofrer o individualista contratual de nenhuma outra maneira. E mesmo a pena capital, sob o novo regime de prisão, tem caráter jurídico abstrato:
A guilhotina tira a vida quase sem tocar o corpo, do mesmo modo que a prisão priva da liberdade ou a multa reduz a riqueza. A intenção é aplicar a lei não tanto a um corpo real capaz de sentir dor, mas a um sujeito jurídico, possuidor, entre outros, do direito de existir. Ela tinha de possuir a abstração da própria lei.
123
Foucault continua, até as surpreendentes e não tão surpreendentes conclusões usuais. É surpreendente ouvir que a punição é um elemento da genealogia da alma humana, de modo que o ego cartesiano é precisamente o que se conjura no cavalete de tortura: o sujeito que existe como observador dessa dor. É surpreendente descobrir que a alma moderna é um produto, se não do sistema prisional, ao menos da ideia jurídica de sujeito como um complexo de direitos legais.
É menos surpreendente ouvir que a justiça criminal opera na “produção da verdade” e que é um daqueles sistemas de “saber” que, para Foucault, existem porque expressam e legitimam o poder. Tampouco é surpreendente descobrir que a punição passa pela mesma transição que a medicina, de um sistema de simbolismo para um sistema de vigilância. Em uma impressionante descrição do “panóptico” de Bentham (uma
machine à corriger
na qual todos os prisioneiros podiam ser observados de um único posto), ele relaciona a disciplina da prisão ao recém-surgido poder do invisível sobre o visível, que é, se entendi bem, o poder expresso na lei. A lei é o possuidor invisível do “olhar normalizador” que tanto distingue o criminoso como espécime anormal quanto o priva de seus direitos até que seja novamente capaz de suportar o fardo da normalidade.
Então ocorre uma daquelas forçadas e
marxizantes
explicações que danificam a poesia de seu texto nada prosaico. É-nos dito que a disciplina da prisão exibe uma “tática de poder” com três objetivos fundamentais: exercer poder pelo menor custo, estendê-lo tão extensa e profundamente quanto possível e “ligar esse crescimento ‘econômico’ do poder à produção do aparato (educacional, militar, industrial ou médico) no interior do qual é exercido”.
124
Tudo isso pretende sugerir uma conexão entre a prisão e a “ascensão econômica do Ocidente”, que “começou com técnicas que tornaram possível a acumulação de capital”.
125
Tais observações impulsivas são produzidas não por estudo teórico ou evidência empírica, mas pela associação de ideias, a principal delas sendo a morfologia histórica de
O manifesto comunista
. E, se nos perguntarmos por que essa morfologia ainda é aceita por um pensador moderno tão sofisticado, creio que a resposta será encontrada no fato de que ela fornece os esboços preliminares para o retrato do inimigo. E inspira passagens como esta:
Surpreende que a prisão celular, com suas cronologias regulares, trabalho forçado, autoridades de vigilância e registro e especialistas em normalidade que continuam a multiplicar as funções de juiz, tenha se tornado o instrumento moderno de penalização? Surpreende que as prisões se pareçam com fábricas, escolas, quartéis e hospitais, que se parecem todos com prisões?
126
Não, não surpreende. Pois, se desmascararmos suficientemente as instituições humanas, sempre encontraremos aquele núcleo oculto de poder pelo qual Foucault se sente fascinado e ultrajado. A única questão é se esse desmascaramento revela a verdade sobre o sujeito ou se não é, ao contrário, uma nova e sofisticada forma de mentir. Devemos nos perguntar se aquele que observa, “no próprio centro da cidade carcerária, a formação de insidiosas leniências, inconfessáveis e mesquinhas crueldades, pequenos atos de malícia, métodos calculados, técnicas e ‘ciências’ que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar”
127
não é, de fato, o inventor do que afirma observar.
Mas não é fácil desmascarar esse observador. Que seus textos exibem mitomania e mesmo paranoia, creio ser evidente. Mas que sistematicamente falsifiquem e façam propaganda do que descrevem é mais difícil de estabelecer. Um escritor que se sente confortável para declarar que “a burguesia não poderia se importar menos com os delinquentes e com sua punição e reabilitação, uma vez que, economicamente, possuem pouca importância”,
128
que “a burguesia está perfeitamente consciente de que uma nova constituição ou legislatura não será suficiente para estabelecer sua hegemonia”
129
e que as pessoas “‘perigosas’ precisam ser isoladas (na prisão, no Hôpital Général, nas galés, nas colônias) para que não ajam como pontas de lança da resistência popular”
130
claramente está mais preocupado com o impacto retórico que com a exatidão histórica.
Contudo, acredito que seria um erro ignorar Foucault em virtude de tais pronunciamentos. Como argumentei, devemos separar sua análise sobre os mecanismos do poder do relativismo condescendente que abre tais fáceis caminhos para a teoria. E a paranoia nada mais é que relativismo localizado — uma manifestação específica e focalizada do desejo de que a realidade seja subserviente ao pensamento, de que o outro tenha uma identidade totalmente determinada por nossa resposta a ele. O que importa não é a disposição de encontrar, na ação e no pensamento humanos, as sorridentes máscaras da perseguição, mas sim a ideia de que, ao desmascará-las como formas de poder, ficamos mais perto de compreender sua natureza. É precisamente disso que duvido.
Em um par de palestras feitas em 1976,
131
Foucault delibera sobre o que quer dizer com “poder” e distingue duas abordagens: a reichiana (que argumenta que “os mecanismos de poder são aqueles da repressão”) e a nietzschiana, que afirma que “a base do relacionamento de poder reside no hostil engajamento de forças”.
132
Em um obscuro relato dessa distinção, ele se alinha com a segunda abordagem e tenta demonstrar (no primeiro volume de
História da sexualidade
, 1976)
133
como sua concepção de poder nos permite ver mesmo as relações sexuais como exemplos de “hostil engajamento de forças”. Mas não oferece explicação real para o que quer dizer com “poder”. As abordagens “reichiana” e “nietzschiana” são inteiramente compatíveis e ambas são explicadas em termos — “repressão”, “força” — ao menos tão obscuros quanto o “poder” que deveriam esclarecer.
Nesse período de sua vida, Foucault enfatizou repetidamente que estava preocupado com o poder em sua forma “capilar”, que “chega às próprias partículas dos indivíduos”.
134
Mas não relevou quem ou o que está ativo nesse “poder”. Ou melhor, revelou, mas em termos que não continham nenhuma convicção. Em uma entrevista, admitiu que, para ele, “o poder é coextensivo ao corpo social”.
135
E é indisputável, claro, que a ordem social, como toda ordem, incorpora poder. Uma sociedade, como um organismo, só pode se manter pela constante interação entre as partes. E toda interação é um exercício de poder: o poder de uma causa para produzir seu efeito. Mas isso é meramente trivial.
O que não é trivial é a totalmente injustificada e ideologicamente inspirada ideia de dominância com que ele dá brilho a suas conclusões. Ele assume que, se há poder, ele é exercido em nome dos interesses de algum agente dominante. Em seguida, com um truque de prestidigitação, é capaz de apresentar qualquer característica da ordem social — mesmo a disposição de curar os enfermos — como exercício oculto de dominação que defende os interesses “daqueles no poder”. E escreve: “Acredito que qualquer coisa pode ser deduzida do fenômeno geral de dominação da classe burguesa.”
136
Seria mais verdadeiro dizer que acreditava que a tese geral da dominação da classe burguesa podia ser deduzida de qualquer coisa. Por ter decidido, juntamente com
O manifesto comunista
, que a classe burguesa foi dominante desde o verão de 1789, Foucault deduz que todo poder subsequentemente incorporado à ordem social foi exercido por essa classe e em nome de seus interesses. Qualquer fato da ordem social irá, como consequência, necessariamente portar as digitais da dominação burguesa. A trivialidade do argumento não precisa de comentários; o que choca é a ingenuidade filosófica subjacente a ele.
Em uma notável discussão com um grupo de maoistas de 1968, ele expõe algumas consequências políticas de sua análise da lei como outro modelo “capilar” de poder, outra maneira de “introduzir contradições entre as massas”.
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A revolução, assegura, “só pode ter lugar através da radical eliminação do aparato judicial, e qualquer coisa que possa reintroduzi-lo, qualquer coisa que possa reintroduzir sua ideologia e permitir que rasteje sub-repticiamente de volta às práticas populares, deve ser banida”.
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Ele recomenda o banimento da sentença judicial e de todas as formas de tribunal e acena na direção de uma nova forma de justiça “proletária” que não necessitará dos serviços de um juiz. A Revolução Francesa, segundo ele, foi uma “rebelião contra o judiciário” e essa é a natureza de toda revolução honesta. Se tivesse continuado e mencionado os fatos históricos — os tribunais revolucionários nos quais juiz, promotor e testemunha eram a mesma pessoa e o acusado não tinha direito de resposta, os milhares de execuções, o genocídio em La Vendée e todas as outras calamidades que decorreram da “rebelião contra o judiciário” —, suas observações poderiam ter sido tomadas como advertência e não, como pretendia, aval.
Mas não é somente a Revolução Francesa que ilustra o que ocorre quando o judiciário é removido. Quando não há terceiro partido presente ao julgamento dos acusados, ninguém com o dever de examinar as evidências, mediar entre as partes ou olhar imparcialmente para os fatos, a “justiça” se torna uma luta de “vida e morte” na qual um lado tem todas as armas. Foi isso que se observou nos Processos de Moscou e nos tribunais revolucionários da Revolução Francesa. Como historiador, Foucault deveria saber disso. Mesmo assim, voluntariamente subscreveu uma forma de “justiça proletária” que remove toda defesa do acusado. Pensar, como ele parecia pensar, que tal forma de justiça poderia libertar a sociedade da praga da dominação é ignorar tudo que ele tinha razões para saber. Se a ordem social é composta da substância que chamou de “poder”, então o estado de direito é a melhor e mais mitigada forma dele.
Ao ler Foucault, o
soixante-huitard
inevitavelmente se pergunta: será que ele falava sério ao dizer essas coisas? E creio que a resposta é sim, falava. Mas as coisas mudaram rapidamente. Através de seus estudos sobre o hospício e a clínica e de sua abrangente “arqueologia do saber”, ele tentou mostrar as maneiras pelas quais a normalidade é fabricada no interesse das estruturas governantes de poder e como se modifica quando o poder é transferido da aristocracia para a classe burguesa. Mas havia uma área que ainda tinha de explorar e que Sartre, em
Saint Genet
, tornou central no estudo da normalidade burguesa: a sexualidade. Era uma área de particular preocupação pessoal para Foucault, cuja ativa homossexualidade o levou a conhecidos excessos, incluindo visitas a clubes sadomasoquistas em São Francisco, uma prática que justificou exuberantemente em termos que lembram o assustador elogio ao sadomasoquismo em
O ser e o nada
.
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Em 1976, ele publicou o volume introdutório de
História da sexualidade
, no qual esboça a opinião que seus leitores naturalmente esperavam dele, ou seja, a de que a distinção entre conduta sexual normal e anormal e a visão de que a atividade sexual é intrinsecamente “problematizada” devem ser explicadas em termos das estruturas prevalentes de dominação.
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Intelectualmente, o livro não foi um progresso muito grande em relação a
Saint Genet
, mas prometia uma sequência em três volumes, tratando da seguinte questão: “Por que o comportamento sexual e as atividades e prazeres relacionados a ele são objeto de preocupação moral? Qual a razão dessa inquietação ética?”
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Quando esses volumes subsequentes começaram a surgir, Foucault já sofria com a aids e começava a se livrar de sua antiga persona de
enfant terrible
. O movimento Solidariedade na Polônia causou profunda impressão sobre ele: foi não apenas a primeira genuína revolução da classe operária na história, mas também uma revolução
contra
o comunismo e a favor de uma identidade nacional. Foucault falou a favor do movimento e tentou, em vão, influenciar o governo de François Mitterrand para que tomasse medidas punitivas contra as autoridades comunistas na Polônia. E, nos volumes 2 e 3 de
História da sexualidade
, começou a escrever de uma nova maneira, fazendo cuidadosos relatos sobre os textos antigos que o interessavam e mencionando constantemente o trabalho de outros estudiosos. No volume 2, intitulado
O uso dos prazeres
, ele estuda uma variedade de textos antigos que lidam com a atração sexual, tentando — como indica o título — identificar o fenômeno sexual primário como
prazer
. Mas os textos que estudou não são sobre
prazer
sexual. No ato sexual, como nas relações que o tornam possível, o ser humano era visto por gregos e romanos como modelando e simbolizando sua posição social. O sexo, portanto, era
intrinsecamente
“problematizado”. Conceitos de honra e virtude surgiam por trás do primeiro impulso de desejo e mesmo as relações entre homens e meninos suscitavam, para aqueles que as praticavam, a questão de como distinguir o modo honrado do modo desonrado de gozá-las, com Platão argumentando, notoriamente, que o elemento do prazer sensual deve ser transcendido e substituído pelo desejo de educar.
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No volume 3,
O cuidado de si
, Foucault argumenta que, no mundo antigo, a atividade sexual, inicialmente concebida como símbolo do status social dos participantes, foi gradualmente “privatizada”, passando a ser governada pelo “cuidado de si”. Segundo ele, essa foi a origem da crescente ênfase na pureza, virgindade e fidelidade no casamento. Mas, como reconhece, “a intensificação do cuidado de si caminha lado a lado com a valorização do outro”.
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E, no fim do livro, o leitor é informado de que o sexo, no mundo de Plínio e Plutarco, estava relacionado não ao prazer, e muito menos ao poder e à dominação, mas sim à dependência mútua e ao cuidado com os filhos. É claro que ele não retira nenhuma conclusão moral disso e adota uma posição de distanciamento, como se o prazer permanecesse a
matéria
primária da conduta social e as estruturas sociais fossem as avenidas peculiares que as pessoas atravessam para chegar a ele. Mas o estilo é hesitante, circunspecto e destituído da antiga beligerância. E, ao abordar seriamente a posição das mulheres e crianças, ele chega perto de reconhecer a verdade, ou seja, de que é o amor, e não o poder, que faz o mundo girar.
A impressão criada por essas últimas obras é a de um Foucault que foi “normalizado”. Seu domínio da língua francesa, sua fascinação pelos textos antigos e pelos caminhos da história, sua exuberante imaginação e seu belo estilo finalmente receberam emprego adequado, descrevendo respeitosamente a condição humana e deixando de procurar pelas “estruturas” secretas por trás de seu sorriso. Foi útil o fato de seu assunto ser o mundo antigo e as obras de autores que não podiam ser ignorados ou refutados como meramente “burgueses”. Mas também foi útil o fato de ele ter sido “golpeado pela realidade” e, naquela época, estar recebendo cuidados de uma instituição da qual já zombara em função de seu hábito de confrontar os internos com a “verdade” de sua condição.
Foi ao ser confrontado com a verdade de
sua
condição que Foucault finalmente cresceu. Ele desceu com Sartre ao inferno onde o Outro reside. Mas também reconheceu sua própria alteridade e retornou ao mundo real com uma atitude de aceitação. Lendo suas últimas obras, fui constantemente tomado pela ideia de que seu beligerante esquerdismo era não uma crítica da realidade, mas uma defesa contra ela, uma recusa em reconhecer que, apesar de todos os seus defeitos, a normalidade é tudo que temos.