7.
Guerras culturais no mundo todo:
a Nova Esquerda de Gramsci a Said
A máquina de nonsense parisiense foi usada para organizar um ataque balístico à cultura burguesa, lançando densos blocos de impenetrável novilíngua sobre as muralhas e atingindo a praça pública da cidade sitiada. O efeito foi destruir a conversação, da qual a sociedade civil depende. Todas as delicadas ideias relacionadas à lei, à constituição e às raízes da ordem civil, todas as maneiras pelas quais os seres humanos argumentam sobre direitos e deveres, honrar seus oponentes e buscar o compromisso foram achatadas pelos matemas, “desterritorializadas” e enterradas sob os escombros do grande Evento. Esse foi o ponto de virada em uma batalha que já dura um século — a batalha para tomar posse da cultura, ao definir a vida intelectual como propriedade exclusiva da esquerda.
Já vimos como essa batalha foi lutada nos territórios de língua alemã após a Primeira Guerra Mundial. A concepção “burguesa” da realidade foi desprezada como “falsa consciência”, “fetichismo” e “reificação”, e a revolução foi proposta como um tipo de purificação intelectual, na qual a consciência proletária deslocaria o império da ideologia e as coisas seriam vistas, pela primeira vez, como realmente eram. A batalha se estendeu à Itália, onde tomou a forma de confronto entre comunismo e fascismo, e a principal arma não foi a impenetrável novilíngua que atingiu seu apogeu em Deleuze, mas a sociologia de senso comum de Antonio Gramsci. Foi dessa abordagem sociológica que as ideias culturais da Nova Esquerda na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos amplamente derivaram, e sua influência provavelmente é tão grande hoje quanto era na Itália antes da guerra.
“Gramsci foi um filósofo extraordinário, talvez um gênio, provavelmente o mais original pensador comunista do século XX na Europa Ocidental” (Eric Hobsbawm). “Com exceção dos grandes protagonistas da revolução soviética, não há personalidade na história do movimento operário cuja pessoa e obra tenham causado maior interesse que Gramsci” (Norberto Bobbio). “Quem realmente tentou seguir as explorações de Marx e Engels? Só consigo pensar em Gramsci” (Louis Althusser). Tais elogios, feitos por membros eminentes do establishment intelectual, são apenas uma pequena parte do tributo que, em tempos recentes, foi oferecido a Gramsci. Vimos a fundação do Instituto Gramsci em Roma, a publicação de praticamente todas as suas obras postumamente e sua inclusão em milhares de cursos universitários, como teórico político, revolucionário, crítico cultural e filósofo. Isso não é resultado de alguns poucos artigos acadêmicos, mas de um vasto movimento de simpatia, uma espécie de fome por orientação moral e intelectual, que escolheu Gramsci como objeto, agarrou-se a ele passionalmente durante as últimas décadas do século XX e só agora começa a esvanecer.
Preso pelo governo fascista em 1926, Gramsci escreveu seus textos mais importantes no cárcere e morreu, ainda confinado, em 1937, tendo sido transferido para um hospital público. Para a geração romântica de baby-boomers , ele foi um símbolo perfeito de sua herança — o intelectual tísico, vítima do fascismo, que devotou toda a vida à composição do caso contra ele. Ele foi o herói revolucionário arquetípico, silenciado durante toda a vida e surgindo como puro espírito nas palavras que deixou.
A ideia de um herói revolucionário não é nova. Foi inspirada no Risorgimento italiano e no culto a Garibaldi; foi tema recorrente da literatura na Rússia do século XIX e a inspiração original para o ciclo do Anel de Wagner. Mas sempre foi problemática para os marxistas. Na verdade, é um dos mais interessantes paradoxos do marxismo o fato de que combinou uma teoria da história que nega a eficácia da liderança com uma prática revolucionária que depende inteiramente da liderança para seu sucesso, e que foi capaz de consolidar seu poder apenas ao estabelecer hábitos de reverência em relação ao herói revolucionário. Esse paradoxo — o problema do “assim chamado Grande Homem”, como Engels o descreveu — foi tratado diretamente por Gramsci em seus textos teóricos. Mas ele jamais poderia ter previsto que uma geração de estudantes algum dia aprenderia a vê-lo sob a mesma luz e com a mesma adulação acrítica com que aprendeu a ver Trotski, Mao, Castro e Che Guevara: como líder, professor e herói de um movimento revolucionário mundial.
Todo desenvolvimento crítico da esquerda requer uma atmosfera de “luta”, como a existente em 1968, que fornece o necessário sentimento de solidariedade. Mas também requer um representante emblemático, que é herói ou mártir na causa da revolução. A fim de se qualificar, não é suficiente ser líder resoluto. Também é necessário ser intelectual e reivindicar importância teórica, e não apenas prática. Assim, os representantes dos movimentos de esquerda modernos foram consistentemente apresentados nesses termos: o mito relacionado ao “cérebro de Lenin” é apenas um exemplo de um permanente processo hagiográfico no qual pensadores de segunda linha (como Lenin) são apresentados como paradigmas de insight e sabedoria, cujas palavras são as de um oráculo e cujos atos são inspirados pelo conhecimento.
O efeito desse processo é sentido em duas esferas. Na esfera da política prática, um movimento de esquerda é capaz de se apresentar como resgate: é a maneira pela qual ideias reais e conhecimento real se apresentam para corrigir os erros e a corrupção dos meros mortais que até então tentaram organizar as coisas. O líder personifica a verdade, em uma luta até a morte contra o erro. Mas o processo também é sentido na esfera da cultura, e sentido mais profundamente, uma vez que a cultura é uma esfera amplamente sem defesas contra o entusiasmo, um teatro massivamente subsidiado cujo palco é de quem chegar primeiro. Desse modo, foi através da cultura — através de universidades, escolas de arte, teatros e livros — que a Nova Esquerda conseguiu seu maior e mais imediato impacto durante os anos 1970.
Mais impressionante, talvez, que o exemplo de Lenin é o de Mao, cuja força titânica e gênio militar jamais o teriam qualificado para a posição de representante emblemático se não tivesse sido possível acreditar em sua “correção teórica” e na habilidade intelectual exibida por ela. Uma geração inteira de estudantes foi encorajada a estudar obras de filosofia e teoria política que, julgadas de um ponto de vista externo ao zelo hagiográfico dos admiradores de Mao, parecem risivelmente ingênuas e repletas dos mais grosseiros equívocos. Há outros exemplos — Ho Chi Minh, Che Guevara e Stalin —, mas nenhum mais vívido para aqueles de nós que foram estudantes na década de 1960 que Gramsci, que fez para os anos 1960 o que Lenin e Stalin haviam feito para os anos 1930 e 1940: convencer seus seguidores de que a prática revolucionária e a correção teórica eram atributos idênticos, que aprender era igual a ser sábio e que ser sábio era igual a ter o direito de governar.
A ideia foi identificada por Eric Voegelin como a raiz do gnosticismo, 272 a heresia primal do ponto de vista do cristianismo, a qual todas as heresias subsequentes retornam. E explica parcialmente o apelo emocional do tipo de esquerdismo de Gramsci nos países católicos, especialmente na Itália. Pois não apenas uma “inteligência” já está presente na cultura nacional italiana como existe uma crença mundial, promovida pela Igreja, de que a liderança em qualquer esfera é resultado da educação. Gramsci conduziu esse legado para uma direção secular. Com uma franqueza que seria surpreendente em um marxista mais ortodoxo, devotou parte considerável de sua obra ao papel dos intelectuais, afirmando diretamente não apenas que são os verdadeiros agentes da revolução, mas também que devem sua legitimidade à “correção” de suas opiniões. 273 Segue-se que eu, o intelectual crítico, tenho o direito de governar você, a meramente preconceituosa pessoa.
Os revolucionários dos anos 1960 mantiveram sua fé em Mao e, por meio de extraordinárias contorções, foram capazes de ver a Revolução Cultural como algo além de uma guerra contra o intelecto. Mas perceberam vagamente que líderes intelectuais nem sempre respeitavam seguidores intelectuais. Stalin fora desmascarado e certa suspeita começava a recair sobre Lenin. É verdade que sempre havia Trotski, mas Gramsci possuía uma vantagem que Trotski não podia reivindicar: não somente estava morto, como morrera na luta contra o fascismo. É testemunho do sucesso da propaganda comunista que tenha sido capaz de persuadir tantas pessoas de que fascismo e comunismo eram opostos e de que havia uma única medida na ideologia política, estendendo-se da “extrema esquerda” à “extrema direita”. Assim, embora o comunismo esteja na extrema esquerda, é simplesmente mais um estágio na estrada que todos os intelectuais devem percorrer a fim de não serem contaminados pelo verdadeiro mal de nossos tempos: o fascismo.
Talvez seja mais fácil para um escritor inglês que para um italiano ver através desse nonsense e perceber o que ele foi projetado para ocultar: a profunda similaridade estrutural entre comunismo e fascismo, tanto na teoria quanto na prática, e seu comum antagonismo às formas parlamentares e constitucionais de governo. Mesmo que aceitemos a — altamente fortuita — identificação entre nacional-socialismo e fascismo italiano, falar de qualquer um deles como verdadeiro oposto político do comunismo é trair o mais superficial entendimento da história moderna. Na verdade, há um oposto a todos os “ismos”, que é a política negociada, sem “ismo” e sem nenhum objetivo que não seja a coexistência pacífica de rivais.
O comunismo, como o fascismo, envolve a tentativa de criar um mo­vimento popular de massa e um Estado unido sob o governo de um único partido, nos quais haverá total coesão sobre o objetivo comum. Ele envolve a eliminação da oposição por qualquer meio necessário e a substituição da ordenada disputa entre partidos por “discussões” clandestinas no interior da única elite governante. Envolve assumir o controle — “em nome do povo” — dos meios de comunicação e educação, e instilar um princípio de comando na economia.
Ambos os movimentos veem a lei como opcional e as restrições constitucionais como irrelevantes — pois ambos são essencialmente revolucionários, liderados de cima por uma “disciplina de ferro”. Ambos pretendem conseguir um novo tipo de ordem social, não mediada pelas instituições e exibindo imediata e fraternal coesão. E, na busca dessa associação ideal — chamada de fascio pelos socialistas italianos do século XIX —, cada movimento criou uma forma de governo militar, envolvendo a total mobilização de toda a população, 274 que já não podia fazer nem mesmo as coisas mais pacíficas sem espírito de guerra e com um oficial no comando. Essa mobilização foi colocada em cômica exibição nos grandes desfiles e festivais que ambas as ideologias criaram para sua própria glorificação.
É claro que há diferenças. Os governos fascistas algumas vezes chegaram ao poder por eleição democrática, ao passo que os governos comunistas sempre se apoiaram no coup d’état . E a ideologia pública do comunismo é de igualdade e emancipação, ao passo que o fascismo enfatiza a distinção e o triunfo. Mas os dois sistemas se parecem em todos os outros aspectos, incluindo a arte pública, que exibe o mesmo tipo de grandiosidade e kitsch — a mesma tentativa de mudar a realidade gritando com toda a força dos pulmões.
Dir-se-á que o comunismo talvez seja assim na prática, mas somente porque a prática traiu a teoria. É claro, o mesmo pode ser dito do fascismo, mas tem sido uma importante estratégia esquerdista e um componente de destaque na propaganda soviética do pós-guerra contrastar o comunismo puramente teórico com o fascismo “atualmente existente” ou, em outras palavras, contrastar o paraíso prometido com o inferno real. Isso não apenas ajuda no recrutamento de apoiadores como também reforça o hábito de pensar em dicotomias, de representar cada escolha como isso ou aquilo, de induzir a ideia de que a questão é simplesmente estar a favor ou contra.
Assim, quando Lenin anunciou que “ a única escolha é entre a ideologia burguesa e a socialista, não há meio-termo”, 275 ele meramente transformou em slogan a teoria marxista da luta de classes. E foi ecoado pelo líder socialista francês Jean Jaurès: “Nenhuma força social pode permanecer neutra quando um grande movimento está em curso. Se eles não estão conosco, estão contra nós.” 276 Assim, continuou ele, os camponeses “devem estar dispostos a vender seus produtos na loja comum” — ou seja, nos termos ditados pelos socialistas. Se fizerem qualquer outra coisa, unem-se aos “inimigos”.
A mesma postura ameaçadora (“você deve estar disposto”) é encontrada em toda parte nas obras iniciais de Gramsci 277 e está encapsulada no slogan com o qual ele primeiro liderou o Partido Comunista Italiano na batalha contra Mussolini: “entre fascismo e comunismo não há caminho intermediário” — algo com que Mussolini, sendo um intelectual de fabricação similar, estava disposto a concordar.
Há outra razão para a canonização de Gramsci, todavia. Ele forneceu uma teoria que prometia tanto resolver o problema do “assim chamado Grande Homem” quanto estabelecer o direito ao governo dos intelectuais. Em O príncipe moderno e outras obras compostas na prisão, 278 ele se afastou dos slogans leninistas e se devotou à tarefa de reconciliar a teoria marxista da história e da sociedade com uma filosofia de ação política.
Ele se referiu a sua teoria como “filosofia da práxis” e a desenvolveu em oposição ao “vulgar materialismo” de Bukharin. 279 Esse vulgar materialismo suscitou problemas que exigiram de Althusser as contorções serpentinas que discuti no capítulo 6. Se a “base” determina a “superestrutura” — se as obras do espírito são subprodutos de processos econômicos que não controlam —, qual o lugar da ação política (e, especialmente, revolucionária)? E se a base se move inelutavelmente em resposta ao crescimento das forças produtivas, como pode um sistema social sobreviver ao ponto em que entra em conflito com o crescimento econômico? Como a ordem capitalista pode perdurar mesmo quando começa a “restringir” a economia?
Essas questões levaram à teoria da “hegemonia” de Gramsci. 280 Uma ordem social pode sobreviver à crise, argumentou ele, por causa da natureza complexa da dominação de classe. No capitalismo, a classe burguesa possui poder não apenas porque controla os meios de produção, mas também porque estabelece “hegemonia” na sociedade civil e no Estado, reservando para si os cargos de governo e posições-chave de influência em todas as instituições da sociedade civil. Religião, educação, comunicação — toda a sociedade civil passa para o controle burguês.
Essa hegemonia tem duplo resultado. Primeiro, permite que uma classe exerça (conscientemente ou não) uma vontade política combinada e, desse modo, controle os efeitos da crise econômica e assegure a sobrevivência da ordem social da qual deriva seu poder. Segundo, coloca nas mãos da classe governante os instrumentos de educação e doutrinação, propagando a crença em sua legitimidade. É assim que o clero funciona: representando todos os seus costumes e instituições como ordenados por Deus e, desse modo, inalteráveis. Em virtude dessa influência dual, uma classe dirigente pode se forçar a superar as pressões que emergem da base econômica e a base se torna sujeita a uma influência recíproca da superestrutura institucional e cultural. Dizendo de outra maneira, a teoria marxista da história, que explica todos os desenvolvimentos históricos como produto de mudanças na infraestrutura econômica, é falsa. O desenvolvimento histórico é resultado tanto da vontade política (como nossos historiadores “burgueses” sempre insistiram) quanto dos processos “materiais”.
Gramsci não fala exatamente dessa maneira: ele escreve sobre a relação “dialética” entre superestrutura e base, 281 usando o jargão marxista a fim de dizer aquilo em que seus oponentes acreditam profundamente, ou seja, que a história não está do lado de ninguém. Mesmo assim, sua refutação do determinismo marxista é fundamental para sua própria “filosofia da práxis”. Ela permite que ele faça o que os marxistas clássicos não podem fazer, ou seja, reabilitar a esfera política. A política se torna um ativo princípio de mudança que pode se posicionar contra as pressões econômicas e restringi-las ou vencê-las.
Assim, a política comunista se torna possível, não como movimento revolucionário vindo de baixo, mas como substituição constante da hegemonia dominante — uma longa marcha através das instituições, como seria descrita mais tarde. A superestrutura é gradualmente transformada, chegando ao ponto em que uma nova ordem social, cuja emergência estava bloqueada pela antiga hegemonia, é capaz de emergir por conta própria. Esse processo, chamado de “revolução passiva”, pode ser realizado somente pela conjunção de duas forças: a exercida de cima pelos intelectuais comunistas, que regularmente substituem a hegemonia da burguesia, e a exercida de baixo pelas “massas”, que contêm em si as sementes da nova ordem social que cresce a partir de seu trabalho.
A transformação revolucionária ocorre somente quando essas forças agem em harmonia, em “bloco histórico”. O papel do Partido é produzir essa harmonia ao unir os intelectuais às massas em uma única e disciplinada força. O Partido é o “príncipe moderno”, o agente único da verdadeira mudança política, que pode transformar a sociedade somente porque absorve em sua ação coletiva as ações menores da intelligentsia e combina o pensamento correto com a força bruta. Desse modo, o Partido deve gradualmente substituir cada organização que possua alguma posição no interior da hegemonia de influência política.
Gramsci achou que esse tipo de infiltração sistemática precipitaria a abolição do Estado. Os intelectuais comunistas e as massas, acreditava ele, estão unidos por instintiva simpatia. Assim, quando unem forças, já não há necessidade de um Estado coercivo. Em seu lugar, emerge uma nova forma de governo por consenso. 282 Como tantos intelectuais da esquerda, Gramsci não analisa esse governo ideal (essa “administração das coisas”, como Engels a descreveu). Por isso, seu argumento não tem o poder de persuadir seu oponente, que é cético precisamente em relação aos resultados do comunismo e não tem dúvidas sobre os meios para chegar a eles.
Para o realista que pergunta como, nessa sociedade do futuro, os conflitos serão acomodados ou resolvidos, Gramsci não tem resposta. O comunista partilha com o fascista um primordial desprezo pela oposição. O objetivo da política não é viver com a oposição, mas removê-la — chegar à condição na qual ela já não exista (o “bloco histórico”). A questão da oposição, não obstante, é a mais importante da política. Os conflitos entre indivíduos levam, por associação livre, aos conflitos entre grupos, rivalidades e facções que inevitavelmente se expressarão em competição pelo poder. Como essa competição deve ser administrada? Em particular, como o Partido Comunista responderá à oposição a seu governo? A predição leninista era de que não haveria oposição e, em certo sentido, foi confirmada quando a oposição desapareceu. Para que mais servia a Cheka?
A questão é crucial para o “humanista marxista” que busca, como Gramsci, uma política adaptada à natureza humana. Ele assume que as massas se unirão atrás dos intelectuais. Ao mesmo tempo, está consciente dos muitos milhões (que, por alguma razão, não são incluídos nas “massas”) que forneceram ao fascismo o tipo de apoio das massas que o comunismo raramente conseguiu. De fato, é a própria realidade histórica do fascismo que mina o sonho comunista — o sonho de uma sociedade sem conflito e oposição, não porque o primeiro é resolvido, e a segunda, acomodada, mas porque as “condições” do conflito foram removidas. Os marxistas assumem que essas condições são sociais, modificáveis, dependentes das “relações antagônicas de produção”. Mas, se as condições do conflito jazem, como evidentemente o fazem, na natureza humana, então a única esperança de removê-las é alimentar esperanças inumanas e se mover na direção de ações inumanas.
A revolução, de acordo com Gramsci, não é uma força inelutável que nos leva de roldão, mas uma ação , realizada por indivíduos heroicos. Mais ainda, é uma ação que pode ser realizada sem sujar as mãos na fábrica. Você pode calmamente continuar em qualquer cargo confortável que lhe tenha sido oferecido e trabalhar pela derrota da hegemonia burguesa enquanto aproveita seus frutos. Tal filosofia é extremamente útil para o intelectual — cujas visões e paciência seriam severamente desafiadas fora da universidade — e é a filosofia natural da revolução estudantil. Acrescente a encantada dicotomia de comunismo versus fascismo — ilustrada pela própria vida heroica de Gramsci — e a pintura está completa. Um inimigo é identificado, uma “luta” é definida e uma teoria é fornecida para mostrar que você pode lutar ao lado dos heróis simplesmente permanecendo sentado a sua mesa.
Mas tudo isso — agradável que possa ser para a pessoa em busca de uma “práxis indolor” — suscita consideráveis dúvidas sobre as credenciais marxistas de Gramsci. Pois ele não está simplesmente recomendando uma nova sociedade de classes, com o Partido como “rei filósofo” coletivo e os intelectuais gozando dos privilégios que certa vez pertenceram a seus predecessores “burgueses”? Aqui e ali em Cadernos do cárcere , Gramsci enfrenta essa questão, argumentando, primeiro, que os intelectuais não são uma classe e, segundo, que, em virtude de seu papel educativo, serão aceitos pelas massas, de modo que não haverá coerção envolvida. 283
Nenhum desses argumentos é plausível e os tortuosos argumentos que os suportam mal escondem o fato de que Gramsci está ciente disso. Pois a teoria da hegemonia implica a rejeição da definição econômica de classe defendida por Marx. Ela implica o reconhecimento de que existem agentes coletivos que possuem o poder concedido pelo marxismo às classes, e mesmo assim são formados por uma unidade de propósito , como a que podemos atribuir a uma elite intelectual. Ademais, a habilidade da classe dirigente de persuadir as massas (através de seu braço clerical) a aceitarem seu governo era precisamente uma das características da velha “sociedade de classes” que Gramsci desejava expor e derrotar.
Por que esse novo clero seria diferente, nesse sentido, do antigo? Por que é melhor que as massas sejam dominadas por uma elite intelectual que por uma hegemonia de honestos burgueses? A teoria do “Partido como príncipe” deixa claro que o futuro comunista envolverá imensa alocação de poder para aqueles nomeados para “administrar” as coisas. Argumentar que esse poder não é exercido sobre as massas, meramente porque elas aceitarão cooperar com ele, é ser vítima de uma ilusão ideológica comparável à crença no direito divino dos reis.
Para ser justo, tais questões não são discutidas por Gramsci em Cadernos com a assiduidade necessária para resolvê-las. O melhor que pode ser dito é que ele as enterra tão profundamente em obscuridade literária que permite que os crentes assumam qualquer resposta de que possam precisar no momento. Mas é interessante olhar para sua teoria de Partido original. Seus textos iniciais mostram que ele compreendera duas verdades importantes: primeira, há intelectuais que são anticomunistas ativos; segunda, há muitos não intelectuais que estão preparados para ser liderados por eles, frustrando os objetivos do Partido Comunista.
Ele inventou uma classe à qual essas pessoas recalcitrantes poderiam ser designadas e, como elas precisam ser rigorosamente excluídas das irrepreensíveis “massas”, precisam ser membros da “burguesia”. Assim nasceu o mito sobre a natureza “burguesa” do fascismo. Contudo, também era palpavelmente verdade que as ordens mais baixas da sociedade estavam mais dispostas a seguir o rival intelectual de Gramsci, Mussolini, que a ele mesmo. Por isso, a classificação do fascismo foi rebaixada e ele foi descrito como movimento da “baixa burguesia”:
O que é o fascismo italiano? É a insurreição do estrato mais baixo da burguesia italiana, o estrato dos vagabundos, dos ignorantes, dos aventureiros a quem a guerra fornece a ilusão de serem bons para alguma coisa e contarem para algo, que foram conduzidos em frente pelo estado de decadência moral e política [...] 284
Assim, Gramsci iniciou uma evasão comunista padrão: um vasto movimento popular que é anticomunista jamais é um movimento das “massas”, ao passo que um coup d’état de intelectuais comunistas sempre é apoiado pelas “massas”, quaisquer que sejam a força e a natureza da oposição e por mais escassas que as “massas” se mostrem. Movimentos como o fascismo são movimentos da classe “pequeno-burguesa”. A mesma teoria é repetida quando historiadores de esquerda descrevem a ascensão de Hitler ao poder, uma vez que, claramente, a classe operária não teria apoiado um resultado tão aterrador.
James Joll escreveu que Gramsci acreditava que o regime fascista não tinha classe de base (e, assim, não era genuinamente “revolucionário”). 285 Ao contrário, Gramsci acreditava que, precisamente porque chegara ao poder, o fascismo devia ter uma base. Ele inventou um nome para essa classe alienígena que, a despeito de incluir a maioria dos italianos, devia ser vista como distinta das “massas”, uma “facção” oposicionista que, como resultado da “luta” final, seria devidamente liquidada. E estudou a organização do partido que a levou ao poder, guiada por um intelectual.
Dessa maneira, aprendeu a lição dos fascistas, a lição do “corporativismo”, que é a verdadeira origem de sua teoria da “hegemonia”. A sociedade, percebeu ele, é composta por milhares de pequenas instituições, associações e padrões de comunicação e resposta. Chegar a cada um deles e impor sobre eles — com a salvaguarda do poder hegemônico que contêm — a disciplina de ferro da liderança do partido: esse é o segredo da política. Foi isso que levou os fascistas ao poder e formou, pela primeira vez desde o nascimento do moderno Estado italiano, a unidade sobre um objetivo comum que deu forma e coerência à massa de seguidores e poder e princípio ao partido de vanguarda que a governava.
Em resumo, a teoria de Cadernos do cárcere é a verdadeira teoria do fascismo: do poder que se antecipou à ambição de Gramsci ao se tornar real em outras mãos. Quando, em um artigo inicial, 286 ele descreveu o proletariado como formando uma unidade ideal, um fascio , antecipou em suas esperanças precisamente a forma de ordem social que, mais tarde, seria conseguida por seu rival. A filosofia da práxis — tão parecida com o “dinamismo filosófico” de Mussolini e com a filosofia influenciada pela apologia à violência de Georges Sorel — retém seu charme para o intelectual precisamente porque promete tanto poder sobre as massas quanto uma mística identidade com elas. Mas essa é a promessa do fascismo e, se a esquerda precisa constantemente identificar o fascismo como seu único inimigo, não precisamos mais procurar por explicação. Pois qual a melhor maneira de ocultar suas intenções que descrevê-las como as intenções do inimigo?
A importância de Gramsci para nós, hoje, reside em sua resoluta tentativa de tirar a revolução das ruas e das fábricas e levá-la para a alta cultura. Ele redesenhou o programa da esquerda como revolução cultural que poderia ser conduzida sem violência e cujo local seriam as universidades, teatros, salas de palestras e escolas, onde os intelectuais encontravam suas principais audiências. O trabalho da revolução deveria, dali em diante, envolver o ataque ao velho programa e às obras de arte, literatura e crítica pertencentes a ele. Deveria ser um trabalho de subversão intelectual, expondo as redes de poder e as estruturas de dominação ocultas no interior da alta cultura de nossa civilização, a fim de libertar as vozes que haviam sido oprimidas por elas. E esse tem sido o novo programa das ciências humanas desde então.
Esse programa acelerou as mudanças que começavam a ocorrer nas instituições inglesas de ensino superior. O Centro Birmingham de Estudos Culturais Contemporâneos, fundado em 1964 por Richard Hoggart, foi lar do movimento gramsciano, cujo objetivo era reescrever o currículo, a fim de que a voz dos oprimidos, excluídos e marginalizados fosse ao menos audível. Talvez o mais importante pensador desse movimento, e um que teve grande influência no ensino de literatura nas escolas e universidades de todo o Reino Unido, foi o escritor e crítico galês Raymond Williams (1921-1988), e vale a pena examinar suas obras, uma vez que elas encapsulam o crucial momento de transição entre a Velha Esquerda dos anos do pós-guerra e a Nova Esquerda dos anos 1960 e 1970.
Embora tenha se filiado ao Partido Comunista enquanto estudava em Cambridge no início da Segunda Guerra Mundial e se descrevesse como “materialista cultural”, Williams estava, como Gramsci, ligado demais a uma experiência e uma cultura nacionais para aceitar o futurismo internacionalista do Partido. Ele permitiu que sua afiliação ao Partido caducasse, uniu-se ao esforço de guerra (algo proibido pelo Partido em função do pacto nazi-soviético) e serviu como capitão antitanques da Divisão Blindada da Guarda antes de retornar a Cambridge, em 1945, para retomar seus estudos. Construiu uma notória carreira acadêmica em Cambridge e manteve contato durante toda a vida com a Associação Educacional dos Trabalhadores e as instituições culturais associadas ao Movimento Trabalhista. Terminou a vida como nacionalista galês e membro do Plaid Cymru. Em toda sua obra, foi principalmente a experiência histórica das comunidades das classes operárias galesas que o inspirou.
O socialismo britânico — especialmente o socialismo das comunidades mineiras galesas — está imbuído de um senso do passado e da memória das dificuldades partilhadas. Nos sentimentos do socialista britânico, toda ação política e toda inspiração social retiram seu significado de seus antecedentes e quanto mais firmemente enraizados estiverem esses antecedentes em uma experiência histórica da comunidade, mais apoio recebem de nós. Somos produtos de nossa história nacional e, na extensão em que encontramos no passado os traços de um espírito que presentemente nos move, nessa mesma extensão nos movemos e somos animados pelos homens e mulheres que, antes de nós, fizeram parte de nossa comunidade.
Esse sentimento é encontrado em toda a obra de Raymond Williams, adaptado ao programa gramsciano de revolução cultural e ligado aos estudos de conflito de classes que encontramos em Hobsbawm, Thompson, Samuel e Hill. O socialismo de Williams foi assombrado por “vozes ancestrais” que falavam das páginas de Piers Plowman e Everyman , dos sermões dos pastores protestantes, radicais e não conformistas, e da grande era do Parlamento, na qual homens livres e dissidentes aparentemente aboliram as limitações do poder hereditário.
O último período extraordinário de nossa história foi uma grande preocupação para a esquerda britânica e a ele retornam constantemente os historiadores e críticos culturais do movimento operário. A mais sentida nostalgia dos socialistas britânicos e seu senso mais romântico de perda estão ligados ao Interregno e aos eventos que levaram a ele. Sem a descrição politizada desse período feita por historiadores como Tawney e Christopher Hill, o socialismo britânico seria muito menos confiante e uma presença muito menos sorridente em nossa cultura nacional. Foi estabelecido nas mentes dos que se reuniram em torno da Associação Educacional dos Trabalhadores e do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos que o socialismo britânico foi justificado por sua história e não é nada menos que a última expressão do direito dos ingleses nascidos livres à terra e à cultura que são suas.
Ao discutir Sartre e Foucault (capítulo 4), tentei mostrar o importante lugar da iconografia no pensamento francês de esquerda, muita da qual é devotada à detalhada delineação do inimigo “burguês”. O socialismo britânico também é iconográfico, mas seus esforços foram devotados ao retrato de um amigo. Esse amigo surge como o idealizado John Hamden de Tawney, como o dissidente heroico de Christopher Hill e como a “classe operária” industrial retratada pela obra de Thompson, Hoggart e Williams. Naturalmente, há algo cativante nessa perspectiva, que procura amigos antes de declarar inimigos e que agraciou nossos movimentos de esquerda com suas cores locais. O socialismo britânico está tão distante da atitude “internacionalista” de Marx (ele mesmo produto desenraizado de uma Alemanha dividida) quanto o conservadorismo britânico. É um movimento que os conservadores encontram no território nacional, impulsionado pelo amor à pátria e ao território que ambos partilham. E tudo isso está contido na crucial palavra “cultura”.
Por essa razão, o marxismo clássico jamais poderia ser mais que uma influência subsidiária no pensamento de esquerda britânico. Muito mais influente foi a tradição única de crítica social e literária, que pode alegar com justiça ser uma das mais importantes realizações intelectuais do espírito inglês. Seria errado pensar que essa tradição tem qualquer inclinação natural pelo socialismo. Ela começou com o pensamento conservador de Burke, Coleridge e Wordsworth, e demonstrou — nas obras de Carlyle e Arnold — uma tendência anti-igualitária que se preserva até hoje. Seu maior representante no período pós-guerra, F. R. Leavis, foi reivindicado como membro tanto por socialistas quanto por conservadores. E, entremeado nas melancólicas reflexões de tais defensores da alta cultura, encontramos o pensamento de tendências esquerdistas de Ruskin e Morris, da irmandade pré-rafaelita, de Cobbett, Shaw e dos fabianos. É um testemunho adicional do enraizamento do socialismo inglês que, na ênfase central e tendência espiritual dessa tradição crítica, pensadores socialistas e conservadores tenham sido unidos em mútua influência.
As raízes de Raymond Williams estão firmes no solo do socialismo britânico e seus melhores textos exibem aquela conexão com a terra e com o povo que foi a principal inspiração da literatura inglesa moderna. Em obras como Cultura e sociedade 1780-1950 (1958), A longa revolução (1961) e O campo e a cidade (1973), ele trouxe uma visão da classe operária inglesa como diretamente relacionada à teoria da social-democracia, a fim de dar uma perspectiva nova e pessoal ao passado e ao presente do movimento trabalhista. Essa perspectiva encontra expressão mais concreta em dois romances intensamente nostálgicos, Border Country e Segunda geração . Finalmente, em estudos tardios como Palavras-chave (1976) e Marxismo e literatura (1977), Williams revestiu sua perspectiva com abstrações elegantes, a maioria emprestada do guarda-roupa da Nova Esquerda francesa e alemã. Em seu corpus , encontramos uma incessante preocupação com a classe operária, suas esperanças, medos e sofrimentos, e com a “longa revolução” que supostamente leva de classe e privilégio a igualdade e democracia.
Ruskin, Arnold e Morris observaram a Revolução Industrial com pesar e consternação. Em todos os seus pensamentos, pode ser discernida a mesma ansiedade: o que permanecerá da civilização quando o campo estiver vazio e as cidades transbordando de pessoas necessitadas e não estabelecidas e quando os ritmos da vida rural tiverem sido aniquilados pela incessante marcha da produção industrial? Cada escritor buscou algum profilático contra a decadência social e todos propuseram a educação e a religião como ingredientes vitais do remédio sugerido. Williams, que partilha do senso de tragédia desses escritores, não encontra conforto nas tradições religiosas e raramente menciona esse fato social tão importante. Em vez disso, busca retraçar o território explorado por seus predecessores do século XIX e reescrevê-lo em termos inteiramente seculares. Como os outros escritores, ele acredita na educação — e aqui e ali está disposto a esboçar um silabário ideal que preparará as crianças para uma “democracia participante”. 287 Mas não consegue aceitar nem a reminiscência religiosa nem a doutrina social antimodernista de Ruskin e Morris.
Sua “longa revolução” é concebida inteiramente em termos de privilégio e poder, e a superação de ambos pela democracia. Seria errado dizer que sua fé na democracia é ilimitada — pois se uma coisa fica clara em seus desconfiados parágrafos, é que não tem fé ilimitada em nada. Ocorre simplesmente que “mais democracia” é a única resposta que está preparado para oferecer. Ocasionalmente, ele a apresenta com ingênua generalidade:
A revolução democrática [...] é insistentemente criativa em seu apelo a todos nós para tomar o poder de dirigir nossas vidas [...] A revolução industrial e a revolução nas comunicações só são inteiramente compreendidas em termos do progresso da democracia, que não pode ser limitado à simples mudança política, mas insiste, finalmente, em concepções de uma sociedade aberta e de indivíduos livremente cooperativos que são os únicos capazes de liberar a potencialidade criativa das mudanças nas habilidades de trabalho e comunicação [...] 288
Mas seu pessimismo é tal que ele abandona de vez essa linha de pensamento. Ele recua para trás da cortina de qualificações, indicando uma solução muito mais intrincada e sutil que qualquer uma que revele abertamente:
A longa revolução, que está agora no centro de nossa história, não é pela democracia como único sistema político, nem pela igual distribuição de produtos essenciais ou pelo acesso geral aos meios de aprendizado e comunicação. Tais mudanças, difíceis o suficiente em si mesmas, derivam sentido e direção das novas concepções de homem e sociedade que muitos trabalharam para descrever e interpretar. Talvez essas concepções só possam ser fornecidas na experiência. A metáfora da criatividade e do crescimento busca criá-las, mas a pressão, agora, deve ser na direção dos particulares, pois nem aqui nem em nenhuma parte elas estão confirmadas [...] 289
De sua maneira muito britânica, Williams preenche alguns dos detalhes morais que estão ausentes na teoria da hegemonia de Gramsci. O principal objetivo de Cultura e sociedade é documentar as práticas que promoveram ou impediram a “verdadeira democracia” que promete emancipação para a classe operária. Williams busca remover do estudo da cultura todas as implicações elitistas, todas as sugestões de que a cultura é um valor acessível apenas a alguns poucos. Ele acredita que, se a cultura define uma elite, ela não é um valor. Aqui, é claro, difere de Gramsci, que desejava — conscientemente ou não — substituir uma elite culta por outra e deixar os intelectuais comunistas no controle. Williams não quer colocar ninguém no controle, mas sim mudar toda a cultura, para que ela se torne um bem de que todos partilhem.
A principal questão suscitada por seu ponto de vista é a da “verdadeira democracia”. Para ele, isso envolve a genuína comunhão entre o povo, 290 modelado na “solidariedade” de uma antiga classe operária, um senso de esperanças e sofrimentos partilhados e uma necessidade de se posicionar contra o abuso e a exploração. Ele acredita que capitalismo, classes e privilégios são inimigos da comunidade e não hesita em recomendar constantemente a abolição da “propriedade privada nos meios de produção”.
Conforme o argumento se desenvolve, contudo, ele estende a culpa do capitalismo e da propriedade privada para toda a ética da civilização cristã. E aproveita um comentário incidental de Rosa Luxemburgo para argumentar que a caridade cristã é uma “caridade de consumo”, ao passo que a caridade socialista é uma “caridade de produção” — “de relações amorosas entre homens que realmente trabalham e produzem o que será, em quaisquer proporções, realmente partilhado”. 291
É a este ponto que retorna com maior insistência: o capitalismo, com sua ética consumista, sua exploração, sua soberana indiferença pelos lugares e pelas pessoas, é o grande solvente da comunidade. A verdadeira comunidade requer uma “democracia participativa”. E isso só é possível se as pessoas conseguirem a “igualdade de ser”, sem a qual a “luta pela democracia” equivale a nada. 292 E a “igualdade de ser” requer que desmontemos o aparato de privilégios e classes.
A combinação de visões é a raiz do socialismo britânico nativo. Ela sobrevive nos textos de Williams em virtude de um esforço de sentimentalização, por meio do qual ele se esconde dos fatos básicos da história moderna. Pois, encaremos os fatos: o “consumismo”, longe de ser inimigo da democracia, é sua expressão econômica. Ele surge inevitavelmente da economia de mercado, sendo o correlato psicológico do fato de que os produtos são feitos não meramente para uso, mas também para troca. A produção de bens para venda é a real condição dos trabalhadores emancipados, que são capazes de transformar seu trabalho em dinheiro e, desse modo, em bens que não aqueles que produzem. Sem essa capacidade, permanecem dependentes do trabalho de outros ou presos a formas de produção que restringem radicalmente seus poderes. O próprio mercado é uma expressão de sua livre escolha — da livre escolha que podem, nessas circunstâncias, conseguir. É um mecanismo de distribuição operado inteiramente pelas transações voluntárias entre indivíduos, cada um dos quais garante sua própria vantagem ao solicitar a concordância daqueles com quem negocia. “Soberania do consumidor” é outro nome para a “igualdade dos seres” cotidiana que permite que a escolha de cada pessoa influencie o resultado de um processo social. O saldo final não é muito edificante — mas os resultados da democracia raramente o são.
Esbocei um argumento que um marxista irá rejeitar como “ideologia”, respondendo que há uma “alternativa” na qual a “verdadeira democracia” irá coexistir com a “propriedade social”, a ausência de mercado e a produção para uso e não para troca. Mas como isso será feito? Como isso será feito, dado que conhecemos nossas limitadas simpatias, nossas finitas expectativas, nossos competitivos motivos e nossos medos mortais? Jamais nos disseram — e o mito do “novo homem socialista” é meramente uma maneira de se esquivar da questão, como Williams o faz. Todos sabemos que os sistemas socialistas e comunistas não apenas retiveram o trabalho assalariado, o dinheiro, a troca e a venda como também aboliram as formas disponíveis de democracia. Além disso, ao interferir no processo de mercado, criaram escassez, juntamente com os associados comércios e privilégios do mercado negro, que militam precisamente contra a “igualdade dos seres” que Williams defende.
É claro que as questões teóricas são vastas e não há como resolvê-las em um parágrafo. Mas, considerando os fatos observados da história e da natureza humana, deve-se concluir que o ônus está com os socialistas, que devem explicitar as condições para a “verdadeira democracia” que favorecem. Quem, nessa democracia, controla o que e como? O mercado é a única instituição econômica na qual cada participante influencia cada resultado. Como sua abolição será conciliada com o governo participativo? E, se formos reter o mercado, como impediremos a propriedade privada nos meios de produção, que é o resultado natural da livre troca, quando as pessoas têm permissão para usar e vender seu trabalho como desejarem? A negligência com tais questões não é apenas intelectualmente desonrosa. Dada a intransigência com que Williams busca defender seus objetivos, também é perniciosa. Pois permite a fácil defesa de ações cujas consequências ainda não foram compreendidas.
O apelo de Williams é, na verdade, muito mais sentimental que intelectual. Ele é capturado na referência às “amáveis relações entre homens atualmente trabalhando e produzindo o que é por fim [...] distribuído”. Eis aqui os trabalhadores sofridos e de bom coração de E. P. Thompson, que precisam apenas da abolição do capitalismo para viverem juntos em espontânea fraternidade, partilhando os frutos de seu trabalho. Mas, embora realmente exista camaradagem e solidariedade entre os oprimidos, elas são produto de sua opressão. Libertadas de suas amarras, as pessoas se veem como rivais, e somente quando são obrigadas por contratos, acordos e convenções — somente quando são sujeitas à economia de mercado no sentido mais amplo — elas podem se unir novamente em pacífica associação. Esse é o verdadeiro sentido da democracia, que é um princípio de união não sentimental entre rivais e estrangeiros que concordam em ser governados por pessoas que seus oponentes também elegeram. A democracia surge quando as pessoas estão preparadas para renunciar a seus desejos políticos pelo bem do acordo com aqueles que não partilham deles.
A “longa revolução” que Williams elogia foi descrita mais cautelosamente por um pensador a quem ele se refere apenas uma vez: Alexis de Tocqueville. Para Tocqueville, a auto-obsessão, o individualismo e a fragmentação social eram aspectos separados do “inevitável” avanço da democracia. Em Da democracia na América (1835), ele argumentou que o “princípio da igualdade”, longe de ser uma invenção do movimento trabalhista (que dificilmente existia quando escreveu, e certamente não nos Estados Unidos), foi o princípio governante no desenvolvimento europeu desde a Idade Média.
Sua presciente análise da “igualdade dos seres” talvez devesse ter recebido mais atenção. Pois ele argumenta que a condição de impermanência social e mediocridade cultural, que para Williams é consequência do privilégio e do poder, é de fato resultado do processo democrático. São a erosão do privilégio, a perda das diversas classes e propriedades, e a destruição do direito hereditário que fazem com que as pessoas se separem da comunidade. Essas mudanças tornam a devoção e a lealdade redundantes e despertam o desejo de fundamentar a sociedade em contratos, interesses próprios e consentimento. Podemos não concordar com essa conclusão. Mas deveríamos reconhecer que o argumento esvazia o ônus que Williams é intelectualmente timorato demais, ou emocionalmente comprometido demais, para assumir.
Essa relutância em olhar além de suas preconcebidas conclusões é a principal falha dos textos tardios de Williams. Como muitos que investiram amor demais em um amigo imaginário, ele recarrega sua emoção através do ódio por um inimigo imaginário. As classes mais baixas se esvanecem e a classe alta emerge como principal objeto de sua atenção. Em O campo e a cidade , um ressentimento fervente forma a premissa e a conclusão do argumento, carregando o leitor para um dos mais unidimensionais levantamentos da literatura inglesa a serem recebidos como academicamente respeitáveis. Talvez seja a sensação de desesperança de sua própria nostalgia que faça com que, nesse livro, ele se volte com tal revanchismo para a nostalgia alheia, em particular a quintessencialmente inglesa nostalgia — fundamental para nossa tradição socialista — que encontra o ideal de harmonia social no passado rural.
É claro que Williams está certo ao ver um arcadismo simplificador nessa atitude. Mas está igualmente errado ao não ver nada além disso. Ele está tão imerso na antipatia pelo privilégio, pelo patronato e pela ociosidade que nenhum escritor que esteja disposto a reconhecer que a classe alta contém membros da espécie humana pode escapar a sua condenação. Crabbe, cujo maior crime foi ter sido capelão particular de um duque, deve ser chicoteado por sua visão social “estática”, que condena os ricos, mas permanece com os condenados. Jane Austen é castigada por sua visão “monetária” e por uma moralidade que a confina ao interior da casa de campo, sem ver ou sentir a miséria em seus portões. E assim o livro prossegue, com escritores que buscaram pintar a sociedade humana como ela é, reconhecendo que o humano existe em muitos níveis sociais e estilos, sendo imperfeito em todos eles.
Williams representa seu ódio pela classe alta como uma versão de seu desgosto pelo capitalismo. Mas mesmo que possa esconder de si mesmo, não pode esconder do leitor o fato de que o capitalismo não mantém sua atenção por tempo suficiente para sequer começar uma análise e que sua hostilidade é dirigida indiscriminadamente contra aqueles que “possuem”, em benefício dos que “não possuem”, quaisquer que sejam a ordem social prevalente e as fontes do agravo. No fim do livro, a intenção iconográfica é dirigida não para o amigo, mas para o inimigo — ou antes, para um amigo sentimentalizado, tornado atraente somente pela egrégia maldade do inimigo:
Os homens e mulheres que vieram do campo para as cidades não precisam que lhes digam o que perderam, assim como não precisaram que lhes dissessem o quanto poderiam ter de lutar para vencer em seu novo mundo [...] Mas importa muito se a experiência no campo [...] esteve a seu favor ou contra eles enquanto lutavam para se reajustar. Uma seleção de experiências — a visão do proprietário ou do residente, as descrições “pastorais” ou “tradicionais” — foi feita e empregada, como ideia abstrata, contra seus filhos e os filhos de seus filhos: contra a democracia, a educação e o movimento trabalhista.
Ele desdenha a tradição da literatura pastoral inglesa, acrescentando:
Eu a vi [= aproximadamente a complexa atitude que acabou de ser vilificada] se acomodar no que é agora uma nova convenção — especialmente na educação literária — [e] a senti como ultraje, em uma crise contínua e uma fronteira persistente. A canção da terra, do trabalho rural e do deleite com as muitas formas de vida com as quais dividimos nosso mundo físico é importante e comovente demais para ser docilmente entregue, em amarga traição, aos confiantes inimigos de toda real e significativa independência e renovação. 293
Essas citações tipificam o estilo tardio de Williams: vago e cheio de clichês e slogans. Com a perda da confiança no socialismo romântico de A longa revolução e Border Country , os slogans adquirem cada vez mais proeminência em seus textos. Incapaz ou não disposto a analisar seus amores e ódios, ele insiste em certas “palavras-chave” nas quais a mágica do socialismo ainda permanece e que podem ser usadas para criar a ilusão de uma teoria na ausência de uma.
Uma dessas palavras é “revolução”, que lhe era tão cara quanto era para Althusser, embora aplicada de modo muito mais amplo e, na verdade, a cada transformação que aprovava. Tragédia moderna exalta a “alternativa viva” de nosso tempo, que consiste no “reconhecimento da revolução como ação integral de homens vivos”, 294 e a linguagem é característica. Williams não argumenta pela revolução nem a descreve; ao contrário, ele toma a palavra “revolução” e a recobre de encantadoras abstrações: é “ação integral” de “homens vivos”. (Dificilmente poderia ser ação parcial de fantasmas.) Daí decorre que, “muito urgentemente, em nosso próprio tempo, precisamos retornar à ideia de revolução em seu ordinário sentido de crise de uma sociedade, em seu necessário contexto como parte de uma ação integral, que é o único contexto no qual pode ser compreendida”. 295
Tal prosa ofegante deve ser novamente entendida como iconografia. A revolução é tornada agradável por meio de ideias associadas: o objetivo é desencorajar o pensamento e obter a fantasia. A revolução deve se tornar uma ideia essencialmente atraente, e não crítica. “Desde 1917”, escreve ele, escolhendo a data crucial, “vivemos em um mundo de revoluções sociais bem-sucedidas.” 296 E ainda mais significativo:
Amigos na União Soviética me dizem que a batalha decisiva da revolução foi vencida em quase metade do mundo e que o futuro comunista é evidente. Ouço com respeito, mas acho que eles ainda têm quase tanto a fazer quanto nós e que a sensação de que a revolução acabou pode ser tão incapacitante quanto a sensação de que, de qualquer modo, é inútil [...] 297
Como seus amigos na União Soviética, Williams cultivou a arte do pensamento duplo. Ele foi capaz de transformar seu comprometimento com símbolos, e não ideias, em algo ao mesmo tempo academicamente respeitável e ideologicamente correto.
Palavras-chave — “o registro de uma investigação do vocabulário” — fornece a pista para seu pensamento tardio. O livro, que não é nem um dicionário, nem um glossário, mas uma obra de autoexposição ideológica, é um ataque a outro bastião da classe dirigente, o Oxford English Dictionary , cuja suposta “neutralidade” é meramente a expressão de um “humanismo burguês”, dos valores de uma classe que não sente necessidade de justificar seu domínio. Escondida aqui e ali entre as tendenciosas entradas, está sua contribuição final para as guerras culturais: um ataque à própria disciplina de crítica literária como “ideológica”,
não apenas no sentido de que assume a posição do consumidor , mas também no sentido de que mascara essa posição com uma sucessão de abstrações de seus termos reais de resposta (como julgamento, gosto, cultura, discriminação, sensibilidade; desinteressada, qualificada, rigorosa e assim por diante). Isso impede ativamente aquela compreensão da resposta que não assume o hábito (ou direito, ou dever) de julgamento. 298
A implicação é que Johnson, F. R. Leavis, T. S. Eliot e todos os outros grandes “consumidores” de literatura se apoiam, para ter autoridade, na questionável hipótese de que a resposta literária e o julgamento literário são a mesma coisa. A palavra “consumidor”, aqui, funciona como elemento mágico, levando-nos, por associação, ao campo socialista. Tendo rejeitado o “consumismo”, devemos reconhecer, sem argumentar, que há outro modo de compreender a literatura, no nível da “especificidade” característica da “prática”.
Assim, Williams invoca a ideia de Gramsci de que a práxis revolucionária envolve a tomada da cultura. E imagina que pode assumir o controle da cultura meramente definindo as palavras de outra maneira e dispondo, em algumas poucas linhas, não apenas de toda a tradição inglesa de crítica literária, como também de uma filosofia estética que tem suas raízes em Kant e afirma que experiência estética e julgamento estético são inextricáveis. Williams não passa a sensação de que alguém possa ter argumentado em favor da visão que ele rejeita. Ao contrário, ele a apresenta como se fosse simplesmente uma presunção inconsciente da linguagem da crítica, adotada como parte da consciência de classe da inimiga burguesia.
Creio que a palavra mágica de seus textos tardios surge do desejo de manter a qualquer custo o nível de comprometimento emocional e distrair a atenção de qualquer argumento ou percepção que possa mostrá-lo como autoilusório. Essa postura, que levou à atitude “etimológica” de Palavras-chave , também levou à tentativa de ocultar sua candeia no interior da caixa de abstrações da Nova Esquerda. Mas arder em segredo ainda é arder e as veementes paixões de O campo e a cidade continuam a brilhar no escuro:
“Arte” como dimensão categoricamente separada, ou corpo de objetos, e “estética” como isolado fenômeno extrassocial: cada uma delas teve fim pelo retorno à variabilidade, relatividade e multiplicidade da prática social atual. Podemos vê-las mais claramente na função ideológica das abstrações especializantes da “arte” e da “estética”.
O jargão aqui é o do escritor que aprisionou seu pensamento em uma linguagem sobre a qual não exerce nenhum controle intelectual. Embora possamos adivinhar o que se segue — que as categorias de “arte” e “estética” pertencem integralmente aos modos capitalistas de produção e se tornaram proeminentes com a fabricação de mercadorias para troca —, isso ocorre com a lógica de um ritual, e não de um argumento. Somente a tensão emocional da prosa nos faz lembrar do escritor, sacudindo o punho para o horizonte enquanto o barco da história zarpa para o mar.
De fato, há um argumento que mostra que a categoria da estética pertence à ideologia burguesa e deixou de ser funcional no mundo em que vivemos. Mas coube ao mais distinto pupilo de Williams, o crítico Terry Eagleton, expor esse argumento. Em A ideologia da estética , Eagleton passa toda arte e toda literatura pela calandra da queixa, a fim de espremer o suco da dominação. 299 Na época de seu argumento — ao qual tentei responder em outro livro 300 —, os intelectuais de esquerda haviam se movido da Associação Educacional dos Trabalhadores para a New Left Review e foi em suas páginas que as guerras da cultura foram travadas mais seriamente.
A Review foi fundada em 1960, quando a New Reasoner e a Universities and Left Review se fundiram, unindo as principais figuras da velha esquerda intelectual. Seu primeiro editor-chefe foi Stuart Hall, o sucessor de Richard Hoggart como diretor do Centro Birmingham de Estudos Culturais Contemporâneos. Hall era mais da Velha que da Nova Esquerda e expressou os objetivos da Review , em seu primeiro editorial, em uma linguagem que lembra Raymond Williams:
A tarefa do socialismo é encontrar as pessoas onde elas estão , onde são tocadas, mordidas, comovidas, frustradas, nauseadas — a fim de desenvolver o descontentamento e, ao mesmo tempo, dar ao movimento socialista algum senso direto dos tempos e costumes que vivemos.
Hall, nascido na Jamaica, escreveu como Williams fazia, constantemente olhando por cima do ombro para a classe operária em desaparecimento. O seu era o tom de voz que conheço da casa socialista em que fui criado. E, se esse tom tivesse sido retido, a New Left Review teria desaparecido no horizonte, assim como Williams.
Contudo, em 1962 Hall foi substituído pelo muito mais radical editor Perry Anderson, que permaneceu no cargo até 1983 e está até hoje no conselho editorial da revista. Anderson era, na época, seguidor consciente de Gramsci, com uma atitude desdenhosa e de muitas maneiras aristocrática em relação à cultura estabelecida da Inglaterra, incluindo sua tradição de crítica social e literária. Educado em Eton e Oxford, erudito, enérgico e comprometido, com talento para espremer a história dentro do modelo marxista, poderia ter tido uma carreira de sucesso como historiador acadêmico. Contudo, identificou-se completamente com a mentalidade oposicionista da New Left Review e a usou como plataforma para sua própria revolução cultural. A revista seria cosmopolita, sofisticada e desdenhosa em relação a todos os establishments, incluindo o da esquerda.
Em anos recentes, Anderson emergiu como crítico sóbrio, melancólico e penetrante dos tempos em que vivemos. Na London Review of Books e outras publicações, apresentou comentários analíticos circunspectos e abrangentes sobre um mundo no qual o “neoliberalismo” substituiu o “capitalismo” como corrupção que tudo permeia.
Nos anos 1960, todavia, foi tomado por uma paixão iconoclasta que varreu todas as suas hesitações e o deixou determinado a transformar a NLR no equivalente inglês da Les Temps modernes de Sartre. Ele apresentou Althusser, Mandel, Adorno, Debray, Lacan e dúzias de outros ao leitor inglês, publicando seus textos na Review ou sob o selo editorial New Left Books — que, com o novo nome Verso, permanece sendo a principal fonte de real pensamento de esquerda. Assim, foi uma grande força por trás do “currículo alternativo” das ciências humanas e sociais. Ao marxizar a história da humanidade e publicar mordazes polêmicas contra as principais figuras intelectuais, tentou desestabilizar a cultura da velha Inglaterra e substituí-la por sua própria cultura de elite.
Anderson reconheceu que a esquerda estará preparada para argumentar seriamente somente com aqueles que são naturalmente descritos como parte dela. A charlatanice e a irracionalidade são pequenos defeitos para a esquerda: o que importa é a suprema lealdade ao “bloco histórico” de Gramsci, que une intelectual e proletário na oposição às “coisas estabelecidas pela lei”. Não importa muito que as questões sejam evitadas, os argumentos, distorcidos, ou a linguagem, abusada — tudo isso é de menor importância em um escritor cuja mentalidade é verdadeiramente oposicionista. De fato, foi precisamente ao preencher as páginas da New Left Review com as obras de charlatões que Anderson garantiu sua popularidade entre aqueles que se mostravam hostis às “estruturas” oficiais de educação, para quem a ênfase tradicional na competência intelectual era um instrumento burguês de dominação.
Desse modo, a New Left Review forneceu a base de poder ideal para a mentalidade radical dos anos 1960: antiacadêmica, mas com enormes pretensões intelectuais; culta, mas impaciente com a cultura prevalente; dogmática, mas abrangente e imaginativa em sua escolha de inimigos. Seus escritores incluíam a velha guarda revolucionária — Hill, Williams, Hobsbawm e Deutscher —, assim como as estrelas em ascensão da nova hegemonia cultural — Tom Nairn, Alexander Cockburn, Juliet Mitchell, Terry Eagleton e o próprio Anderson. Artigos e entrevistas com Castro e Mao ficavam lado a lado com as débeis efusões de Michael Foot e Eric Heffer, enquanto — tal era o extraordinário temperamento dos anos 1960 — figuras respeitáveis como Conor Cruise O’Brien e Richard Hoggart se acotovelavam com inconformistas como Werner Fassbinder e Régis Debray.
A revista conquistou reconhecimento em 1968, quando Perry Anderson publicou o ataque à antiga cultura inglesa que fez seu nome. Em um longo artigo intitulado “Componentes da cultura nacional”, 301 ele fez um levantamento de toda a cultura “oficial” do pós-guerra britânico e a condenou como cultura de reação, devotada a sustentar as ruínas de uma ordem social estilhaçada e implacavelmente hostil à emergente cultura da elite revolucionária.
Seu diagnóstico do declínio cultural da Grã-Bretanha é simples:
A cultura da sociedade burguesa britânica é organizada em torno de um centro ausente — uma teoria total de si mesma que deveria ter sido uma sociologia clássica ou um marxismo nacional. A trajetória da estrutura social inglesa — acima de tudo, a não emergência de um poderoso movimento revolucionário da classe operária — é a explicação para esse desenvolvimento interrompido.
Essa tese foi adotada por outros — notavelmente por Terry Eagleton. Mas note a consequência: uma cultura saudável só pode ser garantida por uma “teoria total de si mesma”. Como isso se aplica às culturas saudáveis das eras precedentes é incerto. Mas que não se aplica à nossa é evidente. Nossa cultura foi asfixiada por teorias de si mesma. Nunca antes houve tantas teorias, tão assiduamente oferecidas por aqueles que não podem fazer nenhuma contribuição real para a coisa que estudam. E por que nossa “teoria totalizante” deveria ser marxista? Isso salvou as culturas da Rússia, da Polônia, da China ou do Vietnã?
Mas o artigo de Anderson está menos preocupado com a sugestão positiva incluída em seu diagnóstico que com os intrigantes sintomas de declínio. Graças à ausência de uma teoria marxista, “uma emigração branca rolou pela plana extensão da vida intelectual inglesa, capturando setor após setor, até que essa cultura tradicionalmente insular foi dominada por expatriados de calibre heterogêneo”. Os emigrantes vermelhos (Brecht, Lukács, Horkheimer, Marcuse) foram para lugares menos roliços (Rússia, por exemplo): o que recebemos foi o pior dos lacaios da burguesia que, deslocados primeiro pelo nazismo e então pela “vitória do comunismo na Europa Oriental”, fugiram para a Grã-Bretanha em busca da ordem reacionária que desejavam. Nossa debilitada cultura foi imediatamente tomada por eles — a filosofia, por Wittgenstein, a antropologia, por Malinowski, a história, por Namier, a “teoria social”, por Popper, a teoria política, por Berlin, a estética, por Gombrich, a psicologia, por Eysenck e a psicanálise, por Melanie Klein.
A tese é suportada pelos mais débeis argumentos. A filosofia britânica deve tanto a Russell e Austin quanto a Wittgenstein; a historiografia britânica deve tanto a Toynbee, Tawney e Trevor-Roper quanto a Namier; a psicanálise britânica deve tanto a Bowlby e Winnicott quanto a Klein; e assim por diante. Mas tal é o comprometimento de Anderson com sua prevista conclusão que sua identificação do inimigo e seu desdém pela árida cultura que esse inimigo tentou nos impor varrem todas as objeções. Ele pausa apenas para considerar o difícil caso da crítica literária — a defesa da própria cultura — na pessoa de Leavis. Ele está preparado para admitir que Leavis não era um “emigrante branco” (embora seu nome não seja um pouco suspeito, quando paramos para pensar?). Contudo, “não tendo nenhuma formação sociológica e registrando um declínio, mas sendo incapaz de fornecer uma teoria que o explicasse, Leavis foi pego pela armadilha do nexo cultural que odiava”.
Essa rejeição é significativa. Pois uma das forças da cultura britânica é ter produzido não teorias sociológicas de si mesma, mas crítica social e cultural. Rejeitar Leavis é rejeitar Burke, Coleridge, Arnold, Hazlitt, Ruskin e Eliot, todos iluminadoras presenças críticas na cultura nacional. Mas indicar isso não serve ao propósito de Anderson. Tais fatos contêm sementes demais de hesitação e escrúpulos para serem usados para seu polêmico objetivo.
Há outra maneira de ver sua ficcional lista de “emigrados brancos”. Namier, Wittgenstein, Gombrich, Popper, Klein, Berlin etc. eram todos total ou parcialmente judeus. Isso também deve ter sido considerado razão para rejeitá-los como “não britânicos” e a cultura promovida por eles como poluição do que, de outro modo, seria nosso socialismo nativo. Ter descoberto uma conspiração cultural liderada por emigrados brancos judeus plutocratas, envenenando nossa cultura nacional com sua poluída herança intelectual, é ter percorrido um longo caminho em uma estrada familiar e desonrosa. Talvez não seja uma crítica justa, mas o desprezo de Anderson pelas evidências e sua descuidada necessidade de uma briga claramente o levaram para águas perigosas. E a analogia nasceu de seu próprio estilo venenoso:
O efeito entorpecedor de tal configuração cultural e sua silenciosa e constante corroboração do status quo social são mortais. A cultura britânica, como agora constituída, é uma forma profundamente danosa e asfixiante, operando contra o crescimento de qualquer esquerda revolucionária.
Em textos subsequentes, o veneno e o desejo de caricaturar seu alvo se tornam menos evidentes e a luta revolucionária é alegremente adiada para aqueles que virão depois de nós. Pois Anderson tem a história a seu lado e o tempo em suas mãos. Nos anos 1970, portanto, ele decidiu minar a cultura dominante ao expropriar seus recursos, a fim de construir uma versão marxista da história universal. Em dois influentes e impressionantes livros — Linhagens do Estado absolutista (1974) e Passagens da Antiguidade ao feudalismo (1974) —, ele forneceu à Nova Esquerda um muito necessário guia para o passado.
O alcance de seu conhecimento histórico nesses dois livros é extraordinário: nenhuma sociedade terrena e nenhum período parecem escapar de sua atenção e, embora suas fontes sejam amplamente secundárias, é impossível não ficar impressionado com o fato de que incluem autoridades francesas, italianas, alemãs e russas, muitas das quais permanecem sem tradução. Há, realmente, muito a ser aprendido nessas obras, tanto sobre o tema da história mundial quanto sobre a aplicação da teoria marxista ao explicá-la. Anderson tenta fazer pela visão marxista da história o que Spengler e Toynbee fizeram pelo competidor “burguês”: fornecer uma única morfologia na qual qualquer desenvolvimento histórico possa se encaixar.
Se ele obteve ou não sucesso depende do que achamos que um relato marxista da história deveria ser. Até hoje, a autointitulada historiografia “marxista” se dedicou quase exclusivamente à tarefa de identificar e descrever os períodos “revolucionários”, nos quais o poder é violentamente transferido de uma facção da sociedade para outra. Ademais, nem todos os modos de identificar esses períodos são genuinamente marxistas — ou seja, genuinamente comprometidos com a teoria materialista das revoluções — e é significativo que os assim chamados historiadores marxistas raramente mostrem qualquer ligação real com essa teoria.
Considere Christopher Hill, cuja análise da “revolução” britânica no século XVII se preocupa quase exclusivamente com a ideologia dos protagonistas e apenas brevemente com os conflitos materiais expressos nela. 302 E, na verdade, o tumulto do século XVII não pode ser explicado em termos de conflito entre forças produtivas e relações de produção. Os conflitos foram o que pareciam ser: ideológicos, políticos e pessoais, além de econômicos. Até a ideia de “antagonismo de classe” é, nesse caso, extremamente artificial, pois os grupos opostos eram, de cada posição marxista, facções no interior da mesma classe.
Anderson tenta retificar essa fraqueza da historiografia marxista — essa quase “burguesa” preocupação com a ideologia, as instituições e a lei. Assim, adota uma terminologia marxista impregnada com a desejada interpretação. As classes mais baixas são “os produtores”, e a classe alta, “os exploradores”; a ordem econômica é um “modo de produção”; a religião, a lei e a política são “superestruturas”; a atividade econômica é “a extração da mais-valia”; e assim por diante. Isso implica massivo comprometimento com a teoria da história de Marx, incluindo tudo que é contencioso nela, como a teoria da exploração e da mais-valia e a distinção entre superestrutura e base. Como fica a história resultante?
Nas páginas finais de Linhagens do Estado absolutista , lemos que:
O capitalismo é o primeiro modo de produção da história no qual os meios pelos quais a mais-valia é retirada do produtor direto possuem forma “puramente” econômica — o contrato salarial: a troca igualitária entre agentes livres que reproduz, a cada hora e dia, a desigualdade e a opressão. Todos os modos de exploração anteriores operaram por meio de sanções extraeconômicas — parental, religiosa, legal ou política [...] As “superestruturas” do parentesco, da religião, da lei ou do Estado que necessariamente entram na estrutura constitutiva do modo de produção pré-capitalista não podem ser definidas exceto via suas superestruturas políticas, legais e ideológicas.
Em outras palavras, somente o capitalismo é realmente suscetível à descrição e explicação em termos marxistas. Nos sistemas pré-capitalistas, a superestrutura pertence à base ou, para falar mais honestamente, a distinção entre base e superestrutura desmorona e, com ela, a teoria marxista da história. A historiografia “burguesa”, como exemplificado no poderoso Constitutional History of England , 303 de Maitland, não é diferente da historiografia marxista quando aplicada à sociedade pré-capitalista.
Se assim é, todavia, o grande design da historiografia marxista está destruído. Já não é possível ver o capitalismo como resultado das formações pré-capitalistas, dado que as “leis do movimento” que explicam um não explicam as outras. É igualmente impossível argumentar que o capitalismo se desenvolverá em alguma formação “pós-capitalista” ou predizer que formação será essa — pois as leis de movimento da sociedade capitalista permanecem peculiares a ela e só são aplicáveis à estreita esfera do “contrato salarial”.
Nenhum membro da Nova Esquerda ficaria preocupado com essas críticas. As credenciais do parágrafo de Anderson derivam inteiramente do vocabulário marxista e do tom de voz oposicionista. Essas duas características estão conectadas. As referências a “sociedades de classes”, “produtores imediatos”, extração de “trabalho excedente” e “exploração” estão unidas por um sentimento atraente — o sentimento revelado na afirmação de que o capitalismo “reproduz, a cada hora e dia, a desigualdade e a opressão”. O bathos de “a cada hora e dia” lembra Thompson e Williams. E serve para distrair a atenção do fato de que essa conclusão não é provada por nenhum argumento, mas meramente convidada pelo estilo. A causalidade sugerida pelo termo “reproduz” não poderia ser concebivelmente estabelecida com base nos poucos farelos de teoria que Anderson oferece. Mas o vocabulário marxista é suficiente, dado que veste a premissa do argumento de Anderson com o sentimento de sua conclusão. Como argumentei no capítulo 1, a primeira preocupação dos movimentos revolucionários de esquerda tem sido capturar a linguagem, para mudar a realidade ao mudar a maneira como a descrevemos e, consequentemente, a maneira como a percebemos. A revolução começa com um ato de falsificação , exemplificado igualmente pelas revoluções francesa e russa, assim como pelas revoluções culturais no campus contemporâneo.
A principal tese de Linhagens do Estado absolutista — a de que o Estado “absolutista” é produto do capitalismo e da superestrutura política que ele requer — é tão plausível quanto a explicação de Wittfogel para o despotismo oriental como uma política de irrigação. 304 Mesmo assim, a despeito da estranha conclusão de que os Estados Unidos modernos são mais absolutistas e opressivos que a França de Luís XIV, escritores da Nova Esquerda foram instintivamente atraídos para a interpretação de Anderson. Pois ela identifica o capitalismo como forma de opressão política e, desse modo, fornece um catalisador para a ação. Como com a teoria da hegemonia de Gramsci, ela identifica o capitalismo como algo feito e, portanto, algo que pode ser desfeito ao se desfazer a cultura capitalista.
Em Passagens da Antiguidade ao feudalismo , Anderson trata de uma das áreas constantemente problemáticas para a historiografia marxista, a da transição das economias antigas para as feudais. O livro é um tour de force de condensada erudição e detalhes. Sempre que possível, ele reproduz as explicações já oferecidas por outros marxistas. Mas a insuficiência de tais informações prontas para consumo o faz se apoiar pesadamente em fontes “burguesas”. O resultado — com uma ou outra digressão — é história burguesa. O desenvolvimento do mundo antigo é descrito em termos de leis e instituições, e o que deveria ter sido a transição “revolucionária” da antiga escravidão para a servidão medieval é representada como foi: um processo de constante emancipação, interrompido por facções em luta e pelo choque entre civilizações.
Anderson reconhece que o direito romano sobreviveu à transição, assim como muitas outras instituições políticas, religiosas e sociais: fatos que são estritamente incompatíveis com a teoria marxista. Ele também reconhece que a Igreja católica influenciou e transformou a cultura do Império sem modificar seriamente sua “base material”: um fato que, novamente, é incompatível com a teoria de Marx. Ele admite a grande realização civilizadora da sociedade carolíngia e a “nova síntese” por meio da qual ela preservou a realidade legal e política da Europa. E, de todas essas maneiras, repete a visão “burguesa” da história europeia, como desenvolvimento regular das instituições interrompido, como são todas as coisas, pela ambição, violência e zelo religioso de alguns instigadores e pelos ciclos de inquietação popular. Ele até mesmo reconhece que o feudalismo foi um sistema judicial , e não econômico, e que sua essência residia na hierarquia de instituições pelas quais a soberania era “mediada” até o súdito. Nada poderia estar mais distante de Marx, com exceção, talvez, de uma concessão final à verdade, ou seja, que muitas relações “feudais” eram, em essência, realmente “capitalistas”. 305
Anderson faz algumas tentativas de reter a teoria marxista, pelo uso do rotineiro mecanismo de epiciclos ptolomaicos. Ele admite que:
Contrariamente a crenças amplamente recebidas entre marxistas, a “figura” característica da crise em um modo de produção não é aquela na qual vigorosas (econômicas) forças de produção irrompem triunfalmente em retrógradas (sociais) relações de produção e imediatamente estabelecem uma produtividade mais elevada e uma sociedade sobre suas ruínas [...] 306
Mas, longe de reconhecer nessa observação a morte da teoria marxista da história, ele restabelece o status quo . As relações de produção “devem primeiro ser radicalmente modificadas e reordenadas, antes que novas forças de produção possam ser criadas e combinadas para um modo de produção globalmente novo”. 307 Essa emenda, contudo, reverte precisamente a causalidade postulada por Marx. Abre-se o caminho para que nos unamos aos historiadores burgueses e argumentemos que as “relações de produção” podem ser “determinadas de cima” por leis e instituições que as guiam e dificultam. Essa seria a mais razoável conclusão dos fatos que o próprio Anderson cita. Nesse caso, já não poderíamos distinguir a base da superestrutura da maneira exigida pela teoria de Marx. É precisamente a passagem da Antiguidade para o feudalismo que mostra a invalidez da distinção. E também torna a linguagem do marxismo — “relações de produção”, “forças produtivas”, “produtores” e assim por diante — tanto ociosa quanto cientificamente perniciosa em suas implicações de que uma explicação desacreditada ainda pode (por alguma contorção ptolomaica) ser salva.
Como já argumentei, as revoluções começam com o encapsulamento da realidade na novilíngua e, consequentemente, são assombradas pelo medo de que a realidade escape de sua caixa e se torne visível como realmente é. Reescrever a história burguesa em marxês, como faz Anderson, é como reescrever o movimento de sonata de Haydn com um contínuo e dominante rufar de tambores, de sorte que tudo fica infectado por uma premonição de catástrofe e nada se resolve. O trabalho intelectual da Nova Esquerda tem sido não o de comprovar a teoria marxista, mas o de descrever o mundo como se ela fosse verdadeira, de modo que cada fato existente parece ressonar com a voz distante dos oprimidos. Talvez fosse isso que Anderson tinha em mente quando escreveu que “a linguagem, longe de sempre seguir as mudanças materiais, pode às vezes se antecipar a elas”. 308 Pois a linguagem forma nossos pensamentos, nossos pensamentos informam nossas ações e nossas ações transformam o mundo. Se isso é “idealismo”, que bom para o idealismo.
Nesse ponto, contudo, Anderson hesita. Pois agora confrontamos o problema da agência. A linguagem da Nova Esquerda é uma linguagem de acusação e desafio. Mas essas posturas só fazem sentido se seus alvos são concebidos como agentes, responsáveis pelas mudanças que causam. E. P. Thompson, para seu crédito, aceitou alegremente essa consequência e argumentou que, se há uma coisa chamada “luta de classes”, é porque as classes são protagonistas da história, motivadas por identidade, responsabilidade e vida coletiva partilhadas. A classe operária foi criada, na visão de Thompson, precisamente por sua própria consciência de si quando a classe “em si” e a classe “para si” se tornaram uma só. Como argumentei anteriormente, as consequências disso são radicalmente antimarxistas, tanto teórica quanto, por assim dizer, sentimentalmente. Não surpreende, portanto, que a atitude de Thompson tenha recebido uma resposta balística de Anderson.
Em uma dessas notáveis polêmicas nas quais as pessoas da esquerda exibem sua convicção de que as disputas sérias são todas internas a seu campo, ele trata diretamente do problema da agência e escolhe Thompson como alvo. E reproduz a linha do Partido no estilo Pravda :
O problema da ordem social será insolúvel enquanto a resposta para ele for buscada no nível da intenção (ou avaliação), por mais complexa ou emaranhada que seja a madeixa da volição, por mais definida em termos de classe que seja a luta de vontades, por mais alienado que seja o resultado final de todos os atores imputados. É, e deve ser, o modo de produção dominante que confere unidade fundamental a uma formação social, alocando posições objetivas às classes em seu interior e distribuindo os agentes dentro de cada classe. O resultado é, tipicamente, um processo objetivo de luta de classes. 309
E, contudo, ele claramente não está feliz com essa linha que, ao negar a agência, transforma tanto a classe quanto seus defensores em “objetos” e a “luta de classes” em algo meramente “objetivo”.
Pego nesse dilema, ele experimenta muitas incursões na verdade burguesa, confessando, por exemplo, que “a Revolução Russa é [...] a encarnação inaugural de um novo tipo de história, fundada sobre uma forma sem precedentes de agência” — em outras palavras, a Revolução foi algo não sofrido, mas feito . (Os atuais livros escolares de história na Rússia a descrevem não como revolução, mas como golpe de Estado, a fim de distanciar Putin, o líder benigno, de Lenin, o assassino em massa.) E, todavia, Anderson não consegue aceitar a consequência geral, que é o fato de a moderna história ser mais um padrão de escolha coletiva que uma transformação material.
Ele se resgata desse dilema com a ajuda da opacidade althusseriana. O “erro conceitual” de Thompson, argumenta,
é amalgamar essas ações, que são de fato volições conscientes no nível pessoal ou local, mas cuja incidência social é profundamente in voluntária (relações entre idade de matrimônio, digamos, e crescimento populacional), com aquelas ações que são volições conscientes no nível de sua própria incidência social , sob a única rubrica de agência. 310
Fica aparente, nessa frase, o quão útil para a Nova Esquerda tem sido o mecanismo althusseriano de enfática falta de sentido — ou antes, enfática falta de sentido . Thompson é castigado, acima de tudo, por ter visto que Althusser é uma fraude.
É inútil discutir com Anderson. A própria qualidade de sua prosa nesse confronto ideológico mostra a extensão em que a novilíngua marxista se tornou, para ele, não um instrumento de pensamento, mas uma defesa contra ele. O ultraje cometido por Thompson foi precisamente não ter chegado a tal nível de desonestidade intelectual que a diferença entre ciência e alquimia já não importava para ele. Thompson estava preparado até mesmo para insistir no “óbvio ponto, que os marxistas modernos ignoraram, de que há uma diferença entre o poder arbitrário e o império da lei”. 311 A observação provoca uma tempestade de protestos de Anderson, que ataca com cada sofisma sob seu comando, argumentando, no fim, que “uma tirania pode perfeitamente ser regida pela lei: suas próprias leis”. 312
Na verdade, as tiranias comunistas não podiam governar pela lei, nem mesmo suas próprias leis, das quais a polícia secreta e o Partido estavam isentos. Se Thompson se provou ocasionalmente tão perturbador para a Nova Esquerda, foi parcialmente por causa de sua habilidade de remover todo o lixo ideológico que foi empilhado contra as portas pelas quais os fatos poderiam entrar. Por trás da polêmica de Anderson, existe uma tentativa desesperada de salvar a “verdade socialista” das maliciosas invasões da realidade.
No fim, contudo, a linguagem fortificada da Nova Esquerda não garantiu sua sobrevivência emocional. Provou-se necessário, durante o reinado de Anderson na NLR , manter os desacreditados mitos da história marxista — por exemplo, o mito de que a classe operária inglesa foi traída por sua autoconsciência, que a levou a escolher a parlamentar, e não revolucionária, “estrada para o socialismo”. 313 Foi necessário aceitar a enganosa teoria da “revolução traída” de Trotski, dado que, “como cada estudo marxista sério da revolução demonstrou, foi o cruel ambiente interno de escassez geral, aliado à emergência externa do cerco militar imperialista, que produziu a burocratização e o Estado na URSS”. 314 A escolha da linguagem é reveladora: não chegar à conclusão correta é simplesmente mostrar que você não é, afinal, um marxista sério. Além disso, revoluções tardias se beneficiaram do alterado equilíbrio de forças causado pela stalinização e, assim, podemos ter certeza de que, no longo prazo, o processo foi benéfico. Quanto àqueles historiadores burgueses que coletaram o que julgaram ser evidências conclusivas de que a “escassez” mencionada por Anderson foi deliberadamente criada por Lenin e pelos bolcheviques, seus argumentos simplesmente não merecem menção. Se, de tempos em tempos, um desertor da Nova Esquerda diz algo desconfortável, todo o aparato da novilíngua stalinista pode ser chamado para enterrá-lo:
[...] o leninismo que Althusser buscou retomar foi esmagado pela manipulação burocrática das massas e pela colusão diplomática com o imperialismo do Partido Chinês, no qual ele ingenuamente tentou projetá-lo. No Ocidente, a colheita do maoismo, por sua vez, cedeu abundantes renegados para a direita. Glucksmann e Foucault, anteriormente saudados por Althusser, competem hoje em zelo pela guerra fria com Kołakowski, já saudado por Thompson. É difícil pensar em qualquer aderente do humanismo socialista que tenha afundado tanto como literato quanto Sollers, recente defensor do materialismo anti-humanista [...] 315
Subsequentemente, em Nas trilhas do materialismo histórico (Londres, 1984), Anderson se voltou contra as modas continentais com as quais já enchera as páginas da NLR . O “estruturalismo” e o “pós-estruturalismo” foram considerados hostis à constante busca por uma filosofia marxista viável. Paris foi denunciada como “capital da reação”, com toda a alternativa trotskista sendo manchada pela “exorbitância da linguagem” francesa, assim como pelos mitos e ilusões que crescem em sua própria unilateralidade. Até Habermas — respeitado por sua obstinada reiteração dos compromissos esquerdistas — falha, no fim, em fornecer a ponte para o verdadeiro agente de emancipação: a classe operária revolucionária. E assim por diante. O que é notável em tudo isso não é a mudança de foco ou inimigo, mas sim o que permanece inalterado e era, na verdade, a maior de todas as ilusões: o mito da classe operária revolucionária, que não apenas deseja “emancipação”, como a deseja por meio de uma aliança com pessoas como Anderson.
Assim, como foi construída sobre a teoria gramsciana do “bloco histórico”, a “revolução cultural” finalmente morreu na Grã-Bretanha. A parte crucial daquele bloco, a classe operária revolucionária, ausentou-se sem permissão por volta dos anos 1970. As guerras culturais, como consequência, migraram para os Estados Unidos, país que jamais teve proletariado revolucionário e onde há apenas a cultura para capturar. A cultura permaneceu o principal campo de batalha entre a esquerda e a circundante “ordem” capitalista, mas a batalha foi lutada por pessoas que a viam somente em termos culturais, sem referência a um parceiro proletário. Os guerreiros culturais americanos não rejeitaram, como Thompson e Anderson, as alternativas estruturalistas e pós-estruturalistas criadas em Paris, acolhendo-as como chave para remodelar todo o programa. Duas figuras, em particular, foram influentes nesse processo: Richard Rorty e Edward Said. Renunciando a qualquer tentativa de se unir a uma classe operária revolucionária, eles focaram em privar a herança cultural americana da crença em sua própria legitimidade.
Richard Rorty (1931-2007) se definia como “pragmatista”, alguém que renunciou à distinção entre verdade e utilidade. Em suas palavras:
Pragmatistas veem a verdade como [...] o que nos é benéfico acreditar [...] Veem a distância entre verdade e justificativa não como algo a ser eliminado pelo isolamento de uma espécie natural e transcultural de racionalidade que pode ser usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas simplesmente como a distância entre o bom real e o melhor possível [...] Para os pragmatistas, o desejo pela objetividade não é o desejo de escapar às limitações da comunidade, mas simplesmente o desejo por tanta concordância intersubjetiva quanto possível, o desejo de estender a referência do “nós” o mais longe que pudermos. 316
O pragmatismo nos permite ignorar a ideia de uma “transcultural [...] racionalidade”. Não importam as velhas ideias de objetividade e verdade universal; tudo que importa é o fato de que nós concordamos.
Mas quem somos nós? E sobre o que concordamos? Volte-se para os ensaios de Rorty e descobrirá. Somos todos feministas, liberais, defensores das causas radicais do momento e do currículo aberto; não acreditamos em Deus ou em alguma religião herdada, nem nas velhas ideias de autoridade, ordem e autodisciplina. Decidimos quanto ao sentido dos textos, ao criar, por meio de nossas palavras, um consenso que nos inclua. Não há limitações, com exceção da comunidade a que escolhemos pertencer. E, como não há verdade objetiva, mas apenas nosso próprio consenso autogerado, nossa posição é incontestável de qualquer ponto de vista externo a ela. Os pragmatistas não apenas decidem o que pensar, eles se protegem de quem quer que não pense o mesmo.
O argumento de Rorty nos lembra que a tradicional cultura superior dos Estados Unidos não é criação “burguesa”, mas uma expressão do Iluminismo, um depósito criado pela extraordinária tentativa de transcrever a soberania popular em um estado de direito duradouro. Aos seus próprios olhos, o Iluminismo envolvia a celebração dos valores universais e da natureza humana comum. A arte do Iluminismo se estendia a outros lugares, tempos e culturas, em uma heroica tentativa de defender uma visão do homem como livre e autogerado. Essa visão inspirou o velho currículo e questioná-la tem sido a principal preocupação da universidade americana pós-moderna.
Isso explica a popularidade do outro guru relativista que citei — Edward Said (1935-2003). Trinta anos atrás, Said publicou seu livro seminal, Orientalismo , no qual castigou os eruditos ocidentais que haviam estudado e comentado a sociedade, a arte e a literatura do Oriente. Ele acusou os orientalistas de terem uma atitude denegritória e paternalista em relação às civilizações orientais. Aos olhos ocidentais, o Oriente surgia, segundo ele, como mundo de indolência e vaporosa intoxicação, sem a energia ou a iniciativa glorificadas nos valores ocidentais e, consequentemente, separado das fontes de sucesso material e intelectual. Ele foi retratado como “Outro”, o opaco espelho no qual o intruso ocidental colonial não via nada além de sua face resplandecente.
Said ilustrou essa tese com citações altamente seletivas, relacionadas a uma variedade muito estreita de encontros Oriente-Ocidente. E, enquanto despejava tanto desprezo e veneno quanto podia sobre os retratos ocidentais do Oriente, não se preocupou em examinar qualquer retrato oriental do Ocidente ou fazer qualquer tipo de julgamento comparativo para determinar quem foi injusto com quem.
Seus alvos não eram meramente acadêmicos vivos como Bernard Lewis, que conheceu o mundo muçulmano e sua cultura muito melhor que ele. Ele estava atacando uma tradição acadêmica que pode reivindicar justamente ser uma das reais conquistas morais da civilização ocidental. Os acadêmicos orientalistas do Iluminismo criaram ou inspiraram obras que entraram para o patrimônio ocidental, da seminal tradução de Galland para As mil e uma noites , de 1717, passando pela West-Östlicher Diwan de Goethe e chegando ao Rubaiyat de Omar Khayyam de Fitzgerald. É claro que essa tradição também foi uma apropriação — uma remodelação de material islâmico da perspectiva ocidental. Mas por que não reconhecer isso como tributo, em vez de desrespeito? Você não pode se apropriar do trabalho de outros se os vê como fundamentalmente “Outros”.
Na verdade, as culturas orientais têm uma dívida para com seus estudantes ocidentais. No século XVIII, no momento em que Abd al-Wahhab fundava sua particularmente obnóxia forma de islamismo na península Arábica, queimando livros e cortando as cabeças dos que discordavam dele, Sir William Jones coletava e traduzia tudo que conseguia encontrar de poesia persa e árabe e se preparava para navegar até Calcutá, onde serviria como juiz e pioneiro no estudo das línguas e culturas hindus. O wahabismo chegou à Índia ao mesmo tempo que Sir William e começou imediatamente a radicalizar os muçulmanos, iniciando o suicídio cultural que o bom juiz fazia seu melhor para evitar.
Se os orientalistas têm uma falha, não são suas atitudes paternalistas ou colonizadoras, mas, ao contrário, sua lamentável tendência de “se tornarem nativos”, à maneira de Sir Richard Burton e T. E. Lawrence, permitindo que seu amor pela cultura islâmica altere sua percepção das pessoas, a ponto de falharem, como Lawrence, em reconhecer que pessoas e cultura já não têm muito em comum. Mesmo assim, seu trabalho é um admirável tributo ao universalismo da civilização ocidental e foi desagravado por Robert Irwin em um livro que mostra que Orientalismo , de Said, é um escândalo de pseudoerudição, comparável às obras de Aleister Crowley e Madame Blavatski. 317 Irwin expõe os erros, omissões e mesmo mentiras contidas no livro e, se já não estivesse antes, agora é óbvio que a principal razão para a popularidade de Said em nossas universidades é o fato de que forneceu munição contra o Ocidente.
Essa, contudo, é uma conclusão deprimente. Pois sugere que as guerras culturais terminaram, nos Estados Unidos, em uma vitória quase universal da esquerda. Muitos daqueles que foram apontados como guardiões da cultura ocidental irão se aproveitar de qualquer argumento, mesmo que falho, ou de qualquer título acadêmico, mesmo que falso, para denegrir sua herança cultural. Entramos em um período de suicídio cultural, comparável ao sofrido pelo Islã após a ossificação do Império Otomano. Encorajados por Said, os estudantes primeiro aprendem a desprezar, e finalmente a esquecer, a perspectiva que levou aqueles nobres orientalistas a assumirem a tarefa com a qual somente alguém impregnado de cultura ocidental poderia sonhar — a de resgatar uma cultura que não a própria.
É claro que Said é veemente ao rejeitar essa tentativa e a cultura que a inspirou. Enquanto nos exorta a julgar outras culturas em seus próprios termos, ele nos pede para julgar a cultura ocidental de um ponto de vista externo — para compará-la às alternativas e julgá-la negativamente, como etnocêntrica e mesmo racista. Contudo, as críticas à velha cultura americana são, na realidade, endossos de suas reivindicações. É graças ao Iluminismo e a sua visão universal dos valores humanos que a igualdade racial e sexual possui tanto apelo entre os americanos. É a visão universalista do homem que faz com que os americanos exijam tanto de sua arte e de sua literatura. É a própria tentativa de adotar outras culturas que torna a arte ocidental refém das restrições mesquinhas de Said — uma tentativa que não tem paralelo na arte tradicional da Arábia, da Índia ou da África. E é somente uma visão muito estreita de nossa tradição artística que não descobre nela uma abordagem multicultural que é muito mais imaginativa que qualquer coisa que agora seja ensinada em seu nome. Nossa cultura invoca uma comunhão histórica de sentimentos enquanto celebra valores humanos universais. Está enraizada na experiência cristã, mas retira dessa fonte uma riqueza de sentimentos humanos que se espalha imparcialmente por mundos imaginários. De Orlando Furioso ao Don Juan de Byron, de Poppeia de Monteverdi a Hiawatha de Longfellow, de Conto de inverno a Madame Butterfly e Das Lied von der Erde , nossa cultura se aventurou continuamente em um território espiritual que não tem lugar no mapa cristão.
O Iluminismo, que colocou diante de nós um ideal de verdade objetiva, também afastou a névoa da doutrina religiosa. A consciência moral, separada da observância religiosa, começou a se ver de fora. Ao mesmo tempo, a crença em uma natureza humana universal, tão poderosamente defendida por Shaftesbury, Hutcheson e Hume, manteve o ceticismo a distância. A sugestão de que, ao traçar o curso da simpatia humana, Shaftesbury e Hume meramente descreviam um aspecto da cultura “ocidental” seria vista como absurdo por seus contemporâneos. As “ciências morais”, incluindo o estudo da arte e da literatura, eram vistas, nas palavras de T. S. Eliot, como “busca comum do julgamento verdadeiro”. E essa busca comum ocupou os grandes pensadores da era vitoriana que, mesmo ao fazerem suas primeiras incursões na sociologia e na antropologia, acreditavam na validade objetiva de seus resultados e em uma natureza humana universal que lhes seria revelada.
Como resultado das guerras culturais, tudo isso mudou profundamente. No lugar da objetividade, temos apenas “intersubjetividade” — em outras palavras, consenso. Verdades, significados, fatos e valores agora são vistos como negociáveis. A coisa curiosa, contudo, é que essa subjetividade confusa anda junto com uma vigorosa censura. Aqueles que colocam o consenso no lugar da verdade rapidamente se veem distinguindo o verdadeiro do falso consenso. E, inevitavelmente, o consenso está “com a esquerda”. Por que deve ser assim é a questão que tento responder neste livro.
Assim, o “nós” de Rorty exclui rigorosamente todos os conservadores, tradicionalistas e reacionários. Somente liberais de esquerda podem pertencer a ele, assim como apenas feministas, radicais, ativistas gays e antiautoritários podem tirar vantagem da desconstrução; apenas oponentes do “poder” podem fazer uso das técnicas de sabotagem moral de Foucault; e apenas “multiculturalistas” podem se servir da crítica de Said aos valores iluministas. A inescapável conclusão é que subjetividade, relatividade e irracionalismo são defendidos não para incluir todas as opiniões, mas precisamente para excluir as opiniões das pessoas que acreditam na velha autoridade e na velha verdade objetiva. É um atalho para a nova hegemonia cultural de Gramsci: não para defender a nova cultura contra a antiga, mas para mostrar que não há espaço para nenhuma delas, de modo que nada resta, com exceção do comprometimento político.
Desse modo, quase todos que esposam dos “métodos” relativistas introduzidos nas ciências humanas por Foucault, Derrida e Rorty aderem veementemente ao código de correção política que condena os desvios em termos absolutos e intransigentes. A teoria relativista existe a fim de apoiar uma doutrina absolutista. Não devemos nos surpreender, portanto, com a extrema desordem que tomou o campo da desconstrução quando se descobriu que um de seus principais eclesiásticos, Paul de Man, já tivera simpatias nazistas. É manifestamente absurdo sugerir que uma desordem similar teria se seguido à descoberta de que já fora comunista — mesmo que tivesse tomado parte de algum grande crime comunista. Em tal caso, teria gozado do mesmo compassivo endosso concedido a Lukács, Merleau-Ponty e Sartre. O ataque ao sentido realizado pelos desconstrucionistas não é um ataque aos “nossos” sentidos, que permanecem exatamente o que sempre foram: radicais, igualitários e transgressivos. É um ataque aos sentidos “deles” — os sentidos enclausurados em uma tradição artística de pensamento e passados de geração em geração pelas antigas formas de ensino acadêmico.
É preciso ter tudo isso em mente ao considerarmos o corrente estado das guerras culturais na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Embora haja áreas como a filosofia, que durante muitos anos foi imune ao subjetivismo prevalente, elas também começam a sucumbir. Professores que permaneceram ligados ao que Rorty chama de “tipo natural e transcultural de racionalidade” — em outras palavras, que acreditam que podem dizer algo permanente e universalmente verdadeiro sobre a condição humana — acham cada vez mais difícil apelar a estudantes para quem a negociação assumiu o lugar do argumento racional. Explicar a ética aristotélica e indicar que as virtudes cardeais defendidas por Aristóteles fazem parte da felicidade das pessoas modernas tanto quanto faziam parte da felicidade dos antigos gregos é convidar à incompreensão. O melhor que o estudante moderno consegue é sentir curiosidade: é assim, reconhecerá ele, que eles viam a questão. Sabe-se lá como eu a vejo.
A partir desse estado de confuso ceticismo, o estudante pode dar um salto de fé. E o salto jamais é para trás, para o velho currículo, o antigo cânone, a antiga crença em padrões objetivos e maneiras estabelecidas de vida. É sempre um salto adiante, para o mundo da livre escolha e da livre opinião, no qual nada possui autoridade e nada é objetivamente certo ou errado. Nesse mundo pós-moderno, não há coisas como julgamento adverso — a menos que seja o julgamento de um juiz adverso. É um mundo playground, no qual todos têm o mesmo direito a sua cultura, seu estilo de vida e suas opiniões.
E é por isso que, paradoxalmente, o programa pós-moderno é tão censurador — exatamente do modo como o liberalismo de esquerda é censurador. Quando tudo é permitido, é vital proibir o proibidor. Todas as culturas sérias foram fundadas na distinção entre certo e errado, verdadeiro e falso, bom e mau gosto, conhecimento e ignorância. Foi à perpetuação dessas distinções que, no passado, as ciências humanas se devotaram. Daí decorre que o ataque ao programa e a tentativa de impor um padrão de “correção política” — o que significa, na verdade, um padrão de não exclusão e não julgamento — também têm como objetivo autorizar um tipo veemente de julgamento, contra todas aquelas autoridades que questionam a ortodoxia da esquerda.
A consciência subliminar desse paradoxo explica a popularidade dos gurus a que me referi. As crenças relativistas existem porque sustentam uma comunidade — uma nova Umma dos desenraizados. Assim, em Rorty e Said, encontramos uma partilhada duplicidade de objetivos: de um lado, minar todas as reivindicações de verdade absoluta e, do outro, defender as ortodoxias de que suas congregações dependem. O próprio raciocínio que pretende destruir as ideias de verdade objetiva e valor absoluto impõe a correção política como absolutamente obrigatória e o relativismo cultural como objetivamente verdadeiro. A revolução cultural de Gramsci, transferida para o campus americano e para a New York Review of Books , tornou-se um verme corrosivo na cultura, um repúdio instintivo, mas não trouxe nada para ficar no lugar das coisas que destruiu, com exceção de um sombrio relativismo. A conclusão final das guerras culturais foi a de que a antiga cultura nada significa, mas apenas porque não há nada para significar.