Nota sobre as obras completas e a formação do cânone

A bibliografia pode parecer um assunto árido e um processo que apenas confere ordem ao óbvio, e o mesmo ocorre com a formação do cânone — as grandes obras simplesmente chegam como grandes obras e as menores ficam em seus devidos lugares. Mas, pelo menos com Marx, nem de longe as coisas se passam assim, e as histórias políticas são muito complexas. A presente “Nota” decorre do tema que abordei no começo do livro, avisando o leitor que “Transformando Marx em ‘Marx” é um processo de construção que envolve a bibliografia e a formação do cânone e fornecendo alguns “elementos básicos”. Aqui a apresentação é mais detalhada, embora não completa, constituindo uma espécie de guia para o pano de fundo e para a situação atual.

O próprio Marx sugeriu um projeto para a publicação de suas obras reunidas no começo dos anos 1850; após tortuosas negociações — visto que ele e sua turma estavam sob suspeita na escalada que levou à caça às bruxas e aos julgamentos anticomunistas em Colônia, no final de 1852 —, saiu a primeira parte dos Gesammelte Aufsätze von Karl Marx [Ensaios reunidos de Karl Marx], publicados naquela cidade em abril de 1851, edição hoje extremamente rara. Continha dois artigos (um na íntegra, outro parcial) datando de seu jornalismo liberal/radical de 1842.1 O contexto político dos anos 1850 sugere que seus textos jornalísticos políticos do período revolucionário e imediatamente pós-revolucionário seriam os itens principais na continuação da série. Essa hipótese parece altamente provável, pois naquela mesma época Marx e Engels também estavam negociando com um editor suíço para dar continuidade à Politisch-Ökonomische Revue, revista de ambos, de 1850, sediada em Hamburgo. Esse periódico era o sucessor do revolucionário Neue Rheinische Zeitung, também de ambos, que sucumbira nas derrotas sofridas pelas forças e regimes revolucionários de 1849.2 Nos seis números da revista, os dois autores/editores narravam os acontecimentos e as perspectivas das lutas de classe em curso na França e em outros lugares.3

Parece muito improvável que os textos manuscritos, redigidos para esclarecer suas próprias ideias, fossem comparecer nesse processo de publicação, mesmo que Marx tivesse sido motivado a terminá-los ou, pelo menos, organizá-los. Talvez em alguma circunstância ele completasse o esboço de sua Crítica da filosofia do direito de Hegel ou extraísse pessoalmente suas reflexões sobre a “alienação”4 de seus “cadernos de excertos” — que entrelaçavam citações de economistas políticos e suas reflexões críticas iniciais —, mas isso parece um tanto forçado.5 Marx já andava bastante ocupado nos anos 1850 com pesquisas realmente inovadoras sobre autores e conceitos que se mostravam mais pertinentes após a revolução do que antes dela — o que não significa de modo algum dizer que seus pensamentos iniciais não têm nada a ver com seus pensamentos posteriores. Mas, no geral, ele pouco se dispunha a um “garimpo” ou a uma reciclagem deliberada de ideias confusas anotadas em manuscritos igualmente confusos. Na verdade, ao longo dos anos, ele era mais propenso a começar de novo do que a reelaborar rascunhos anteriores, e muitas vezes também relutava em mudar seus planos minuciosamente programados.

Os manuscritos que Marx deixou de lado nos anos 1840 geralmente se dirigiam — de uma forma ou outra — a adversários políticos e a um tipo de política altamente censurada e altamente intelectualizada que deixou de existir a partir dos anos 1850. A intenção de publicar os volumes de Collected Essays parece ter sido a de repor em circulação apenas aqueles itens que levantariam questões políticas ainda correntes e ainda controvertidas, como a liberdade de imprensa e o governo representativo, e não a de olhar para o passado num exercício um tanto narcisista. No projeto de reunir suas próprias obras Marx estava agindo, como sempre, como jornalista/ativista em sua persona pública, o que se reflete no cânone definido pessoalmente por ele.

O primeiro biógrafo de Marx, Franz Mehring, catalogou os papéis dos arquivos de Marx, mas morreu antes de pensar numa edição de obras reunidas, que incluiriam os poucos volumes publicados de Marx, também de textos reunidos. Após uma tentativa inicial em 1911-3,6 esse projeto foi assumido por D. B. Riazánov, que trabalhou junto com uma equipe russo-alemã de acadêmicos e ativistas no começo dos anos 1920.7 Anos depois, ainda no mesmo decênio, Riazánov foi preso por traição ao regime soviético e substituído por um sucessor stalinista. O projeto, Marx-Engels-Gesamtausgabe, resultou em apenas onze volumes e foi interrompido no início da Segunda Guerra Mundial.

Ao contrário da coleção de ensaios sugerida nos anos 1850, o Instituto Marx-Engels de Riazánov (e as entidades parceiras na Alemanha) seguia um conjunto de princípios de orientação científica e formulação acadêmica. O modelo criado visava a ser um exemplo de precisão histórica, de rigoroso método de análise textual e escrupulosa objetividade, dentro de uma visão política e politizante de ampla abrangência, a despeito das tiragens restritas e do enorme aparato acadêmico.8 O projeto posterior, dos anos 1970, retomando o Marx-Engels-Gesamtausgabe (conhecido como mega2,9 ainda em andamento) apresenta algumas diferenças em relação ao plano e à metodologia de Riazánov, mas as linhas gerais se mantêm deliberadamente similares. São algumas dessas similaridades que quero aqui abordar e comentar criticamente, apontando os aspectos negativos desses monumentos de erudição editorial que são construídos em homenagem a um “grande homem”, mas que ratificam e confirmam esse tipo particular de construção.

O plano de Riazánov incluía não só uma cronologia e atribuição das obras de Marx e Engels, mas também uma separação e hierarquia: a Série 1 traria obras (tal como eram classificadas pelos editores, exceto O capital, que sairia em edições populares); a Série 2 traria manuscritos “econômicos” (aqui também conforme eram determinados pelos editores); e a Série 3 conteria cartas escritas por ambos.10 O mega2 é montado em moldes similares (e, desde os anos 1970, rigorosamente seguidos): a Série 1 abrange obras (tal como determinadas pelos editores), exceto O capital; a Série 2 consiste em manuscritos e publicações “econômicas”, começando em 1857-8 e incluindo O capital; a Série 3 traz a correspondência, incluindo cartas de terceiros; a Série 4 é composta dos cadernos de notas, incluindo excertos de anotações e vários itens heterogêneos.11

Se os artigos e livros publicados são fáceis de situar, os esboços não publicados de trabalhos apenas planejados (de várias maneiras) levantam diversas dificuldades. Com efeito, Riazánov inaugurou seu projeto com a “descoberta” de um “capítulo” de uma obra “planejada” por “Marx e Engels” (apenas) a ser editada num “volume” único com um título definitivo — a saber, o “capítulo sobre Feuerbach” da chamada Ideologia alemã.12 Porém o que mais salta aos olhos — embora pouco se comente — é a classificação de algumas obras, publicadas ou não, como “econômicas” (e por que não “filosóficas”, ou simplesmente — como é minha abordagem aqui — “políticas”?). Provavelmente esse fato reflete uma divisão de trabalho e de especialidades que na época parecia óbvia,13 e ainda hoje parece, dentro do projeto mega2, no qual os estudiosos de O capital ficam geralmente separados de outros especialistas.

Isso encontra talvez um vívido exemplo no título editorial dado à montagem de textos extraídos dos cadernos manuscritos, publicados como outra “obra” em 1932. Embora apareçam combinados, os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 reúnem duas categorias distintas.14 Trata-se de uma visível montagem feita a partir das “notas para si mesmo”15 de Marx, que exigiria explicações doutas em termos que o autor não usou e repudiaria vivamente: suas batalhas políticas da época se davam contra os filósofos, precisamente porque eram filósofos. Mesmo então, ele estava lidando com a economia política — não confundir com a “economia” moderna16 — como crítico movido por preocupações políticas.

Mas que tipo de violência esse processo de seletividade editorial e enquadramento tendencioso pratica contra o “pensamento” de Marx? E o que acontece com a persona que ele definira para si mesmo quando lhe é atribuído um “pensamento” — forçosamente presente em todas as suas obras —, sobretudo quando a recuperação desse “pensamento” passa a determinar o suposto sentido de seus escritos, tomados como “um todo”? Riazánov expôs sua visão com especial clareza em 1914:

[…] [uma] biografia científica de Marx e Engels é uma das tarefas mais importantes e envolventes da historiografia moderna […] Ela apresenta o desenvolvimento da visão de mundo de ambos em todas as suas fases, a qual se tornou ao mesmo tempo a teoria predominante da social-democracia internacional.17

É claro que é possível encaixar e inserir a contextualização histórica e política nos vários temas, mas isso envolve realmente minimizar (ou mesmo retirar) as intenções políticas, as atividades cotidianas e até o contexto intelectual da época. Lemos o que Marx e/ou Engels disseram sobre aqueles de cujas ideias ou estratégias discordavam, mas muito raramente lemos as obras daqueles que ambos estavam criticando. Mas, ainda que se comece pelos comentários autobiográficos de Marx em 1859 e pelas reflexões de Engels nos anos 1880, as polêmicas dos anos 1840 já tinham sido descartadas muito tempo antes como coisas tediosas, e os leitores modernos, mesmo os que dispõem do necessário domínio linguístico e de acesso a pesquisas de biblioteca, pouco incentivo têm para levar minimamente a sério alguma dessas figuras “menores”, nem mesmo para entender sobre o que Marx estava falando e por que procedeu da maneira que procedeu.18 Na verdade, o que importava para ele fica muito obscurecido, e aliás deliberadamente, por aqueles que já decidiram lê-lo como filósofo ou como sociólogo ou como economista. É algo muito parecido com a história contada pelos vencedores, que comete violência contra os vencidos. A história dos vencedores comete violência contra eles próprios, caso não nos seja apresentada uma versão plausível das razões que conferiam sentido e importância a suas lutas perante si mesmos.

Talvez seja paradoxal, mas, com a separação e distribuição dos vários textos em vários gêneros (e respectivas hierarquias), a produção das obras reunidas visa deliberadamente a uma apresentação uniforme, oferecendo assim considerável praticidade aos leitores que desejam um fácil acesso ao texto. O recurso a coletâneas fac-similares pode parecer uma maluquice em termos de produção editorial, mas, em termos de reprodução digital, temos uma ideia melhor da coisa. Um fac-símile em papel do “Manifesto do Partido Comunista” é algo instrutivo de se ver ou de fazer circular numa sala de aulas, ou entre o público de uma palestra; tem outro ar, emana outra sensação, e sua crueza evoca um mundo de lutas e ativismos. Mas a impressão tipográfica de má qualidade e as letras góticas desse folheto “descomposto” — mesmo para os que leem alemão — apresentam obstáculos à leitura.

Minha questão aqui é indagar o que acontece quando todas as obras de qualquer espécie não só são chamadas de “obras” que abrangem um “pensamento”, mas são apresentadas todas com a mesma aparência na página impressa. Assim fica fácil ler Marx como “pensador” expondo itens de “pensamento” que muitas vezes exigem ser separados da prosa “secundária”, especialmente nas polêmicas (pelas quais Marx tinha desenfreado apreço) e na correspondência (que, por definição, é repleta de elementos do cotidiano). Lidas assim, as ideias do “pensador” devem ser entesouradas como tal se forem coerentes com o que já se sabe ser seu “pensamento”, e investigadas se forem ou parecerem incoerentes com ele. Com índices remissivos — pelo menos por volume, como nas Collected Works em inglês —, fica facílimo citar “Marx” daqui ou dali, como se fosse sempre a mesma pessoa escrevendo para o mesmo público no mesmo veículo e no mesmo contexto, a despeito das breves contextualizações editoriais (neste caso, escondidas em notas de fim).

Pode-se também usar esse argumento ao contrário, como descobri quando me pediram para examinar o pensamento de Marx sobre as crises econômicas, solicitação não infrequente no clima político pós-2008. Enquanto muitos colegas, especialistas nos manuscritos “econômicos”, recorriam sem vacilar àqueles volumes “econômicos”, e, aliás, exclusivamente a eles, minha proposta foi a de reconstruir o “pensar” (mais do que o “pensamento”) de Marx durante uma crise econômica real, a saber, a quebra financeira euro-americana de 1857-8.19 Isso demandava a tarefa de coordenar, quase dia a dia, suas análises, escritos e publicações — inclusive de cartas e artigos de jornal — durante esse curto período. O objetivo era ver quais eram suas ideias e o que ele queria fazer com elas, em vez de extrair sua “teoria”, mesmo naquele ponto supostamente inicial, como se fosse uma conceitualização única e sem contexto.

Se essa abordagem era válida ou não, e se daria realmente certo ou não, é algo que continua em aberto. O que quero dizer é que a divisão tendenciosa dos escritos de Marx em gêneros de orientação acadêmica traz consequências: se a pessoa aborda Marx como jornalista/ativista, trabalhando no cotidiano, a fim de aproximar seus textos e sua experiência concreta, fica bem mais difícil se orientar no corpo das Collected Works em inglês ou do mega2 nos idiomas originais. Rastrear as “obras” dispersas em vários volumes, reexaminar nas resenhas se tal ou tal manuscrito é ou não “econômico” e coordenar tudo isso com a correspondência — que arrola as iniciativas e respostas de terceiros em separado das respectivas cartas de Marx-Engels — é, de fato, um trabalho muito árduo. Mas seria ainda mais árduo se esses itens não tivessem sido reunidos, transcritos, acompanhados de introduções e notas de rodapé, e analisados com um apparatus criticus em conformidade com a ciência bibliográfica.

O local mais importante onde se podem rastrear os desenvolvimentos que transformaram Marx em “Marx” não são as narrativas biográficas em si, mas as seleções, listagens e revisões bibliográficas produzidas ou reproduzidas pelos biógrafos. No caso de praticamente qualquer pensador, ou mesmo pintor ou compositor, a atribuição de maior ou menor status a uma obra, ou mesmo a uma “obra” manuscrita, inacabada ou em versão bruta, representa o recurso narrativo com que uma biografia avança seguindo uma linha cronológica geral. O exemplo mais claro dessa interação entre cronologia e bibliografia, à maneira de um andaime, é talvez Karl Marx: Chronik seines Lebens in Einzeldaten [Karl Marx: Crônica de sua vida organizada por data], livro admirável, porém não traduzido, de V. Adorátski, bem como trabalhos similares posteriores que utilizam o mesmo sistema. Embora a estrutura em forma de diário pareça recontar o cotidiano, qualquer que tenha sido a ocorrência num determinado dia a ser registrada de alguma maneira (normalmente em cartas), o que dá impulso é claramente a história das grandes obras, que o cronista já conhece numa determinada hierarquia, pois, do contrário, o cotidiano — assim se presume — seria de pouco interesse. Esses detalhes do cotidiano não construiriam a biografia como a de um “pensador”, embora seja cada vez mais de rigueur salpicar algumas dessas pitadas “humanas”, mesmo numa árida cronologia.20

Como vimos, a seleção e a hierarquia de obras com que Marx se apresentou a seus leitores, nas poucas vezes que fez isso, são muitíssimo diferentes da seleção e da hierarquia com que ele tem sido construído — e significativamente reconstruído várias vezes — nesses cerca de 130 anos desde sua morte.21 A conclusão aqui não é que Marx estava certo e os outros estavam errados, ou que algum dos outros está “mais certo” que os demais. Em lugar disso, minha conclusão é que o processo de formação do cânone tem outra dimensão, que requer uma exploração crítica.

Pode-se observar a formação do cânone não só nas obras individuais republicadas — ou reconstruídas e publicadas de novo —, estratégia vigorosamente adotada por Engels após a morte de Marx,22 prosseguindo desde então em ritmo acelerado. E a formação do cânone tampouco se consolida nas várias seletas e coleções de obras — completas, completadas ou selecionadas — que têm sido amplamente publicadas e mundialmente distribuídas desde os anos 1930. Pelo contrário, nos anos 1920 a formação do cânone deu uma guinada importante, alçando-se a um novo patamar, ao adotar o formato de obras completas ou de coleções importantes em vários volumes. É um processo específico que continua em andamento, mas aparenta estar acima e além de exame, como uma atividade arquivística obscura, de erudição-para-eruditos.

Agora há tiragens enormes de volumes enormes que levam a obra de Marx, tal como definida pelos bibliógrafos, a públicos de todo o mundo nas línguas originais, nem sempre o alemão, e em várias traduções uniformes. Essas coleções incorporam juízos editoriais e hierarquias bibliográficas em forte contraste com o contexto cotidiano em que Marx escreveu o que escreveu a fim de fazer o que fazia. Com efeito, os próprios atributos físicos da produção desses livros — ou mesmo as tecnologias de leitura on-line atuais — militam contra uma fusão de horizontes interpretativos entre o ativismo político cotidiano de Marx e as percepções dos leitores contemporâneos. Em suma, com a produção de obras reunidas, Marx — a despeito da homenagem a ele como “homem e combatente”23 — tornou-se mais um grande escritor ou pensador, e mesmo filósofo, nas estantes das bibliotecas e nas bibliografias de curso. Ali está Marx, junto a, mas talvez infelizmente equiparado a, congêneres como Aristóteles ou Leibniz, Kant ou Hegel, ou inúmeras outras produções no gênero acadêmico supremo — as obras completas, cartas e textos de toda espécie editados e reproduzidos segundo sólidos princípios, belamente impressos, homogeneamente encadernados e “prestimosamente” numerados, mesmo que alguns desses sistemas de catalogação e numeração sejam um desastre para bibliotecários e leitores.

Existem ganhos e perdas nessa aplicação dos princípios da ciência bibliográfica às obras de Marx, os quais assim estabelecem que a melhor maneira de entender sua vida — ainda que implicitamente — é da forma determinada pelas mais altas autoridades acadêmicas. Isso não quer dizer que seja ruim ter trinta e poucos ou cinquenta (ou quase 150) volumes de obras de Marx e de Engels na estante; quer dizer apenas que, além dos ganhos, é possível que haja perdas. É claro que ganhos e perdas se referem ao leitor e ao projeto em questão, e tenho certeza de que nem todos concordarão com meu olhar sobre a situação. O objetivo, porém, é sugerir que se faça um exame mais cuidadoso, em vez de simplesmente aceitar um produto, mesmo acadêmico, só pelas aparências. Não estou dizendo que obras reunidas nunca deveriam existir ou ser compiladas. Os autores lançam seus textos — e a vida que viveram — para os leitores e a posteridade em geral, e, portanto, não controlam o jogo de significados que se desenvolve entre leitores e acadêmicos que se esforçam, pelo menos às vezes, em despertar o interesse de um público mais amplo do que o grupo de especialistas. Tomar Marx como filósofo (sem dúvida era qualificado) funciona bem para os interessados em filosofia. O mesmo se aplica aos interessados no pensamento econômico heterodoxo (no qual ele também era qualificado) e da mesma forma à sociologia, em que ele é leitura obrigatória e, na verdade, tido como fundador. As obras reunidas se esforçam muito para torná-las atividades melhores e experiências mais enriquecedoras, até ganhando de vez em quando uma menção na televisão, em podcasts e nas mídias sociais.

Mas mesmo quando há — como em minha discussão acima — um esforço de recontextualizar essas obras como intrínseca e imediatamente políticas, isto é, tendo como alvo certos públicos específicos e mensagens talhadas de acordo, a hierarquia dentro do cânone reunido volta a prevalecer. Essa hierarquia distingue entre obras maiores e obras menores, comumente baseando-se no gênero. Assim, os artigos de jornal são incluídos, mas como mero jornalismo, e são pouco usados pelos estudiosos. Inversamente, é mais fácil que notas e manuscritos inéditos, inclusive aqueles que jamais se destinaram à publicação, ou simplesmente nem foram revistos e ficaram abandonados, sejam alçados ao status de cânone e ao exame acadêmico, precisamente porque são — ou pensa-se serem — “obras” (e não mero jornalismo), vistas com frequência como soluções de enigmas (por exemplo, os termos exatos da “interpretação materialista da história”) ou como origem de um Marx “novo” ou “desconhecido” (por exemplo, o “Marx humanista”). Em alguns casos, dá-se um processo de “promoção de gênero”, em que um trabalho bem pequeno (por exemplo, um prefácio escrito às pressas para um fascículo pouco lido) adquire importância como livro,24 ou um folheto é republicado num volume bem fininho e aí passa a ser tratado bibliograficamente como livro.25

As biografias são exercícios de visão retrospectiva, e as bibliografias são exercícios de formação do cânone. São tecnologias de produção do conhecimento e, portanto, de uma imediatez que atravessa os tempos. Mas, para obter essa imediatez (e o consequente “efeito de realidade”), essas tecnologias de alta complexidade tentam se apagar ao máximo, para não estragarem aquele panorama.26 As manchas tecnológicas nessa espécie de vidro transparente costumam ser removidas para notas de rodapé e apêndices das obras acadêmicas, em que os leitores podem ter contato com as fontes primárias e secundárias. Nas obras populares, esses traços da construção acadêmica desaparecem por completo ou são banidos para notas no final do livro.27 No entanto, a autobiografia e as biografias de Marx têm suas histórias e metodologias próprias, e cada uma delas tem seu próprio contexto e sua própria finalidade. Marx não pode ter a mesma “vida e pensamento” e a mesma lista de “grandes obras” arroladas por ordem de importância para todos durante o tempo todo em todos os lugares, quem quer que sejam essas pessoas e onde quer que estejam. Mesmo assim, a biografia intelectual definitiva continua à espreita como uma espécie de ideal platônico ou de tipo ideal weberiano, e é a ela que os marxologistas supostamente visam.28

Esse mesmo problema da teleologia e da projeção se aplica à aparência que julgamos que Marx tinha: suas primeiras imagens são do final da adolescência e até os vinte e poucos anos, mas pouca gente (a não ser os parentes mais próximos) reconheceria sem qualquer dica prévia que aquele jovem estudante de uniforme era Marx. Há um grande lapso temporal até o aparecimento nos registros históricos da primeira fotografia de verdade — tirada com quarenta e poucos anos, e com barba espessa —, mas ele só se torna instantaneamente identificável como o Marx que conhecemos (e amamos ou odiamos) quando já estava com cinquenta e tantos anos.29 Aquele “ar” professoral e um tanto autoritário foi identificado com uma persona biográfica dez anos após a imagem, e o rosto daquele homem com barba grisalha se converteu em Marx-como-Marx de uma forma atemporal e — como se vê no Cemitério de Highgate, em Londres — implacavelmente petrificada.

A representação fotográfica formal é icônica por si só, mas apenas quando se constrói intertextualmente o tipo certo de notoriedade — próxima, neste caso, da hagiografia e da demonologia — para acompanhar a imagem. Mesmo quando não restou ou nunca houve qualquer imagem autenticada, preenchemos nossos panteões com imagens grandiosas que “querem” que as vejamos assim.30 O espaço em que se encontram — seja dentro de um edifício, como monumento ao ar livre ou na capa de um livro — nos diz de imediato que são “grandes”. O retrato na capa já nos diz que o livro é uma biografia e que, salvo raras exceções, não se trata de um zé-ninguém. Poucos biógrafos nos relembram — a não ser de passagem — as imagens de “zé-ninguém” que estão mais próximas da pessoa que escreveu obras então desconhecidas ou pouco conhecidas, ou manuscritos que, desde então, têm sido construídos como “obras” ao longo dos anos.

Esses elementos essenciais de “grandeza” — a bibliografia meticulosa, a formação do cânone sob curadoria e as imagens iconizadas — tornam-se marcos fundamentais nas biografias intelectuais que têm construído de variadas formas a “vida e pensamento” de Marx. O presente livro sugere que poderíamos fazer uma pequena pausa, examinar outra perspectiva e colocar outra pergunta: o que ele estava fazendo com os escritos que chegaram até nós, quando pensava em “contribuir para uma mudança” política e, assim, criava seu próprio “Marx”, cotidiano e não icônico?