É um pouco difícil ligar o ativismo político atual às aulas de história e, na verdade, às aulas de metodologia sobre as maneiras de pensar a história. Por melhor que seja a intenção de “aprender as lições” e “não repetir os erros” do passado, o passado nunca é muito parecido com o presente, e o presente nunca é muito parecido com o passado. A questão do ativismo político é formar ou defender uma visão do futuro perante a qual o presente se mostra insatisfatório. Essa característica da atividade humana decorre da convicção de que o sequencialismo é importante nos assuntos humanos: o que pensamos e fazemos em relação a alguma coisa num presente qualquer é estruturado por nós de uma forma única porque ocupa uma posição numa linha temporal em andamento. Geralmente presume-se que essa linha é unidirecional, irreversível, nem circular nem cíclica, pelo menos segundo o entendimento majoritário atual. Mas, em alguns contextos, o tempo foi e é hoje configurado de modo bastante diferente, e o ativismo político se empenha em “voltar o relógio”, revisitando uma “idade de ouro” ou apontando movimentos cíclicos e circulares que legitimam um ativismo de resistência à mudança.
Muito provavelmente, a retórica e o discurso político do ativismo no Occupy e no interior de amplas alianças semelhantes mencionavam todas essas abordagens do tempo e, portanto, da história. Mas, fora dos contextos especificamente sectários, a concepção hoje dominante nos discursos seculares é a linha temporal unidirecional que — o que é paradoxal nesta nossa discussão — tende a desvalorizar a história como ponto de referência inicial ou importante. Assim, a pergunta “O que fazer?” no presente e para o futuro é muito mais envolvente em termos retóricos do que a pergunta “O que se fez no passado?”. Uma concepção atemporal da “natureza humana”, digamos assim, é ainda menos motivadora. Afinal, se tudo o que acontece é apenas a “natureza humana” como ela sempre foi, é e será, nem faz muito sentido, para começo de conversa, se dedicar ao ativismo político.
Outra maneira de encarar a questão, porém, é voltar a nosso pressuposto do sequencialismo e olhar Marx sob essa luz, em especial porque ele ficou famoso por uma “teoria da história”. Hoje, é possível que sua fama em muitos contextos acadêmicos decorra precisamente desse artefato intelectual, ou pelo menos em muitos contextos acadêmicos aceita-se amplamente que é preciso levar em conta essa “teoria”.1
Por um lado, a conceitualização da história apresentada por Marx e Engels no Manifesto, por exemplo, e as especificidades da “perspectiva” deles nesse texto sobre a sociedade industrial moderna e seus supostos sucessores nas formações socialistas e comunistas se tornaram lugares-comuns após os anos 1890. Essas fórmulas não constituíam apenas uma ortodoxia socialista (minoritária), mas também se afiguravam, na reação política contrária, como uma doutrina perigosa a ser enfrentada e eliminada. Com o desenrolar do século xx e a sucessão de lutas entre bolcheviques e antibolcheviques, comunistas e anticomunistas, soviéticos e antissoviéticos, as obras de Marx foram reeditadas em escala verdadeiramente bíblica, e importantes historiadores se posicionaram na política a partir de sua relação frente a um “Marx” de sua própria lavra. Após a apropriação devida ou indevida das concepções e escritos de Marx, após sua elevação ao estatuto de doutrina, seja como “texto sagrado”, seja como “obra do demônio”, a posição de Marx dentro de uma sequência histórica de recepções se estabeleceu como um conjunto de pontos de debate sobre a história. Não há como escapar a eles, e eles acompanham qualquer invocação do nome de Marx.
Por outro lado, houve também a recepção de suas ideias desacompanhadas de seu nome, e assim, tendo as qualidades de uma heroica virtude ou de um maligno vício se separado de determinadas concepções específicas da história, hoje lidamos também com pressupostos mais ou menos corriqueiros. Na verdade, esses mesmos pressupostos se tornaram lugares-comuns justamente porque — e quando — se dissolveu a associação deles com Marx. Vistas desse ângulo, as concepções de Marx sobre a história e sobre o papel das discussões históricas dentro dos ativismos democratizantes se mostraram de grande sucesso, e, quanto maior o sucesso delas, menos parecem “pertencer” a ele, e isso precisamente por causa do ardor ativista ilustrado acima.
A seguir, ao avançarmos na discussão, poderemos ver como isso se deu e, a partir daí, avaliar a que ponto o espectro de Marx assombra ativismos como o do Occupy. Mas aqui o objetivo não é lançar um espectro sobre o Occupy ou outros ativismos similares, e sim examinar com mais atenção o que eles têm a ver com a história. Desse modo, a ausência de aulas de história nesses eventos e debates não significa que os participantes não estejam fazendo suposições e adotando pressupostos sobre a história. Esses pressupostos se referem ao que é ou não significativo nos assuntos humanos, e a como a nova história-em-formação (isto é, um futuro melhor) impulsionará as lutas do presente.
Em vista da dedicação de Marx ao ativismo comunista, a história como foco central pode parecer uma bizarrice pelas razões apresentadas acima. O que uma aula de história tem a ver com o empenho de mudar o mundo, em vez de meramente interpretá-lo?2 O início e o núcleo do texto mais explicitamente ativista de Marx e Engels, o Manifesto — seja em seu contexto original de 1847-8, seja em sua retomada com maior influência nos anos 1870 —, são uma aberta recapitulação histórica: como chegamos aqui vindo de onde estávamos? Além disso, é uma recapitulação estabelecendo definições: o que é a história, em primeiro lugar? Marx e Engels “problematizam” a própria noção de história e, por isso, oferecem uma nova resposta, totalmente reelaborada, para as duas perguntas. No entanto, isso por si só não estabelece uma ligação com o ativismo político, nem naquela época nem agora.
Ainda mais intrigante, talvez, é que o legado político de Marx foi interpretado — em seu tempo e desde então — como um projeto intelectual, e em particular como a enunciação e a defesa da “interpretação materialista da história”.3 Isso começou quando Engels cunhou a expressão, em 1859, na resenha de um livro que poucos na época teriam lido, em que parafraseia a concepção de Marx sobre a história para um público popular:
A proposição de que “o processo da vida social, política e intelectual em geral é definido pelo modo de produção da vida material”, de que todas as relações sociais e políticas, todos os sistemas religiosos e jurídicos […] que surgem no curso da história só podem ser entendidos se as condições materiais de vida […] forem rastreadas até essas condições materiais — essa proposição foi uma descoberta revolucionária [de Marx].4
Nesse contexto “rotulado” e abstraído, a “conclusão geral” de Marx e “guia para meus estudos”5 se presta a uma leitura preditiva, enquadrada especificamente pelo termo “materialista”, de Engels (não mencionado no texto original de Marx). Continuando com a resenha de Engels:
[Marx escreve:] “Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou […] com as relações de propriedade em cujo arcabouço haviam operado até então. Essas relações deixam de ser formas de desenvolvimento das forças produtivas e se transformam em grilhões […]. A mudança na base econômica leva, mais cedo ou mais tarde, à transformação de toda a imensa superestrutura.”6
Essa passagem transfere a discussão do sincrônico (como são as estruturas sociais) para o diacrônico (como uma determinada estrutura social se transforma em outra diferente). Esse processo, tal como Marx resume sua reflexão, gera termos e metáforas de grande força, mas sem explicação nem justificativa: forças produtivas, relações de produção (especificamente sistemas de propriedade) e uma dinâmica de desenvolvimento que enfrenta “grilhões”, assim prometendo uma transformação da “base” e da “superestrutura”. Essa mistura, como “guia” e “conclusão geral”, é bastante rústica — mais um enigma do que uma solução, um modo mais de colocar perguntas do que de oferecer respostas prontas.
Esse afã interpretativo de Engels ressurgiu na segunda metade dos anos 1870, com seus esforços para divulgar Marx, dessa vez com mais êxito. Após a morte de Marx e pelos doze anos que sobreviveu a ele, Engels continuou com essa conceitualização, enquadrando — e definindo — o “pensamento” de Marx, abstraído em proposições atemporais e teses preditivas, formulado com um caráter “materialista” de certeza, a qual sustentaria a luta de classes e a política socialista. Foi o que ele fez em introduções, prefácios, artigos de jornal e obras independentes que, desde então, tiveram enorme circulação. Desde o final do século xix, um traço característico do marxismo têm sido as preleções sobre a história — com grandes doses de metafísica — e, na apresentação de Marx como “pensador”, a história frequentemente ocupa um lugar de honra.7
Depois de quase 150 anos de consenso, talvez pareça estranho achar que a “interpretação materialista da história”, no que se refere a Marx, é um tanto obscura e enigmática, em particular essa questão de “ter uma teoria da história”, e não só se e como a teoria dele é “materialista” e, claro, se é plausível ou não. Com efeito, um entendimento presente do que se considera ser a história, e do que se considerava ser no passado, tinha grande e evidente importância para Marx, pelo que podemos depreender de seus escritos publicados, de seus materiais manuscritos e de seus “cadernos de excertos”. E, escrevendo como ativista e despontando mais tarde iconicamente na reedição do Manifesto, era mesmo com essa preocupação com a história — em termos metodológicos — que ele costumava dar início a suas discussões. É evidente, porém, que Marx estava usando a história, tal como ele e Engels a reconceberam, para incentivar a ação política, e não simplesmente escrevendo sobre ela para os intelectuais, os acadêmicos e/ou o leitor geral.
No entanto, desde o começo do século xx, a atenção ao que Marx tinha a dizer sobre a história como tal e sobre as circunstâncias e acontecimentos históricos que investigava transferiu-se para a pesquisa de textos e a leitura de perto — seguindo o modelo de Engels — a fim de determinar o conteúdo preciso daquilo que ele chamava de sua “perspectiva” ou “concepção”,8 embutido na expressão “teoria da história”. Isso levou a dois resultados: quando Marx é estudado, consideram-se realmente significativos apenas os textos tidos como pertinentes à questão — e, na verdade, os mais propícios para a abstração enquanto metodologia.9 O Manifesto contém muitas das mesmas ideias e termos (por exemplo, “grilhões”), mas não se presta à abstração de proposições, visto que sua retórica conclama mais as pessoas à ação do que os acadêmicos ao estudo.
A resenha de 1859 de Engels10 inaugurou o processo de enunciar a “teoria da história” de Marx, mas não o processo de defendê-la num debate sério, visto que a retórica de Engels era a da certeza na proclamação de verdades, que ele tomava como autoevidentes a partir da exposição, convenientemente contrastadas com ideias inferiores. O revolucionário russo Geórgui Plekhânov, autodenominado teórico do marxismo, foi o primeiro a defender e não só simplesmente expor a teoria de Marx. Fez isso em seu livro O desenvolvimento da visão monista da história (1895), escrito em russo e traduzido para o alemão em 1896. A ele se seguiram outros ensaios e estudos sobre “A concepção materialista da história”, muito traduzidos e amplamente reeditados. Eles tiveram um importante papel na popularização da metáfora da base/superestrutura como traço definidor do marxismo, junto com o “materialismo dialético” como uma versão científica da metafísica hegeliana.11 Este último derivava da obra sintética de Engels sobre uma “dialética”, deliberadamente extraída de Hegel, formulada como um conjunto de “leis” aplicáveis a “natureza, história e pensamento”.12 Era um esquema tripartite projetado — mais do que textualmente derivado — sobre os (pouquíssimos) comentários favoráveis de Marx a respeito de Hegel e sobre suas incursões (ainda mais raras) na descrição de um “método” (o que pressuporia uma unidade em seu “pensamento”, em lugar da eficácia em seu ativismo).13 Pouco antes de morrer, Engels deu seu endosso pessoal às concepções expressadas por Plekhânov, comentando solidariamente a dificuldade de escapar aos censores russos e de defender a revolução num contexto tão autocrático e repressor.
A questão aqui não é aferir se esses resumos e paráfrases são ou não “fiéis” aos textos de Marx, e sim notar como a seleção de textos relacionados com uma “teoria” foi admitida e adotada enquanto um projeto de tipo acadêmico legítimo em si mesmo, ou — em relação a outros que empreendiam estudos semelhantes — como tais debates sobre a “teoria” foram considerados cruciais nos processos de posicionamento político ao se elaborar políticas socialistas e/ou revolucionárias. Na medida em que Plekhânov estava escrevendo para intelectuais subversivos e traidores, e trabalhando junto com eles, num contexto pré-constitucional e antiliberal, seu envolvimento com a filosofia e os filósofos reproduzia claramente as atividades e estratégias políticas de Marx, quando menos para fomentar uma consciência da transformação histórica e dos valores liberais do “Iluminismo”. Mas, em contextos menos repressores, esses debates — e, depois, as pesquisas marxistas — parecem constituir um deslocamento da política para a atividade intelectual, em lugar do ativismo organizativo realmente empreendido por Marx. A dita teoria de Marx, com um vigor formulado nos termos de sua retórica ativista e ad hominem, foi escrita precisamente para enfraquecer aqueles intelectuais que imaginavam fazer política quando o que estavam realmente fazendo era filosofia ou, no caso de Proudhon e dos proudhonistes, uma “economia filosófica”.14
Dito isso, Marx — ainda que involuntariamente — inaugurou discussões que o converteram num “teórico” de enorme importância. Esses esforços intelectuais mudaram profundamente o que os historiadores consideram ser a história e o que constitui uma estratégia historiográfica legítima. E, ao mesmo tempo, esses debates vincularam historiografia e filosofia, por exigirem “fundamentos” ontológicos e epistemológicos para a historiografia, em vez de suporem meramente um constante “interesse humano” pelos “grandes homens” ou adotarem uma posição de correção moral radicada na religião ou no nacionalismo. A estratégia de Plekhânov — enquanto narrativa política — foi a de situar a teoria da história de Marx numa sequência de “materialismos” politicamente progressistas, em que o ateísmo, a matéria em movimento e as atividades produtivas sociais forneciam o conteúdo necessário para definir mais sua suprema realização. Segue-se daí que os historiadores em geral, partindo de perspectivas religiosas, morais, nacionais e de “interesse humano”, se posicionaram contra esse reducionismo “materialista” e “econômico” tão explicitamente declarado, e em particular contra a metafísica “dialética”, tal como era sustentada por Plekhânov e seus confrères autointitulados como “marxistas”. Desde então, ironicamente, muitas vezes os marxistas têm se visto na incômoda situação de se posicionar contra os textos existentes de Marx, os quais — exceto em raríssimos comentários resumidos como “guia para meus estudos”15 — têm um caráter que mais explora do que reduz a certezas, mesmo quanto à atividade “econômica” como base “material”.16 Essa abordagem estreitou consideravelmente o campo de visão da maioria dos comentadores — aliás, de maneira bastante paradoxal — na mesma época em que se compilava, se transcrevia e se publicava uma quantidade imensa de escritos de Marx, inclusive extensas indagações históricas e ruminações exploratórias. E, dentro desse campo de comentários com foco altamente concentrado, empregaram-se esforços consideráveis para determinar se e em que sentido essa “teoria”17 era verdadeira ou falsa, e — bastante extensamente — em que bases epistemológicas seria possível conduzir tal exame e julgamento.
Os grupos de “marxismo analítico” do final dos anos 1970 e dos anos 1980 adotaram uma abordagem autodenominada “rigorosa” da “teoria” da história e se notabilizaram por reunir filósofos da linguagem, historiadores econômicos e estudiosos da teoria dos jogos e da escolha racional.18 Declarando-se contra a metafísica hegeliana e as ruminações engelsianas sobre uma dialética “materialista” (mais tarde abastardadas como tese-antítese-síntese e outras versões do “materialismo dialético”),19 os marxistas analíticos fundavam suas obras num empirismo que diziam ser concordante com a ciência. Em sua visão de ciência, a validação (ou, pelo menos, a falsificação) consistia em requisitos rigorosos na construção de proposições que poderiam ser testadas contra os fatos na história, revelados pela pesquisa histórica. O minimanifesto dessa “escola” afirmava que seus trabalhos
pretendem exemplificar um novo paradigma no estudo da teoria social marxista. Não serão dogmáticos nem puramente exegéticos em sua abordagem. Examinarão e desenvolverão a teoria inaugurada por Marx, à luz da história interveniente e com as ferramentas da ciência social e da filosofia não marxistas.20
A esperança deles era que “assim o pensamento marxista será libertado dos métodos e pressupostos cada vez mais desacreditados que ainda são amplamente considerados essenciais a ele, e se estabelecerá com maior solidez o que é verdadeiro e importante no marxismo”.21 Tal abordagem pressupunha, evidentemente, que reescrever a prosa de Marx em termos dessas proposições era prestar um serviço (na verdade, um exercício em sua “defesa”) e que os cientistas acadêmicos poderiam — para o bem de todos — decidir a verdade (ou não) da “teoria” assim atribuída a Marx, ou, melhor, daquelas passagens em certos textos dele tidas como sua “melhor abordagem” do assunto.
Os marxistas analíticos montaram espantosos quebra-cabeças quanto à determinação linguística, examinando em especial de que forma poderiam definir e relacionar termos descritivos, como “modo de produção”, “forças produtivas”, “relações de produção”, “base econômica”, “superestrutura ideológica” e congêneres (abstraídos sem contexto político de algumas poucas passagens de textos publicados e de rascunhos manuscritos), de uma maneira mais lógica do que a de Marx. G. A. Cohen analisou e dividiu as expressões de Marx (reconhecidamente vagas e “indicativas”) nessas principais proposições:
a) As forças produtivas tendem a se desenvolver ao longo da história (a Tese do Desenvolvimento).
b) A natureza das relações de produção de uma sociedade se explica pelo nível de desenvolvimento de suas forças produtivas (a Tese do Primado [das forças produtivas] propriamente dita). […]
c) Os homens são […] até certo ponto racionais.
d) A condição histórica dos homens é de escassez.
e) Os homens possuem um tipo e um grau de inteligência que lhes permite melhorar sua condição.22
Cohen investigou longamente quais seriam as relações estruturais vigentes e as alegações preditivas falsificáveis que poderiam ser deduzidas da prosa de Marx agora reescrita. Esses problemas incluíam, em especial, a verdade (ou não) do “determinismo” econômico ou tecnológico na efetivação da mudança histórica de um modo de produção para outro e, em última instância, decidir se a revolução proletária é “inevitável” (ou não), dada a estrutura “lógica” atribuída às concepções e suposições “razoáveis” de Marx referentes à “natureza humana” que ele então aduziu ao texto de Marx.23 Em vista do ferrenho compromisso com o “rigor” metodológico esposado pelos marxistas analíticos, que radicavam suas alegações numa filosofia da ciência como conjunto universal e singular de suposições e protocolos, o projeto, ao fim e ao cabo, inevitavelmente concedeu pouquíssimo crédito a Marx em seus termos do século xx. Numa peroração da década seguinte, Cohen escreveu:
Chamei meu livro sobre a teoria da história de Karl Marx de defesa, porque nele defendi o que considerei […] ser verdadeiro […]. Em data mais recente, porém, vim a me perguntar se a teoria defendida no livro é verdadeira […]. Não que eu creia agora que o materialismo histórico é falso, mas não sei ao certo como dizer se é ou não é verdadeiro […]. Tentei […] tornar a teoria mais determinada e, com isso, esclarecer suas condições de confirmação, mas […] é preciso um grau de elucidação consideravelmente maior.24
Os próprios termos “analíticos” pelos quais o “rigor” era expressado (por Cohen e outros) já eram, na época, objeto de crítica por parte de estudiosos revisionistas da sociologia e da história da ciência,25 e também de pós-estruturalistas desenvolvendo uma concepção radicalmente distinta da linguagem, da verdade e da lógica.26
O que se destaca pela ausência na maioria dessas discussões “abstratizantes”, “analíticas” ou não, é qualquer compromisso sério com aquilo a que se destinavam, no contexto próprio de Marx, as concepções por ele assinadas — o que é a história, como se dá (ou não) a mudança, em que consiste uma mudança significativa. Em suma, que diferença faz para um ativista — imbuído de concepções críticas sobre o presente e comprometido com um futuro melhor — envolver-se com a “história” em termos de conteúdo e metodologia? Como se supõe que tais discussões vão agregar um público, aglutinar um movimento, avançar para um objetivo? Uma parte da resposta a essa pergunta se encontra na natureza da política, durante a época de Marx, nos Estados germânicos dos anos 1840 e 1850, onde a discussão de questões e sugestões de mudança era quase unanimemente malvista e onde não havia nenhuma constituição concedendo soberania ao povo e, portanto, nenhum público bem-informado.27 Os intelectuais universitários eram, na melhor das hipóteses, tolerados, mas não protegidos — ou, em casos mais notáveis, nem tolerados, tornando-se sujeitos à exclusão e à perseguição. Com 23 anos de idade, Marx, então com doutorado recente, recaiu diretamente nessa segunda categoria, mas continuou a fazer o que sabia fazer bem, ou seja, conduzir um combate de ideias (qualquer outro tipo de combate era eliminado o mais depressa possível). Nos Estados germânicos, discussões desse tipo eram aceitas na imprensa apenas depois de sofrerem emendas suficientes dos censores ou de entrarem clandestinamente vindas do estrangeiro, em geral da Suíça, da Bélgica ou da França. Os escritos de Marx — matérias liberais, polêmicas intelectuais ad hominem e um panfleto e manifesto popular de “reivindicações”28 — recaíam nas duas categorias: censurados e contrabandeados.
Embora isso possa estabelecer um contexto com espaço para discussões de alto nível sobre a história e até talvez para um público, ainda que muito reduzido, mesmo assim não explica por que Marx — e, às vezes, Engels — dedicou uma notável quantidade de energia cerebral a questões desse tipo. Por que não formular o programa, redigir a concepção, apresentar os discursos e fazer a panfletagem? No entanto, o que sabemos pelas pesquisas recentes é que os dois redigiam seus textos ativistas — basicamente críticas aos socialistas e comunistas alemães contemporâneos —excluindo algumas de suas reflexões sobre questões mais tarde reunidas como a “interpretação materialista da história”.29 Não era, porém, uma exclusão completa, mas antes um processo de editar e eliminar materiais apenas exploratórios e digressões expositivas para apresentar itens muito mais concisos sobre a história àqueles que eram tidos como opositores, por exemplo Bauer e Proudhon.
Assim, aqui estamos observando um efeito de recepção: nossos dois autores conduziam debates polêmicos ad hominem com personalidades da época sobre questões e possibilidades políticas também da época; mais tarde, os leitores passaram por cima deles, julgando-os incompreensíveis ou, muitas vezes no caso de Marx, extremamente enfadonhos. O que outros leitores posteriores deduzem ou resgatam, de modo geral, são raciocínios e conceitos mais abstratos que poderiam ajudá-los a pensar sobre questões e possibilidades políticas de sua própria época. Nos anos 1840, porém, o cerne do debate não eram as abstrações: na verdade, para Marx e Engels o cerne era que seus interlocutores eram abstratos demais, e não apenas abstratos de uma maneira equivocada, daí a determinação de ambos em não discorrer demais sobre a “história”.
Visto que todos os seus interlocutores nos anos 1840 eram vigorosos defensores do constitucionalismo e da soberania popular, talvez pareça estranho e até distorcido que Marx e Engels dedicassem tanto tempo a criticar companheiros intelectuais que — em certo sentido — estavam do mesmo lado. Esses interlocutores se diziam socialistas ou comunistas ou, pelo menos, estavam dispostos a sugerir que tais assuntos — isto é, a “questão social” — contavam com sua atenta simpatia. Mas, conforme dissemos antes,30 os princípios constitucionais de soberania popular eram, nos Estados germânicos, revolucionários por definição e, portanto, sediciosos, constituindo em última análise uma traição. Marx se concentrou em refinar as ideias comunistas como indispensável prolegômeno a um ativismo revolucionário e liberalizante, que ainda não existia a não ser entre sussurros clandestinos, pois não precisava pregar aos já convertidos. Em vez disso, ele tentou levá-los — aos já convertidos a um liberalismo revolucionário — a um melhor entendimento da situação vigente, a uma avaliação sóbria da oposição e a uma visão realista do potencial do momento.
Engels, sob esse aspecto, tinha um histórico mais interessante, pois dispunha de outros contextos e, quando formou parceria política com Marx, na primavera de 1845, já havia publicado cerca de cinquenta artigos de jornal e um livro respeitável. Isso porque Engels morara e trabalhara na Inglaterra, tendo considerável conhecimento e ligações políticas com o cartismo e a propaganda democratizante da época, além de possuir experiência concreta das classes industriais, comerciais e (fato menos usual) trabalhadoras. Ao contrário da situação nos Estados germânicos, o contexto britânico incluía manifestações de massa e acarretava a repressão e a perseguição em massa, não simplesmente individual. Embora basicamente concentrados sobre os eventos da época, os textos ativistas de Engels, em inglês e em alemão, ainda assim lidavam com temas que combinavam com os interesses de maior sofisticação filosófica e metodológica de Marx pela história. Com efeito, Marx afirmou mais tarde que Engels chegara às mesmas conclusões que ele, mas “por outro caminho”, mencionando em particular A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845),31 livro em alemão e decididamente não histórico de Engels. No entanto, isso apenas recoloca o enigma: por que o ativismo comunista exigia uma discussão desse tipo — sobre a história e o método histórico — como ponto de partida?
O enigma se resolve quando examinamos a estratégia retórica de Marx para mobilizar seus colegas comunistas que, mais do que confrères, eram forçosamente rivais. Assim, sustenta ele, para entender o presente é preciso entender o passado. E disso ele extrai o inverso: se por trás dos juízos políticos sobre o presente está um entendimento errado do passado, segue-se que esses juízos políticos serão errados. Tais juízos políticos podem, claro, se referir ao que há de errado no presente — que, para os comunistas, era a “questão social” da pobreza, da desigualdade, da opressão e do autoritarismo —, também abordando qual exatamente seria a maneira de organizar o futuro próximo e o futuro distante a fim de melhorar, reformar e revolucionar a experiência social humana.
Comunistas e socialistas — naquela época, os termos eram amiúde intercambiáveis, embora nem sempre — ofereciam inúmeras visões do futuro, o qual, evidentemente, era o núcleo retórico e político da questão. O contexto intelectual do período tem sido reconstruído ao longo dos anos em vários tipos de recepção acadêmica; o que agora é mais difícil de captar é o senso de engajamento ativista e popular — com seus entusiasmos e ingenuidade —, visto que tende a não aparecer no registro histórico e, quando aparece, é mais sob forma visual (e, em data mais recente, oral) do que escrita. A despeito de todos os atritos internos, porém, os textos de Marx e Engels captam um pouco dessa intensidade emocional e desse foco político, visto que são, em si mesmos, uma recepção-do-momento, e não uma exposição filosófica “para a posteridade”.
Paradoxalmente, os estudos contextuais sobre Marx e Engels dificultaram a apreensão desse aspecto, pois o enfoque acadêmico geralmente abarca os dois, os escritos de ambos e o que puder ser resgatado em termos intelectuais para futuro interesse. Devido a esse enfoque, os interlocutores — tão importantes na época e para os textos dirigidos às comunidades envolvidas — tendem a sumir no pano de fundo, na medida em que, ao contrário de Marx e Engels, se tornaram figuras menores, embora apenas para nós e não para seus contemporâneos e, em particular, para Marx e Engels. Assim, os diálogos costumam ser lidos apenas numa direção, e Marx e Engels ficam monologando. Todavia, o problema adicional é que o ardor da época agora parece estranho, visto que a política desaparece junto com as personalidades. De todo modo, as condições políticas nas sociedades já democratizadas deixaram de lado o tipo de autoritarismo miúdo porém poderoso então vigente, contra o qual lutavam os radicais. Por que Marx e Engels iriam se envolver com tais nulidades? E por que eram tão ardorosos a esse respeito? Quando se trabalha a partir de textos e de pressupostos muito posteriores, é comum que essas perguntas surjam, mas em geral não se chega a nenhuma resposta realmente convincente. Por isso é interessante voltar a um texto que capta um pouco da imediaticidade vivida por Marx e Engels.
Embora muito crítica, depreciativa e muitas vezes sarcástica, a seção iii do Manifesto oferece um tour d’horizon de socialismos e comunismos dos anos 1840, ordenados por valência política e tendência intelectual. Marx já tinha intenções de publicar um levantamento crítico sobre o assunto, e Engels já possuía considerável experiência concreta como jornalista, com reportagens sobre tais temas. O que se destaca na discussão (agora pouco lida) apresentada no Manifesto não é apenas o cáustico desprezo que Marx e Engels certamente nutriam pela religião em geral e pelo cristianismo em particular, mas também seus juízos depreciativos a respeito tanto das “colônias” e experiências utópicas em pequena escala quanto dos retornos de tipo rousseauniano a modos de vida agrários e outros “simples” e “naturais”. Isso nos mostra de onde Marx e Engels não queriam partir: de soluções baseadas na fé, do isolacionismo de pequenos grupos em pequena escala, de idílicas autogestões pré-industriais, “naturais” ou não.33
Em lugar disso, Marx abordou essa mistura de ideias sobre a humanidade (passado, presente, futuro) adotando positivamente uma alternativa, que ainda hoje se destaca como tática ativista, conforme será demonstrado aqui. Num lance sagaz, o objetivo era político: esses socialismos e comunismos não funcionariam como solução porque os problemas do presente eram vistos de modo equivocado, e isto porque a natureza da história — e, assim, da mudança histórica necessária para transformar um presente problemático num futuro melhor — era vista de modo equivocado. E a própria história era vista de modo equivocado — ou, na maioria dos casos, nem sequer era vista — porque a civilização era vista de modo equivocado. Além disso, a civilização era vista de modo equivocado porque a própria humanidade era vista de modo equivocado. Como cadeia lógica rigorosa, isso talvez faça sentido em seus próprios termos, e em termos de ativismo político também poderia congregar — ou não — um certo público. O Manifesto, nas seções i e ii, era sem dúvida uma boa tentativa de congregar um público nos anos 1840, embora seu conteúdo tenha alcançado circulação maciça apenas mais tarde, no contexto dos anos 1870 — mas, de todo modo, àquela altura já se afastara um pouco das questões de momento, como Marx e Engels prontamente admitiam.34
Deixando de lado as questões notoriamente discutidas — se e em que sentido os textos de Marx e Engels representam uma “teoria”, e, em caso afirmativo, em que sentido essa “teoria” é ou não é “materialista” ou “determinista” (palavras que não são empregadas em momento algum no Manifesto) —, vejamos quais parecem ser os princípios a que Marx e Engels se referiram em 1872, mas que não constavam no prefácio conjunto à edição “especial”.
Ou, como diz o Manifesto, “a história é a história das lutas de classes”. E é nas “lutas de classes” que os comunistas devem se colocar politicamente, aplicando as mensagens acima e extraindo conclusões locais para a ação.35
Por um lado, essa mensagem foi imensamente inspiradora nos movimentos políticos mundiais, tanto nos social-democráticos nos Estados nacionais estabelecidos quanto nos contextos das lutas de libertação nacional e de construção nacional no mundo em decolonização. A ideia de que a expansão global dos processos modernos mecanizados e altamente produtivos de extração de recursos, fabricação de produtos e transporte pesado é praticamente irrefreável por qualquer razão que seja parece plenamente plausível em vista dos padrões de produção e consumo que servem para conceitualizar e mapear a globalização.36 Sem dúvida, as sociedades e os Estados grandes e pequenos que resistiram às forças internacionais do mercado e à política das grandes potências pelas mais variadas razões geralmente sucumbiram, de diversas formas, às mudanças sociais que Marx e Engels haviam esboçado já nos anos 1840. Naquela altura, as fábricas movidas a vapor e os sistemas de transporte pesado estavam apenas se iniciando, sobretudo no contexto da Grã-Bretanha, com suas colônias e outras áreas de comércio e conquista. Como o Manifesto expõe em termos descritivos de grande força:
O aproveitamento das forças naturais, o maquinário, a aplicação da química à indústria e à agricultura, os navios a vapor, as ferrovias, o telégrafo, o desmatamento de continentes inteiros para o cultivo, a canalização de rios, populações inteiras brotando da terra […].37
Por outro lado, desde então perdeu-se um pouco do entusiasmo ativista e do ineditismo intelectual, o que é compreensível na medida em que a linguagem de Marx e Engels ficou datada e seus pontos de referência da época se obscureceram. Apesar disso, a “perspectiva” se tornou quase um lugar-comum, um fato consumado. E o que talvez surpreenda é que grande parte desse enfraquecimento foi assumida pela exegese acadêmica, por verificações, ataques, defesas e debates de segunda ordem, isto é, indagando-se quais seriam as bases para fazer tais alegações e formular tais juízos. Esse uso de Marx, porém, apresenta uma característica marcadamente circular. Para “testar” a validade de suas teorizações, é preciso saber de antemão o que a “história” realmente é e, dentro dela, o que já se sabe ser importante. Quer se trate do “choque de civilizações”,38 de “grandes guerras” específicas, da ascensão ou queda da democracia como forma política, da criação de mercados mundiais por meio de empreendimentos capitalistas, em suma, seja qual for a questão, a alegada obsessão de Marx com as ditas explicações econômicas e determinismos a ele atribuídos tem sido testada contra a opinião corrente sobre a humanidade, a sociedade e a civilização, que é exatamente o que Marx, em seu tempo, estava tentando deslocar.
Adotando aqui outro ponto de vista, sugiro que — estando a abordagem de Marx e Engels “certa” ou “errada” segundo critérios exógenos — o que impressiona em sua revisão da história é, no fundo, a questão da definição: eles sustentam que o que conta como história, e como mudança histórica importante, se apresenta em primeiro lugar como uma pergunta. Assim, a típica pergunta argumentativa se “a economia determina [ou não] a história” já traz a pergunta realmente interessante: o que vale a pena encarar como interessante o suficiente — e, em particular, para quem e por quê — para fazer da história uma questão importante, por mais diferente que ela possa ser da historiografia convencional, profissional e acadêmica?
O resultado de se formular tal pergunta e de respondê-la nos termos de Marx e Engels apresenta um aspecto curiosamente arqueológico: à falta de textos escritos, o que importa são os artefatos, como na chamada pré-história. Se seguimos apenas os textos, isto é, se trabalhamos apenas a partir da época em que havia registros escritos, essa abordagem usual realmente rejeita um dos argumentos interessantes apresentados no Manifesto: as ideias expostas nos textos já guardam algum vínculo — por variável que seja — com as relações e instituições socioeconômicas por meio das quais o excedente da produção fica disponível para ser desigualmente distribuído e consumido, em qualquer base que seja. Como os textos escritos já pressupõem essas relações como regra, em geral não discorrem longamente ou não falam muito criticamente sobre elas; portanto, o que lemos nesses escritos, como dizem Marx e Engels numa citação retoricamente redutora, mas muito expressiva, corresponde ao seguinte: “As ideias de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”.39
Claro que essas ideias em textos históricos podem ser verificadas, pelo menos às vezes, contra as concepções contemporâneas que as combatem de várias maneiras. Mas os artefatos costumam ser deixados de lado, tidos como de interesse apenas para os arqueólogos, e não para os historiadores propriamente ditos. Para polemizar um pouco, poderíamos talvez dizer que, se Marx e Engels montassem um museu da civilização, ele consistiria em primeiro lugar em expositores de ferramentas toscas, reconstituições de locais de produção não muito atraentes, reproduções de alimentos e móveis extremamente rústicos que seriam usados pelas pessoas comuns, os vários desenvolvimentos na história da lareira, da chaminé, do martelo, do parafuso, como momentos de alta dramaticidade.40
O aspecto polêmico aqui, na verdade, consiste numa contraposição: não é que se possa chegar à civilização apenas por meio dos artefatos, mas sim que a civilização se tornou, de modo geral, sinônimo de “alta” política, “alto” intelecto, “alta” cultura, “alta” sociedade e assim por diante. E talvez valha a pena adotar o ponto de vista do “cotidiano” e do “homem (e mulher) comum”, atribuindo uma posição central a esses processos e vendo como a coisa se desenrola. Marx e Engels não fizeram no Manifesto qualquer grande declaração de que a arte e as batalhas não têm importância alguma na história humana, mas sim que os processos “cotidianos” constituem a “experiência vivida” da maioria das pessoas, e que as mudanças nesses processos são pelo menos tão importantes quanto as mudanças de dinastias ou credos sobre as quais os historiadores se sentem tão à vontade para discorrer, talvez até demais.41
Desde as décadas finais do século xx, a história tem sido cada vez mais conceitualizada de uma maneira mais ou menos próxima ao que defendiam Marx e Engels, embora mais como “alternativa” ou suplementação do que como substituição da historiografia convencional. Ou, nos termos desta nossa discussão, a originalidade de Marx e Engels não consiste em descobrir a influência da “economia” na história nem em atribuir um “determinismo”42 aos fatores econômicos, mas — reiterando meu argumento — em tentar abrir a questão de definição da “história” e esboçar uma resposta que ainda tem repercussão e gera controvérsias. A história das mulheres, a história da classe operária, as histórias “ocultadas” dos povos indígenas, marginalizados e colonizados, todas elas têm uma dívida considerável para com a abordagem inédita formulada por Marx e Engels, mesmo que — e, na maioria dos casos, muito embora — seus textos efetivos não gerem histórias desse tipo nem mencionem as questões envolvidas como dignas de nota.
Assim, abrir essa questão de definição da história nos leva a questionar: por que as pessoas fazem essas coisas cotidianas de maneiras diferentes em épocas diferentes, e mesmo assim, pelo visto, de maneiras que — aos trancos e barrancos — resultam de algum modo em processos industriais, movidos a vapor, altamente produtivos de extração dos recursos naturais e fabricação de produtos? Marx e Engels não foram os primeiros a levantar a pergunta, mas se destacaram por refletir (embora não no Manifesto) sobre a condição humana como assunto abstrato mas ainda assim histórico, que se desenrola numa temporalidade unidirecional e numa sequencialidade “dependente da trajetória”, tal como foram expostas acima. Os dois autores suprimiram essas cogitações — em larga medida, mas não por completo — dos contextos polêmicos e manuscritos dos anos 1840, sem dúvida por serem “teóricas demais” para as candentes discussões políticas. É o contrário, como dito acima, da reação acadêmica a Marx e Engels desde a virada do século xx, pois, naquele contexto, tanto melhores seriam os comentários quanto mais abstratos e filosóficos fossem.
É interessante notar que, nessas ruminações, Marx evita o duplo perigo do triunfo e da tragédia, isto é, a condição humana como uma condição movida por êxitos e melhorias ou, inversamente, condenada à frustração e à infelicidade. A primeira — com êxitos e melhorias — era a posição característica de notáveis economistas políticos de uma ou duas gerações antes da época de Marx, embora certamente não de todos eles, como mostra a exceção de Thomas Malthus. A segunda — com frustração e infelicidade — era a posição característica de Jean-Jacques Rousseau, ao pensar a relação entre a incipiente industrialização e o comercialismo, de onde decorreriam a crescente indiferença e a crueldade que ele via nas relações sociais e estruturas políticas “civilizadas”.43
Marx evitava as perguntas que tendem a resultar em moralizações: seria possível dizer que a humanidade é cada vez mais bondosa porque está “melhorando” seus recursos; ou que a humanidade é má porque os “melhoramentos” a tornam cada vez mais cruel. Do ponto de vista de Marx, a humanidade vem sempre alterando — sem que seus intelectuais se deem conta — sua relação com os recursos materiais de várias maneiras cotidianas, e, seja lá como isso tenha ocorrido, embarcou muito recentemente numa imensa mudança na produção, por meio da qual os processos cotidianos cada vez mais poderosos estão se tornando cada vez mais homogêneos e globais. Mas, para que essa concepção de fazer a história e mudar a história tenha plausibilidade, não é mais necessário especular sobre o porquê, que, de todo modo, atrelaria a humanidade a algo que alguém já poderia saber o que era, em vez de vê-la como uma potencialidade em aberto, para além das capacidades preditivas de quem quer que seja. Ou, em outros termos, a própria ideia de que a humanidade tem alguma ou algumas características atemporalmente identificáveis, permitindo prever a ascensão ou a queda, exige, ela mesma, um ponto de vista atemporal — que não está aberto a ninguém que pense crítica e cuidadosamente sobre esse tipo usual de discurso.
As deduções políticas que Marx e Engels extraíram desse quadro tiveram impacto retórico na época, e eram dotadas de caráter mais mobilizador do que estritamente descritivo. Se e quando as pessoas acreditarem nesse quadro — assim segue o ímpeto narrativo do Manifesto —, elas converterão sua política numa política da luta de classes, que então se desenrolaria como uma vitória para a classe trabalhadora do cotidiano ou — no outro roteiro pouco citado — como a “ruína em comum das classes em conflito”.44 Assim, a luta de classes é antes uma prática, que poderia — ou não — ocorrer, mais do que uma “coisa”, um “fator” ou uma “força” que sempre e por toda parte poderia ser identificada descritivamente e isolada para fins de observação. Afinal, se a luta de classes fosse algo que operasse independentemente da política, não haveria qualquer necessidade de um Manifesto mobilizador para reunir as pessoas.45
Mas a luta de classes também é, no texto, uma “guerra civil mais ou menos velada”.46 Eis aí mais uma incursão em questões historiográficas que levanta algumas dificuldades: algo “mais ou menos” velado à observação pode explicar o que se observa nos textos e nos artefatos? A resposta parece ser “Por que não?”, e desde aquela época há inúmeras defesas do papel dos “inobserváveis” na filosofia da ciência. Contudo aqui, uma vez mais, a questão não é se a resposta é correta ou não, segundo algum protocolo epistemológico de verdade, e sim como os leitores — que são ativistas em potencial — reagirão à ideia de que devem prestar mais atenção aos fenômenos “cotidianos” e não tomar as aparências como dados de fato.
As discussões de Marx e Engels sobre a história — e o uso que lhe dão na retórica de politização — têm um interessante perfil prospectivo, pois os elementos retrospectivos de suas narrativas são arregimentados de modo a demonstrar a maleabilidade das relações humanas, concentrando-se, evidentemente, nas relações da produção e do consumo cotidiano e nos contextos estruturais em que elas se dão. As historiografias convencionais muitas vezes operam segundo o princípio de que devemos aprender com os erros do passado a fim de não os repetir no futuro. A historiografia de Marx e Engels (quanto a Engels, nos anos 1840, pelo menos) parece operar a partir de um princípio contrário: a variabilidade do passado indica que o futuro será como a humanidade o fizer. Aquele primeiro princípio pressupõe que o conceito de humanidade incorpora noções de certo/errado e de bom/mau, de modo que podemos julgar em que consistem os “erros”, e que essa constituição da “natureza humana” perdura atemporalmente no futuro. O segundo princípio pressupõe que a humanidade constitui a si mesma e que sua “natureza” — se é que esse conceito faz algum sentido — consiste numa maleabilidade cujos limites não podem ser antevistos nem, portanto, conhecidos de modo definido.47
Essa maneira de encarar a historiografia de Marx e Engels acarretará certos efeitos interpretativos, no sentido de que ela irá se afigurar mais exploratória, em especial no caso de Marx, e menos argumentativa e demonstrativa do que geralmente se supõe. Assim, a formulação de perguntas históricas e o recurso a pesquisas, como fez Marx em larga medida, carregam um elemento de “descoberta de alguma coisa” com base numa “perspectiva” (qualquer que seja o resultado), mais do que de “demonstração da verdade” de uma “teoria” já formulada. Em vista das concepções políticas de Marx e de sua abordagem do potencial humano, o aspecto da história que mais o interessava sempre foi o desenvolvimento das relações mercantilizadas de produção e troca, bem como, dentro desse modo de produzir e consumir bens e serviços, as recentes mudanças que, para ele, constituíam “o modo de produção burguês”. Somente mais tarde essa formação social veio a ser designada como “capitalismo”, termo raramente empregado por Marx. Esse desenvolvimento específico dentro da história era composto pelo duplo dispositivo da produção mecanizada e da circulação monetarizada, postulando uma produtividade ilimitada e uma acumulação igualmente ilimitada. Sabia-se na época que esses processos estavam sujeitos a crises, aspecto que Engels resumiu em seu “Esboço de uma crítica da economia política”,48 com base no qual Marx fez anotações e, empolgado, elaborou planos para sua própria crítica da política que sustentava o contrário.49
Em suas pesquisas agora famosas — compiladas no século xx a partir de materiais manuscritos e volumosos cadernos de notas —, Marx se mostrava intrigado e interessado em entender como tal mudança se deu onde se deu. A discussão no Manifesto menciona, por exemplo, a importação de ouro na Europa, proveniente das conquistas espanholas nas Américas.50 Marx enfocou o impulso do comércio no nordeste da Europa, que por sua vez incentivou um grande aumento na produção e um intenso desenvolvimento das relações comerciais. Mas também ficou muito intrigado — embora não da mesma forma — em saber como e por que essa mudança não se deu em outro lugar, sobretudo na época do baixo Império Romano e, aliás, em outras “formações econômicas pré-capitalistas”.51 Os comentaristas convencionais consideram que este é um exercício tipológico que decorre — pois deriva — da “interpretação materialista da história” e, assim, consiste num projeto circular de autovalidação. Desse ponto de vista, o objetivo seria determinar com precisão quais os fatores que estavam ou não presentes, de forma que a sociedade industrial moderna se desenvolveu mais tarde e não mais cedo. Lida por esse ângulo, a “perspectiva” de Marx sobre a história tem exercido grande influência — desde meados do século xx — entre os historiadores acadêmicos, embora, claro, não sem controvérsias e abordagens opostas.52
Mas, por esse ângulo, escapa aos leitores o caráter contingente das indagações de Marx, a intensa curiosidade em descobrir “o que se passava”, com os detalhes em aberto, e assim ver como a atividade humana sempre gera uma infinidade de consequências possíveis, trabalhando sem aquele tipo de suposição metodológica que necessariamente ocultaria o que seria possível descobrir. Em outras palavras, quando se estipula de antemão que são os “grandes homens”, as “inovações tecnológicas”, as “invasões maciças” ou as “guerras religiosas” que são “verdadeiramente” decisivas, deixam-se de lado ou se subestimam inúmeros elementos importantes pelos quais a humanidade faz a história como a faz. Para alguns leitores, essa maneira de ler Marx e, na verdade, de ver a história há de parecer desordenada, frustrante e obsessiva. Já outros podem se deleitar com os detalhes e admirar essa curiosidade de espírito aberto. Toda essa ideia de que a história poderia ter algo a ver com as pessoas “comuns”53 e as tecnologias “do cotidiano” era inédita na época de Marx, e já então — como às vezes ainda agora — ganhou vigor com os economistas políticos, os primeiros a criarem esse enfoque, e pelos historiadores econômicos, que seguiram o exemplo.
É claro que, no tempo de Marx, não havia tanta história acessível ao conhecimento, e certamente eram pouquíssimos os trabalhos sobre os artefatos do cotidiano, que se limitavam às poucas investigações da pré-história esporadicamente empreendidas. As fontes históricas e, portanto, as áreas de investigação reconhecidas se restringiam a textos clássicos e medievais, a manuscritos bíblicos e cristãos, a ocasionais coleções de antiquaristas curiosos e aos inícios de uma arqueologia sistemática do mundo greco-romano, incluindo as antiguidades egípcias. Apesar das limitações obviamente eurocêntricas em termos de materiais e interesses, Marx se esforçou ao longo dos anos para investigar áreas menos conhecidas e de menos recursos da historiografia feita por e para europeus, sobre, por exemplo, a Índia, a China, a Rússia e — notadamente — as Américas.54 Embora, por critérios posteriores, alguns desses esforços pareçam rudimentares e às vezes ambíguos ou equivocados, o espírito inquisitivo transparece visivelmente, a despeito do empenho de alguns comentaristas em expor a autocontradição de Marx, enquadrando os estudos dele como tentativas de “provar” sua “teoria”, o que nem sempre dava certo, até para sua própria satisfação.
Um procedimento útil, aqui, é examinar cuidadosamente a política de Marx na relação com suas estratégias de pesquisa. Se supomos que sua política está baseada — ou pretensamente baseada — na verdade demonstrada de sua “perspectiva”, então sua inconteste dedicação política a revoluções democratizantes e a resultados de perfil comunista está impulsionando suas pesquisas da maneira tautológica acima descrita. Mas, se sua política é impulsionada por uma retórica performativa — como indicam o Manifesto e outros textos exortativos —, neste caso suas pesquisas históricas representam uma investigação das atividades humanas que pode seguir e de fato seguiu em várias direções. Assim, há inúmeras coisas que se podem aprender a partir das investigações e explorações de Marx, e inúmeras opções abertas aos agentes humanos no presente. É possível que uma parte da relutância de Marx em redigir os contornos detalhados de uma sociedade comunista — e seu persistente insucesso em atuar como guru programático para um movimento de massa — decorra precisamente dessa modéstia (ou talvez cautela) diante do caráter indeterminado dos acontecimentos e, claro, das ações individuais. Pode-se demonstrá-lo, por exemplo, com seu minucioso exame das lutas políticas de 1848-9, em especial na França.
O livreto O 18 de brumário de Luís Bonaparte,55 de Marx, derivava inicialmente de suas matérias jornalísticas de 1848-9, escritas e publicadas durante os acontecimentos revolucionários que se alastraram pela Europa continental. Nesses anos, a ação das massas depôs governos autoritários não constitucionais e os substituiu — por curto tempo — por instituições de gestão popular e assembleias constituintes. O livreto de Marx, redigido em alemão e publicado em 1852, era evidentemente uma intervenção política, mas teve circulação ampla apenas nos Estados Unidos, devido aos caprichos editoriais que sempre perseguiram Marx. Os planos de tradução não se concretizaram, fato que tampouco era raro para ele, mas a intenção era clara: tal como Victor Hugo, Marx alertava o público francês e outros interessados que Luís Bonaparte era um vigarista criminoso e não uma encarnação salvadora do tio imperial.
Quanto à recepção e aos comentários subsequentes, essa obra altamente circunstancial — quase um docudrama —, de prosa viva e sarcástica, tem sido recebida como “histórica”, quando menos porque o texto está repleto de personalidades da época, muitas das quais, com o passar dos anos, os leitores tinham de procurar em enciclopédias e obras de referência. E, de fato, a cerrada atenção que Marx dedica à interação de personalidades e forças políticas torna difícil que os leitores posteriores acompanhem o texto ou se empolguem durante a leitura. Embora não fosse história enquanto Marx a escrevia — era, em larga medida, o próprio momento presente e uma intervenção política na situação —, essa obra, no entanto, indica o tipo de obra histórica que realmente lhe interessava, escavando detalhes, inclusive excentricidades, fraquezas e tolices. Sua obra posterior é, sem dúvida, de caráter mais econômico, pois havia mais materiais à disposição, e os interesses de Marx se concentraram mais nesse tipo de material, em vista da ausência de sublevações políticas e violências revolucionárias naqueles anos. Mas não era um foco exclusivo: seu jornalismo na segunda metade dos anos 1850 e nos anos 1860 volta a mostrar um interesse em escrever a história-enquanto-se-desenrola e em apreender seus detalhes. Em seus escritos encontra-se uma grande ênfase na personalidade e nas ocorrências fortuitas, como em suas considerações sobre a política das grandes potências europeias em relação à “Questão Oriental” e à política colonial britânica em relação à Índia e à Irlanda.56 Mas, do ponto de vista predominante entre biógrafos e comentadores posteriores, esses textos eram breves, efêmeros e díspares, ao contrário da reportagem de foco altamente concentrado em O 18 de brumário. Todavia, do ponto de vista de Marx — e de um ponto de vista que valoriza o engajamento ativista —, essas obras variadas hão de se afigurar contínuas, contemporâneas e apaixonadas.
Essa maneira de ler Marx e de entender politicamente seu foco sobre a história revela que ele sempre foi um historicista, utilizando e desenvolvendo uma concepção do conhecimento como prática, da prática como política e da política como construção do futuro. Assim, a epistemologia é socializada e historicizada, de modo que não se pode mais entender o conhecimento — e, portanto, os critérios de verdade ou falsidade — de nenhuma maneira que o abstraia das atividades humanas situadas sequencialmente no tempo. Claro que esta é, ainda hoje, uma visão muito radical, que elimina qualquer escatologia, não só cristã, e narrativas similares sobre quem somos “nós” como humanidade, para que estamos “nós” aqui e qual é nosso propósito ou nosso fim, como ele se realizará e o que acontecerá quando a história “acabar”. Ou melhor, do ponto de vista de Marx, tudo isso pode acontecer, mas apenas se as pessoas se organizarem para fazer “isso” acontecer, qualquer que seja o “isso” que estejam tentando fazer acontecer. Adotando a concepção de que os critérios de fundamentação, sejam derivados de concepções religiosas ou de especulações filosóficas (por exemplo, sobre a “natureza humana”), são sempre e necessariamente efeitos de processos socioeconômicos impulsionados pelos seres humanos (como vimos acima, na discussão sobre o Manifesto), Marx dificilmente apelaria a qualquer entidade tida como externa à experiência e ao conhecimento humanos ou a supostos fatores presentes na biologia, na psicologia, na espiritualidade ou nas tecnologias humanas que determinariam ou guiariam a humanidade para um fim “último”.
As tentativas de demonstrar a verdade (ou não) da “interpretação materialista da história” constituíram por muitos anos um traço característico do marxismo, quer os comentadores fossem marxistas demonstrando uma verdade sobre a história, quer fossem antimarxistas sustentando que, pelo contrário, a história segue algum outro padrão, sem necessariamente especificarem qual seria. Essas duas abordagens, com efeito, localizavam dentro da “própria história” um “fundamento” para o conhecimento da sociedade — de seu passado, presente e futuro —, isto é, uma visão atemporal da experiência humana que pressupõe um padrão intrínseco passível de ser conhecido. Claro que isso colocava a pergunta não só sobre o que é o conhecimento, mas também de que maneira se poderia usá-lo como guia para a ação. Ou, de fato, a pergunta mais difícil, se seria mesmo necessário que ele fosse usado — ou simplesmente apenas “conhecido” — para se ter conhecimento de algo já acontecendo numa determinada sociedade ou abrangendo toda a humanidade. Esse dilema sobre o conhecimento e a ação se apresentou de diversas maneiras na política marxista sempre que os grupos e partidos marxistas professos adquiriam poder político ou, ao menos, poder suficiente para gerar exigências de mudança e realizar mudanças. Por outro lado, alguns marxistas objetavam contra esse “voluntarismo”, argumentando que a “história” operaria seu próprio determinismo. Mas esse dilema não é propriamente uma invenção marxista: qualquer concepção que situa o conhecimento importante sobre a humanidade dentro de um padrão atemporal, ou de um padrão que se sabe existir e se desenvolver ao longo do tempo, cai na mesma armadilha.
Politicamente, porém, essa era uma armadilha muito corrente, e a promessa de um determinismo — e, portanto, de um conhecimento do passado, do presente e do futuro sabidamente verdadeiro — sem dúvida gerava entusiasmo e trazia convertidos para a causa comunista, como ocorre com religiões, pseudorreligiões ou filosofias analogamente construídas. Em seus anos mais avançados, Engels — como divulgador de Marx — adotou essa linha, e com efeito foi nessa época, de 1859 em diante, que surgiu a “interpretação materialista da história”, com ampla circulação a partir do final dos anos 1870 como fundamento para uma ciência. Marx, sem dúvida, tolerou isso — afinal, ele e Engels eram companheiros políticos — e parece não ter levantado nenhuma objeção explícita. Mas há inúmeros textos e comentários de seus últimos anos mostrando uma continuidade em seu entendimento da história, a saber, que a história é feita de maneira contingente por meio das atividades humanas.57 Claro que foi uma troca: se o fundacionalismo espúrio está funcionando bem em termos políticos — como, aliás, muitas outras coisas poderiam funcionar —, então eis uma razão para continuar com ele.58
Essa discussão mostra a dificuldade de atuar politicamente com a concepção que hoje poderíamos chamar de “antifundacionalista”, ou, em termos mais precisos, uma visão que situa todo o conhecimento dentro de sistemas de ideias que surgem em determinados contextos políticos, institucionais e cotidiano-econômicos. O tipo de maleabilidade presumido por Marx lança um peso muito grande sobre os ativistas responsáveis por tomar as decisões — em todos os níveis até o cotidiano — e, assim, veda qualquer atalho na organização programática que poderia decorrer de supostas garantias de que determinadas ações e consequências já estão validadas em outra esfera e, portanto, se encontram disponíveis para o conhecimento. Mas, da maneira como interpretei Marx, não existe mesmo nenhum guia para a ação? Nenhum objetivo estabelecido a alcançar? E onde ficamos quanto à ideia de “progresso”, conceito com que Marx e Engels se identificavam e que permeia os escritos de ambos de uma ponta a outra?
Raramente Marx utilizou a palavra “progresso”, embora, num de seus rascunhos resumindo e explicando sua “perspectiva”, tenha ordenado a história em várias épocas dizendo-as “progressivas”.59 No século xx, essa sequência se tornou notoriamente controversa, sobretudo por causa das ambiguidades de Marx em suas observações sucintas. Embora de aparência sequencial, os modos de produção “asiático, antigo, feudal e burguês moderno” se encontram — à exceção do “antigo” — superpostos no presente ou no passado recente, e, de todo modo, o texto não menciona explicitamente nenhum fator comum, nem mesmo um conjunto de fatores identificáveis que os caracterize com clareza.60 A tipologia brevemente esboçada de Marx parece muito improvisada, uma mera e rápida tentativa de distinguir, de alguma maneira, as possíveis diferenças das formações sociais em termos de tecnologias, relações dentro das atividades de produção, sistemas de propriedade, circulações monetárias (ou não). Outros esquemas de Marx eram, em alguns casos, um pouco mais bem organizados — por exemplo, idade da pedra, idade do bronze, idade do ferro61 —,mas tampouco tinham uma sequencialidade convincente em termos históricos ou em termos de um entendimento das várias formações sociais que existem no presente. Essas tipologias comparecem mais como recursos heurísticos do que como asserções derivadas de uma “teoria” específica que nos diz o que é a história, como opera e como operará.
Engels, a partir dos anos 1860, adotou uma linha diferente, haja vista suas repetitivas afirmações da “interpretação materialista da história”, mas sempre atribuindo essa “descoberta” a Marx. Os escritos históricos do próprio Engels, tomando como premissa seu conhecimento dessa verdade, eram muito mais argumentativos e demonstrativos do que suas declarações teóricas. Em seus estudos, ele procedia dedutivamente a partir da teoria para identificar fenômenos na história já sabidamente de grande importância e, assim, produzia historiografias espelhando a política da qual a “teoria” já estava imbuída. Mas esse tipo de escrita era mais uma retórica da certeza do que uma retórica da persuasão, mesmo quando os acontecimentos históricos sob exame, por exemplo As guerras camponesas na Alemanha,62 não preenchiam suas expectativas políticas. Claro que a “interpretação materialista da história” nas mãos de Engels fornecia uma explicação para isso: ele ressalvava que as forças produtivas não desenvolvidas eram tais que seria impossível que uma revolução se seguisse. Mas aí essa aparente saída nega a força da teoria: como, em primeiro lugar, foi possível surgir um movimento tão anti-histórico como esse?
As explorações históricas de Marx, por sua vez, chegam a uma visão das possibilidades (no plural) frente à contingência humana, e não a conclusões das quais se extrairiam “lições”, como se dá no exercício de tipo dedutivo e demonstrativo feito por Engels. Mesmo assim, Marx certamente estava mais interessado em algumas possibilidades políticas do que em outras, e, aliás, estava ajudando — enquanto intervenção política — a tornar algumas possibilidades inteligíveis, caso ainda não o fossem. E estava ajudando — enquanto crítica mordaz — a eliminar outras, pelas razões dadas. Esta é uma orientação que confere à escrita de Marx um perfil ativista com estimulante sentido democrático, em vez de ser uma invocação autoritária do conhecimento baseado em protocolos epistemológicos garantidores de certeza.
Dado o ativismo de Marx, realmente não há nenhuma dúvida sobre quais seus valores políticos e desfechos preferidos ao longo de toda a sua carreira. Tampouco há qualquer dúvida sobre o tipo de relação e de crucial dependência dessas ideias com a noção de que nem todas as mudanças históricas eram da mesma envergadura e que o desenvolvimento da produção “burguesa” moderna com base nas tecnologias industriais modernas marcou, de fato, uma transformação sísmica — e global — nas capacidades da humanidade e nos problemas que uma política progressista da época e do futuro teria de combater.
Essas ideias de Marx, em vez de derivarem de uma noção de progresso — que decorreria de um estudo da história63 —, derivavam de sua percepção política da “questão social” e das possibilidades de que as revoluções democratizantes fossem a chave para solucioná-la. Não se trata de uma dedução, mas de um projeto fundado em valores que não eram amplamente adotados na época, mas tampouco eram exclusivos de Marx. Eles consistiam no valor e na dignidade da vida humana e, em especial, numa rejeição explícita da visão então corriqueira de que o que determina o valor de uma vida é a hierarquia do status hereditário e da classe econômica. Para Marx, essa própria hierarquia era, em grande medida, resultado de uma hierarquia da riqueza e do acesso a ela através dos sistemas monetários, comerciais, de propriedade e de parentesco da época ou, na verdade, de qualquer época. A perspectiva de Marx também operava, notadamente, eliminando as classificações raciais e os sistemas evolucionários do período, bem como os elos de evidência que racializavam a escravidão e os projetos coloniais também presentes na vida política e intelectual.64 Há poucas indicações de uma crítica direta dele aos determinismos “científicos” ou às “ciências raciais” da época, mas também são poucas as indicações de que seu pensamento se baseasse nuns ou noutras. Seria de fato improvável, em vista das caracterizações de sua orientação ativista apresentadas acima.65
Nos escritos de Marx, em especial no Manifesto, comparece maciçamente uma noção de progresso, como função da enorme mudança na produtividade que ele identificou com aquilo que autores posteriores chamariam de revolução industrial. É difícil imaginar que ele se sentiria insatisfeito com essa expressão, a não ser para passar imediatamente às exigências de uma revolução política que, a seu ver, se constituiria com as exigências de que aquela revolução industrial estendesse seus benefícios a populações inteiras, e não só a classes específicas. Por esses benefícios entendiam-se processos altamente produtivos que permitiriam a distribuição de bens e serviços de tal modo que as desigualdades baseadas na classe e, portanto, a “questão social” deixariam de existir. Resumindo a questão no Manifesto, Marx e Engels escreveram:
Foi isso que vimos até agora: os meios de produção e comércio que formaram a base do desenvolvimento comercial foram gerados na sociedade feudal. Num determinado nível de desenvolvimento […] a organização feudal da agricultura e da manufatura em pequena escala […] passou a ser uma corrente de grilhões. Tinham de ser rompidos, foram rompidos.
Em seu lugar veio a livre concorrência com uma constituição social e política complementar, o domínio econômico e político da classe comercial.
Um movimento semelhante está ocorrendo sob nossos próprios olhos […]. [A] sociedade comercial moderna, que trouxe meios tão poderosos de produção e comércio, se assemelha ao feiticeiro que não conseguia mais controlar as potências sobrenaturais que havia conjurado.66
Vários comentadores apontaram não apenas eurocentrismo nessas ideias de Marx, mas também uma obstinada ênfase nos aspectos negativos da crescente industrialização conforme esta se alastrava pelo mundo. O Manifesto não é um discurso sobre os aspectos negativos, a não ser para contraste, e por isso não é o local adequado para procurar ideias mais nuançadas. Há passagens notáveis nos textos de Marx que tratam dos custos humanos — em termos de sofrimento individual e coletivo, de apagamento cultural e civilizacional — que a “burguesia” ou as classes comerciais impuseram ao mundo. Mas, em vista do projeto de Marx — separando as brutalidades da estrutura classista moderna do potencial produtivo das tecnologias movidas a energia —, dificilmente ele recomendaria um retorno a alguma formação social pré-capitalista, a uma cultura artesanal, a uma utopia new age ou qualquer outra que rejeitasse o avanço tecnológico.
Não é difícil passar da espécie de cântico que Marx e Engels entoam à burguesia como capaz de mover a terra e abalar o planeta, no Manifesto, para recentes posições sobre a poluição industrial como risco, individual e relacionado à questão de classe, para a saúde global.67 Mas é verdade, sem dúvida, que essas posições não estão apresentadas de modo explícito no texto, pois só vieram a ter maior destaque por volta da década de 1980, se não considerarmos aqueles autores que, desde então, passaram a ser tidos como proféticos. Apesar disso, seria difícil atribuir a Marx qualquer ideia de algum “ajuste” que não tivesse um foco intrinsecamente tecnológico e industrial, em oposição à ideia de simplesmente eliminar as forças produtivas e rejeitar os potenciais capazes de poupar trabalho. Ele tinha uma visão global, mas era uma visão global da luta de classes, e — como veremos — suas ideias para uma solução se fundam na abolição de classes, e não numa pretensa coletividade de interesses dentro das estruturas existentes das relações econômicas nacionais e internacionais. A política da mudança climática se baseia maciçamente numa retórica não só dos fatos, mas de uma concordância humana decorrente da coexistência num mesmo planeta, que tem um poderoso símbolo na imagem do “mármore azul” tirada no espaço sideral.68
Isso não significa dizer que as estratégias intelectuais de Marx para promover intervenções democratizantes de massa na política, ou mesmo para “dinamizar” redes ou protopartidos a partir de uma posição que, na época, era de “extrema esquerda”, tivessem grande êxito: não tiveram. Como comunista, a partir dos anos 1850 ficou rotulado como revolucionário-no-exílio, e como socialista em anos seguintes trabalhou incansavelmente na ait. Assim, ele estava um tanto distante de intervenções diretas na política nacional, onde teria tido mais visibilidade, ao mesmo tempo correndo o risco de perseguição e deportação. Suas iniciativas se dirigiam internacionalmente a organizações nacionais, e não a entidades específicas locais nos Estados germânicos ou no Reino Unido. A atividade de Marx não era o trabalho político-partidário que outros faziam in loco. Como integrante de tendências e movimentos maiores, Marx teve em vida alguma influência em aspectos limitados, mas foi ignorado ou marginalizado em outros. Transformado em ícone a partir dos anos 1870 em alguns setores do movimento socialista, e então demonizado por outros setores e, claro, por políticos e movimentos antissocialistas, não admira que sua potência política tenha aumentado muito. Mas aí ele já era uma espécie de símbolo, e não um participante ativo direto, e no prazo de uma década veio a morrer.
As ideias de Marx sobre a criação do progresso — entendidas como intervenções políticas — serão o tema do próximo capítulo.