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Uso de maconha e controle social

Aprender a gostar de maconha é uma condição necessária mas não suficiente para que uma pessoa desenvolva um padrão estável de uso da droga. Ela precisa lutar ainda com as poderosas forças de controle social que fazem o ato parecer inconveniente, imoral ou ambos.

Quando um comportamento desviante ocorre numa sociedade — comportamento que zomba de suas normas e de seus valores básicos —, um elemento de sua emergência é um colapso dos controles sociais que usualmente operam para manter a forma valorizada de comportamento. Em sociedades complexas, o processo pode ser muito complicado, uma vez que os colapsos do controle social são muitas vezes conseqüência do ingresso de pessoas num grupo cuja cultura e controles sociais próprios operam em sentido contrário aos da sociedade mais ampla. Fatores importantes na gênese do comportamento desviante, portanto, podem ser procurados nesse processo pelo qual pessoas são emancipadas dos controles da sociedade e tornam-se sensíveis àqueles de um grupo restrito.

Os controles sociais afetam o comportamento individual, em primeiro lugar, pelo uso do poder, a aplicação de sanções. O comportamento valorizado é recompensado, e o comportamento negativamente valorizado é punido. Como seria difícil manter o controle caso a imposição se tornasse sempre necessária, surgem mecanismos mais sutis que desempenham a mesma função. Entre eles está o controle do comportamento, obtido influenciando-se as concepções que as pessoas têm da atividade a ser controlada e da possibilidade ou exeqüibilidade de se envolver nela. Essas concepções surgem em situações sociais em que elas são comunicadas por pessoas consideradas respeitáveis e validadas pela experiência. Tais situações podem ser ordenadas de tal maneira que os indivíduos passam a conceber a atividade como desagradável, inconveniente ou imoral, não devendo portanto ser praticada.

Essa perspectiva nos convida a analisar a gênese do comportamento desviante em termos de eventos que tornam as sanções ineficazes, e de experiências que alteram as concepções, de modo que o comportamento se torna uma possibilidade concebível para a pessoa. Neste capítulo analiso esse processo no caso do uso de maconha. Minha questão básica é: qual é a seqüência de eventos e experiências pela qual uma pessoa se torna capaz de levar adiante o uso de maconha, apesar dos elaborados controles sociais que funcionam para evitar tal comportamento?

Muitas forças poderosas operam para controlar o uso de maconha nos Estados Unidos. O ato é ilegal e passível de punições severas. Sua ilegalidade torna o acesso à droga difícil, erguendo obstáculos imediatos diante de qualquer um que deseje usá-la. O uso efetivo pode ser perigoso, pois prisão e encarceramento são sempre conseqüências possíveis. Além disso, caso a família, os amigos ou o patrão de um usuário descubram que ele utiliza maconha, eles podem lhe atribuir as características acessórias que de hábito estão supostamente associadas ao uso de drogas. Acreditando que o fumante é irresponsável e incapaz de controlar o próprio comportamento, que talvez até esteja louco, podem puni-lo com vários tipos de sanções informais, mas extremamente eficazes, como o ostracismo ou a retirada de afeto. Finalmente, desenvolveu-se um conjunto de idéias tradicionais definindo a prática como uma violação de imperativos morais, como um ato que leva à perda do autocontrole, à paralisia da vontade e, por fim, à escravidão à droga. Essas idéias, que são triviais, constituem forças eficazes na prevenção do uso de maconha.

A carreira do usuário de maconha pode ser dividida em três estágios, cada qual representando uma mudança distinta em sua relação com os controles sociais da sociedade mais ampla e com aqueles da subcultura em que se verifica o uso de maconha. O primeiro estágio é representado pelo iniciante, a pessoa que fuma maconha pela primeira vez; o segundo, pelo usuário ocasional, cujo consumo é esporádico e depende de fatores fortuitos; e o terceiro, pelo usuário regular, para quem fumar se torna uma rotina sistemática, em geral diária.

Consideremos primeiro o processo pelo qual vários tipos de controle social tornam-se progressivamente menos eficazes à medida que o usuário passa de um estágio a outro, ou, alternativamente, o modo como os controles impedem esse movimento, permanecendo eficazes. Os principais tipos de controle a serem considerados são: (a) controle pela limitação do fornecimento da droga e do acesso a ela; (b) controle pela necessidade de evitar que não-usuários descubram que a pessoa é usuária; (c) controle pela definição do ato como imoral. A anulação da eficácia desses controles, nos níveis e nas combinações a serem descritos, pode ser considerada uma condição essencial para o uso constante e aumentado de maconha.

Fornecimento

O uso da maconha é limitado, em primeiro lugar, por leis que tornam a posse ou a venda da droga passíveis de severas punições. Isso restringe sua distribuição a fontes ilícitas não facilmente acessíveis à pessoa comum. Para começar a fumar maconha, uma pessoa deve participar de algum grupo por intermédio do qual essas fontes de fornecimento se tornem acessíveis para ela, em geral um grupo organizado em torno de valores e atividades opostos aos da sociedade convencional mais ampla.

Nesses círculos não-convencionais, em que a maconha já é usada, aparentemente trata-se apenas de uma questão de tempo até que surja a situação na qual é dada ao recém-chegado uma chance de fumá-la:

Eu estava com aqueles caras que conhecia da escola, e um tinha um pouco, e eles foram puxar fumo e acharam que eu puxava também, não me perguntaram, eu não quis ficar chupando o dedo, então não disse nada e fui até os fundos desse lugar com eles. Eles estavam enrolando uns baseados.

Em outros grupos a maconha não está imediatamente presente, mas a participação no grupo propicia relações com outros em que ela está disponível:

Mas o problema era que a gente não sabia onde descolar algum. Nenhum de nós sabia onde conseguir ou como descobrir onde conseguir. Bom, havia aquela garota lá…. Ela tinha umas amigas negras e tinha puxado fumo antes com elas. Talvez uma ou duas vezes. Mas sabia um pouco mais sobre isso que qualquer um de nós. Ela conseguiu descolar um pouco, por meio dessas amigas negras, e uma noite trouxe alguns baseados.

Nos dois casos, tal participação fornece as condições em que a maconha se torna disponível para um primeiro uso. Ela propicia também as condições para o estágio seguinte de uso ocasional, em que o indivíduo fuma maconha de maneira esporádica e irregular. Quando uma pessoa chegou, por experiências anteriores, a um ponto em que é capaz de fumar maconha por prazer, o uso, de início, tende a ser uma função da disponibilidade. A pessoa usa a droga quando está com outras que têm um fornecimento; quando esse não é o caso, o uso cessa. Ela tende, portanto, a flutuar em termos das condições de disponibilidade criadas por sua interação com outros usuários. Um músico nesse estágio disse:

Eu puxo fumo sobretudo quando trabalho tocando. E não tenho tocado quase nada ultimamente…. Veja, estou casado há 12 anos agora, e realmente não toquei muito desde então. Tive de arranjar um serviço diurno, você sabe, e não pude tocar muito. Não tive muitos trampos, então realmente não puxei muito fumo.

É como eu digo, a única hora em que realmente entro nessa é quando estou trabalhando com jazzistas que fumam, então também fumo. É como eu digo, fazia talvez uns seis meses que não puxava fumo. Não puxei fumo esse tempo todo. Depois, desde que comecei a tocar aqui, faz três semanas, tenho fumado toda sexta-feira e todo sábado. É assim que a coisa funciona comigo.

[Observado durante um período de semanas, este homem mostrou-se completamente dependente de outros membros da orquestra em que trabalhava ou de músicos que apareciam no bar para obter qualquer maconha.]

Se um usuário ocasional começa a se mover em direção a um modo de consumo mais regular e sistemático, isso só será possível se ele encontrar uma fonte de fornecimento mais estável que os encontros fortuitos com outros usuários, e isso significa estabelecer conexões com pessoas que se dedicam a traficar narcóticos. Embora compras em grandes quantidades sejam necessárias para o uso regular, elas geralmente não são feitas com essa intenção; mas, uma vez feitas, tornam de fato esse uso possível, coisa que não era antes. Essas compras tendem a ser feitas quando o usuário se torna mais sensível aos controles do grupo que usa drogas:

Eu estava andando com todo aquele bando de gente que puxava fumo naquela época. E eles estavam sempre me abastecendo, você sabe, até que aquilo ficou embaraçoso. Eu estava realmente constrangido por nunca ter nenhum, por não poder retribuir … Então andei perguntando onde podia conseguir, e comprei pela primeira vez.

Além disso, comprar de um traficante é mais econômico, visto que não há intermediários, e o comprador de quantidades maiores obtém, como no mundo usual dos negócios, um preço menor.

No entanto, para fazer essas compras, o usuário precisa ter um “contato” — conhecer alguém que se dedica ao tráfico de drogas. Os traficantes operam ilicitamente, e para fazer negócios com eles a pessoa precisa saber onde os encontrar e se identificar para eles de tal modo que não hesitem em fazer venda. Isso é bastante difícil no caso de pessoas que estão apenas casualmente envolvidas com grupos que usam drogas. Mas, à medida que a pessoa se torna mais identificada com esses grupos, e é vista como mais digna de confiança, o conhecimento necessário e as apresentações a traficantes tornam-se disponíveis para ela. Ao ser definido como integrante de um grupo, um indivíduo é também classificado como alguém que pode ser seguramente considerado capaz de comprar drogas sem pôr os outros em perigo.

Mesmo quando a oportunidade se torna acessível para eles, muitos não se aproveitam. O perigo de prisão inerente a tal ato os impede de tentar:

Se ela fosse livremente distribuída, acho que eu provavelmente a teria à mão o tempo todo. Mas… [Você quer dizer, se não fosse contra a lei?] É. [Bem, então isso significa que você não quer se envolver…] Bem, eu não quero ficar envolvido demais, você sabe. Não quero chegar perto demais das pessoas que traficam, que estão muito metidas nisso. Nunca tive nenhuma dificuldade em conseguir algum bagulho. Eu só, … alguém sempre tem um pouco e a gente pode conseguir quando quer. Por que, exatamente por que eu nunca entrei nesses contatos mais ou menos diretos, os traficantes, acho que você explicaria isso com base no fato de que nunca senti necessidade de garimpar, de correr atrás.

Esses temores entram em ação somente enquanto a tentativa não é feita, porque, depois que ela foi realizada com sucesso, o indivíduo é capaz de usar a experiência para reavaliar o perigo envolvido; a noção de perigo não impede mais a compra. Em vez disso, o ato é abordado com uma cautela realista que reconhece a possibilidade de prisão sem exagerá-la. O comprador se sente seguro, contanto que observe precauções elementares, de senso comum. Embora muitos dos entrevistados tivessem comprado, apenas poucos relataram qualquer dificuldade de tipo legal, que eles atribuíram à falta das devidas precauções.

Para aqueles que estabelecem conexões, o uso regular é muitas vezes interrompido pela prisão ou desaparecimento do homem de quem compram sua provisão. Nessas circunstâncias, o uso regular só pode prosseguir se o usuário for capaz de encontrar uma nova fonte de fornecimento. Este rapaz teve de abandonar o uso por algum tempo quando:

Bom, o Tom foi para a cadeia, eles o prenderam. Depois o Cramer. Como foi mesmo que aconteceu? … Ah, sim, eu meio que devia algum dinheiro para ele, e não o vi durante um bom tempo; quando tentei vê-lo ele tinha se mudado, e não consegui descobrir para onde o sujeito tinha ido. Então isso, foi esse contato…. [Então você realmente não sabia onde conseguir?] Não. [Então parou?] Parei.

A instabilidade das fontes de fornecimento é um importante controle sobre o uso regular e reflete de maneira indireta o emprego de sanções legais pela comunidade na prisão dos que traficam drogas. A imposição da lei controla o consumo, não dissuadindo os usuários diretamente, mas tornando precárias as fontes da droga e dificultando o acesso a elas.

Cada estágio de uso, da iniciação à rotina, tem portanto seu modo típico de fornecimento, o qual deve estar presente para que esse nível ocorra. Assim, os mecanismos que operam para limitar a disponibilidade da droga restringem também seu uso. No entanto, a participação em grupos em que a maconha é consumida cria as condições nas quais os controles que limitam o acesso a ela deixam de operar. Essa participação também envolve maior sensibilidade com relação aos controles do grupo usuário, de modo que há forças pressionando em direção à utilização das novas fontes de fornecimento. Conseqüentemente, pode-se dizer que mudanças na participação no grupo e no pertencimento a ele levam a mudanças no nível de uso, ao afetar o acesso do indivíduo à maconha nas condições presentes, em que a droga só está disponível por intermédio de distribuidores ilegais.

Sigilo

O uso da maconha é limitado também à medida que indivíduos a consideram inconveniente ou acreditam que irão julgá-la como tal. Essa inconveniência, real ou presumida, provém do fato ou da crença de que, se não-usuários descobrirem que alguém usa a droga, sanções de um tipo importante serão aplicadas. A concepção que os usuários têm dessas sanções é vaga, porque poucos deles parecem ter passado por alguma experiência desse tipo ou ter conhecido alguém que as viveu; em sua maioria, os usuários de maconha são desviantes secretos. Embora eles não saibam o que esperar especificamente em matéria de punição, as linhas gerais são claras: temem o repúdio por parte de pessoas de cujo respeito e aceitação necessitam, tanto prática quanto emocionalmente. Isto é, supõem que suas relações com não-usuários serão perturbadas e rompidas caso estes venham a descobrir, e limitam e controlam seu comportamento à medida que essas relações com outsiders são importantes para ele.

Esse tipo de controle perde a força na interação com outros usuários e no desenvolvimento da experiência com a droga, à proporção que o usuário percebe que, mesmo que lhe apliquem sanções, em caso de descoberta pelos não-usuários, isso não precisa necessariamente ocorrer. Em cada nível de uso, há um avanço nessa compreensão que torna possível o próximo estágio.

Para o iniciante, essas considerações são fundamentais e precisam ser superadas para que o uso seja empreendido. Seus medos são contestados pela visão de outros — usuários mais experientes — que aparentemente julgam haver pouco ou nenhum perigo e parecem se envolver na atividade impunemente. Se alguém “experimenta uma vez”, pode aplacar seus temores com observações desse tipo. A interação com outros consumidores proporciona, assim, ao iniciante racionalizações para fazer a primeira tentativa.

Se persiste em fumar maconha, o noviço perceberá que pode consumi-la tantas vezes quantas quiser, desde que seja cuidadoso e se assegure de que não haverá não-usuários presentes, nem haverá risco de intromissão por parte deles. Esse tipo de perspectiva é um pré-requisito necessário para o consumo ocasional, em que a droga é fumada quando outros usuários convidam alguém a se juntar a eles. Embora permita esse estágio de uso, tal perspectiva não dá margem para o consumo regular, porque os mundos de usuário e não-usuário, embora separados num grau que permite a persistência do padrão de uso ocasional, não são completamente segregados. Os pontos de contato entre esses dois universos parecem perigosos para o usuário ocasional, que deve, portanto, restringir o consumo àquelas ocasiões que tornam improvável esse encontro.

O uso regular, por outro lado, implica um consumo sistemático e rotineiro da droga que não leva em conta essas possibilidades e planeja os períodos para seu consumo. É um modo que se baseia em outro tipo de atitude em relação ao risco de ser descoberto por não-usuários, que se baseia na convicção de que a maconha pode ser fumada debaixo do nariz de não-usuários; ou, alternativamente, na adoção de um padrão de participação social que reduz quase a zero os contatos com não-usuários. Sem esse ajuste na atitude, na interação ou em ambos, o consumidor é obrigado a permanecer no estágio do uso ocasional. Esses ajustes podem ter lugar em termos de duas categorias de riscos envolvidos: primeiro, que não-usuários descubram alguém em posse de maconha; segundo, que alguém seja incapaz de esconder os efeitos da droga quando está na companhia de não-usuários.

As dificuldades do aspirante a usuário regular, no primeiro caso, são ilustradas pelos comentários de um rapaz que fracassou na tentativa de fazer uso regular enquanto morava com os pais:

Eu não gostava de ter maconha pela casa, sabe? [Por quê?] Bom, pensava que talvez minha mãe pudesse achá-la, ou algo assim. [Que acha que ela diria?] Ah, bem, você sabe…. Bom, eles nunca mencionam isso, sabe, nada sobre viciados em drogas ou qualquer coisa desse tipo, mas seria realmente uma coisa ruim no meu caso, eu sei, por causa da grande família de que venho. E minhas irmãs e irmãos, eles iriam me arrasar. [E você não quer que isso aconteça?] Não, acho que não.

Nesses casos, prever as conseqüências da descoberta do segredo impede a pessoa de manter a provisão mínima para o uso regular. O consumo continua irregular, uma vez que depende de encontros com outros usuários e não pode ocorrer sempre que o usuário deseja.

A menos que descubra um método para superar essa dificuldade, a pessoa só pode avançar para o uso regular quando a relação que impede o consumo é rompida. As pessoas não costumam deixar seus lares e suas famílias para fumar maconha regularmente. Mas se o fazem, não importa por que razão, o uso regular, até então vetado, torna-se uma possibilidade. Usuários regulares confirmados muitas vezes consideram seriamente o efeito do estabelecimento de novas relações sociais com não-usuários sobre seu uso da droga:

Eu não me casaria com alguém que brigasse comigo se eu fizesse isso [fumasse maconha], sabe. Isto é, não me casaria com uma mulher que fosse tão desconfiada a ponto de pensar que eu faria alguma coisa…. Isto é, você sabe, tipo fazer mal a mim mesmo ou tentar fazer mal a alguém.

Se tais ligações são estabelecidas, o uso tende a retornar ao estágio ocasional:

[Este homem havia usado maconha bem intensamente, mas sua mulher era contra.] Claro, foi em grande parte por causa da minha mulher que parei. Houve algumas ocasiões em que tive vontade … não fiquei realmente fissurado, mas ia gostar de fumar um pouco. [Ele não pôde continuar usando a droga exceto irregularmente, naquelas ocasiões em que estava longe da presença e do controle da mulher.]

Se a pessoa ingressa quase totalmente no grupo de usuários, o problema deixa de existir sob muitos aspectos, e é possível que o consumo regular ocorra, exceto quando se faz uma nova conexão com o mundo mais convencional.

Se uma pessoa fuma maconha de maneira regular e rotineira, é quase inevitável — uma vez que, numa sociedade urbana, esses papéis não podem ser mantidos completamente separados — que um dia se veja drogada na companhia de não-usuários de quem deseja esconder sua prática. Dada a variedade de sintomas que a droga pode produzir, é natural que o usuário tema que possa revelar, pelo comportamento, que está drogado, que possa ser incapaz de controlar os sintomas e, assim, revelar seu segredo. Esses fenômenos, como a dificuldade em se concentrar e levar adiante uma conversa normal, geram na pessoa o temor de que todos saibam exatamente por que ela está se comportando dessa maneira, de que o comportamento seja interpretado de forma automática como um sinal de consumo de droga.

Os que avançam para o uso regular conseguem evitar esse dilema. Pode acontecer, como foi observado anteriormente, que eles passem a participar quase completamente do grupo subcultural em que a prática tem lugar, de modo a estabelecer uma quantidade mínima de contato com não-usuários com cuja opinião se importam. Como esse isolamento da sociedade convencional raramente é completo, o usuário precisa aprender outro método de evitar o dilema, método que é o mais importante para aqueles cuja participação nunca é tão completamente segregada. Ele consiste em aprender a controlar os efeitos da droga quando está na companhia de não-usuários, de modo que estes possam ser enganados, e o segredo mantido, mesmo que a pessoa continue em interação com eles. Se alguém não consegue aprender isso, existem alguns grupos de situações em que não ousa ficar drogado e no qual o uso regular não é possível.

Sabe, cara, vou lhe contar uma coisa que realmente me arrasa, é realmente terrível. Alguma vez você entrou no barato e depois teve de encarar sua família? Eu realmente tenho pavor disso. Como ter de falar com meu pai, minha mãe ou irmãos, cara, é realmente demais. Eu realmente não consigo. Tenho a impressão de que estão me manjando [observando] e sabem que estou doidão. É uma sensação horrível. Odeio isso.

A maioria dos usuários tem essas sensações e passa ao consumo regular — quando passa — somente se ocorrer uma experiência da seguinte ordem, mudando sua concepção das possibilidades de detecção:

[Então você fazia isso muito, de início?] Não, não demais. Como eu disse, tinha um pouco de medo. Mas, finalmente, foi por volta de 1948 que realmente comecei a fumar para valer. [Do que você tinha medo?] Bom, eu tinha medo de ficar drogado e não ser capaz de me desempenhar, entende, quer dizer, tinha medo de relaxar e ver o que iria acontecer. Especialmente no trabalho. Eu não podia confiar em mim quando entrava no barato. Tinha medo de ficar doidão demais e perder completamente a consciência, ou fazer bobagem. Não queria ficar perturbado demais.

[Como superou isso?] Bom, são essas coisas, cara. Uma noite eu puxei um fumo e de repente me senti realmente ótimo, relaxado, você sabe, fiquei realmente numa boa. Desde então fui capaz de fumar tanto quanto queria sem ter nenhum problema com isso. Sempre consigo controlar.

Na experiência típica, o usuário se vê numa posição em que deve fazer, quando drogado, algo que tem certeza de não poder realizar nessa condição. Para sua surpresa, descobre que consegue se desempenhar bem e ainda esconder dos outros o fato de estar sob influência da droga. Uma ou mais ocorrências desse tipo permitem ao usuário concluir que pode continuar sendo um desviante secreto, que sua cautela foi excessiva e baseada numa premissa falsa. Se ele deseja usar a droga regularmente, não será mais dissuadido por esse medo, pois pode usar tal experiência para justificar a crença de que os não-usuários nunca precisam saber.

[Sugeri que muitos usuários acham difícil realizar seu trabalho com eficiência quando drogados. O entrevistado, um mecânico, respondeu com a história de como superou essa barreira.]

Isso não me incomoda tanto. Tive uma experiência uma vez que provou isso para mim. Eu tinha ido a uma festa do barulho na noite anterior. Fiquei muito doido. Com maconha e bebida também. Fiquei tão alto que ainda estava baratinado quando fui para o trabalho no dia seguinte. E eu tinha um serviço muito importante a fazer. Devia ser praticamente perfeito — negócio de precisão. O chefe andara até me instruindo por vários dias, explicando como fazê-lo e tudo o mais.

[Ele foi para o trabalho maconhado e, até onde podia se lembrar, devia ter feito o serviço, embora não tivesse nenhuma lembrança clara disso, já que continuava inteiramente drogado.]

Por volta de 15h45, finalmente caí em mim e pensei: “Meu Deus! O que estou fazendo?” Então tratei de parar e fui para casa. Quase não dormi a noite toda, preocupado, pensando se tinha ferrado tudo naquele serviço ou não. Apareci na manhã seguinte, o chefe verificou tudo, e eu tinha feito o maldito serviço com perfeição. Então, depois disso, realmente deixei de me preocupar. Já fui trabalhar completamente doidão algumas manhãs. Não tive absolutamente problema algum.

O problema não é igualmente importante para todos os usuários. Alguns deles estão protegidos por sua participação social; eles estão completamente integrados ao grupo desviante. Todos os seus companheiros sabem que usam maconha e ninguém se importa, ao passo que seus contatos convencionais são raros e sem importância. Além disso, algumas pessoas encontram soluções idiossincráticas que lhes permitem agir quando drogadas sem que ninguém perceba.

Eles [os rapazes da vizinhança] nunca sabem se estou ou não drogado. Em geral estou, mas eles não sabem. Sempre tive fama, durante todo o ensino médio, de ser meio pateta, sabe, então não importa o que eu faça, ninguém presta muita atenção. Posso ficar drogado impunemente quase em qualquer lugar.

Em suma, as pessoas limitam seu uso de maconha em proporção ao grau de medo que sentem, real ou não, de que não-usuários importantes para eles descubram que consomem drogas e reajam de maneira punitiva. Esse tipo de controle perde a força quando o usuário descobre que seus medos são excessivos e irreais, quando passa a conceber a prática como algo que pode ser mantido em segredo com relativa facilidade. Cada estágio de uso só pode ocorrer depois que a pessoa reviu sua concepção dos perigos envolvidos nele.

Moralidade

Noções convencionais de moralidade são outro meio pelo qual o uso de maconha é controlado. Os imperativos morais básicos que operam aqui são os que exigem que o indivíduo seja responsável por seu próprio bem-estar, e capaz de controlar seu comportamento racionalmente. O estereótipo do viciado em drogas retrata uma pessoa que viola esses imperativos. Uma recente descrição do usuário de maconha ilustra os principais traços desse estereótipo:

Nos primeiros estágios de intoxicação a força de vontade é destruída, e inibições e restrições são liberadas; as barreiras morais são derrubadas, o que resulta muitas vezes em devassidão e sexualidade. Onde a instabilidade mental é inerente, o comportamento é em geral violento. Um egoísta gozará de delírios de grandeza, o indivíduo tímido sofrerá de ansiedade, e o agressivo muitas vezes desejará recorrer a atos de violência e crime. Tendências latentes são liberadas, e embora o sujeito possa saber o que está acontecendo, tornou-se impotente para evitá-las. O uso constante produz incapacidade para o trabalho e desorientação da vontade.1

Temos de acrescentar a isso, claro, a idéia de que o usuário se torna um escravo da droga, de que se rende voluntariamente a um hábito para o qual não há saída. A pessoa que leva esse estereótipo a sério confronta-se com um obstáculo ao uso da droga. Ela não começará, manterá ou aumentará seu uso de maconha a menos que possa neutralizar sua sensibilidade ao estereótipo, aceitando uma visão alternativa da prática. De outro modo, irá, como o faria a maior parte dos membros da sociedade, condenar a si mesma como um outsider desviante.

O iniciante partilhou em algum momento a visão convencional. No curso de sua participação num segmento não-convencional da sociedade, contudo, é suscetível de adquirir uma visão mais “emancipada” dos padrões morais implícitos na caracterização habitual do usuário de drogas, pelo menos a ponto de não rejeitar sumariamente atividades porque são condenadas por convenção. Talvez a observação de outros consumidores o leve a aplicar sua rejeição dos padrões convencionais ao caso específico do uso de maconha. Essa interação, portanto, tende a fornecer as condições que permitem ao noviço escapar da influência das normas — pelo menos o bastante para que ele arrisque uma primeira experiência com a droga.

No curso de uma maior experiência com grupos que usam a droga, o noviço adquire uma série de racionalizações e justificativas com as quais pode responder a objeções quanto ao uso ocasional, caso decida envolver-se nele. Se ele mesmo suscitar as objeções da moralidade convencional, encontrará respostas prontas disponíveis no folclore dos grupos que fumam maconha.

Uma das racionalizações mais comuns é que as pessoas convencionais entregam-se a práticas muito mais nocivas, e que um vício comparativamente pequeno como fumar maconha não pode ser errado quando coisas como o uso de álcool são tão aceitas:

[Então você não curte álcool?] Não, não curto nem um pouco. [Por que não?] Não sei. Realmente não curto. Bom, veja, o negócio é o seguinte. Antes que eu chegasse à idade em que os garotos começam a beber, já estava puxando fumo e via as vantagens disso, sabe, isto é, não havia nenhum enjôo e era muito mais barato. Essa foi uma das primeiras coisas que aprendi, cara. Para que você quer beber? Beber é bobeira, sabe. É tão mais barato puxar um fumo e a gente não tem enjôo, não é sujo e toma menos tempo. E ela realmente passou a ser a coisa, sabe. Então eu puxei fumo antes de beber, saca …

[Que quer dizer com “essa foi uma das primeiras coisas que aprendeu”?] Bom, quero dizer, é como eu digo, eu estava começando a trabalhar como músico quando comecei a puxar fumo, e estava também em condições de beber no trabalho, sabe. E aqueles caras me mostraram que era bobagem beber. Eles também não bebiam.

Racionalizações adicionais permitem ao usuário sugerir para si mesmo que os efeitos da droga, ao invés de nocivos, são de fato benéficos:

Já fumei alguns que fizeram eu me sentir … muito revigorado, e me dá também um ótimo apetite. Deixa a gente com muita fome. Isso provavelmente é bom para algumas pessoas que estão magras demais.

Finalmente, o usuário, nesse estágio, não está usando a droga o tempo todo. Seu uso é planejado; considera-o apropriado em certas ocasiões, não em outras. A própria existência desse planejamento lhe permite assegurar a si mesmo que controla a droga, e ela torna-se um símbolo da inocuidade da prática. Ele não se considera um escravo da droga porque é capaz de se ater ao seu plano — e se atém —, seja qual for a quantidade que se proponha consumir. O fato de haver ocasiões em que, a princípio, ele não usa a droga, pode lhe servir como uma prova para si mesmo de sua liberdade com relação a ela.

Gosto de puxar fumo e puxo principalmente quando estou relaxando, fazendo alguma coisa de que gosto, como ouvir música clássica realmente boa, ou talvez ver um filme ou algo assim, ou ouvir um programa de rádio. Alguma coisa que eu goste de fazer, não participando em… como…. Jogo golfe durante o verão, sabe, e uns caras com quem eu jogo puxaram fumo enquanto estavam jogando, eu não pude entender isso porque, você sabe, quando a gente está participando de uma coisa, quer que a cabeça esteja naquilo e nada mais, e se você estiver, … porque eu acho, eu sei que ela faz a gente relaxar e … não acho que você possa fazer isso também.

O indivíduo que aceita essas idéias pode adotar um modo de utilização ocasional porque reorganizou suas noções morais de maneira a permiti-lo, sobretudo ao adquirir a concepção de que os valores morais convencionais sobre drogas não se aplicam a esta droga que ele consome, e que, de todo modo, o uso que faz dela não se tornou excessivo.

Se a utilização progride até o ponto de se tornar regular e sistemática, podem ressurgir questões morais para o usuário, pois ele passa agora a parecer, para si mesmo e para os outros, o “viciado em drogas” da mitologia popular. Ele precisa se convencer de novo — para que o uso regular possa continuar — de que não cruzou essa linha. O problema e a possível solução são apresentados na declaração de um usuário regular:

Sei que não está se tornando um hábito, mas eu fiquei um pouco preocupado em saber se seria fácil parar, então tentei. Estava fumando o tempo todo, então simplesmente parei por uma semana inteira para ver o que iria acontecer. Não aconteceu nada. Então fiquei sabendo que estava tudo legal. Desde então tenho usado tanto quanto quero. Claro, não gostaria de ser um escravo disso ou nada desse gênero, mas não acho que isso aconteceria, a menos que eu fosse neurótico ou coisa parecida, e não acho que seja, não a tal ponto.

A racionalização anterior, de que a droga tem efeitos benéficos, permanece inalterada e pode até sofrer um considerável desenvolvimento. Mas a questão suscitada na última citação prova-se mais perturbadora. Em vista do consumo aumentado e regular da droga, o usuário não tem certeza de ser realmente capaz de controlá-lo, de que não se tornou talvez escravo de um hábito vicioso. Testes são feitos — o uso é abandonado e as conseqüências aguardadas —, e, quando nada de adverso ocorre, o usuário é capaz de concluir que não há o que temer.

O problema, contudo, é difícil para alguns dos usuários mais sofisticados, que extraem suas normas morais menos do pensamento convencional que da “teoria” psiquiátrica popular. O uso os preocupa, não em termos convencionais, mas pelo que pode indicar acerca de sua saúde mental. Aceitando o pensamento corrente sobre as causas do uso de drogas, eles raciocinam que ninguém iria usar drogas em grandes quantidades a menos que houvesse “algo” de “errado” com ele, a menos que houvesse algum desajuste neurótico que tornasse as drogas necessárias. Fumar maconha torna-se um símbolo de fraqueza psíquica e, em última análise, de fraqueza moral. Isso predispõe a pessoa contra a continuação do uso regular e causa um retorno ao consumo ocasional, a menos que uma nova justificação seja descoberta.

Bom, eu me pergunto se o melhor é não tomar coisa nenhuma. Isso é o que dizem. Se bem que já ouvi psiquiatras dizerem: “Puxe todo o fumo que quiser, mas não toque em heroína.”

[Bom, parece sensato.] É, mas quantas pessoas conseguem isso? Não há muitas…. Acho que 75% ou talvez uma porcentagem ainda maior das pessoas que puxam fumo têm um padrão de comportamento que as levaria a puxar cada vez mais fumo e a se distanciar cada vez mais das coisas. Acho que eu mesmo tenho esse padrão. Mas acho que tenho consciência disso, então acho que posso combatê-lo.

A noção de que ter consciência de um problema é resolvê-lo constitui uma autojustificativa na circunstância anterior. Quando não é possível encontrar explicações, o consumo continua em bases ocasionais, e o usuário explica suas razões em termos da concepção que tem da teoria psiquiátrica:

Bom, acredito que as pessoas que se entregam ao consumo de narcóticos, álcool e bebida, qualquer estimulante desse tipo, nesse nível, provavelmente estão procurando a fuga de um estado mais sério que o do usuário mais ou menos ocasional. Não acho que eu esteja fugindo de nada. Acho que, apesar disso, percebo que ainda tenho muito o que me ajustar…. Então, não posso dizer que tenha nenhuma doença neurótica ou ineficiência séria com que esteja tentando lidar. Mas no caso de certos conhecidos meus, pessoas que são alcoólatras crônicas ou viciadas em narcóticos, ou fumantes muito habituais, tenho visto, acompanhando essa condição, alguns desajustes em suas personalidades também.

Certas concepções de cunho moral sobre a natureza do consumo da droga e os usuários influenciam, assim, o fumante de maconha. Se ele for incapaz de invalidar ou ignorar essas concepções, o uso não ocorrerá de maneira alguma; e o grau de uso parece estar relacionado com o grau em que as concepções deixam de ter influência, substituídas por racionalizações e justificativas correntes entre usuários.

Em suma, uma pessoa se sentirá livre para usar maconha à medida que passe a considerar as concepções convencionais sobre ela como as idéias mal fundamentadas de outsiders e as substitua pela visão “inside” que adquiriu por meio de sua experiência com a droga na companhia de outros usuários.