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Consideramos algumas características gerais dos desviantes e os processos pelos quais eles são rotulados de outsiders e passam a se ver como tal. Examinamos as culturas e os padrões típicos de carreira de dois grupos de outsiders: usuários de maconha e músicos de casa noturna. Agora é hora de considerar a outra metade da equação: as pessoas que fazem e impõem as leis às quais os outsiders não se conformam.
A questão aqui é simplesmente: quando as regras são feitas e impostas? Já observei que a existência de uma regra não assegura automaticamente que ela será imposta. Há muitas variações na imposição de regras. Não podemos explicá-la invocando algum grupo abstrato sempre vigilante; não é possível dizer que a “sociedade” é prejudicada a cada infração e age para restaurar o equilíbrio. Poderíamos postular, num extremo, um grupo em que este seria o caso, em que todas as regras fossem absoluta e automaticamente impostas. Mas imaginar esse caso extremo serve apenas para deixar mais claro o fato de que os grupos sociais não são usualmente assim. O mais típico é que as regras sejam impostas somente quando algo provoca sua imposição. A imposição, portanto, requer explicação.
A explicação repousa sobre várias premissas. Primeiro, a imposição de uma regra é um empreendimento. Alguém — um empreendedor — deve tomar a iniciativa de punir o culpado. Segundo, a imposição ocorre quando aqueles que querem a regra imposta levam a infração à atenção do público; uma infração não pode ser ignorada depois que é tornada pública. Em outras palavras, a imposição ocorre quando alguém delata. Terceiro, pessoas deduram, tornando a imposição necessária, quando vêem alguma vantagem nisso. O interesse pessoal as estimula a tomar a iniciativa. Finalmente, o tipo de interesse pessoal que leva à imposição varia com a complexidade da situação em que a imposição tem lugar. Vamos considerar vários casos, observando o modo como interesse pessoal, iniciativa e publicidade interagem com a complexidade da situação para produzir tanto imposição quanto a não-imposição de regras.
Lembremos o exemplo de Malinowski, do ilhéu de Trobriand que cometera incesto clânico. Todos sabiam o que ele estava fazendo, mas ninguém fez coisa alguma a respeito. Então o ex-amante da moça, que pretendera se casar com ela e por conseguinte se sentira pessoalmente prejudicado com a escolha de outro homem, tomou o assunto em suas próprias mãos e acusou Kima’i publicamente de incesto. Ao fazer isso, alterou a situação, de modo que Kima’i não teve escolha senão se suicidar. Aqui, numa sociedade de estrutura relativamente simples, não há conflito em relação à regra; todos concordam que o incesto clânico é errado. Um interesse pessoal evoca a iniciativa de alguém, ele pode assegurar a imposição tornando a infração pública.
Também não há conflito semelhante em relação à imposição de regras nas situações menos organizadas da vida urbana anônima. Mas a conseqüência é diferente, pois a essência do acordo entre as pessoas é que elas não vão interferir — ou chamar a atenção para — nas mais flagrantes violações da lei. O morador da cidade trata de sua própria vida e nada faz com relação a infrações de regras, a menos que sua vida seja afetada. Simmel rotulou a atitude urbana típica de “reserva”:
Se reações internas fossem respostas aos nossos contatos externos contínuos com inúmeras pessoas, em número tão grande quanto na cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todo mundo, ficaríamos completamente atomizados internamente e entraríamos num estado psíquico inimaginável. Em parte esse fato psicológico e em parte o direito à desconfiança que os homens têm diante dos elementos incertos da vida metropolitana exigem nossa reserva. Em conseqüência dessa reserva, muitas vezes não conhecemos nem de vista aqueles que foram nossos vizinhos por anos. E é essa reserva que, aos olhos dos que moram em cidades pequenas, nos faz parecer frios e sem coração. De fato, se não me engano, o aspecto interior dessa reserva exterior não é somente indiferença, mas, com mais freqüência do que percebemos, uma ligeira aversão, um mútuo estranhamento e repulsa que se transformarão em raiva e horror no momento de um contato mais íntimo, seja qual for sua causa….
Essa reserva, com sua implicação de aversão oculta, aparece por sua vez como a forma ou o disfarce de um fenômeno mental mais geral da metrópole: ela assegura ao indivíduo um tipo e um grau de liberdade pessoal que não têm analogia em outras condições.1
Vários anos atrás, uma revista nacional publicou uma série de fotografias ilustrando a reserva urbana. Um homem jazia inconsciente numa movimentada rua de cidade. Inúmeras fotos mostravam pedestres que ignoravam sua existência ou a percebiam e em seguida desviavam os olhos para tratar da própria vida.
A reserva, embora tipicamente encontrada em cidades, não é característica de toda vida urbana. Muitas áreas urbanas — alguns bairros miseráveis e zonas etnicamente homogêneas — têm algo do caráter de uma cidade pequena; seus habitantes vêem tudo que ocorre na vizinhança como se fossem da sua conta. O citadino exibe sua reserva mais acentuadamente em áreas públicas anônimas — os Times Squares e State Streets —, onde pode sentir que nada do que acontece é responsabilidade sua e que há agentes da lei presentes, com a obrigação de lidar com qualquer coisa extraordinária. O acordo de ignorar infrações de regras repousa em parte no conhecimento de que a imposição pode ser deixada a cargo desses profissionais.
Em situações estruturadas mais complexas, há maior possibilidade de interpretações divergentes da situação e possíveis conflitos com relação à imposição de regras. Quando uma organização contém dois grupos que competem pelo poder — como na indústria, em que administradores e empregados disputam pelo controle da situação de trabalho —, o conflito pode ser crônico. No entanto, precisamente por ser um traço persistente da organização, talvez o conflito nunca se torne declarado. Em vez disso, os dois grupos, enredados numa situação que aprisiona a ambos, vêem vantagem em permitir que o outro cometa certas infrações e não as denunciam.
Melville Dalton estudou a infração sistemática de regras por empregados de organizações industriais, lojas de departamentos e estabelecimentos de trabalho similares. Ele relata que os empregados com freqüência se apossam de serviços e materiais pertencentes à organização para seu pessoal, observando que isso seria em geral considerado furto. A gerência tenta deter esse desvio de recursos, mas poucas vezes tem sucesso. Em geral, porém, não leva o assunto à atenção pública. Entre os exemplos de apropriação indébita de recursos da companhia, Dalton cita os seguintes:
Um contramestre montou uma oficina mecânica em sua casa, equipando-a com maquinaria cara retirada da oficina em que trabalhava. O saque incluiu uma furadeira fixa, um torno limador, um torno mecânico, cortadores e brocas, equipamento de bancada e uma máquina polidora.
O capataz da oficina de carpintaria de uma grande fábrica, artesão de origem européia, passava a maior parte do dia de trabalho fabricando objetos domésticos — berços, janelas duplas para o inverno, mesas e itens similares feitos por encomenda — para executivos mais graduados. Em troca, recebia de presente vinhos e alimentos.
Um operário de oficina escrevia todas as suas cartas no trabalho, usando materiais e selos da companhia.
Um técnico de raios X num hospital furtava presuntos e comida enlatada e sentia-se no direito de fazê-lo porque seu salário era baixo.
Um executivo industrial aposentado mandou construir um aviário com 11 unidades em oficinas da fábrica e encarregou o pessoal de seu serviço de instalá-lo em sua casa. Carpinteiros da fábrica reparavam e recondicionavam o viveiro todas as primaveras.
Acréscimos às construções de um iate clube local, cujos muitos membros trabalhavam nas fábricas pilhadas, eram feitas por trabalhadores de empresas durante o horário de trabalho com materiais das fábricas.
Chefes de departamentos de vestuário em lojas de departamentos marcavam mercadorias que desejavam para seu uso pessoal como “estragadas” e rebaixavam os preços de maneira condizente. Vendiam também itens de liquidação acima do preço para acumular um fundo em dinheiro contra o qual a apropriação de itens para uso pessoal pudesse ser debitada.2
Dalton diz que chamar todas essas ações de furto é não compreender o que interessa. De fato, insiste ele, a gerência, mesmo condenando oficialmente o furto dentro da organização, estava em conluio com ele; não se trata de um sistema de furto em absoluto, mas de um sistema de recompensas. As pessoas que se apropriam de serviços e materiais pertencentes à organização na realidade são recompensadas não oficialmente por contribuições extraordinárias que fazem para o funcionamento da organização, contribuições para as quais não existe um sistema legítimo de recompensas. O capataz que equipou sua oficina mecânica doméstica com máquinas da fábrica estava de fato sendo recompensado por ter abandonado o catolicismo e se tornado maçom a fim de demonstrar sua aptidão para um posto de supervisão. Permitia-se ao técnico de raios X furtar comida do hospital porque a administração sabia que não estava lhe pagando um salário suficiente para exigir sua lealdade e o trabalho árduo.3 As regras não são impostas porque dois grupos que competem pelo poder — gerência e trabalhadores — encontram vantagens mútuas em ignorar as infrações.
Donald Roy descreveu transgressões de regras semelhantes numa oficina mecânica, mostrando mais uma vez que um grupo não vai delatar o outro se ambos forem parceiros num sistema caracterizado por um equilíbrio de poder e interesse. Os operadores de máquina que Roy estudou eram pagos por peça, e a infração de regras ocorria quando tentavam “se dar bem” — ganhar muito mais do que seu pagamento básico por hora em determinadas tarefas. Com freqüência só podiam conseguir isso trabalhando às pressas e fazendo o serviço de uma maneira proibida pelas regras da companhia (ignorando precauções de segurança ou usando ferramentas e técnicas não permitidas nas especificações da tarefa).4 Roy descreve um “cartel da oficina”, que colaborava com os operadores de máquina na transgressão de rotinas formalmente estabelecidas da oficina.5 Inspetores, encarregados do depósito de ferramentas, estoquistas e controladores de horário, todos participavam, ajudando os mecânicos a se dar bem.
Por exemplo, operadores de máquinas não deviam manter nelas as ferramentas que não fossem usadas para o serviço que estavam fazendo. Roy mostra como, quando essa nova regra foi promulgada, os ajudantes do depósito de ferramentas de início a obedeciam. Mas constataram que ela provocava a reunião constante de um bando em volta da janela da sala de ferramentas, um grupo de homens queixosos que tornavam difícil o dia de trabalho do ajudante. Por conseguinte, pouco depois que a regra foi anunciada, os ajudantes começaram a infringi-la, deixando os homens manterem as ferramentas em sua máquina ou entrar e sair do depósito como bem entendiam. Ao permitir que os mecânicos infringissem a regra, os ajudantes do depósito de ferramentas facilitavam sua própria situação; não eram mais incomodados pelas queixas de operadores aborrecidos.
O problema da imposição de regras torna-se mais complicado quando a situação contém vários grupos rivais. A acomodação e a conciliação são mais difíceis, porque há mais interesses em jogo, e é mais provável que o conflito seja declarado insolúvel. Nessas circunstâncias, o acesso a canais de publicidade torna-se uma variável importante, e aqueles cujo interesse exige que as regras não sejam impostas tentam impedir a notificação de infrações.
Um exemplo adequado pode ser encontrado no papel do promotor público. Uma de suas obrigações é supervisionar júris de instrução. Estes são convocados para ouvir evidências e decidir se devem ser proferidas acusações contra indivíduos que supostamente violaram a lei. Embora em geral se restrinjam a casos que o promotor lhes apresenta, os júris de instrução têm o poder de realizar investigações por conta própria e proferir acusações que não foram sugeridas pelo promotor. Consciente de sua missão de proteger o interesse público, um júri de instrução pode achar que o promotor lhe oculta coisas.
E, na verdade, o promotor pode estar ocultando alguma coisa. Ele pode ter participado de acordos feitos entre políticos, polícia e criminosos para permitir o vício, a depravação, o jogo e outras formas de crime; mesmo que não esteja diretamente envolvido, talvez tenha obrigações políticas com aqueles que estão comprometidos. É difícil encontrar uma conciliação viável entre os interesses do crime, de políticos corruptos e os de um júri de instrução determinado a fazer seu trabalho — mais difícil que encontrar acordos satisfatórios entre dois grupos de poder que operam na mesma fábrica.
O promotor corrupto, confrontado com esse dilema, tenta tirar partido da ignorância do procedimento legal por parte do júri. Ocasionalmente, porém, ouvimos falar de um júri de instrução “fora de controle” que venceu a resistência do promotor e começou a investigar os assuntos de que este desejava mantê-lo afastado. Dando mostras de iniciativa e gerando publicidade embaraçosa, o júri fora de controle expõe infrações até então ocultadas do conhecimento público e provoca muitas vezes uma ampla campanha contra todo tipo de corrupção. A existência de júris de instrução fora de controle nos lembra que a função do promotor corrupto é precisamente impedir que eles ocorram.
A iniciativa, gerada por interesse pessoal, armada com publicidade e condicionada pelo caráter da organização, é portanto a variável-chave na imposição da regra. A iniciativa opera da maneira mais imediata numa situação em que há acordo fundamental com relação às regras a serem impostas. Uma pessoa com um interesse a ser atendido divulga uma infração e providências são tomadas; se nenhuma pessoa com iniciativa aparecer, nenhuma providência é tomada. Quando dois grupos competem pelo poder na mesma organização, a imposição só ocorrerá quando falharem os sistemas de conciliação que caracterizam sua relação; de outro modo, o interesse de todos será mais bem atendido permitindo-se que as infrações continuem. Em situações que contêm muitos grupos de interesse rivais, o resultado é variável, dependendo do poder relativo dos grupos envolvidos e de seu acesso aos canais de publicidade. Veremos a ação de todos esses fatores numa situação complexa quando examinarmos a história da Lei de Tributação da Maconha.
Antes de tratar dessa história, no entanto, irei considerar o problema da imposição de regras de uma outra perspectiva. Vimos como o processo pelo qual regras são impostas varia em diferentes tipos de estrutura social. Vamos acrescentar agora a dimensão do tempo e considerar brevemente os vários estágios pelos quais passa a imposição de uma regra — sua história natural.
A história natural difere da história por dizer respeito ao que é genérico a uma classe de fenômenos, não ao que é único em cada caso. Ela busca descobrir o que é típico de uma classe de eventos, não o que os faz diferir — a regularidade, em vez da idiossincrasia. Assim, estarei interessado aqui naquelas características do processo pelo qual regras são feitas e impostas que são genéricas a esse processo e constituem seus sinais distintivos.
Ao considerar os estágios no desenvolvimento de uma regra e de sua imposição, vou usar um modelo legal. Isso não significa que o que tenho a dizer se aplica somente à legislação. O mesmo processo ocorre também no desenvolvimento e imposição de regras menos formalmente constituídas.
Regras específicas encontram suas origens naquelas declarações vagas e generalizadas de preferência que os cientistas sociais muitas vezes chamam de valores. Estudiosos propuseram muitas definições diferentes de valor, mas não precisamos entrar nessa controvérsia. A definição proposta por Talcott Parsons servirá tão bem quanto qualquer outra: “Um elemento de um sistema simbólico partilhado que serve como um critério ou padrão para a seleção entre alternativas de orientação intrinsecamente abertas numa situação pode ser chamado de valor.”6 A igualdade, por exemplo, é um valor norte-americano. Sempre que possível, preferimos tratar as pessoas com igualdade, sem referência às diferenças entre elas. A liberdade do indivíduo é também um valor norte-americano. Preferimos permitir que as pessoas façam o que desejam, a menos que haja fortes razões em contrário.
Os valores, contudo, são guias insatisfatórios para a ação. Os padrões de seleção que corporificam são gerais, dizendo-nos qual de várias linhas alternativas de ação seria preferível, quando todas as outras coisas são iguais. Mas todas as outras coisas raramente são iguais nas situações concretas da vida cotidiana. Temos dificuldade em relacionar as generalidades de uma declaração de valor com os detalhes complexos e específicos de situações cotidianas. Não podemos relacionar de maneira fácil e clara a vaga noção de igualdade com a realidade, de modo que é difícil saber que linha específica de ação o valor recomendaria numa dada situação.
Outra dificuldade no uso de valores como guia para a ação reside no fato de que, por serem eles tão vagos e gerais, podemos manter valores conflitantes sem ter consciência do conflito. Ficamos cientes de sua inadequação como base para a ação quando, num momento de crise, percebemos que não podemos decidir qual dos cursos conflitantes de ação recomendados para nós deveríamos adotar. Assim, para tomar um exemplo específico, esposamos o valor da igualdade, e isso nos leva a proibir a segregação racial. Mas esposamos também o valor da liberdade individual, que nos impede de interferir nas ações de pessoas que praticam a segregação em suas vidas privadas. Quando um negro que possui um barco a vela anuncia, como aconteceu recentemente, que nenhum iate clube na área de Nova York o admitiria como sócio, descobrimos que nossos valores não podem nos ajudar a decidir o que deve ser feito acerca disso. (O conflito surge também entre regras específicas, como quando uma lei estadual proíbe a integração racial nas escolas públicas e a lei federal a exige. Mas, nesse caso, existem procedimentos judiciais para resolver o conflito.)
Como valores só podem fornecer um guia geral para a ação, e não são úteis na decisão quanto a cursos de ação em situações concretas, as pessoas desenvolvem regras específicas mais estreitamente ligadas às realidades da vida cotidiana. Os valores fornecem as premissas maiores das quais se deduzem regras específicas.
As pessoas convertem valores em regras específicas em situações problemáticas. Elas percebem alguma área de sua existência como problemática ou difícil, exigindo ação.7 Após considerar os vários valores a que subscrevem, elas escolhem um ou mais como pertinentes a suas dificuldades e deduzem deles uma regra específica. A regra, formulada para ser coerente com o valor, enuncia com relativa precisão quais ações são aprovadas e quais são proibidas, as situações a que a regra é aplicável e as sanções associadas à sua infração.
O tipo ideal de uma regra específica é uma lei cuidadosamente formulada, bem apoiada na interpretação jurídica. Tal regra não é ambígua. Ao contrário, seus dispositivos são precisos; a pessoa sabe com muita precisão o que pode e o que não pode fazer e o que acontecerá se fizer a coisa errada. (Esse é o tipo ideal. Em sua maioria, as regras não são tão precisas e seguras; embora sejam muito menos ambíguas que os valores, elas também podem nos causar dificuldades quando temos de decidir quanto aos cursos de ação.)
Justamente porque os valores são ambíguos e gerais, podemos interpretá-los de várias maneiras e deduzir deles muitos tipos de regras. Uma regra pode ser coerente com um dado valor, mas regras muito diferentes também podem ter sido deduzidas do mesmo valor. Além disso, regras não serão deduzidas de valores, a menos que situações problemáticas nos incitem a fazê-lo. Podemos descobrir que certas regras que nos parecem decorrer de modo lógico de um valor amplamente aceito não foram sequer cogitadas pelas pessoas que sustentam esse valor, seja porque não surgiram situações e problemas que exigissem a regra, seja porque tais pessoas não se dão conta da existência de um problema. Mais uma vez, uma regra específica, quando deduzida do valor geral, poderia conflitar com outras regras deduzidas de outros valores. O conflito, quer seja conscientemente conhecido, quer apenas implicitamente reconhecido, pode inibir a criação de uma regra particular. Regras não decorrem automaticamente de valores.
Como uma regra pode satisfazer a um interesse mas conflitar com outros interesses do grupo que a formula, em geral se toma cuidado, ao elaborar uma regra, para assegurar que ela realizará somente o que deve, e nada mais. Regras específicas são circunscritas com restrições e exceções, de modo que não interfiram em valores que consideremos importantes. As “leis de obscenidade” são um exemplo. O objetivo geral dessas leis é que matérias moralmente repugnantes não deveriam ser transmitidas publicamente. Mas isso conflita com um outro valor importante, o da livre expressão. Além disso, conflita com interesses comerciais e de carreira de autores, dramaturgos, editores, livreiros e produtores teatrais. Vários ajustes e restrições foram feitos, de tal modo que a lei, tal como agora se encontra, carece do amplo alcance desejado pelos que acreditam profundamente que a obscenidade é algo pernicioso.
Regras específicas podem ser corporificadas em leis. Podem também ser simplesmente consuetudinárias num grupo particular, defendidas apenas por sanções informais. As regras legais, naturalmente, têm maior probabilidade de ser precisas e claras; regras informais e consuetudinárias são mais provavelmente vagas e passíveis de várias interpretações em grandes áreas.
Mas a história natural de uma regra não termina com a dedução de uma regra específica de um valor geral. Esta última tem ainda de ser aplicada em casos particulares a pessoas particulares. Deve receber sua corporificação final em atos particulares de imposição.
Vimos em capítulo anterior que atos de imposição não decorrem automaticamente da infração de uma regra. A imposição é seletiva, e diferencialmente seletiva entre tipos de pessoa, em diferentes momentos e em diferentes situações.
Podemos questionar se todas as regras seguem a seqüência do valor geral até o ato particular de imposição, passando por uma regra específica. Valores podem conter um potencial não utilizado — regras ainda não deduzidas que, nas circunstâncias apropriadas, se desenvolvem em regras específicas completas. De maneira semelhante, muitas regras específicas jamais são impostas. Por outro lado, haverá alguma regra que não tenha base em algum valor geral? Ou atos de imposição que não encontrem sua justificação em alguma regra particular? Muitas regras, claro, são inteiramente técnicas, e podemos dizer que têm não base em um valor geral, mas num esforço para estabelecer a paz entre outras regras anteriores. As regras específicas que governam transações com títulos são provavelmente desse tipo. Elas parecem menos um esforço para implementar um valor geral que um esforço para regularizar o funcionamento de uma instituição complexa. De maneira semelhante, podemos encontrar atos de imposição baseados em regras inventadas no momento unicamente para justificar o ato. Algumas das atividades informais e extralegais de policiais recaem nessa categoria.
Se reconhecemos esses casos como desvios do modelo da história natural, o modelo se aplica a quantas das coisas em que poderíamos estar interessados? Essa é uma questão de fato, a ser solucionada por pesquisa sobre vários tipos de regra em diferentes situações. No mínimo, sabemos que muitas regras seguem essa seqüência. Além disso, quando a seqüência não é seguida originalmente, muitas vezes é obedecida retroativamente. Isto é, uma regra pode ser formulada simplesmente para servir ao interesse especial de alguém e mais tarde se encontrar uma justificativa para ela em algum valor geral. Da mesma maneira, um ato espontâneo de imposição pode ser legitimado pela criação de uma regra a que ele pode se relacionar. Nesses casos, a relação formal de geral para específico é preservada, ainda que a seqüência temporal tenha sido alterada.
Se muitas regras ganham sua forma movendo-se por uma seqüência, de um valor geral para um ato específico de imposição, o movimento através da seqüência não é automático ou inevitável. Para explicar os passos dessa seqüência, devemos nos concentrar no empreendedor, que providencia para que o movimento ocorra. Se os valores gerais são transformados na base para que deles se deduzam regras específicas, cumpre procurar a pessoa que se encarregou de assegurar a dedução das regras. E se regras específicas são aplicadas a pessoas específicas em circunstâncias específicas, devemos procurar ver quem se encarregou de assegurar a aplicação e imposição das regras. Estaremos interessados, portanto, no empreendedor, nas circunstâncias em que ele aparece e como aplica seus instintos empreendedores.
Um caso ilustrativo: a Lei de Tributação da Maconha
Supõe-se em geral que a prática de fumar maconha foi importada do México para os Estados Unidos, por meio dos estados do Sudoeste, Arizona, Novo México e Texas, todos com consideráveis populações de língua espanhola. Começou-se a notar o uso de maconha na década de 1920, mas, como se tratava de um fenômeno novo e aparentemente restrito a imigrantes mexicanos, não se expressou muita preocupação com ele. (O composto médico preparado com a planta da maconha já era conhecido havia algum tempo, mas não era freqüentemente prescrito por médicos norte-americanos.) Em 1930, apenas 16 estados haviam aprovado leis proibindo o uso da maconha.
Em 1937, contudo, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Tributação da Maconha, destinada a reprimir o uso da droga. Segundo a teoria esboçada, deveríamos encontrar, na história dessa lei, a história de um empreendedor cuja iniciativa e realização superaram a apatia e a indiferença públicas e culminaram na aprovação da legislação federal. Antes de passar à história da própria lei, talvez devamos examinar o modo como temas semelhantes haviam sido tratados na legislação norte-americana, para compreender o contexto em que a tentativa de reprimir o uso da maconha teve lugar.
O uso de álcool e ópio nos Estados Unidos tinha uma longa história, pontuada por tentativas de repressão.8 Três valores forneciam legitimidade para as tentativas de evitar o uso de tóxicos e narcóticos. Um valor legitimador, componente do que foi chamado de ética protestante, afirma que o indivíduo deveria exercer completa responsabilidade pelo que faz e pelo que lhe acontece; nunca deveria fazer nada que pudesse causar perda de autocontrole. O álcool e as drogas opiáceas, em graus e de maneiras variadas, levam as pessoas a perder o controle sobre si mesmas; seu uso, portanto, é um mal. Uma pessoa embriagada com álcool muitas vezes perde o controle sobre sua atividade física; os centros do julgamento no cérebro são também afetados. Usuários de drogas opiáceas têm maior probabilidade de ficar entorpecidos e, assim, menor chance de cometer atos temerários. Mas se tornam dependentes da droga para evitar sintomas de abstinência, e nesse sentido perdem o controle sobre suas ações; como é difícil conseguir a droga, têm de subordinar outros interesses à sua obtenção.
Outro valor norte-americano legitimava as tentativas de reprimir o uso de álcool e drogas opiáceas: a desaprovação de ações empreendidas no único intuito de alcançar estados de êxtase. Talvez em razão de nossa forte ênfase cultural no pragmatismo e no utilitarismo, os norte-americanos sentem-se em geral importunados e ambivalentes com relação a qualquer tipo de experiência de êxtase. Não condenamos a experiência, porém, apenas quando ela é o subproduto ou a recompensa de ações que consideramos apropriadas em si mesmas, como trabalho árduo ou fervor religioso. Somente quando as pessoas perseguem o êxtase pelo êxtase condenamos sua ação como busca de “prazer ilícito”, expressão que tem sentido real para nós.
O terceiro valor que fornecia base para as tentativas de repressão era o humanitarismo. Reformadores acreditavam que as pessoas escravizadas pelo uso de álcool e ópio se beneficiariam de leis que tornassem impossível para elas ceder à sua fraqueza. As famílias dos bêbados e viciados em drogas se beneficiariam igualmente.
Esses valores forneciam a base para regras específicas. A 18ª Emenda e o Volstead Act proibiram a importação de bebidas alcoólicas para os Estados Unidos e sua fabricação dentro do país. O Harrison Act proibiu na prática o uso de drogas opiáceas para todos os fins, exceto os medicinais.
Ao formular essas leis, tomou-se cuidado para não interferir no que era considerado como legítimo interesse de outros grupos na sociedade. O Harrison Act, por exemplo, foi redigido de forma a permitir que as equipes médicas continuassem a usar morfina e outros derivados do ópio para alívio da dor e outros objetivos médicos que lhes parecessem apropriados. Além disso, a lei foi cuidadosamente formulada para evitar conflitos com o dispositivo constitucional que reserva direitos de polícia para os vários estados. De acordo com essa restrição, a lei foi apresentada como uma medida de taxação, tributando fornecedores não licenciados de drogas opiáceas com um imposto exorbitante, ao mesmo tempo que permitia aos fornecedores licenciados (sobretudo médicos, dentistas, veterinários e farmacêuticos) pagar uma taxa nominal. Embora justificado constitucionalmente como uma medida fiscal, o Harrison Act era de fato uma medida policial, e foi assim interpretada por aqueles a quem se confiou sua imposição. Uma conseqüência da aprovação da lei foi a criação, em 1930, da Agência Federal de Narcóticos no âmbito do Departamento do Tesouro.
Os mesmos valores que levaram à proibição do uso de álcool e drogas opiáceas foram aplicados ao caso da maconha, e parece lógico que isso tenha sido feito. No entanto, o pouco que me foi contado — por pessoas que conheceram bem o período, sobre o uso da maconha no fim da década de 1920 e início da década de 1930 — me leva a crer que havia uma imposição relativamente frouxa das leis locais existentes. Essa, afinal, foi a época da Lei Seca, e a polícia tinha assuntos mais prementes a tratar. Aparentemente, nem as autoridades públicas nem os agentes da lei consideravam o uso de maconha um problema sério. Quando o notavam de alguma maneira, provavelmente o punham de lado como se não justificasse maiores tentativas de imposição. O fato de o preço da maconha ser muito mais baixo antes da aprovação de legislação federal é um indício de como as leis eram debilmente impostas. Isso sugere que havia pouco perigo em vendê-la e que a imposição das leis não era seriamente empreendida.
Até o Departamento do Tesouro, em seu relatório de 1931, minimizou a importância do problema:
Grande interesse público foi suscitado por artigos de jornal que aparecem de tempo em tempo sobre os males do abuso da maconha, ou cânhamo-indiano, e mais atenção foi concentrada em casos específicos relatados sobre o abuso da droga do que teria ocorrido de outra forma. Essa publicidade tende a exagerar a extensão do mal e torna provável a suposição de que há uma difusão alarmante do consumo indevido da droga, quando o aumento real desse uso talvez não tenha sido excessivamente grande.9
A Agência de Narcóticos do Departamento do Tesouro gerou a maior parte da iniciativa que produziu a Lei de Tributação da Maconha. Embora seja difícil saber quais eram os motivos dos funcionários da agência, precisamos supor apenas que eles perceberam uma área de transgressão que pertencia propriamente à sua jurisdição e tomaram medidas para inseri-la ali. O interesse pessoal que satisfizeram ao pressionar no sentido de formular uma legislação referente à maconha era comum a muitos funcionários: o de desempenhar a contento a tarefa que lhes havia sido atribuída e em adquirir os melhores instrumentos para levá-la a cabo. Os esforços da agência assumiram duas formas: cooperar no desenvolvimento de legislação estadual que dissesse respeito ao uso de maconha e fornecer fatos e números para relatos jornalísticos do problema. Esses são dois importantes modos de ação disponíveis para todos os empreendedores que buscam a adoção de regras: podem arregimentar o apoio de outras organizações interessadas e desenvolver, com o uso da imprensa e de outros meios de comunicação, uma atitude pública favorável em relação à regra proposta. Se os esforços têm êxito, o público fica a par de um problema preciso, e as organizações apropriadas agem de comum acordo para produzir a regra desejada.
A Agência Federal de Narcóticos cooperou ativamente com a Conferência Nacional de Delegados sobre Leis Estaduais Uniformes no desenvolvimento de leis unificadas sobre narcóticos, enfatizando, entre outras questões, a necessidade de controlar o uso de maconha.10 Em 1932, a Conferência aprovou um projeto de lei. A agência comentou:
As presentes limitações constitucionais parecem exigir medidas de controle dirigidas contra o tráfico interestadual de cânhamo-indiano, a serem adotadas pelos vários governos estaduais, e não pelo governo federal, e a orientação tem sido exortar as autoridades estaduais em geral a fornecer a legislação necessária, com atividade de imposição de apoio, para proibir o tráfico, exceto para fins médicos legítimos. A lei estadual de narcóticos uniforme proposta, … com texto opcional aplicando-se à restrição do tráfico de cânhamo-indiano, foi recomendada como uma lei adequada para a consecução dos objetivos desejados.11
Em seu relatório de 1936, a agência estimulou seus parceiros nesse esforço cooperativo a se empenharem mais e sugeriu que a intervenção federal talvez fosse necessária:
Na ausência de legislação federal adicional, a Agência de Narcóticos não pode, portanto, mover nenhuma guerra própria contra o tráfico…. A droga tornou-se objeto de amplo e crescente abuso em muitos estados, e a Agência de Narcóticos vem tentando por isso convencer os vários estados da urgente necessidade de vigorosa imposição de leis locais referentes à cannabis [maconha].12
A segunda frente de ataque da Agência ao problema da maconha consistiu num esforço a fim de despertar o público para o perigo, promovendo uma “campanha educacional descrevendo a droga, sua identificação e efeitos nocivos”.13 Esperando aparentemente que o interesse público pudesse estimular os estados e as cidades a fazer maiores esforços, a agência disse:
Na ausência de legislação federal sobre o assunto, os estados e as cidades deveriam assumir legitimamente a responsabilidade de prover medidas vigorosas para a extinção dessa erva daninha letal, sendo, portanto, de esperar que todos os cidadãos com espírito público abracem com determinação o movimento recomendado pelo Departamento do Tesouro no sentido de reclamar a imposição intensificada das leis relativas à maconha.14
A agência não se restringiu à exortação em relatórios departamentais. Seus métodos para perseguir a legislação desejada são descritos numa passagem que trata da campanha por leis estaduais uniformes sobre narcóticos:
A pedido de várias organizações que lidam com esse assunto [leis estaduais uniformes], foram preparados na Agência Federal de Narcóticos artigos para publicação por essas organizações em revistas e jornais. Um interesse público inteligente e favoravelmente disposto, útil para a administração das leis sobre narcóticos, foi despertado e mantido.15
Quando a campanha pela legislação federal contra a maconha se aproximava de um desfecho bem-sucedido, os esforços da agência para comunicar ao público sua convicção da urgência do problema deram frutos abundantes. O número de artigos sobre maconha publicados em revistas populares indicado pelo número indexado no Readers Guide atingiu um recorde. Num período de dois anos apareceram 17 artigos, muito mais que em qualquer período similar antes ou depois.
Artigos sobre maconha indexados em
The Reader’s Guide to Periodical Literature
Período | Número de artigos |
jan 1925-dez 1928 | 0 |
jan 1929-jun 1932 | 0 |
jul 1932-jun 1935 | 0 |
jul 1935-jun 1937 | 4 |
jul 1937-jun 1939 | 17 |
jul 1939-jun 1941 | 4 |
jul 1941-jun 1943 | 1 |
jul 1943-abr 1945 | 4 |
mai 1945-abr 1947 | 6 |
mai 1947-abr 1949 | 0 |
mai 1949-mar 1951 | 1 |
Dos 17 artigos, dez reconheciam explicitamente a ajuda da agência fornecendo fatos e números, ou davam evidências implícitas de ter recebido ajuda ao usar fatos e números que haviam aparecido anteriormente, em publicações da agência ou em depoimentos perante o Congresso sobre a Lei de Tributação da Maconha. (Consideraremos adiante as audiências sobre o projeto de lei promovidas pelo Congresso.)
Uma clara indicação da influência da agência no preparo de artigos jornalísticos pode ser encontrada na recorrência de certas histórias de atrocidades relatadas pela primeira vez pela agência. Por exemplo, num artigo publicado na American Magazine, o próprio delegado de narcóticos relatou o seguinte incidente:
Uma família inteira foi assassinada por um jovem viciado [em maconha] na Flórida. Quando policiais chegaram à casa, encontraram o rapaz cambaleando em meio a um matadouro humano. Ele havia assassinado com um machado o pai, a mãe, dois irmãos e uma irmã. Parecia atordoado…. Não tinha lembrança alguma de ter cometido o crime múltiplo. Os policiais o conheciam usualmente como um jovem sensato, bastante calmo; agora estava deploravelmente louco. Eles procuraram a razão. O rapaz disse que adquirira o hábito de fumar algo que seus jovens amigos chamavam de “muggles”, um nome infantil para maconha.16
Cinco dos 17 artigos publicados durante o período repetiram essa história, mostrando assim a influência da agência.
Os artigos destinados a despertar o público para os perigos da maconha identificavam o uso da droga como uma violação do valor do autocontrole e da proibição da busca de “prazeres ilícitos”, legitimando assim a campanha contra a maconha aos olhos do público. Esses, claro, eram os mesmos valores a que se havia apelado durante a campanha por legislação proibindo o uso de álcool e drogas opiáceas para fins ilícitos.
A Agência Federal de Narcóticos forneceu, portanto, a maior parte do empreendimento que produziu a consciência pública do problema e coordenou a ação por parte de outras organizações de imposição. Armados com os resultados de seu empreendimento, representantes do Departamento do Tesouro foram ao Congresso com o projeto da Lei de Tributação da Maconha e pediram sua aprovação. As audiências do Comitê sobre Recursos da Câmara dos Deputados, que analisou o projeto por cinco dias durante abril e maio de 1937, forneceu um caso claro da operação de empreendimento e do modo como ela devia atender a outros interesses.
O consultor-geral assistente do Departamento do Tesouro apresentou o projeto aos congressistas com estas palavras: “Os principais jornais dos Estados Unidos reconheceram a gravidade desse problema e muitos deles defenderam legislação federal para controlar o tráfico de maconha.”17 Após explicar a base constitucional do projeto de lei — tal como o Harrison Act, foi formulado como uma medida fiscal —, ele os tranqüilizou sobre possíveis efeitos sobre negócios legítimos:
O projeto é formulado de maneira tal, contudo, a não interferir materialmente em nenhum uso industrial, médico ou científico que a planta possa ter. Como a fibra de cânhamo e artigos manufaturados com ela [barbante e cordame leve] são obtidos dos inofensivos talos maduros da planta, todos esses produtos foram completamente eliminados do texto do projeto, definindo-se o termo “maconha” no projeto de modo a excluir de seus dispositivos o talo maduro e seus compostos ou fabricantes. Há também alguns negócios com sementes de maconha para fins de plantação e uso na fabricação de óleo, o qual é finalmente empregado pela indústria de tintas e vernizes. Como as sementes, diferentemente do talo maduro, contêm a droga, a mesma exceção completa não pode ser aplicada nesse caso.18
Ele assegurou, além disso, que os médicos raramente usavam a droga, de modo que a proibição não acarretaria nenhum contratempo para eles ou para a indústria farmacêutica.
Os membros do comitê estavam prontos para fazer o que fosse necessário, e de fato perguntaram ao delegado de narcóticos por que essa legislação era proposta somente naquele momento. Ele explicou:
Dez anos atrás só ouvíamos falar dela no Sudoeste. Foi somente nos últimos anos que ela se tornou uma ameaça nacional…. Temos recomendado legislação estadual uniforme nos vários estados, e foi somente no último mês que a última assembléia legislativa estadual adotou a legislação.19
O delegado relatou que muitos crimes eram cometidos sob a influência da maconha e deu exemplos, incluindo o caso do assassinato em massa na Flórida. Salientou que os baixos preços da droga naquele momento tornavam-na duplamente perigosa, porque estava disponível para qualquer pessoa que tivesse dez centavos de sobra.
Fabricantes de óleo de semente de cânhamo expressaram certas objeções à linguagem do projeto, que foi rapidamente alterada para atender às suas especificações. Uma objeção mais séria, porém, veio da indústria de alimento para aves, que na época usava cerca de 1,81 milhão de quilos de semente de cânhamo por ano. Seu representante pediu desculpas ao Congresso por aparecer no último minuto, declarando que ele e seus colegas não haviam percebido até pouco antes que a planta da maconha a que o projeto se referia era a mesma de que eles obtinham um importante ingrediente de seu produto. Testemunhas governamentais haviam insistido para que a proibição atingisse não só as folhas e flores, mas também os grãos, porque continham uma pequena quantidade do princípio ativo da droga e podiam ser usados para fumar. Os fabricantes de alimento para aves sustentaram que a inclusão da semente sob os dispositivos do projeto prejudicaria seus negócios.
Para justificar o pedido de isenção, os representantes dos fabricantes salientaram o efeito benéfico da semente de cânhamo sobre pombos:
[Ela] é um ingrediente necessário do alimento para pombos porque contém uma substância oleosa que é um valioso ingrediente da comida de pombos, e não conseguimos encontrar nenhuma semente capaz de tomar seu lugar. Se substituirmos o cânhamo por alguma coisa, ela tende a mudar o caráter dos filhotes de pombos nascidos em cativeiro.20
O congressista Robert L. Doughton, da Carolina do Norte, indagou: “Essa semente tem sobre os pombos o mesmo efeito que a droga exerce sobre seres humanos?” O representante dos fabricantes disse: “Nunca notei isso. Ela tende a restaurar as penas e melhorar as aves.”21
Enfrentando séria oposição, o governou abrandou sua inflexível insistência no dispositivo sobre sementes, observando que a esterilização das sementes poderia torná-las inofensivas. “Parece-nos que o ônus da prova cabe ao governo, ali, quando poderíamos prejudicar uma indústria legítima.”22
Eliminadas essas dificuldades, o projeto transitou facilmente. Os fumantes de maconha, impotentes, desorganizados e sem motivos publicamente legítimos para ataque, não enviaram representante às audiências e seu ponto de vista não teve registro nos anais. Sem oposição, o projeto foi aprovado tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, no mês de julho seguinte. A iniciativa da agência produzira uma nova regra, cuja imposição subseqüente ajudaria a criar uma nova classe de outsiders — os usuários de maconha.
Dei um exemplo extenso tomado do campo da legislação federal. Os parâmetros básicos deste caso, porém, seriam igualmente aplicáveis não só à legislação em geral, mas ao desenvolvimento de regras de um tipo mais informal. Onde quer que regras sejam criadas e aplicadas, deveríamos estar atentos quanto à possível presença de um indivíduo ou grupo empreendedor. Suas atividades podem ser propriamente chamadas de empreendimento moral, pois o que empreendem é a criação de um novo fragmento da constituição moral da sociedade, seu código de certo e errado.
Onde quer que regras sejam criadas e aplicadas, deveríamos esperar encontrar pessoas que tentam arregimentar o apoio de grupos assemelhados e usam os meios de comunicação disponíveis para desenvolver um clima de opinião favorável. Onde eles não desenvolvem esse apoio, podemos esperar o fracasso do empreendimento.23
E, onde quer que regras sejam criadas e aplicadas, esperamos que os processos de imposição tomem forma de acordo com a complexidade da organização, repousando sobre a base de acordos compartilhados em grupos mais simples e resultando de manobras e barganhas políticas nas estruturas complexas.