CAPÍTULO 7
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15 de outubro de 1720, a meio do dia
Diego contemplou Francisco; para ele, o homem mais elegante de toda a Europa. Estava sentado com uma mão na cabeça leonina da sua bengala e com a outra fazia balançar um pequeno copo de aguardente. Desviou depois o olhar na direção de Alfredo, que se aproximava da tiragem da chaminé e aquecia as pernas. Tinham chegado a Castamar pouco depois do meio-dia, com o objetivo de comer com ele e assistir à celebração do dia seguinte. O trajeto desde a capital decorrera sem incidentes, exceto por alguns lodaçais no caminho.
Alfredo Carrión, barão de Aguasdulces, sempre havia sido um grande amigo da sua família, e seu pessoalmente. Rondava os 50 anos, e essa diferença de idade fazia com que sempre tivesse exercido um papel de irmão mais velho. Os pais tinham sido amigos íntimos desde os tempos dos Habsburgo e, no seu tempo, os homens mais destacados da corte, ainda que de temperamento muito distinto: Dom Bernardo, pai de Alfredo, era propenso à bebida e aos castigos excessivos, e o filho costumava procurar a proteção do pai de Diego quando era pequeno. Alfredo herdara o carácter tranquilo da mãe, uma mulher aprazível, com tendência para o diálogo e os conselhos. Amante da política, levavam já um bom bocado a criticar a falta de iniciativa da espanhola na Europa. Francisco e Diego tinham-no seguido na conversa, mas ambos mostravam já sinais de desinteresse. Alfredo, como sempre, não se dava conta disso.
– A derrota frente à coligação europeia é um claro sinal do equilíbrio de poderes que se instalou no continente e da debilidade espanhola – comentava ele. – Basta olhar para o desastroso Tratado de Haia, através do qual toda a Europa decidiu espoliar os direitos do rei Filipe.
Diego não fez nenhum comentário e limitou-se a assentir.
– Alfredo, querido, não me parece que possamos resolver isso a partir de Castamar – disse Francisco, enfastiado. – Além do mais, tenho fome. Comamos. – Passou a mão pelo ombro de Diego e dirigiram-se os três à sala de jantar. – Por falar nisso, a tua mãe e o marquês de Soto não se juntarão a nós?
– Não, preferiram ir a Madrid. Há representação no Teatro do Príncipe às cinco. O enfeitiçado à força, de Antonio de Zamora – respondeu Diego.
– Que tal o marquês? – perguntou de repente Alfredo.
Diego encolheu os ombros e entraram os três na sala de jantar, alegrada pelos tons azuis e dourados daquela tela da época de Colbert, presente do rei Filipe, de que Alba tanto gostava.
– Trocámos meia dúzia de palavras, mas tenho a sensação de que não é o típico ilustre que quer ganhar a minha confiança para obter favores – explicou Diego. – Há dois anos que é amigo da minha querida mãe e nunca insistiu em vir a Castamar.
Acomodaram-se os três à volta da mesa, onde os criados já tinham estendido os talheres de prata e ouro que ele mesmo encomendara, uns anos antes, ao famoso artesão Paul de Lamerie, ourives do rei inglês, numa das suas escassas viagens a Londres. As peças, perfeitamente ordenadas, ladeavam um dos preciosos conjuntos de porcelana de Meissen, trazida da Saxónia e especialmente desenhada com o selo de Castamar. O senhor Elquiza, rodeado pelo escanção, o senhor Moguer, e pelos criados e ajudantes, aguardava o seu sinal para começar a servir. Diego esperou que os amigos se acomodassem e fez o gesto adequado para que iniciassem o escancear do caldo pegando no guardanapo. Alfredo estendeu o seu e pô-lo como gorjeira para evitar salpicos. Depois, continuando a conversa sobre o marquês, afirmou que na corte ouvira falar da sua proximidade com o primogénito do rei, Luís de Borbón.
– O pouco que sei – disse Francisco, que se limitara a deixar o guardanapo no colo – é que não é muito pródigo em amantes e…
A voz interrompeu-se-lhe; os vapores que haviam surgido da sopeira eram uma deliciosa fragrância sussurrada. Aspirou o aroma e percebeu uma multiplicidade de odores que se harmonizavam entre si formando um todo perfeitamente ligado. Reconheceu o cravinho e a salsa fresca, adornado com pequenas porções de pão de trigo acabado de sair do forno, cortado em tiras suaves e delicadas e tostado em manteiga de porco. Inclinou-se sobre o prato e viu que os dois amigos o imitavam, absorvendo o calor do consommé. Até o senhor Elquiza, o senhor Moguer e os criados e ajudantes pareciam conter a vontade de se atirar às iguarias.
Sem dizer nada, Diego pegou na colher funda e, após soprar um par de vezes, provou, sem esperar que Alfredo abençoasse a mesa, como era seu costume. Como se um elixir se lhe desfizesse na boca, sentiu uma amálgama de sabores deliciosos: a canela e ovo picado, ao fogo lento da lenha, a carne de aves de capoeira, a sal vertido no ponto e à ligadura de amêndoas que o acompanhava. Detetou mesmo um ligeiro travo a queijo curado de ovelha. Nenhum dos presentes disse palavra. Impressionados, limitaram-se a saborear aquela sopa de aves, colherada atrás de colherada, como se fosse uma essência secreta arrancada aos deuses do Olimpo. Quando terminaram, Alfredo dedicou algumas palavras ao Altíssimo, dando-lhe graças por um prato tão requintado. Diego, como era seu costume desde a morte de Alba, não partilhou esse momento com o Senhor, ainda que o seu estômago se sentisse agradecido pelo melhor consommé que alguma vez tomara.
Trouxeram depois espetos, com pombos de ninho assados, perfeitamente dourados e barrados com pão ralado, um pouco de pimenta e gema de ovo. Verificou que a carne se desfiava como manteiga quente, com um sabor sumptuoso e delicado. Ergueu o olhar enquanto desfazia um novo pedaço de pombo e observou o rosto dos seus amigos, que deixavam escapar pequenos gemidos de prazer, olhando-se com gestos de surpresa e complacência. Ele mesmo estava completamente espantado por a sua cozinheira ter conseguido sabores tão únicos. Nem o pai nem ele haviam sido comensais de paladar fino, exceto com o vinho, que, por educação, sabiam avaliar. Trouxeram depois patos assados, que vinham decorados sobre pães de trigo tostados com manteiga e polvilhados com molho de marmelo. Manteve-se na expectativa, pensando que seria difícil superar o que provara. Mas sentiu um deleite intenso, doce e provocador, que o fez soltar um pequeno suspiro. Como podia aquela carne deitar uma essência tão requintada? Tentou definir em silêncio aquela fruição e, finalmente, enquanto saboreava os filamentos desfiados de ganso, surgiu-lhe quase sem pensar uma palavra: «aristocrática». Sentiu as cebolas, o pernil suculento de pato refogado juntamente com as especiarias, o açúcar, o vinho e o vinagre, a canela e aqueles marmelos que convertiam o molho em algo celestial. Aspirou o aroma açucarado e suave, observando os seus companheiros de tertúlia, que haviam deixado de sê-lo ao concentrar os seus sentidos nos respetivos pratos.
Diego observou, divertido, o senhor Elquiza, que, ao fundo da sala, atento a qualquer indicação sua, fazia o subtil gesto de engolir, imaginando visivelmente o sabor daquela carne que emitia um aroma tão delicioso. Mesmo ao seu lado, o senhor Moguer agitava involuntariamente as fossas nasais, tentando captar a ambrósia repartida pelo salão. Os criados e os ajudantes olhavam de soslaio uns para os outros, com os maxilares cerrados e o apetite subitamente desperto. Não houve mais conversa além de pequenos suspiros de prazer ao provar as delícias de pato e ligeiras exclamações de admiração ante o aroma dos marmelos.
Ao terminar o último serviço, a uma ordem silenciosa do senhor Elquiza, o senhor Moguer e os restantes criados trocaram a porcelana por um pequeno serviço de cerâmica milanesa e um conjunto limpo de guardanapos de tela fina. Apresentaram vários cálices com natillas cremosas acompanhadas por bolachas e tortas de açúcar e canela acabadas de fazer. Diego examinou de soslaio os seus dois amigos que, acariciando os lábios com a ponta da língua, esperavam sem dizer palavra por uma nova surpresa. O mordomo-mor comentou, antes de servirem as sobremesas, que a cozinheira elaborara duas composições diferentes, uma com leite de cabra e outra com leite de amêndoa. Quando Diego as provou, teve de reconhecer que nunca comera natillas tão esponjosas como aquelas, tão suaves, com um sabor a gema de ovo fresca, nada pastosas nem excessivamente açucaradas, precisamente no ponto, como cada prato daquela refeição. Impelido pela curiosidade, fez sinal ao mordomo para que se aproximasse.
– Senhor Elquiza, diga-me – sussurrou-lhe ao ouvido –: foi a senhora Escrivá quem cozinhou isto?
Dom Melquíades arqueou uma sobrancelha e tentou procurar uma resposta.
– Com sua licença, creio que seria conveniente que falasse disto com a Dona Úrsula. Insistiu em ser ela a falar consigo – acabou por responder – e… eu, por cortesia, acedi a que assim fosse.
Diego assentiu, sem entender muito bem porque é que o seu mordomo preferia que fosse a governanta a dar-lhe tal explicação em vez dele, mas, se era assim que tinham acordado entre eles, estava bem.
– Chame a senhora Berenguer, quero falar com ela – ordenou, enquanto os amigos se limpavam com os guardanapos, afirmando, entre risos, que tinham chegado ao limite da sua gula.
Dom Melquíades fez um gesto, como se tivesse de refletir na sua resposta, e acercou-se depois ao ouvido do duque com os seus modos impecáveis:
– Receio que a Dona Úrsula não esteja em casa, Excelência. Leva todo o dia fora precisamente por este assunto – respondeu.
Diego olhou-o nos olhos e ordenou que a senhora Berenguer fosse vê-lo assim que regressasse. Depois, sorriu para consigo, satisfeito com o banquete, enquanto Francisco dedicava ao cozinheiro palavras elogiosas. Diego convidou-os a ir até à sala de leitura para tomar um xerez e fumar tabaco de Havana. Enquanto acompanhava os amigos à divisão, a curiosidade formigou-lhe no íntimo e, sem poder evitar, continuou a perguntar-se quem, de entre os seus, havia preparado um semelhante regalo para os sentidos.
15 de outubro de 1720, já tarde avançada
Finalmente, a sorte sorrira-lhe, pensava Amelia, aliviada, na galeria de mulheres do Teatro do Príncipe, usando um pequeno óculo e vestida com os seus melhores trajes. Vislumbrara entre a multidão a varanda da duquesa de Rioseco: Dona Mercedes, juntamente com os seus fidalgos, um porteiro e dois tenentes da guarda pessoal da famosa quinta. Estava sentada junto ao marquês de Soto e Campomedina, Dom Enrique de Arcona, um cavalheiro de bom senso, nada propenso a escândalos e a quem estava imensamente grata. Sem a sua colaboração, as atuais aspirações de Amelia teriam sido muito difíceis. Observou-o e pareceu-lhe que tinha uma beleza inebriante. Os lábios exibiam um sorriso persuasivo e os olhos perlados mostravam uma inteligência acostumada a ocultar os próprios pensamentos e a decifrar os dos outros.
Amelia divertiu-se a imaginar como seria seduzir um homem tão habituado às intrigas da corte, ainda que o seu interesse não estivesse nele, mas sim em Dom Diego de Castamar. Diziam os rumores que o duque não esquecera ainda a sua mulher, e isso apesar de terem passado mais de nove anos desde a sua morte. Preciso de um marido de posição e rico, disse para si mesma, esperançada. Tanto quanto ele continua a precisar de uma nova esposa. Sabia-o bem, pois, anos antes, o seu pai e Dona Mercedes de Castamar, velhos conhecidos da corte, tinham falado em matrimónio.
A duquesa-mãe, desesperada por encontrar uma jovem capaz de fazer com que o filho esquecesse o luto, experimentara com as filhas das melhores famílias. Todas foram um fracasso e Dona Mercedes recorrera então à amizade que tinha com o pai de Amelia para convidar a sua filha casadoira a passar um verão inteiro em Castamar, seis anos antes. Já aí, estabelecera uma boa relação com mãe e filho. Apesar de não ter conseguido abrir o coração do duque, cria ter sido a única capaz de o fazer esquecer as suas penas. Naqueles meses, ao menos, vira-o sorrir algumas vezes.
– Tenho a certeza, querida, de que, se não fosse pela dor que lhe inunda o coração, a menina teria sido a sua eleita – disse-lhe Dona Mercedes no fim daquele verão de há já seis anos. – Não sei o que vou fazer. Haverá que esperar por melhor ocasião.
Mas essa ocasião não tinha chegado, nem para ela nem para Dom Diego. E a vida de Amelia não era já a de então. Por isso, ante a sua problemática situação em Cádis, a única amiga que lhe restava, Verónica Salazar, lembrara-lhe aquela breve tentativa do passado e a oportunidade que representava para ela. Como lhe estava grata por isso.
– Querida, o meu bom amigo Dom Enrique de Arcona diz que viram o duque nalgumas refeições – dissera-lhe a amiga – e garantiu-me que é bem possível que o coração de Dom Diego esteja preparado para outra mulher… Sabe-o de fonte segura, pois é muito amigo da mãe, Dona Mercedes.
– Chegar a Castamar seria todo um sonho na minha situação atual – respondera ela –, mas não vejo como chegar a ele sem um convite prévio.
– Se quiseres, posso pedir ajuda ao marquês. Talvez ele consiga arranjar um encontro em Madrid que pareça fortuito e propiciar o vosso regresso para a festa anual da fazenda – sugerira Verónica. – Amelia, é bem possível que a tua aparição chegue no melhor momento. Afinal, foste a única que conseguiu descongelar-lhe um pouco o coração.
O desespero faz com que se acredite que os impossíveis são possíveis, dissera a si mesma, e pedira à amiga que falasse em seu favor ante o marquês sem lhe contar as vicissitudes por que passara em Cádis. Dom Diego era sem dúvida a sua única e melhor opção. Bem sabia que, na corte do rei Filipe, havia demasiada concorrência pelos nobres casadoiros e demasiados jogos políticos para que ela pudesse aceder a um marido decente, mas o duque deixara de ser uma peça acessível para as damas casadoiras. Há demasiados anos que não estava entre os cortesãos de responsabilidade, apesar de ser um dos mais queridos do rei. Dizia-se que Sua Majestade, nos seus conhecidos ataques de melancolia, lhe escrevia cartas a pedir conselhos e, a seu tempo, consolo, dado que ambos tinham perdido as respetivas esposas, mas isso era tudo.
A resposta do marquês não se fez esperar. Encontrar-se-ia com Dona Mercedes na representação da tarde que teria lugar no Teatro do Príncipe no dia 15 de outubro. O seu lugar estaria já reservado e pago em seu nome. Além disso, o marquês não só estava disposto a ajudá-la pela amizade que tinha com Verónica, mas afirmou também que, se não conseguisse fazê-la entrar em Castamar, tanto ela como a mãe teriam refúgio na sua própria fazenda durante o tempo que precisassem. Por isso estava agora ali sentada e sabia em que palco eles estariam. Nervosa, desviou o olhar e rezou para que as suas desventuras gaditanas não tivessem chegado ainda à capital, ou o seu futuro ver-se-ia fatalmente comprometido.
Quando terminou a representação, Amelia saiu da galeria para simular o encontro com Dona Mercedes, tal como haviam acordado. Esperou pelo momento oportuno do lado esquerdo da Rua do Príncipe, no lugar específico, enquanto caía a luz da tarde. Tinha-se posto em bicos de pés para tentar vê-los entre a multidão quando ouviu atrás dela uma voz varonil que chamava o seu nome. Supôs que seria o marquês, que, sabendo de antemão o seu lugar, conhecia já o seu rosto. Virou-se com um sorriso impecável que de repente ficou cinzelado no seu semblante petrificado. Diante dela, estava um conhecido gaditano do pai, Dom Horacio del Valle, comerciante de especiarias, cuja barriga competia com o seu ego.
– Que alegria encontrá-la aqui – disse ele, alisando o bigode.
– O prazer é meu, Dom Horacio – respondeu ela sucintamente, rogando ao Altíssimo para que ele não conhecesse as suas desventuras.
– Uma pena que este encontro se tenha dado agora, querida – prosseguiu ele. – Parto de imediato para Cádis.
– Uma pena, sem dúvida – declarou ela, com o melhor dos seus sorrisos enquanto buscava, aterrorizada, entre a multidão o rosto do marquês ou da Dona Mercedes, temendo que se apresentassem naquele instante. – Podíamos ter conversado com mais calma.
– Claro que sim, querida – disse ele, e aproximou-se ligeiramente dela com o sorriso carregado de lascívia sob o bigode – Tenho a certeza de que poderíamos ter sido muito mais íntimos.
O pânico apoderou-se dela quando aquele sapo pousou a mão na sua. Ele sabe, pensou. Estou perdida. Amelia recuou instintivamente, sem conseguir separar as suas pupilas petrificadas dos lábios brilhantes e carnosos daquele rosto peludo. Era-lhe insuportável o contacto da mão dele e tentou retirar a sua, mas ele reteve-a. Sentiu-se aprisionada e debateu-se um pouco, quando, de repente, uma bengala atingiu com força o antebraço daquele sapo. Este deu um passo atrás, dolorido, e um cavaleiro avançou para pôr Amelia atrás de si, sob a sua proteção.
– Não sabe quando uma dama não deseja a sua presença, senhor? – perguntou ele, com uma serenidade espantosa.
– Não admito que ninguém me bata impunemente – afirmou Dom Horacio, com a cólera no rosto. – Posso saber a quem me dirijo, para exigir uma compensação?
– Com certeza, senhor. Permita-me que lhe exponha a situação – disse o outro, avançando até ficar a poucos centímetros dele. – Sou Dom Enrique de Arcona, marquês de Soto, e esta menina que estava a assediar está sob a minha proteção.
As bochechas de Dom Horácio esvaziaram-se de repente e os seus olhos deixaram de brilhar para se carregarem de uma cobardia rasteira.
– Sem dúvida… sem dúvida que… houve um mal-entendido, senhor.
Dom Enrique não disse mais nada, limitou-se a destilar um olhar implacável, e Dom Horácio, com uma despedida acanhada, perdeu-se no meio da multidão. Dona Mercedes – que se mantivera a uma certa distância a assistir à cena, protegida pelos seus dois tenentes da guarda pessoal de Castamar, os porteiros e os fidalgos – abraçou-a e, após queixar-se de como era difícil encontrar bons cavalheiros nos dias de hoje, preocupou-se com o seu estado de saúde.
– Estou perfeitamente bem – respondeu Amelia. – É uma verdadeira alegria vê-la, e em tão boa companhia – disse-lhes, lançando um olhar de gratidão ao marquês.
– Não, não, querida. Não imagina o quanto tenho falado de si e como tenho sentido a sua falta. Permita-me…
Dom Enrique foi-lhe então apresentado pela duquesa como um dos cavalheiros mais divertidos de toda a Madrid, e Amelia permitiu que ele lhe pegasse na mão, enluvada numa mitene de seda, para que ele a beijasse educadamente.
– É um prazer conhecê-lo – disse ela e, com uma pequena genuflexão e inclinando a cabeça, sorriu-lhe, sedutora.
– O prazer é todo meu.
A duquesa-mãe teve um rasgo de alegria sincera e, tão amável como a recordava, não perdeu tempo a convidá-la a ficar o tempo que quisesse em Castamar, ou pelo menos até terminar a celebração anual na propriedade. Ela, claro, recusou contra os seus próprios desejos, sob o olhar complacente de Enrique de Arcona.
– Não posso consentir que, estando em Madrid, tenha de se hospedar numa pensão – disse Dona Mercedes, fiel à tradição dos grandes de Espanha. – Já é tempo de haver mais mulheres no palácio triste do meu filho.
O tempo que decorreu desde esse instante até à chegada a Castamar fez-se-lhe muito leve apesar da distância, principalmente devido à presença do marquês e aos seus olhares velados. Ela só lhe correspondia de forma fugaz, algo nervosa e fingindo recato. Era indiscutível que ele possuía uma aura poderosa e atrativa, e a sua mera presença na carruagem invadia tudo. Amelia não conseguiu reprimir um sorriso brincalhão, a que ele respondeu com um outro mais pícaro. Talvez, se o seu plano original com o duque não desse frutos, o marquês fosse uma maravilhosa alternativa. Ainda assim, não era o momento, pelo que tratou de lhe evitar o olhar durante o resto do trajeto. Em vez disso, encetou uma conversa amena com Dona Mercedes sobre a representação. A duquesa recomendou-lhe as leituras de Molière, nomeadamente a comédia As preciosas ridículas e outra um tanto escandalosa chamada Tartufo, que em França havia estado proibida até ao último terço do século passado.
– Entendo que a sua mãe continua na mesma, a pobre – acrescentou, esperando que Amelia assentisse. – Quando soubemos da tragédia, escrevi ao seu pai.
– Agradecemo-lo muito. Desde que sofreu o acesso morboso que lhe afetou a cabeça… – murmurou – mal está em si. Por isso é que ele decidiu afastar-se da corte.
– A corte… que inoportuna é, às vezes – respondeu Dona Mercedes com aborrecimento.
– Mas necessária, minha querida Dona Mercedes – afirmou o marquês.
Finalmente a berlina atravessou o murete que rodeava a propriedade de Castamar e enfiou por um caminho empedrado, ladeado por castanheiros, que conduzia à herdade principal. Deixaram para trás as casas dos guardas, a capitania com o pequeno destacamento militar e o edifício que albergava os aposentos de maiorais e cavalariços. Segundo Dona Mercedes, o filho tinha mandado remodelar estes últimos para que os seus habitantes vivessem de forma muito mais cómoda. Também atravessaram uma ponte de pedra, emoldurada por pilastras que sustentavam esferas de granito, que estava tal qual como se recordava. Atravessaram assim o córrego de Cabeceras, afluente do Manzanares, e subiram várias lombas de pinhais até chegarem a um pequeno planalto. À medida que o dobravam, começou a erguer-se, perfilado pelas luzes do interior, o palácio de Castamar. Amelia teve a mesma sensação que da primeira vez. Pareceu-lhe uma construção simples e majestosa, mais conforme com os tempos dos Borbón do que com os Áustrias do século passado.
Atravessaram uma treliça de uns 12 côvados, decorada nas pontas com bordões de ouro, para prosseguir por um dos passeios retilíneos, escoltados por álamos e canteiros. Amelia, de pupilas iluminadas, pensou que aqueles jardins podiam rivalizar com os famosos jardins franceses, com aqueles vermelhos, laranjas e amarelos do sol a pôr-se atrás do horizonte. Surgiram do lado esquerdo do edifício, até parar numa praça oblonga que morria no frontispício. Pararam em frente à porta principal, ladeada por grandes colunas acanaladas, onde a criadagem esperava para lhes prestar assistência. Ao apoiar o pé no primeiro estribo, Amelia admirou o palácio de quatro andares e teve a sensação de voltar a um refúgio.
Desceu, ajudada por um dos criados, deixando Dom Enrique atrás de si. Dona Mercedes, soltando o seu toucado emplumado, perguntou pelo filho ao mordomo. Quando atravessaram as escadas do majestoso pórtico, um criado apareceu com uma vénia para recolher as roupas mais pesadas. A duquesa sorriu e convidou o marquês e Amelia a esperarem por ela numa das salas contíguas à enorme antessala erguida em jaspe. Assim fizeram, enquanto ela dava ordens ao mordomo-mor para que os assistisse naquilo que fosse necessário e desaparecia por uma das galerias do palácio.
Amelia soltou o toucado e aproximou-se dos janelões.
– Que vista tão bela – disse, para preencher o silêncio.
O marquês pousou o chapéu de três bicos numa das poltronas e serviu-se de uma aguardente. Ela, de costas para ele, fingiu admirar a vista frontal da casa. O mordomo, ao ver que não precisavam de mais nada dele, encostou as portas do salão, deixando atrás destas dois criados de câmara para o caso de serem necessários.
– Menina Castro, devo confessar-lhe uma coisa. A nossa amiga em comum contou-me o seu segredo – disse o marquês, sussurrando.
Aquelas palavras trouxeram-lhe de imediato o inverno ao rosto, mas Amelia esforçou-se por dissimular. Nem sequer se virou.
– Sei que o seu pai morreu há dois anos – prosseguia o marquês – e que malbaratou a quinta de Cádis para tentar pagar as dívidas de jogo; que dele a menina só herdou as misérias. Além disso, soube pela Dona Mercedes da intentona que o seu pai fez para se aparentar com os Castamar e entendo que agora, levada pelo desespero, vá tentá-lo de novo. Deve ter muito cuidado: seria uma pária, se a sua situação se soubesse na corte. Ninguém a receberia em sua casa.
Talvez a tivesse trazido ali para se aproveitar da sua desgraça, como outros haviam feito em Cádis. Virou-se, cabisbaixa, mal olhando para ele com a vergonha.
– A Verónica não devia ter-lhe contado nada disso – disse. – Bastava dizer-lhe que eu queria assistir à festa.
– Uma amiga de verdade não mente – respondeu ele com delicadeza. Bebeu um sorvo do seu copo e aproximou-se lentamente dela, até ficar a um par de metros. – Mas oiça bem, não deve ter medo de nada – disse, sereno. – Estou aqui para a ajudar naquilo que precisar e para guardar o seu segredo. Liga-me a Verónica Salazar uma amizade de muitos anos, que honro com a minha dedicação a si, mas também não podia deixar de ajudar uma dama em apuros.
Amelia engoliu em seco. Queria tanto acreditar nas suas palavras… Ainda assim, não sabia o que dizer. Aquele homem conduzira-a a Madrid, salvara-a das garras do sapo de Dom Horacio há menos de duas horas, introduzira-a em Castamar e fizera tudo isso conhecendo o seu passado. Sentiu-se dividida entre uma gratidão transbordante e a preocupação com a possibilidade de o prejudicar.
– Se souberem da minha situação em Castamar, que o senhor, apesar de a conhecer, me trouxe até aqui, é possível que tenha…
Sentiu-se perturbada por uma maré de recordações dos seus últimos quatro anos e a voz quebrou-se-lhe. Na sua juventude, o pai de Amelia tinha feito fortuna com a importação de tabaco desde as Américas. Graças a isto, lavrara um nome e a fama de bom comerciante em Sevilha, Cartagena e Cádis. Desenvolvera simpatias entre a aristocracia, a quem vendia o tabaco que importava. Ainda se lembrava das suas palavras, ao passear por Sevilha no seu próprio cabriolé: «Vais casar numa casa ilustre, minha filha.» Assim, deixara passar importantes propostas de famílias andaluzas de bem enquanto o seu pai procurava o «marido perfeito» que lhe desse um título. E acreditaram tê-lo finalmente encontrado em Castamar. Mas isto não vingou e, enquanto decorria essa busca sem tesouro, a sua idade casadoira passava com ela. Um ano depois do fiasco com Dom Diego, quando cumpriu os 25 anos, a maioridade para uma mulher – aquele dia jamais se apagaria da sua memória – apareceu o barão de Zahara, Dom Luis Verdejo y Casón, convidado por seu pai para aquela celebração. Ela já encetara com ele várias conversas e, apesar da sua idade – 38 anos –, tinha intenção de contrair com ela segundas núpcias. Ao pai, parecera-lhe um partido perfeito. Dotaria a família de um título e Amelia não teria a pressão de lhe dar filhos, pois o barão já os tinha. Ainda assim, quando lhos desse, seria um motivo de alegria.
Tudo isso se viu truncado quando a mãe sofreu um acesso morboso que a deixou meio idiotizada para a vida. A pobre caíra fulminada durante aquela festa do seu 25.° aniversário. Levado pela loucura de perder a esposa, o pai abandonara-se ao jogo e à bebida, esquecendo-se dos seus deveres paternos para com Amelia. Nos dois anos que se seguiram, delapidou a sua fortuna, o dote da sua mulher e o que tinha destinado ao casamento da filha. Dom Luis, o barão, esfumou-se assim que ouviu os rumores da loucura daquele que iria ser o seu futuro sogro e da impossibilidade de melhoras da sogra.
Ela, que no seu terno vigor tivera pretendentes de chega e sobra entre a alta sociedade andaluza, fora rapidamente rejeitada pela escassez de meios. Apenas pudera cobrir um pouco as aparências, enquanto os credores se amontoavam às portas da quinta. Um ano depois, não a surpreendera encontrar o pai morto numa manhã de janeiro. Desde aquele fatídico momento, vira-se sozinha com a mãe, que nem sequer conseguia falar sem se babar. Amelia pudera herdar muito pouco, a sua legítima9, e com isso tinham conseguido viver os últimos dois anos, procurando o favor de homens poderosos da Andaluzia. No fim, um deles, estando já no mais absoluto desespero, convertera a sua misericórdia num intercâmbio comercial em que Amelia havia tido de aceder aos seus pedidos para não se ver na indigência.
Obrigou-se a sair destas recordações pesarosas ao sentir Dom Enrique mais perto. Sem se dar conta, baixara mais a cabeça, envergonhada.
– Menina Castro – disse-lhe ele com suavidade. – Olhe para mim.
Ela obedeceu, devagar. O perfume a pêssegos frescos do marquês invadiu-a suavemente e, com este, o brilho protetor das suas pupilas perladas.
– Não se preocupe com isso… é o nosso segredo – sussurrou, diante dela. – Se não quiser mais a minha ajuda, respeitá-lo-ei, limito-me a oferecê-la.
– O que quer de mim? – perguntou. – Sei que ninguém dá nada a troco de nada e…
– Não me ofenda, menina Castro. Da minha boca não saiu qualquer pedido.
– Acredite que estou nas suas mãos… Eu…
Amelia sentiu que não podia aguentar mais aquela pressão e as bochechas explodiram-lhe como papoilas. As pálpebras tentaram conter as lágrimas. Sentiu-se cheia de impotência e frustração. Ela, que vivera humilhada sob a vergonha dos olhares hipócritas, contemplando a queda de seu pai no abismo, via-se agora de novo em Madrid sob essa possibilidade.
– Shhh, não seja infantil. Garanto-lhe que nada neste mundo voltará a perturbá-la, se mo permitir. Ninguém poderá jamais desprestigiá-la ou fazer-lhe mal – concluiu, destilando aquelas palavras tão perto dela que a fizeram vacilar –, pois serei o seu escudo e é claro que esmagarei quem quer que ouse fazê-lo.
Não soube porquê, mas sentiu, sob o seu desespero, uma atração profunda e silenciosa que lhe serpenteava em círculos pelo ventre. Talvez fossem os sussurros destilados de Dom Enrique, aquelas palavras que tanto ansiara ouvir, a sua elegância inata ou a forma tão insuportavelmente sedutora como lhe pegara na mão. Ouviram-se então duas batidas nas portas. Dom Enrique separou-se dela ipso facto e Amelia ficou perturbada, com o corpo convulso a olhar pela janela enquanto o batente se abria sem que ninguém desse autorização para entrar.
Através do reflexo dos vidros, pôde ver um homem mais mulato que negro, vestido como um cavalheiro, de quem se recordou de imediato. Já o seu pai lhe havia aconselhado, mesmo antes de enviá-la para Castamar, que se comportasse corretamente, mas com distância, ante ele. Toda a Espanha zombava, ainda que nunca, claro, cara a cara, daquela extravagância de Dom Abel.
– Meu senhor marquês, menina Castro, desculpem a interrupção. A minha mãe pede-me que os guie até aos salões de trás, onde está o Dom Diego – disse-lhes ele, com refinada educação.
– Boas noites, Dom Gabriel – disse Amelia, virando-se.
Pareceu-lhe que os seus traços, seguramente herdados de um homem branco e de uma escrava negra, tinham ganhado em delicadeza desde a última vez que o vira: o nariz fino e alongado, não achatado como os da sua raça; as maçãs do rosto firmes e os lábios pronunciados; os braços aguerridos e as costas tão largas como o lombo de um touro.
– É um prazer voltar a vê-la, menina Amelia – respondeu Dom Gabriel, inclinando educadamente a cabeça.
– Não ouvi que te tivessem dado autorização para entrar – disse Dom Enrique, visivelmente incomodado enquanto se aproximava dele.
Amelia pôde ver como o negro, da sua elevada estatura, desviava o olhar para Dom Enrique, que se detivera diante dele. Por um instante, sentiu-se desconcertada ante aquela situação atípica. O marquês, sendo mais pequeno – pois Dom Gabriel erguia-se uma cabeça acima dele e o seu corpo tinha o dobro do tamanho –, parecia investido de um poder colossal. Apesar disso, nunca em toda a sua vida tinha visto um homem de cor manter-se tão firme perante um branco. Sustinha-lhe o olhar como se fosse um igual, de forma irreverente. Qualquer outro ilustre ter-se-ia sentido insultado e teria abandonado a casa, para desprestígio do anfitrião.
– A porta estava encostada, Excelência, não era minha intenção incomodá-lo – respondeu, sem deixar de manter fixos os seus olhos negros.
O marquês aproximou-se ainda mais, apenas um palmo os separava.
– Não voltes a entrar sem pedir autorização – disse, com certa parcimónia. – Assim o exige a boa educação.
– Lamento dizer-lhe, senhor marquês, que não preciso de a pedir – respondeu o arrogante. – Sou um Castamar e esta é a minha casa, e uma vez que me está a tratar por tu, peço-lhe que se dirija à minha pessoa pela minha posição.
Amelia deu um passo atrás e levou à mão à boca, de olhos arregalados. Aquele negro erguera-se diante do marquês como o titã Prometeu ante os deuses para entregar o fogo aos homens. Era inconcebível que um homem de cor falasse assim a um branco, e ainda mais a um ilustre cuja posição era, a todas as luzes, muito superior, ainda que naquela casa o tratassem como um Castamar. O marquês podia exigir ao anfitrião da casa um pedido de desculpas formal por aquele tratamento degradante, contudo limitou-se a sorrir e demonstrou a sua boa índole.
– Não obterás de mim tal coisa, mas, dado que Dona Mercedes se considera vossa mãe e tenho por ela um sincero apreço, o máximo que posso fazer por um negro tão atípico como tu é ignorar-te – respondeu, sereno.
– Isso bastará, senhor marquês – replicou o outro, com uma simplicidade esmagadora. – Agora, se me seguirem, guiá-los-ei até aos salões onde se encontram os restantes.
Amelia assentiu, sem saber muito bem o que pensar ante as duas cenas que havia vivido. Fitou o negro e sorriu-lhe com correção, mas com distância, tal como havia feito no passado. Ainda hoje não sabia como comportar-se ante a sua figura. Com sentimentos contraditórios, caminhou atrás dele pela galeria que conduzia aos pátios enclaustrados do interior do edifício. Ao atravessar o claustro com colunas dóricas e arcos em ogiva, Amelia intuiu que a decisão de vir até Castamar teria consequências inesperadas para ela.
9 Parte da herança reservada aos descendentes ou ascendentes diretos. (N. da T.)