No porto de águas profundas de Danzig entrou pela primeira vez na água. Era o fim da tarde e caía uma chuva fina. Havia poucas pessoas no cais e estavam muito ocupadas para lhe prestarem atenção. Alguns operários tinham feito uma fogueira debaixo de um telheiro em chapa ondulada e ele sentiu o cheiro do café a ferver: café verdadeiro! Andava muito depressa debaixo da chuva. Fora obrigado a deixar o chapéu no vestiário da galeria, bem como a pasta preta com o manuscrito de O Messias . Quatro anos de reflexão e escrita: um erro que se desenvolvera como um tumor maligno até que finalmente compreendera que o Messias não viria pela escrita, que jamais poderia ser invocado numa língua atingida por elefantíase. Era preciso inventar uma nova gramática e uma nova caligrafia. Bruno deu uma olhadela inquieta ao edifício da Direção dos Portos. Dois soldados conversavam num carreiro próximo. Sentia-se nu sem a braçadeira. Fechou os punhos instintivamente, como se treinara a fazer desde que os judeus tinham sido proibidos de estar com as mãos nos bolsos na presença de um alemão fardado. Bruno andava depressa, fazendo-se pequenino: o andar de um homem banal. A água escorria pela pele amarelada do seu rosto tenso… 
Conheço o rosto dele de cor: apanhei-o muitas vezes a espreitar-me das suas pinturas grotescas, rodeado por outros homens anões e miseráveis, ou debaixo do sapato reluzente da bela criada Adela, ou do tacão de qualquer outra mulher arrogante. (Mas olha bem para o mar, Bruno: o mar cinzento a teu lado, sacudindo energicamente as suas grandes mantas para a noite e rebentando os botões das algas redondas que sobem por momentos à face da luz antes de mergulharem de novo na espuma.) 
… Eles relegaram a pintura de Edvard Munch para o canto mais afastado da galeria (de tal modo os perturbava), no meio de pinturas mais coloridas e suportáveis, e cercaram-na por uma corrente em ferro com um aviso em polaco e alemão: é favor não se aproximar. não tocar. 
Os idiotas! Os visitantes da exposição é que deviam ser protegidos da pintura e não o contrário. Aquela personagem sobre a ponte de madeira, com a boca aberta num grito, estremecia-lhe todos os órgãos do corpo. Ao beijá-la na galeria ficara contaminado. Ou, mais exatamente, o beijo dera vida a uma infeção latente. Bruno passa agora ao lado dos barcos pesados, o olhar virado para dentro de si. Os lábios arredondam-se de vez em quando num movimento estranho, enquanto o grito da pintura traça o seu caminho do coração para a boca, como um feto que atingiu o seu tempo. Sente arrepios que parecem murmurar: Bruno é o elo mais fraco da cadeia. Olhem por ele. A grande escritora Zofia Nalkowska escreveu uma vez aos amigos: «Cuidem de Bruno. Cuidem dele por ele e por nós.» Mas a sua verdadeira intenção permanece encoberta. 
Caiu. Tropeçou num amontoado de cordas coberto por algas, e por pouco não caiu à água. Ficou uns momentos deitado no cais, dobrado com a dor. Os rasgões no casaco, debaixo dos braços e nos cotovelos ficaram expostos. Levantou-se logo. Não pode ficar deitado. Não pode ser um alvo fácil. Andam sempre atrás dele. E não só as SS. A polícia polaca também o persegue desde que fugiu do gueto de Drohobycz e que tomou o comboio, interdito aos judeus, e ousou entrar na exposição de pintura de Munch, em Danzig, onde fez o que fez antes de ser violentamente posto na rua. Mas Bruno já não teme nem as SS nem a polícia polaca que nos últimos anos se uniram para o perseguir. O que ele teme são os grandes projetores que lhe sondam o corpo cruzando-o de centelhas concentradas e dolorosas de um ser-como-toda-a-gente. Uma vida prosaica, cinzenta e pequenina, que o toque da sua pena não a poderá redimir. 
No momento em que Bruno viu na galeria Artus Hopf o quadro O Grito teve a certeza: a mão do pintor deslizara. Munch nunca poderia ter planeado uma tal perfeição. Podia tê-la pressentido, ter tremido ou aspirado a ela, mas nunca poderia tê-la realizado intencionalmente. Bruno, que também pintava e escrevia, reconhecia-o com pesar: toda a sua vida ansiara pelo dia em que, segundo ele, «o mundo mudaria de pele como o lagarto se descarta das escamas». Chamava a esse dia «a era do génio». Mas até lá, era preciso ter cuidado. Não podemos esquecer que as palavras que usamos não passam de fragmentos de narrativas ancestrais, e que todos construímos as nossas casas, como os bárbaros, com vestígios de ídolos e estátuas de deuses antigos, migalhas de mitologias grandiosas. Mas a questão mantém-se: essa era de génio poderá realmente existir? É difícil responder. Bruno também não está certo. «Porque há coisas que não podem realizar-se totalmente, até ao fim. São demasiado imensas para caberem no âmbito do acontecimento. Procuram realizar-se, apalpam o terreno do real, mas recuam imediatamente com medo de perder a sua integridade numa materialização imperfeita, deixando ficar nas nossas biografias aquelas manchas brancas, aqueles eflúvios aromáticos, aqueles rastos prateados de anjos descalços, passos de gigante espalhados ao longo dos nossos dias e noites…» Foi o que escreveu no seu livro As Lojas de Canela 16 . Conheço-o de cor. 
Um Sol pequenino como um ovo estava a desaparecer num céu metálico, e a luz ia diminuindo. Era Deus a fechar devagarinho a sua caixa de brinquedos. Bruno sabia: o tipo de perfeição que Munch descobrira não se encontra senão por acaso ou por erro. Devia ter havido alguma negligência, alguma distração, e a verdade introduzira-se onde não devia. Bruno tentava imaginar o número de quadros que Munch teria pintado depois daquele, à pressa e em pânico, para desfazer o sentimento de intrusão num terreno proibido. O próprio Munch, pensou Bruno (pondo o pé numa poça de óleo de motor estilhaçando-a em arabescos coloridos), deve ter ficado alarmado quando olhou para a pintura e viu o que ela revelava. 
Átomos de verdade indivisível. Uma verdade cristalina e última. Bruno procurava-a por todo o lado: nas pessoas que encontrava, nos retalhos de conversas que lhe chegavam aos ouvidos, trazidos pelo vento, nas coincidências, em si próprio; em cada livro que lia procurava a frase ímpar, a pérola rara que lançava o escritor numa aventura de centenas de páginas. Raramente a encontrara. Na maioria dos livros que lera não havia frases dessas. Nas obras-primas encontravam-se no máximo duas ou três, que Bruno copiava para o seu bloco de notas: pedaços de evidências sólidas que ele colecionava com esforço e persistência, e a partir das quais poderia reconstruir um dia o mosaico original. A verdade. E quando voltava a ler aquelas frases, nem sempre sabia dizer quem as escrevera: por duas vezes pensou que uma determinada frase era dele e depois constatou que se tinha enganado. Pareciam-se tanto uma com a outra, o que não era de espantar, disse para si, pois tinham a mesma origem. 
Bruno apercebera-se de que Munch era igualmente um elo fraco da cadeia. Adivinhara-o há muito, desde que vira reproduções de O Grito em livros de arte, em Drohobycz. Mas ver o original com os seus próprios olhos convencera-o totalmente: Munch era-o também, tal como Kafka e Mann, Dürer e Hogarth, Goya e outros que constituem a riqueza do seu bloco. Uma rede frágil de elos fracos através do mundo. Protegei pois também Munch. Protegei-o pelo bem dele e pelo nosso. Amem o vosso artista, mas tenham olho nele. Rodeiem-no de amor, juntem as mãos e façam um círculo em volta dele. Estudem as suas pinturas. Estreitem-no, para o aclamar, naturalmente. Regozijem-se com as suas histórias, mas não se esqueçam de se mostrar chocados por elas, de vez em quando, agradeçam-lhe pela forma maravilhosa como deu expressão a tudo o-que-vocês-sabem, e abracem-no para que ele sinta o calor do vosso corpo, mas também a sua firmeza e inviolabilidade de ferro. Afastem os dedos quando lhe batem palmas para que ele os tome por grades, e nunca deixem de o amar, pois tal é o vosso pacto secreto: o vosso amor em troca da sua vigilância. A lealdade dele em troca da vossa serenidade. 
Munch também traiu. Deixou-se despedaçar e o grito deu-vos um violento pontapé. Agora está aqui, e há que remendar depressa o rasgão. Por isso amem-no ainda mais! Aproximem-se dele para que ele sinta o vosso hálito na cara: aquele que falhou uma vez falha também à segunda. Unam as vossas mãos numa corrente em volta dele e proclamem em letreiros vermelhos: Não se aproximar. não tocar. 
Bruno continua a correr. O seu rosto anguloso corta o vento, os lábios arredondam-se no esforço de aliviar a dor. Oh, o excesso que há em Bruno, e o temor que sente perante esse excesso… Cuidem de Bruno por ele, principalmente por ele. Não o deixem sucumbir ao desejo perigoso de escrever sem o intermediário das palavras gastas, das palavras que vos são fiéis. Não permitam que ele escreva segundo o código do corpo, segundo um ritmo que o metrónomo e o relógio não podem medir. Não permitam ainda, por amor de Deus, que ele fale consigo próprio numa língua incompreensível que teve de inventar por causa dos negociantes astutos que só estão à espera de o conduzir pela mão às tendas mais suspeitas da linguagem humana, para abrir diante dele os seus sacos repugnantes e propor-lhe a sua mercadoria com um sorriso bajulador: mas não, senhor, aqui é tudo de graça, sim, completamente, uma língua novinha em folha especialmente para si. Ainda está embrulhada em celofane e traz junto um dicionário muito especial, pessoal, cujas páginas parecem estar em branco mas que, de facto, estão escritas com uma tinta invisível, a tinta dos espiões, e só quando as untar com o seu fel, com a sua essência amarga e exclusiva, as poderá ler; mas não, senhor, não lhe pediremos nem um centavo! É tão raro que algum cliente caia… pardon , apareça, que não vamos espantá-lo com questões fúteis de dinheiro e condições de pagamento… Digamos antes, caro amigo, que o consideramos uma espécie de pequeno investimento, uma caução, ah, ah!, um pé atravessado na porta dos mercados que por ora nos estão fechados. Queira ter a gentileza de assinar aqui, aqui e aqui. 
Munch assinou. Kafka assinou. Marcel Proust assinou. E ao que parece, Bruno também assinou. Já não se lembra de quando foi exatamente, mas deve ter assinado qualquer coisa, pois o seu sentimento de perda é cada vez mais profundo. E depois a guerra rebentou e Bruno começou a pensar que tinha cometido um erro: as pessoas tornaram-se abertamente perversas, as tendas dos comerciantes astutos escondiam outros negócios escuros, sem fundo, onde o homem ainda nunca pousara o pé, ruas cheias de corrupção ladeadas por ruínas e restos de paredes, como dentes de crocodilo. 
Foi por isso que Bruno fugiu. 
De Drohobycz que ele amava. Da sua casa à esquina da Rua Samborska e da Rua do Mercado, Olimpo da sua mitologia privada, morada dos deuses e dos anjos feitos à imagem do homem, e às vezes bem inferiores ao homem… Ah! a casa de Bruno. Que agradável sensação o invade ao simples pensamento daquela casa de aparência tão banal, tão perfeitamente insignificante, mas que a imaginação arquitetónica de Bruno transformara num imenso palácio com salões e corredores labirínticos, e jardins cheios de vida e cor. No rés do chão ficava a loja familiar de tecidos, chamada «Henrietta» em honra da mãe, e tão desastradamente gerida pelo pai, Jacob Schulz, o poeta escondido, o homem obstinado que lutara sozinho contra as gigantescas forças do tédio; o seu pai, o ousado explorador do efémero, que utilizara a vontade e a imaginação para se transformar em pássaro, em barata, em caranguejo, o seu pai eterno morto-vivo… 
Por cima da loja ficava a casa de habitação. E a mãe Henrietta. Gordinha e meiga, cuidava dedicadamente de Jacob, doente de cancro, cujo negócio ia decaindo perante o seu olhar sonhador que nada via; a mãe de Bruno, principalmente atenta ao terno rebento que lhes brotara na velhice, a criança demasiado sensível, sempre a lutar com inimigos que ela nem sequer sonhava… 
(Uma vez, num fim de tarde escuro e melancólico, entrou no quarto dele e encontrou-o a dar grãos de açúcar às derradeiras moscas que tinham sobrevivido a um outono frio. 
«Bruno?» 
«É para conseguirem resistir ao inverno.») 
Não tem amigos. Não é que não seja bom aluno, o nosso Bruno; pelo contrário, os professores têm uma ótima impressão dele. Em particular o professor de desenho, Adolf Arendt. Desde os seis anos que desenha com grande maturidade. Quem poderia compreender tal coisa? Vejam só: primeiro teve o «período» das carruagens, dorozki , que são carros rápidos, aos quais se pode tirar a capota. Desenhava-as às centenas, atreladas a cavalos negros, surgindo de uma floresta escura, e os passageiros nus (note-se), com as pálpebras ainda cobertas do pó prateado das visões silvestres. A seguir começou a desenhar carros, como qualquer criança, mas não os desenhava como as crianças; depois desenhou cavalos e corridas. O movimento sempre. Mas os seus desenhos já estavam impregnados de velhice, de morte e de amargura. 
E não tem amigos. Os rapazes chamam-lhe niedolega , um zé-ninguém. 
E em casa há também a criada Adela. 
As pernas dela. O corpo. O seu cheiro de mulher. Os seus pentes. Os seus cabelos espalhados pela casa. Adela, que punha um travão às fantasias do pai, Jacob, com ameaças de cócegas; Adela, a pavonear-se provocadoramente nos seus sapatos de verniz baratos, de salto alto – olha bem para os sapatos, Bruno! 
O movimento rítmico dos lábios, a vivacidade dos gestos e o corpo estreito dão a Bruno um ar de peixe. Caminha ao longo do cais, de olhos fechados, e revê intimamente o seu feito na galeria: um salto rápido por cima da corrente com o letreiro de aviso e um beijo no quadro. De pé, num dos barcos, está uma mulher velha a olhar para o mar, com os cabelos compridos e espessos a dançarem à volta da cabeça com as rajadas de vento. O guarda da galeria, que estava a dormitar, acordou sobressaltado e começou a apitar energicamente. Veio logo outro guarda, e juntos arrastaram-no para fora do perímetro proibido, para o território deles. E então começaram a bater-lhe, em silêncio e metodicamente, como que sem raiva. Sobre o quadro ficou uma pequena mancha de saliva. Bruno falhara a boca da personagem a gritar, conseguira beijar apenas um dos postes de madeira da ponte. Mas aquilo bastara-lhe. Aquele gesto ressuscitara-o. Respiração boca a boca. Bruno estava salvo. 
 
 
Abre os olhos e vê que as pernas o estão a levar em direção à curva do paredão que avança em meia-lua para dentro do mar. Com a sua língua musculosa, o mar sonda os detritos de madeira entranhados entre os seus dentes rochosos. Dos buracos dos recifes o mar persegue Bruno com os seus múltiplos olhos. 
Bruno pensa no manuscrito inacabado que ficou no vestiário da galeria, dentro da pasta. Quando foi expulso de lá, começou a andar pela Langgasse, indiferente aos carros e aos elétricos que o salpicavam com a água lamacenta das poças. Estendia o braço e tocava discretamente nos grandes postes dos candeeiros de rua e depois lambia furtivamente os dedos. Como para conservar o gosto dos postes do quadro. Cada vez que o fazia contraía-se-lhe um músculo, torturado. Pensava na sua vida que nunca fora verdadeiramente sua. Sua mesmo. Porque a força do hábito o privara sempre dela. As pessoas viviam roubando a vida uns dos outros. Antes da guerra faziam-no ao menos com delicadeza e tato para não magoar os outros mais do que o necessário, e até com um certo humor, mas desde que a guerra começara, nem sequer se preocupavam em fingir. Só ultimamente percebera que os seus dois primeiros livros, bem como o terceiro, O Messias , no qual tinha estado embrenhado e a debater-se nos últimos quatro anos, não passavam do andaime complexo e inteligente que ele erigira em torno de uma criatura desconhecida. Ainda desconhecida. Compreendeu que passara a maior parte da sua vida empoleirado como um trapezista arrojado no alto do andaime, suficientemente prudente, no entanto, para não olhar para baixo, para dentro, pois, caso o fizesse, assustar-se-ia e seria obrigado a reconhecer, com tristeza, que não era um trapezista, mas sim um carcereiro. E que à sua maneira, por hábito, cansaço e negligência, se tornara cúmplice daqueles que juntavam as mãos à sua volta. 
E foi por isso que decidiu fazer a sua última fuga. Não por medo dos alemães ou dos polacos, ou por uma qualquer forma de protesto contra a guerra. Não. Fugiu porque queria finalmente encontrar outra coisa, uma coisa diferente das dezenas de adjetivos, verbos e tempos verbais aos quais tinha servido de encruzilhada até agora. 
O meu Bruno já sabe que vai morrer. Dentro de uma hora ou de um dia. São tantos os que morrem agora. Nas ruas do gueto de Drohobycz reina nos últimos tempos um silêncio resignado. Bruno também se afundara nele: talvez fosse mesmo culpado de alguma coisa. De ter aquele ar. De ser judeu. De escrever como escreve. Não se trata de uma questão de justiça, que há muito passou à história, mas, pensa Bruno estugando o passo, tenho outro problema para resolver, que é o da vida; a vida que vivi e a que não fui capaz de viver devido às minhas fraquezas e ao medo. E já não tenho forças nem tempo para esperar que um milagre ma revele. Bruno sorri para si próprio com um sorriso crispado e um pouco comovido. O seu rosto cheio de contusões ilumina-se por instantes. Não foi Lenine que disse que uma morte é uma tragédia e um milhão de mortes, estatística? Sim, deve ter sido Lenine, mas o que Bruno quer agora é extrair dos milhões da estatística a tragédia singular da sua própria vida, e compreender, ainda que por momentos, o que tem inscrito no grande livro da vida. No mais íntimo do seu coração, alimenta a secreta esperança de que se houver realmente em si um grãozinho dessa verdade última e cristalina, talvez consiga entender porque é que o Criador supremo o fez percorrer uma infinidade de páginas. 
Bruno tira o casaco roto e atira-o para o chão de cimento. Os olhos estão completamente vazios de expressão. Em que estará a pensar? Não sei. Perdi o fio dos seus pensamentos. Talvez esteja a pensar em Mirabeau, o poeta revolucionário que, para protestar contra o regime, se fez bandido. Ou no filósofo Thoreau, que deixou a sua cidade, o seu trabalho, a sua vida bem organizada e os seres humanos e se isolou numa solidão total na floresta de Walden. 
Bruno estremece. Não. Esses protestos e revoltas não bastam: o bandido rouba as pessoas, e o solitário isola-se delas, como se a sua solidão se medisse pela vida gregária delas. É necessário muito mais do que isso: uma revolta que te expulse de dentro de ti próprio. Bruno treme, hipnotizado pelas sumptuosas vagas escuras que rolam à sua frente, vagas que sentem nele a tensão de quem foi até ao fim e cujas extremidades são já de uma outra substância, algures no limite entre a carne e os desejos. 
A velha no barco olha sem se mexer. Pressente o que está para acontecer. O mundo é assim, e a morte é muito mais do que o contrário da vida. Todos os nossos projetos subordinam-se-lhe. Dois estivadores avistam-no ao longe e começam a gritar. 
Bruno tira a camisa e as calças. Com os dedos molhados o mar avalia a magreza e o cansaço que se apoderaram do seu corpo. Não quer saber: os perdigotos do comerciante ávido salpicam o cliente submisso. Compra tudo. Sabe-se lá quando poderá utilizar todo o ferro-velho que está nas suas caves? Bruno abre os olhos torturados. Alguém dentro de si ainda tenta salvar este corpo frágil: o escritor que o habita há tantos anos deve tremer à ideia de desaparecer se o seu hospedeiro se afogar. Depois dá-se conta de que foi o prisioneiro fechado dentro dos andaimes que planeou a fuga. O refém agora é o comerciante-trapezista. Aterrado, tenta um miserável estratagema, um último golpe: coloca os teus sapatos em cima da pilha de roupa, ao menos terás alguma coisa para pôr quando voltares! Um momento, não tão depressa, espera um pouco, raciocinemos… (O escritor vê o que Bruno não consegue ver: da outra extremidade do porto acorrem pessoas em direção ao molhe. Dois estivadores e mais uma pessoa. Um polícia.) 
O velho mar sente que tem de espicaçar o cliente hesitante. Faz de conta que se arrepende: com grande estardalhaço e um ar ofendido, faz vir a si uma vaga imensa e para por momentos o avanço da seguinte. Cria-se um vazio no seu seio. O silêncio aspira tudo. Do fundo da alma de Bruno solta-se uma vaga que vai encher o vazio. 
Dá um pontapé na pilha de roupa que cai à água, flutua um instante à superfície, depois incha e afunda-se. O mar sorri impercetivelmente. Faz deslizar uma onda na direção de Bruno, como um croupier profissional o faz com uma boa carta para um velho cliente. O escritor aperta os lábios, apavorado. Como o compreendo! Cospe com ódio sobre o caldo de cultura humana, louco e imprevisível, que lhe deu guarida e lhe emprestou a mão para escrever. É ele o menino mimado, o espírito lógico, o angustiado que aperta o nariz de Bruno com os dedos delicados, e se desvanece quando Bruno se afunda na água fria e emerge de novo à superfície, inchado de alegria como uma vela. Ouve-se então um som opaco e prolongado: talvez um navio a apitar ao longe, ou o mar a gemer por este novo bastardo que veio aninhar-se no seu seio. 
Bruno nadou com grandes braçadas. As mãos a afastarem as cortinas de vagas, uma a uma. Detetou uma primeira fenda no horizonte longínquo, no lugar exato onde as placas de ardósia mate do mar e do céu se juntam. Tentou escapar por essa fenda, mas as forças esgotaram-se-lhe rapidamente e, quando os pés tocaram num recife, parou para descansar um pouco. 
Olhou para trás. Viu os cais cinzentos, os telhados danificados e os edifícios do porto corroídos pelo vento. Viu os barcos a balouçar e a ranger tristemente – cascos redondos, prenhes de espaços longínquos, a figura de uma velha Górgona num deles, e o ajuntamento de pessoas no molhe a chamá-lo. Ou talvez estivessem a aclamá-lo? De qualquer maneira, já não podem dar as mãos em círculo à sua volta. Deu uma risada e tremeu agitado por ondas de calor e de frio. Nesse momento reparou que ainda tinha o relógio no pulso, mas os dedos tremiam-lhe tanto que não conseguiu tirá-lo. 
Num barco pequeno amarrado ao cais alguém se esforçava por pôr o motor a trabalhar, mas este recusava-se. Bruno virou o rosto para o céu e respirou profundamente: era a primeira vez na vida em que não se sentia perseguido. Mesmo que o apanhassem agora, não reconheceriam nele a pessoa que procuravam. Apanhariam uma carcaça vazia. Nenhum inspetor da polícia perceberia agora o seu discurso. Nenhum escritor o poderia registar com exatidão. Quando muito poderiam tentar reconstituí-lo com a ajuda de elementos exteriores. Que triste é o destino daqueles que Bruno abandonou no cais! Ainda que lá não estivessem naquele momento, ou que nunca tivessem ouvido falar de Bruno, todos devem ter sentido um aperto no coração, no momento em que ele saltou para a água. Até os índios das margens do Orinoco pararam um momento de talhar as árvores-da-borracha, tal como os pastores da tribo do fogo, na Austrália, que também pararam e viraram a cabeça para escutar o som longínquo. Até eu, que ainda não tinha nascido, fiz o mesmo. 
A pouca distância de Bruno, as águas agitaram-se bruscamente. Uma coisa prateada cintilou, borboleteou. Um raio esverdeado ou um olho petrificado talvez, sulcos em rajadas, que se abriam espumantes com um bater de barbatanas. Foi cercado por minúsculas bocas, que o picavam na barriga e nos joelhos e lhe mordiscavam as nádegas e o peito. Bruno ficou paralisado de espanto ao decifrar o código tatuado no corpo. As credenciais da delegação de uma só pessoa que parte em missão. Os peixes, surpreendidos pela magreza e a dureza da sua carne, inspecionaram as veias salientes dos pés brancos. Depois acompanharam em silêncio aquele objeto brilhante que se afundava nos abismos para contar o tempo que já passara. Abriram-se fileiras à sua frente e os peixes deixaram Leprik passar entre eles e olhar para Bruno com uns olhos penetrantes. Era um salmão maior do que os outros, cujo corpo era tão volumoso como o de Bruno. Nadou à volta dele uns momentos sem se apressar, com a cauda a tremer ligeiramente, mas se calhar já eram as ondas emitidas pelo barco a motor que se aproximava rapidamente com os dois estivadores e o oficial da polícia do porto a gritarem. Leprik voltou depressa para o seu lugar, o enorme banco de peixes voltou a fechar-se lentamente como um acordeão gigantesco e mole e Bruno partiu com eles para o alto mar. 

16 Tradução de Aníbal Fernandes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987. As citações da obra de Bruno Schulz e, em particular, os nomes de pessoas e de localidades foram revistos a partir da tradução de Hanryk Siewierski, Ficção Completa , S. Paulo: Cosac Naify, 2012. ( N. da T.