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Quando é que aquilo começou? – Bruno não sabia. Talvez durante o sono, ou durante a maré diluviana no mar do Norte, perto das ilhas Orkney. Sim, deve ter sido lá, porque, quando se dirigiam para o Sul ao longo da costa da Escócia, as ondas de expectativa começaram a afastá-lo com suave firmeza do seu lugar no banco do lado da costa, transportando-o como dois carregadores de liteira ágeis e silenciosos para longe de Yorik e de centenas de outros peixes da sua fila, para uma nova posição no banco, onde sentiu o grande ning palpitar dentro dele com uma grande força.
Durante algum tempo flutuou em silêncio, tentando adaptar-se à pulsação lenta e forte e à sensação nova e assustadora que os salmões desconhecidos e o seu novo lugar no banco lhe causavam. Tinha de fazer um grande esforço para controlar o tremor das barbatanas e para se adaptar ao novo dolgan que ainda não dominava totalmente. Só após algumas horas de natação concentrada ousou olhar para o largo e, pela primeira vez desde que se atirara à água em Danzig, viu Leprik.
Era o maior salmão que Bruno jamais vira. O seu comprimento era de cerca de cento e vinte centímetros e não devia pesar menos do que Bruno. Tinha uma cor rosada mais viva do que a dos outros peixes, e uma mancha brilhante por cima do olho direito. Os seus movimentos eram comedidos, mas simultaneamente vivos e vigorosos. Na ponta da mandíbula inferior tinha uma excrescência semelhante a um corno, dura e avermelhada, como um ponto de exclamação. Bruno engoliu em seco e continuou a nadar. Os seus músculos começaram a contrair-se. Escutou o ning que lhe pulsava nos ouvidos e no coração, e notou que a sua intensidade diminuíra um pouco, como se o acompanhasse um outro eco. Enquanto deslizava rapidamente, esvaziou-se de pensamentos e o sentimento de existir agudizou-se como um osso exposto numa ferida. Os peixes que o rodeavam começaram subitamente a nadar mais devagar, e ele fez o mesmo. O banco era percorrido por correntes estranhas. Era possível distinguir agora as pulsações de um novo ning emitidas por outro peixe. Bruno lembrou-se que Gorok conduzira mais de um quarto do banco à perda perto das ilhas Shetland. Cheio de pânico, levantou a cabeça da água à procura de Yorik. O coitadinho não se via em lado nenhum. Tentou febrilmente identificar o peixe que procurava contestar a autoridade de Leprik. As pulsações não vinham do lado da costa. E do lado do mar, só restava Leprik. O que é que aquilo significava?
O banco parou e agrupou-se em círculos. Os peixes agitavam as guelras mais rapidamente e olhavam cegamente em frente. À volta de Bruno e de Leprik formou-se um pequeno círculo vazio, no qual ressoava fortemente o novo ning . Bruno viu milhares de bocas abrirem-se e fecharem-se rapidamente e, para lá delas, uma imensidade de barbatanas dorsais verdes espetadas. Leprik e ele ficaram lado a lado, corpo contra corpo, e, pelo canto do olho, Bruno viu que as linhas laterais do salmão sobressaíam muito.
Ficou transido de medo: o novo ning emanava dele, era ele quem estava a desafiar Leprik. Mas para quê? Não só não achava que podia conduzir o banco melhor do que Leprik como não o desejava minimamente! O que é que ele tinha a ver com aquilo tudo? Espantado, virou-se para Leprik, como se quisesse explicar alguma coisa, e Leprik também se aproximou dele. O círculo dos peixes alargou-se um milímetro. Bruno escutava o seu ning , estupefacto: era uma pulsação rápida e segura, que não tinha nada a ver com a batida mórbida e selvagem que produzira Gorok. Mergulhou as orelhas na água e escutou demoradamente. A pulsação, embora semelhante à de Leprik, era sua. A sua voz única e verdadeira. Sentiu-se reconhecido a Leprik: sem ele, nunca teria podido ouvir a sua pulsação. Era uma sensação das mais irracionais, semelhante à que se sente na fração de segundo antes de um combate de morte, mas, apesar de tudo, fora Leprik que o acolhera no banco e o transformara num artista da sua própria vida. Só não percebia porque é que tinham de lutar um contra o outro…
A água redemoinhou e abriu-se. Atiraram-se um ao outro como imagens ao espelho. Os dois crânios chocaram, depois afastaram-se e voltaram a chocar. O corpo flexível do peixe enrolou-se à volta do peito e das ancas de Bruno e cravou-lhe os dentes aguçados e fortes na carne do ombro. Bruno mergulhou com um gemido de dor, afastou Leprik e continuou a mergulhar cada vez mais fundo, fraco e meio inconsciente, até à zona em que a luz não penetra e os raios vermelhos são detidos. Olhou à sua volta, horrorizado, e viu que da ferida no ombro jorrava sangue que lhe parecia verde. O pânico salvou-o. Com um impulso remontou à tona da água, apanhou Leprik de surpresa e bateu-lhe com as mãos nuas nos dois lados da cabeça. Por momentos, Leprik ficou imóvel, como se nada se tivesse passado, e depois afundou-se na água e desapareceu. Bruno nadou em círculos, assustado, depois mergulhou rapidamente em parafuso, mas não conseguiu descobrir o adversário. Ofegante, voltou a subir à superfície e viu tudo negro: Leprik estava a atacá-lo, pesado como uma baleia, e batia-lhe no peito. Ficou sem respiração. O sangue subiu-lhe à cabeça e cegou-o. Sem refletir, atirou-se para a frente e desatou a bater no ar e na água às cegas. Nunca na vida lutara com ninguém, e esta erupção de violência que jorrava de si e dominava todo o seu ser, aterrava-o. Mas o medo pertencia ao homem Bruno, enquanto o peixe Bruno bebia o sangue derramado na água e saciava a sua sede de vingança. Atirou-se a Leprik várias vezes, enrodilharam-se um no outro, escorregadios e ferozes, uma confusão de dentes afiados, de barbatanas laterais incisivas e de fúria muda, absolutamente muda, porque Bruno também não rompeu o silêncio e lutou sem ruído, como um peixe. Perdeu a conta dos minutos, e o tempo corria apenas ao ritmo dos assaltos e da dor aguda das feridas. Bruno já estava todo magoado: as mordidelas de Leprik tinham-lhe aberto grandes feridas no peito e nos lados do pescoço, mas notou que o grande peixe também estava ferido, que os seus ataques eram cada vez menos precisos e que as forças vitais o iam abandonando, e então recuou. Nesse momento, o seu olhar desanuviou-se, e o cérebro brilhou com uma luz nacarada: estava a lutar contra Leprik porque não podia viver no meio de uma multidão, nem sequer uma multidão desprovida de maldade ou de ódio, e nem mesmo ao ritmo do ning de Leprik. Mas também não queria ser o escudeiro da morte. Leprik ainda se debatia para preservar o seu próprio ning e cuspiu um pedaço de carne do braço de Bruno, mas este já se afastara. Os salmões tinham-lhe aberto uma passagem larga. Não, não queria conduzir ninguém. Ninguém tem o direito de governar os outros. Estivera muito perto de cometer um crime. Recuou rapidamente. O seu ning só era bom para um banco constituído por um único indivíduo. A linguagem singular e secreta do seu corpo só a ele pertencia. Só assim ele podia dizer «eu», sem o eco vazio e oco do «nós». Bruno saiu do círculo dos peixes e parou um instante, respirando com dificuldade, no exterior do banco. Eles viraram-se e olharam para ele sem expressão. Ficaram assim um bom momento. Entretanto, Leprik recuperara algum vigor. A intensidade do seu ning reforçou-se e acabou por atingir Bruno, sem o penetrar. O banco de peixes pôs-se lentamente em marcha, sem ele, e, pela última vez, apoderou-se de Bruno o antigo medo. Mas era apenas a força do hábito.
O banco afastou-se. Durante várias horas, desfilaram diante dele dezenas de milhares de peixes, a nadar lentamente, e ele esperou sem se mexer. Conseguiu distinguir apenas Yorik, mas, ao fim de alguns minutos, deixou de os ver como peixes para passar a vê-los como células do corpo gigante e complexo de que ele se dissociara: o seu corpo anterior. Todos os seus bens, a sua vida e as recordações, os restos do que fora. Esperou ainda uma hora após o último ter passado, mergulhado nos seus pensamentos e na tristeza pela despedida ao seu antigo eu. A partir de agora, tudo o que fizesse, pensasse ou criasse, pertencer-lhe-ia de direito. Ao longe, no horizonte, viam-se as últimas barbatanas espetadas. Brevemente chegarão às quedas-d’água do rio Spey. Saltarão três ou quatro metros acima da corrente espumejante, cairão na água e voltarão a saltar, outra e outra vez. Os que conseguem ultrapassar as quedas chegarão exaustos ao riacho onde há anos nasceram. Durante alguns dias, descansarão apertados uns contra os outros, mortos de cansaço, enfraquecidos, no limite das suas forças. Em cima pairarão já as aves de rapina. A sombra dos peixes escurecerá a água. Ao fim de alguns dias crescer-lhes-ão excrescências e dentes suplementares, e começarão os combates sangrentos pelas fêmeas e pelo território. Os sobreviventes fecundarão os ovos e morrerão imediatamente a seguir. Bruno já sabia: o fraco Yorik não conseguirá passar as quedas. Leprik passará, mas ficará tão esgotado que não conseguirá resistir aos combates com os machos mais fortes do que ele. Em poucas horas, o Spey ficará cheio dos seus cadáveres mutilados. A crueldade da viagem deixará nos seus corpos um estigma mortal. As aves de rapina arrancarão todo o traço de carne.
Bruno ficou só. O velho tubarão que seguia o banco parou no meio do caminho. Olhou para os milhares de peixes que se afastavam deixando para trás esta criatura estranha que exalava um cheiro a sangue e parecia ser uma presa fácil. Decidiu aproveitar a ocasião, mergulhou e desapareceu. Uma corrida rápida em direção a Bruno, que não deu por nada.
Mas eis que aconteceu uma coisa estranha: uma coisa difícil de explicar e que provocou um grande embaraço entre os biógrafos do mar e os bibliotecários arquivistas da história líquida: subitamente, e sem qualquer razão aparente, o tubarão foi projetado para cima, como um peixe voador gigante, a bater as barbatanas, impotente e ridículo, e a bufar pelo focinho grotesco em forma de cabeça de martelo, e foi cair mais longe, muito longe, no seu posto habitual, na cauda do grande banco.
O mar agitou-se durante mais uns instantes. Bruno pensou ter ouvido um ruído estranho, uma espécie de bater de palmas, como o que se ouve quando se atira um intruso impertinente pelas escadas abaixo; perto do local onde o tubarão fora projetado ao ar, as ondinhas ouviram, com uma certa surpresa, um som que parecia uma praga enfurecida e particularmente grosseira, mas preferiram acreditar que não saíra da boca da sua delicada ama. Chocaram umas contra as outras com um abandono alegre e inofensivo, contaram as diferentes versões de como o tubarão fora cuspido e falaram entusiasticamente dos antigos barcos a vapor, da navegação orientada pelo voo dos pássaros, dos diversos remédios contra o enjoo… em resumo, mudaram de assunto.
– Bem contado, Neuman.
– Faço o possível.
– À exceção da praga no fim. Sabes bem que eu não falo assim.
– Mas foi o tubarão que praguejou!
– Ele? Mas ele mal consegue nadar… É verdade. Agora me lembro. Os tubarões-martelo são conhecidos pelas suas pragas horrorosas.
E após alguns minutos de silêncio:
– És simpático. Mudaste desde que eu te conheço.
– Queres ouvir o resto da minha história?
– Não mudaste.
– Por favor…
– Conta, conta lá. Não te incomodes. Eu, de qualquer maneira, não te ouço… um momento! Esqueceste! Esqueceste o mais importante!
– Eu? O que é que esqu…
– Bruno! As feridas! Lembras-te? Por favor, por favor, tens de te lem…
– É óbvio. Como poderia ter esquecido? Tens razão. Escuta.
Bruno nadava lentamente nas águas do mar do Norte. Este pertencia-lhe inteiramente de horizonte a horizonte, mas ele não o sabia. Sarou-lhe as feridas. Nos seus laboratórios obscuros, agitavam-se peixes com ar grave para extrair as suas próprias substâncias especiais. Do mar Cáspio e do mar Morto tinham sido convocadas vagas que chegavam ofegantes, a espumar, depois de se terem infiltrado nos abismos dos mares interiores e de terem sido transportadas nas correntes telegráficas dos rios subterrâneos, e que se mutilavam por ordem da sua ama a fim de extraírem das suas feridas os sais raros necessários a uma cura imediata. À sua passagem, as algas arrancadas como por acaso enrolavam-se em Bruno e untavam-no de antissépticos maravilhosos, e depois voltavam a flutuar, felizes de terem satisfeito a sua ama. Só lhe ficaram duas feridas estreitas, uma de cada lado do pescoço; com efeito, não eram bem feridas, mas antes aberturas, pequenas bocas. Numa palavra, guelras.
Bruno nada lentamente no mar do Norte, com a cabeça completamente mergulhada na água. Já não tem necessidade de respirar o ar do exterior. Contempla os abismos: as ondas poliram as suas córneas de tal forma que os olhos estão perfeitamente adaptados à visão submarina, os objetos parecem ondulantes e com cores que se decompõem e recompõem revelando os fios de milhares de matizes subtis que os decoram e se dispersam sobre as ondas que vibram em uníssono semelhantes a uma harpa feita de múltiplas cordas de água no berço gigante que marca as horas do mar, e talvez uma mão deixe a sua marca sobre uma vaga onde ela já não está, onde nunca esteve, e talvez uma vaga leve para longe do corpo a imagem do corpo e ao voltar a traga ou não e o contorno dos objetos reconciliados ternos abandonar-se-á ao apaziguamento das vagas ao torpor do mar que sopra um sono que desliza devagar sobre os lábios dos recifes sobre as páginas dos sonhos o mar vai dar cabo dos que o invadiram das águas que transbordaram e das águas que afluíram e entre as ondas elevam-se muito mais gaivotas do que as que mergulharam e as novas são mais pesadas impregnadas de peso marinho e com belas cores espalhadas aqui e ali e Bruno nada…
Ela não responde. As ondas são lisas, e de segundo em segundo a água estremece com roncos de prazer. Olho para trás de mim e vejo que o pontão está quase vazio. Só lá ficou um pescador, alto e corpulento como um farol, com o cigarro a cintilar no escuro. Cuidadosamente, com timidez, escorrego pela sua face. A manhã está prestes a nascer, e temos de nos despachar para contar o fim do nosso encontro na praia de Narwia. A prenda que Bruno lá me ofereceu. O seu veredito.
Adivinho esse teu sentimento de euforia, Bruno. A dilatação do peito e o latejar das têmporas. Consigo imaginar o que sentiste quando o banco de peixes partiu para o largo e te deixou sozinho, triunfante. Um homem só na vastidão dos oceanos. Invejo-te e estou orgulhoso de ti. Pois que mais pode um fraco mortal fazer para além de decidir sobre o seu destino? (Digo estas coisas com uma tal convicção íntima que me parecem sinceras.) E uma decisão desesperada, com poucas hipóteses de êxito, mas as hipóteses de êxito, Bruno, já não te interessam; pertencem a outro campo. O campo onde se fala no plural e onde as pessoas são pesadas em pratos de balança: «O meu judeu contra o teu judeu»; «Segundo os meus cálculos matei apenas dois milhões e meio», e outras coisas no género. Mesmo a língua dual era demasiado plural para ti, pois as coisas essenciais devem ser ditas no singular. Foi assim que te tornaste salmão. Despojaste-te de tudo o que estava colado a ti, até conseguires pôr o dedo na veia ferida através da qual a tua vida se esvaía. Na tua odisseia transformaste o âmago da existência e o instinto vital escondido numa linha geométrica que pode ser seguida a olho nu e com um dedo no mapa. E também sabes o que eu sinto por ti, pois se assim não fosse, que teria eu vindo fazer a Narwia? Torturar o meu cérebro até à loucura?
E portanto, em nome de tudo o que se passou entre nós nos últimos dias, exijo que me respondas sem tardar: exijo um desmentido de algo que acabo de ouvir da boca dela . Uma frase que lhe escapou involuntariamente, como um arroto azedo saído do estômago diretamente para a caneta que escreve por ti. Escrevi as palavras e depois li-as, estupefacto: «Bruno, o inimigo mortal e pérfido da língua.» E com um riso malévolo, acrescentou, «Bruno, o niilista».
Escrevo aqui com uma caneta firme: Bruno Schulz. Arquiteto genial de uma obra linguística única, cuja magia reside na sua fertilidade, uma abundância quase em putrefacção de tantos sucos verbais. Bruno, que sabe dizer tudo de dez formas diferentes, cada uma delas tão exata como a agulha de uma bússola. Um Don Juan da linguagem, conquistando-a com uma paixão louca, quase imoral, um explorador audacioso da geografia linguística… Será possível que tu, Bruno, tenhas atingido os confins deste mundo, e desataste a correr como um louco na praia quando não conseguiste encontrar um navio verbal que te embarcasse para os horizontes nebulosos? Será possível que a última costa fosse a de Danzig, em 1942? Responde francamente. Não tolerarei subterfúgios. Será verdade que, quando te encontravas na extremidade do pontão, ofegante, a espumar da boca, te voltaste para trás para a topografia fantástica que tinhas interposto entre ti e o resto da humanidade – todas aquelas ravinas tortuosas e as lavas incandescentes extraídas com a tua caneta das paredes do simples caderno de um aluno – e te riste, triunfante e aliviado por nos teres induzido em erro, arrastando-nos ao longo de labirintos intrincados e destruindo maliciosamente a linguagem da humanidade?
Não me respondes. Ela também fica calada. Mas não é o seu silêncio habitual: é antes uma espécie de contenção.
Pouso o caderno e a caneta na areia com uma pedra por cima para que o vento não os leve, dirijo-me para a água e mergulho. Abro os olhos na água salgada para tentar ver-te de um ângulo diferente. À luz trémula. A luz da água.
E agora, diz-me: devo acusar-te de traição de um género particular? Posso escrever que da união acalorada e aromática do teu desespero e do teu talento nasceu uma das maiores fraudes culturais e literárias, que ninguém compreende?
Escrevo com o dedo na água: foi para perpetrar essa fraude que fecundaste a língua com a tua semente de modo a ela proliferar para lá de toda a proporção e ser toda ela duplos queixos e aparelhos circulatórios, que lhe deste sete corações capazes de aspirarem fluxos sanguíneos contraditórios, e duplicaste o seu sistema nervoso até a sua sensibilidade mórbida enlouquecer?
Olho para a água estupefacto: as letras traçadas nas ondas não se apagam. Continuo a escrever: e quando essa língua elefantina começou a desabar sob o seu próprio peso, será que foste mais além e que transformaste os teus dons nos germes da decomposição desse imenso cadáver? Olho para as letras na água e espero para ver se ela vai apagar estas palavras de suspeita. Não apaga. Continuo: entre nós, Bruno, será que reconheces que de pintor da língua te tornaste no seu caricaturista cruel, e teu, simultaneamente? E porquê? Porque é que nos fizeste isso?
«Que perguntas! Ele queria descobrir um mundo ainda mais rico», diz ela de repente, sobressaltando-me de novo, lendo de passagem o que está escrito na água, apagando-o, mas não completamente, envolvendo-o furtivamente em dois lenços finos de ondas transparentes e removendo-o, e retirando-se depois, não sem alguma hesitação.
«Não se pode falar contigo de Bruno», digo-lhe severamente, «recusas-te a ouvir a mínima crítica.»
«Queres dizer que sou parcial», diz ela, piscando-me o olho com uma onda que cintila ao sol. «Estou inteiramente de acordo contigo, meu querido, porque não estou disposta a renunciar ao direito de ficar cega e totalmente apaixonada, não, não», diz ela, cobrindo-se com um véu azul de ondas bordadas de fios de prata e nadando ao meu lado perto da costa, «amor absoluto, Neuman, sobre o qual deves ter aprendido alguma coisa… nos livros.»
Lança uma pequena onda salgada para dentro da minha boca.
Engoli a afronta em silêncio. Tinha outras coisas com que me preocupar, e pouco tempo para estar com ela. O presidente da Câmara de Narwia ia nessa noite a Gdansk no seu velho barco a motor e concordara em levar-me. No dia seguinte tinha de estar em Varsóvia, e depois em Paris, onde tomaria o avião para regressar a casa. Estava com muita pressa, mas não queria que ela desse por isso. Sussurrava-lhe ao ouvido observações sobre a paisagem que se via do mar, a arquitetura tão simples da igreja de Narwia, a construção interessante das casas da aldeia… ela estava agitada. Estava a tentar conter-se. Esperei pacientemente. Virei-me de costas e nadei um pouco, a assobiar uma melodia, todo ouvidos.
Foi então que a água se encheu de uns tendões gelatinosos estranhamente entrelaçados e do cuspo da vergonha e da raiva. Uma grande vaga arqueou-se debaixo de mim, rebentou para trás projetando-me bem alto nos ares, e ali estava ela ao meu lado.
«Tens razão. Tens mesmo razão. Diabos te levem, como é que consegues sempre magoar-me tanto? É verdade que ele quis assassinar a língua, fazer com que ela cheirasse mal, ah… com que se edulcorasse ao ponto de se tornar repugnante, ah…» (É claro que ela estava a tentar citá-lo, a grande besta! Eu não conhecia a citação, mas é evidente que ela não era capaz de descobrir isto sozinha. Sabe-se lá quantas centenas de citações raras, todas igualmente maravilhosas, ela não terá escondido nas suas caves?)
«Milhares», corrigiu-me ela com um sorriso malicioso, antes de prosseguir: «Aliás, quando ainda não passava de uma criança, o meu Bruno já tinha compreendido isso, e não aspirava apenas a um mundo novo, mas também a uma língua nova que lhe permitiria descrever, visto que já naquela época, muito antes de vir a mim, ele adivinhara… sabia, sim…»
«O que é que ele adivinhara? O que é que ele sabia?»
Ela vira-se de costas, cospe um jato de água para o ar e põe-se a andar à minha roda cada vez mais depressa. Olho para a água por baixo de mim, para não ter vertigens. «No gueto de Drohobycz», ela cerca-me, citando, «Bruno trabalhava para um oficial das SS chamado Landau que tinha um rival, também das SS, chamado Günther. Um dia, Günther deu um tiro em Bruno e depois foi ter com Landau e disse: “Matei o teu…”», e enrola-se à minha volta, criando um remoinho que me aspira e esvazia de pensamentos até que me afundo, desamparado, nas profundezas, e penso que a explicação deve ser que Bruno, sensível como era, adivinhara tudo anos antes que as coisas se tivessem produzido. Se calhar foi por isso que ele começou a escrever, a familiarizar-se com a nova língua e a nova gramática. Conhecia os seres humanos e sabia; ouvira as maledicências antes dos outros. Fora sempre o elo fraco. Sim. Sabia que uma linguagem que permite enunciar uma frase como «Matei o teu judeu… nesse caso, vou matar», etc., uma linguagem onde tais enunciados não se contradizem imediatamente e não se transformam em veneno ou em convulsão estrangulada na garganta de quem os pronuncia – não é a linguagem da vida, humana e moral, mas uma linguagem introduzida há muito tempo por traidores perversos, com um único fim: o assassínio.
«E não apenas a linguagem», diz-me ela de passagem, e de repente sou travado no meio da minha queda pelo rugido das vagas que me projetam para cima num jato de água fria. «Não apenas a linguagem», sussurra-me ela de novo, deixando-me a debater-me no cimo do jato antes de me pousar com uma doçura inigualável nos seus braços rechonchudos, manchado de areia e ouro. «Ele queria mudar o mundo, sim, tudo o que se baseia em normas, costumes e convenções, tudo o que pertence aos velhos sistemas empedernidos, mecânicos, de outrora… ah! O meu Bruno, o niilista…» De repente, engasga-se e afasta-se de mim com uma pressa estranha, de cabeça erguida e deixando atrás de si dois sulcos particularmente salgados.
Lancei-me atrás dela, apanhei-a pelo pescoço e murmurei entre dentes: « O Messias , O Messias , estás a ouvir? Agora mesmo, senão…» Ela olhou para mim, fez-me um sorriso amedrontado, subitamente humilde perante a minha fúria. «Bom, bom», balbuciou ela, «mas fica sabendo que não é por causa da tua estúpida comédia, faço-o apenas porque sei que tu também o amas, sim» e abriu debaixo de mim um abismo comprido e estreito, no qual me afundou durante uma eternidade e meia, até eu aterrar num depósito líquido viscoso e turvo onde, através de remoinhos de pó original, errei estonteado sobre imensas selvas submarinas, galopei sobre caminhos que bifurcam, na beira dos quais crescem densos arbustos lúgubres que dão frutos demasiado maduros de especulações vãs, e fetos gigantes de primeiros esboços que congelaram a meio caminho do seu florescimento, e vinhas em latadas de povos míticos, e abri um caminho através da folhagem translúcida, emaranhada até ao sufoco, olhei para todos os lados e gritei que aquelas não eram as coisas importantes, que aquilo ainda não era «o livro», nem uma obra autêntica redigida à dimensão real da vida, fiel à sua profundidade, precisão e complexidade, nem o fulgor inimitável da era de génio que Bruno pressentira na sua infância, num dia exuberante de primavera, muito antes que o mundo inteiro tenha começado a corromper-se e a arrefecer como um cadáver…
«Basta!!!», rugiu ela, mostrando-me os seus recifes verdes e aguçados. «Para de me torturar e de te intrometeres!» E eu berrei: «A verdade, agora! Tudo o que ele te deixou! O cheiro a chamuscado! A frase única que ele conseguiu dizer na sua língua pessoal, aquela que ninguém lhe poderá tirar, dá-me ao menos os instantes que precederam essa frase genial, que eu nunca serei capaz de compreender. Revela-me o grande segredo, desta vez não aceito nada mais!»
Ela geme e cospe, pretende expulsar-me, procura assustar-me com as sombras dos tubarões que faz surgir à minha volta nas pregas da sua pele, ou com aterradores trovões que soam como peidos grosseiros no estreito de Gibraltar, mas eu já não tenho nada a perder, bato-lhe com as mãos e os pés, «O Livro», grito através do rugido da ressaca, «a sua última conclusão, a medula da sua existência!» Ela lava-se em lágrimas, bate com a cabeça contra as rochas que se partem como cascas de ovo, arranha o corpo até ao sangue nas carcaças dos navios naufragados, enfia um dedo comprido de água no fundo da garganta e vomita para cima de mim uma catadupa de peixes mortos e de destroços de barcos meio digeridos, depois puxa para o corpo todas as suas crinolinas de água e levanta os milhares de saiotes, mostrando aos olhos espantados do sol a nudez dos seus continentes submersos, os seus desertos de lodo petrificado, e todos nós flutuamos alguns instantes no ar seco – peixes, caranguejos, veleiros e submarinos, náufragos, conchas, velhos sabres de piratas e garrafas contendo mensagens de sobreviventes há muito mortos nas suas ilhas desertas, e passados momentos as águas irrompem com um rugido aterrador, voltam a cobrir os continentes submersos, transformam em lama o pó das recordações originais, erguendo perante os meus olhos um enorme fólio verde, que flutua solitário nas profundezas turvas, iluminado por baixo por alguns raios de luz e que um milhar de pequenas bolhas de ar acumuladas nas margens tornam fosforescente, fólio sonhador, ascético, que lança o desânimo entre os peixes que recuam perante ele, mas eu estou no paraíso, ando à roda, rio e choro, decifrando penosamente as letras do título feitas de espessas algas verdes: O Messias.
… Precisamente por altura da Páscoa, fim de março ou princípio de abril, Szloma, filho de Tobiasz, deixa a prisão onde costumavam prendê-lo durante o inverno, depois dos escândalos e folias do verão e do outono. No ano em que os acontecimentos que a seguir se relatam tiveram lugar, o jovem Bruno estava a olhar pela janela da sua casa no momento em que Szloma saiu do cabeleireiro e parou no Largo da Trindade. Bruno fez sinal ao velho amigo convidando-o a ir lá a casa (« Não está ninguém em casa, Szloma! ») para ver os seus desenhos da «época de génio», essa fissura do tempo no seio do tédio e do hábito. Durante aqueles poucos dias maravilhosos, o pequeno Bruno conseguira romper com o seu pincel as pesadas cadeias de ferro que nos cercam abrindo a via a uma torrente de luz, a uma primeira floração arrebatadora…
Lavado, barbeado e perfumado, Shloma, o preso libertado, olhou para os desenhos que o jovem amigo excitado lhe mostrava.
« Pode-se dizer , disse finalmente Szloma depois de um exame aprofundado, que o mundo passou pelas tuas mãos para renascer, para mudar de pele como um lagarto maravilhoso. Pensas , continuou, que eu teria roubado e cometido mil loucuras se o mundo não tivesse caído em tal decadência? O que se pode fazer num mundo como este? Como não havemos de ter dúvidas e perder a coragem, quando está tudo fechado à chave, com muralhas à volta do sentido e nós batemos com a cabeça contra os tijolos como contra o muro de uma prisão? Ah, Bruno, devias ter nascido mais cedo .»
« A ti, Szloma , disse Bruno, quero revelar-te o segredo destas pinturas. Desde o princípio que dei comigo a ter dúvidas quanto a ter sido eu o autor. Às vezes, parecem-me ser um plágio involuntário. Algo que me teria sido sussurrado, soprado ao ouvido… Como se uma força estranha se tivesse servido da minha inspiração para fins que eu ignoro, porque tenho de te confessar… acrescentou Bruno em voz baixa, olhando Szloma nos olhos, que encontrei o “ Autêntico ”…»
Foi nestes termos que Bruno me falou da sua novela «A Era do Génio», no livro Sanatório do Gato-Pingado 17 . Mas o que era o «Autêntico» nunca cheguei a saber, porque Szloma, filho de Tobiasz, um escravo das suas paixões, e além do mais, cobarde e traidor, quando se viu a sós com o pequeno Bruno, aproveitou a ocasião para roubar o colar de coral da criada Adela, bem como o vestido e os sapatos, aqueles sapatos de verniz que tanto o fascinavam. (« Compreendes o cinismo monstruoso desse símbolo no pé da mulher, a provocação com que se pavoneia nos saltos altos? Poderia eu deixar-te preso ao fascínio de um tal símbolo? Deus me livre. »)
E todos perdemos o momento.
Eu fui Szloma, filho de Tobiasz.
Novamente.
Por momentos, fui libertado da prisão. E parei « lavado, barbeado e perfumado, na Praça da Trindade em Drohobycz, completamente só na beira da grande concha vazia da praça, banhada pelo azul do céu sem sol. A grande praça limpa espraiava-se nessa tarde como um aquário de vidro, como um ano novo ainda não começado. Parei no limiar cinzento e apagado, sem ousar romper com uma decisão a bola perfeita do dia ainda não encetado ».
Numa das janelas reparei num rapazinho frágil, com uma cabeça triangular, uma testa alta e larga e queixo pontiagudo. Ao princípio, pensei que era eu refletido num dos vidros, mas depois reconheci Bruno, o maravilhoso miúdo sempre atormentado por ideias demasiado avançadas para a sua idade.
Chamou-me e disse: « Estamos sós na praça, tu e eu» , fez um sorriso melancólico e acrescentou: « Que vazio está o mundo. Podíamos dividi-lo e nomeá-lo de novo… vem, sobe um instante, vou mostrar-te os meus desenhos. Não está ninguém em casa , Momik!»
17 Cf. Aníbal Fernandes, introd. a Bruno Schulz, Tratado dos Manequins ou o Segundo Génesis , Lisboa, & etc., 1983. ( N. da T. )