D
«No mês de abril do ano de 1943, um homem velho estava à entrada da mina de lepek na floresta de Borislav e, com uma determinação feroz, traçava com a ponta do sapato uma linha na poeira do chão. Esse gesto estranho era a forma como o velho desafiava a vida a ousar atravessar aquela linha e a revelar-se-lhe finalmente. Sabendo que não havia nenhuma ordem que proibisse os judeus de traçar linhas na poeira do chão, o doutor Albert Fried, que era judeu, fazia isso todas as manhãs desde há três anos, com a mesma determinação feroz.»
É o que Wasserman lê a Neigel, mas eu, que estou a espiá-lo por trás, vejo que, no caderno onde ele finge estar a ler, está escrita uma única palavra, uma palavra que eu não consigo ler. Agora pousa o caderno e espera. Está à espera de mim. Conta com a minha ajuda para fazer o retrato do doutor. Eu ainda me lembro das ilustrações de Sara, das últimas edições, mostrando um rapaz alto, de ombros ligeiramente curvados, com um rosto sério e sensível; mas agora tenho de esquecer como era para o ver tal como é hoje, com a cara marcada por uma «determinação feroz», a fazer e a refazer o movimento com o pé. Parece-me que os ombros deviam estar um pouco mais elevados, numa posição ameaçadora indicativa de que está na defensiva, as sobrancelhas deviam ser mais espessas e ferozes, e unidas por cima da aresta do nariz… um cachimbo? Não. Fried não. Mas uma bengala – sem dúvida alguma. Uma que ele apenas aceitou quando se lhe tornou quase impossível andar sem ela, e que usa a contragosto, como um castigo. Agora tenho de pensar o que é isso a que o nosso Fried chama «a vida»?
A resposta é simples: quase todos os acontecimentos que ocorreram na sua vida, a maioria das pessoas que encontrou desde a infância, os laços e as relações que se estabeleceram entre eles. Em resumo – todas as coisas que foram sempre difíceis de suportar e se tornaram insuportáveis desde que a guerra rebentou, e que lhe pareciam ser o prelúdio de uma fase que deveria começar em breve, mas que nunca começava. O velho doutor não era capaz de aceitar a ideia de que um homem podia viver toda a sua vida sem nunca se aperceber do sabor da existência, porque tinha um grande respeito pela vida e se recusava a aceitar os esboços que a sua própria vida estava constantemente a tentar impor-lhe.
«Bem dito», diz-me Wasserman, com o rosto a brilhar de alegria. Agora escuta: o taciturno doutor só uma única vez revelou os seus pensamentos quando trocava confidências com Otto. Levantando com espanto as mãos enormes – verdadeiras patas de urso –, declarou que a vida que levava era uma camuflagem . Ao dizer isto, pareceu-lhe ter revelado tudo, tudo o que suportara até que após vários meses de sofrimento começara a acreditar no maravilhoso e desesperado ato de ilusão executado pela sua bem-amada Paula.
«Que ato desesperado?», pergunta Neigel com desconfiança. «Explica lá isso.» «Depois, depois, por favor», repreende-o Wasserman. «Em breve saberá e compreenderá tudo, mas antes escute, tenha um pouco de paciência. Onde íamos? Ah, sim… Nu, há já três anos, desde o dia em que Paula o deixou para ir para a sua sepultura, o doutor traça com a ponta do sapato uma linha na terra. Otto Brieg, que sabe ler nos corações, é o único que conhece todos os segredos de Fried e as origens obscuras daquele gesto estranho. Mas a vida, Herr Neigel, a vida real, simples e boa, não ouviu o seu apelo, e o doutor começou a pensar que o silêncio do seu adversário não era tão simples como parecia, ou que talvez fosse uma condenação…»
Wasserman continua a «ler», mas começa a sentir que o silêncio de Neigel também não parece tão simples. Levanta a cabeça e afronta o olhar desdenhoso do alemão: «O que é que estás praí a dizer, Scheissmeister ? Onde é que foste copiar essa filosofia toda?» (Wasserman: «Ai, se pudesse dava cabo dele! Mas dominei a raiva e esperei que a minha maçã de Adão parasse de tremer para lhe dizer, aparentemente calmo:») «Não copiei, Herr Neigel. Escrevi-a com o sangue do meu coração. O nosso Fried está prestes a tornar-se a pedra angular da nossa nova história, está a ver.» E Neigel diz: «Realmente! Não é assim que me apanhas! Dantes, escrevias de maneira tão diferente!» «É verdade.» «Esse novo estilo não me agrada nada.» «Ai, se me fizesse o favor de ter um pouco de paciência, meu comandante.» E Neigel, num tom queixoso, quase infantil: «Eu gosto de histórias simples!» Ao que o escritor responde, com uma ponta de crueldade: «Já não existem histórias simples. E agora escute, e não esteja sempre a interromper-me.»
«Uma manhã, apareceu uma espécie de eczema esverdeado à volta do umbigo do doutor, e quando ele consultou o seu diário, onde anotava todas os sintomas e doenças, não porque fosse, Deus nos livre, hipocondríaco, mas por curiosidade, a fim de conhecer os indícios da sua morte, reparou que, no ano anterior, e no que o precedera, a mesma estranha vegetação surgira, no mesmo sítio, no dia do aniversário da morte de Paula. Descrevera-a então como uma “ligeira irritação cutânea”, no ano anterior como uma “micose esverdeada”, e este ano como “acne parecida com líquen”. Ao princípio procurou tratar-se com uma solução de borato de sódio, depois com álcool e, por fim, tentou arrancá-la com os dedos, mas gritou de dor como se lhe estivessem a arrancar os cabelos. Então, teve a ideia, pouco característica nele, de que talvez a coisa não fosse tão simples como parecia. Ao mesmo tempo, sentiu uma alegria inesperada, próxima da vertigem ou do desespero, e tomou a decisão de não tratar o eczema até à noite. Entretanto, ia tocando discretamente nele por baixo da camisola interior, com um prazer íntimo, como se fosse um postal perfumado que a sua amada lhe tivesse enviado para a prisão.»
Wasserman respira fundo e cala-se, à espera de alguma coisa. (« Nu , que dizes a isto, Shloïmele, o velho alfaiate ainda sabe coser, não é?») Mas Neigel não liga às subtilezas estilísticas de Wasserman e interessa-se por uma coisa completamente diferente: «Fried e Paula eram casados?», pergunta ele com o dedo severamente levantado. Wasserman atrapalha-se e murmura: «Casados? Quer dizer… não. Parece-me que não eram casados. Mas viviam juntos como se fossem marido e mulher. De facto. Agora me lembro.» «Em 43? Não esqueças que ela era polaca, e ele um dos vossos! Foste tu que disseste há bem pouco que os pormenores de uma história deviam ser convincentes. Rigor, foi o que disseste, lembras-te?» Wasserman grita: «Lembro-me, sim. Mas posso também lembrar-lhe que tenha paciência?» («Mas os lóbulos das minhas orelhas ardiam de vergonha, Shloïmele, e apoderou-se novamente de mim o velho medo de que a minha distração me perdesse. Porque me acontecia cometer erros desse género quando escrevia Os Meninos de Coração de Oiro , e se Zalmanson não verificasse os pormenores, podiam ter acontecido, Deus nos livre, verdadeiras catástrofes nas minhas histórias, e vou confiar-te mais um segredo, Shloïmele, as origens de Harutian baseiam-se num erro desse género. Mas basta! Voltemos à nossa história.»)
«… Otto e Fried estão sentados fora da Sala da Amizade, a jogar xadrez à luz de uma lamparina.» «Como outrora, não é?», pergunta Neigel, e o seu olhar torna-se mais brando. «De facto, Herr Neigel. E é Fried quem está a ganhar, como sempre. Como dantes.» Wasserman conta-lhe que o doutor, Fried, acrescenta um novo V na comprida coluna debaixo do seu nome, no papel gorduroso. A coluna de Otto estava vazia. Mas era precisamente Otto quem insistia para que guardassem os resultados de cada jogo, e o doutor, que adivinhava a razão, fazia de conta que aquelas vitórias fáceis lhe davam prazer. Nenhum deles mencionava o dia do aniversário de Paula, mas ambos pensavam constantemente nele. Mas, ao fim de algum tempo, aquele silêncio tornou-se insuportável mesmo para aqueles dois homens taciturnos, e Otto tossiu e disse baixo que Fried se estava a torturar, que Paula o amara tal como era, que não devia lamentar nada, que tinham partilhado belos momentos de amizade, e talvez mesmo de amor… «Fried não disse ai nem ui. O seu rosto manteve-se impenetrável, como se não tivesse ouvido nada, e limitou-se a deslocar distraidamente o rei negro em direção à rainha branca, deixando-o ali ficar, diante dela, enquanto um pequeno músculo lhe contraía a face.
Depois Otto ergueu os seus olhos azuis para Fried. Esse simples movimento costumava ter um efeito maravilhoso sobre o doutor, porque Otto e Paula eram irmãos, e os olhos de Otto eram de um azul límpido como os de Paula e, de vez em quando, quando se sentia acabrunhado pelo desgosto e prestes a sucumbir, Fried pousava a mão no ombro do intrépido Otto, para olhar para os olhos dele. Nesse momento aconteceu um pequeno ato de graça: Otto retirou-se dos olhos e afastou-se nobremente para deixar Fried comunicar com a sua Paula.
«É possível… quero dizer – isso pode acontecer, sabes», diz Neigel. «O meu filho mais novo, Karl, tem uns olhos iguaizinhos aos meus. Tal e qual. E a minha mulher, quando está… quando tem saudades de mim, pega-lhe ao colo e olha para ele à luz…» Só então Neigel se lembra subitamente do seu estatuto, e do do homem com quem está a falar, e ri, atrapalhado, assoa-se e depois, com uma irritação injustificada, insiste com Wasserman para que prossiga com a história.
«… Ao mergulhar nos olhos de Otto, o doutor sentiu a tristeza e a amargura dissolverem-se, e os anos maus desaparecerem por momentos. Começou, naturalmente, a recear o momento em que teria de deixar o pântano encantado.» Wasserman suspira profundamente, e o seu olhar perde-se no vazio: « Oi , Herr Neigel, poderíamos dizer que a nossa história, como qualquer outra semelhante, tem a sua origem nos olhos azuis de Otto…»
Fried falava sozinho. Eu conseguia ouvi-lo. A sua voz, como a de Wasserman, tinha a tonalidade cinzenta da palavra escrita. Dizia: «Lembro-me dela quando esfrego os cotovelos com limão, para não serem tão ásperos como a casca das árvores, como ela me explicava; penso nela quando escovo os dentes ao som da melodia que ela me ensinou, e quando ponho uma rosa num copo de água com açúcar para se manter fresca. Podia olhar para uma flor durante uma hora inteira. Antes de ter vivido com ela nunca tinha posto uma flor na água, e não sabia que os meus cotovelos podiam ser ásperos. Lembro-me dela quando cuspo três vezes ao ver uma aranha – mal não pode fazer, dizia ela – e quando tiro as meias e as cheiro, porque Paula costumava cheirar as meias e a roupa interior. Penso nela quando deixo propositadamente as torneiras abertas e a luz acesa nas salas de onde saio, para lhe mostrar, onde quer que esteja agora, que eu também sou descuidado e distraído, e que lamento ter-me zangado por tais ninharias – quantas zangas inúteis tivemos por causa dessas histórias ridículas – e também me lembro dela…» Fried cala-se, embaraçado. Wasserman inclina-se, como se fosse segredar-lhe alguma coisa, algum encorajamento: « Nu , Fried, não vale a pena ter vergonha, conhecemo-nos todos de ginjeira aqui.» Mas Fried engasga-se, tosse demoradamente e cora (O que esconderá ele? Que segredo obscuro terá o doutor escondido durante toda a vida?), até que o pequeno Aharon Markus, elegante mesmo na sua farda de mineiro, vem em sua ajuda: «Nunca se deve ter vergonha, caro Fried, nem mesmo de um traque…»
Silêncio. Aproveito o intervalo para reler algumas linhas que escrevi à pressa. Corrijo uma palavra aqui ou ali, acrescento uma frase explicativa. (Este ritmo dos acontecimentos!) E agradeço a Deus quando Neigel, agora calmo e seguro de si, me salva do meu horrível embaraço e, com um olhar divertido, ralha com o terrível velhinho («Pensava que eras um homem bem-educado, Wasserman»). Mas Wasserman não reage. Continua a ler, e eu fico à espera das próximas tolices dele.
«“Mesmo quando você dá um traque, Pan Doktor”, diz o senhor Markus, e, de facto, Herr Neigel, meu comandante, quando Paula ainda era viva, Fried descobrira uma lei infalível: sempre que estava só e se peidava discretamente com uns trinados das partes baixas, por assim dizer, Paula aparecia de lado nenhum, e Fried desejava apenas desaparecer debaixo da terra, mas Paula limitava-se a sorrir discretamente, e essa cena íntima repetia-se várias vezes ao dia, segundo as regras definidas pelo céu, de tal forma que, mesmo agora, três anos depois da morte de Paula, o nosso caro doutor peida-se e fecha os olhos, à espera de ouvir, como uma criança inocente, o ruído dos passos dela, ai, e nos dias em que o desgosto e o cansaço o invadem, Fried deixa a mina, percorre sozinho a floresta, a vociferar e a bufar, e os peidos rolam pelos túneis como o grito amargo dos gansos selvagens…»
Neigel não consegue conter-se mais e desata a rir. Quem poderia imaginar que aquele homem fechado e desconfiado pudesse conter em si um riso tão alegre? «Nada mal, Wasserman, nada mal», diz ele, «isto é que é divertir-se. Não é nada como imaginava quando te pedi que me contasses uma história, mas começa a ser interessante. Embora», reconhece ele, limpando os olhos e as faces, «tenha alguma dificuldade em imaginar os heróis da minha infância como um conjunto de velhos peidosos…» «Espero que se habitue», diz Wasserman secamente, com uma expressão dececionada e de profunda humilhação. («Então? Viste este eke , filho de yeke ? Nada o comove, só é sensível às aparências! Bah! A maneira como abriu a boca, e mostrou os dentes de vitelo quando mugiu! E aqui estou eu a contar-lhe uma história de amor verdadeiro entre um homem e uma mulher. Um amor capaz de abolir as fronteiras do tempo! Uma história que fala do desejo angustiado de pronunciar palavras de amor, quando não há ninguém a quem as dirigir e que faltam as palavras… e ele – ai… um boi, estou a dizer-te, um boi, e mesmo que o mandes para Yeshupetz, continua boi.») E Neigel acrescenta: «Espero, Scheherazade, que em breve teremos um enredo mais sério do que um peido, se me perdoas a expressão!» («Oh! A única coisa que sou capaz de fazer é dar pérolas a porcos!») E responde Wasserman em voz alta: «Mas é claro, Vossa Excelência! Extremamente sério! Sim, claro, «ação», como diz!» («Só Deus sabe onde fui buscar o atrevimento para mentir daquela maneira. Porque naquele momento, Shloïmele, não tinha nada daquilo em mente. Não fazia a menor ideia da razão pela qual os meninos de coração de oiro se tinham voltado a reunir, nem contra quem iriam combater desta vez, nem como iria infetar Neigel com a doença de Chelm, como lhe chamo… mas pela primeira vez na minha vida sabia que tinha a possibilidade de vir a ser um verdadeiro escritor… Esperava apenas ter a força de vencer o desconhecido, de superar o esquecimento e de contar a história como deve ser, do nascimento à morte, e nos meus velhos ossos ardia agora uma chama nova que me enchia de calor e prazer, a ponto de quase não conseguir conter-me. Era como se, do outro lado da página, uma presença invisível guiasse a minha pena e o meu coração.»)
Agora Neigel disfarça um bocejo. Anuncia que, se Wasserman acabou, pode ir dormir, porque ele ainda tem muito trabalho pela frente, acrescentando generosamente que «para um princípio não foi nada mal hoje». Wasserman olha fixamente para o caderno vazio. Lê e relê a única palavra que lá está escrita e responde que, se Herr Neigel o deseja, podem ficar por ali. Por ele, podia continuar a ler até ao nascer do dia.
Estão prestes a separar-se. Algo de estranho está a acontecer ali. Não entendo aonde Anshel Wasserman quer chegar com aquela história grotesca e vulgar. As suas novas liberdades desenfreadas embaraçam-me e irritam-me. Está a introduzir uma dimensão reles numa narrativa que, a meu ver, é demasiado importante para ser transformada numa comédia barata. Para atingir os seus fins está disposto a servir-se de todos os meios ao seu alcance. As coisas nem sempre são fáceis com ele.
E do outro lado, Neigel: também o acho estranho. Não é nada de espantar, somos tão diferentes. E todavia, há a minha responsabilidade como escritor e a curiosidade: até onde irá Neigel? Será possível lançar uma ponte sobre o que nos separa a fim de criar uma obra de arte? Espero pacientemente. «Boa noite», diz Neigel, a personagem que ainda não conheço. «Por favor», diz Wasserman. «Posso recordar ao senhor comandante que me deve uma coisa?» E quando Neigel levanta o sobrolho, surpreendido («Eu? A ti?»), o velho diz calmamente: «O nosso contrato, Vossa Excelência.»
Não o entendo. Porque é que ele ainda quer… Neigel também fica surpreendido. Alarmado mesmo. Leva a mão ao revólver, no cinto, depois recua, como se se tivesse queimado. («Então, então, esquece lá isso, Wasserman. Hoje vamos comportar-nos de maneira diferente, não é?») Mas, quando Wasserman recusa terminantemente ouvir o seu pedido («O meu comandante prometeu-me!»), Neigel saca do revólver.
É uma arma de dimensão média, de um tipo que não conheço (talvez uma Steyr austríaca?), cuidadosamente oleada. (Deve ser uma Steyr. Ou talvez… Claro! Uma Parabellum. Como é que pude enganar-me! É uma Lüger Parabellum, claro, com um carregador de oito balas, de calibre – deixa-me ver se ainda me lembro das adivinhas com que nos divertíamos na tropa – 9 mm.) Neigel muda e volta a mudar de posição. Procura colocar a mão esquerda sobre o punho da direita, que segura a arma. (Uma 9 mm, sem dúvida. Como a Mauser alemã, com a diferença de que a Mauser tem um carregador de dez balas.) Desenha com o cano da arma uns quantos círculos hesitantes em volta da testa de Wasserman, coberta de gotas de suor. («Através da janela vi a centelha avermelhada, a chama eterna, no cimo da chaminé mais alta, bem como os clarões azuis das lanternas dos guardas que inspecionam os muros. A mão de Neigel está firme mas tensa.») (E óbvio que estou a referir-me à Mauser semiautomática, e não à automática, com o carregador de 25 (!) balas, com a qual, segundo dizem, se sentem as balas dispararem a uma velocidade louca.) Neigel tenta mais uma vez acabar com aquilo («Escuta, Wasserman, é completamente idiota, agora que já estamos… bem…»), o que provoca uma explosão teatral de cólera em Wasserman (« In dreierd , que se lixe, Neigel! Deu-me a sua palavra, a palavra dum oficial alemão!»), e Neigel, furioso: «Mas isso foi antes, antes de começarmos a contar a hist…» Mas Wasserman, impiedoso: «Você mata aqui milhares todos os dias, judeus do mundo inteiro desfilam diante de si como carneiros para o matadouro, e já o vi abater muitos com as próprias mãos, sem a menor hesitação, Deus nos livre! O que lhe estou a pedir não é nada em comparação, uma ninharia! Fazer o que sempre fez, mas desta vez, de livre vontade, por escolha. Ou não será capaz, Herr Neigel? Dê-me um tiro, deixe-o partir. Então! Uma bala! O que é isso para si? Um grão de areia! Fogo, Herr Neigel, fogo!»
Neigel fecha os olhos e dispara, ao mesmo tempo que emite um som estranho, uma espécie de suspiro ou de gemido de medo. Wasserman continua de pé, vivo e inteiro, com uma expressão peculiar no rosto, como se escutasse alguma coisa («Em mim, entre as orelhas, havia o zumbido familiar.»). O vidro de uma das janelas atrás de Wasserman despedaçou-se. Neigel olha para ele, perplexo, com as mãos a tremer. Não procura minimamente esconder o tremor. O rosto contorce-se, como se alguém lá dentro o estivesse a esmagar. (Wasserman: «Sabes, Shloïmele, quando a bala partiu, gravou-se-me no coração uma mensagem excecional: devia nascer uma criança na minha história.»)
Às vezes fala-me um pouco da mulher, esboçando assim um retrato claro, embora incompleto. Sara Erlich entrou na vida dele quando ele já tinha quarenta anos, e pensava acabar a vida como celibatário. Era filha de Moisés-Moritz Erlich, dono de um pequeno café, em Praga, e a mãe morrera quando ela tinha apenas três anos. A jovem trabalhava na loja de perucas Schillinger. Wasserman contou-me que uma vez, em véspera de festa, passara em frente da loja vazia e vira, através da montra suja, uma «rapariga magra e apagada» a tocar flauta para as outras duas empregadas. Lembrava-se da entrega total que suavizava os traços do rosto um pouco duros, bem como dos sorrisos irónicos e dissimulados das outras duas raparigas, e ainda do movimento dos seus cabelos negros caindo sobre a face. Perguntava a si próprio como podia ter-se sentido tão longe daquela mulher que, mais tarde, dera ao mundo a sua filha. Aquilo parecia desapontá-lo. Apesar da sua aparência modesta e seca, o meu avô Anshel Wasserman era no fundo um romântico. Perguntei-lhe se, depois do casamento, voltara a sentir-se estranho, mas ele não respondeu. Disse-lhe que achava que, no casamento, se podia experimentar toda a gama de sentimentos suscetíveis de nascer entre dois seres, sejam eles quais forem. Olhou para mim, surpreendido. Imagino que não esperava uma observação destas da minha parte.
O melhor momento para o ouvir falar da sua vida anterior é à chegada dos comboios. Wasserman ouve-os quando ainda estão longe. Então, começa a cavar no jardim com uma energia renovada. Aplica todas as suas forças nessa tarefa. Alguns minutos mais tarde, ouve-se ao longe um apito comprido, seguido de outros dois mais curtos. É o sinal para os guardas ucranianos virem de todos os pontos do campo para os seus lugares nos telhados e nos miradouros dos dois lados do Caminho do Céu. A locomotiva cala-se e o comboio entra na estação sem barulho, deslizando sobre os carris com um estranho silêncio. Então ouve-se o violento rangido dos travões, e saltam faíscas. Veem-se olhos a espreitarem pelas frinchas das pranchas de madeira pregadas às janelas. Dali, veem os terrenos bem arranjados do campo, a bela avenida principal com bancos e alguns canteiros de flores ao longo dela. Veem pequenos letreiros que indicam a direção da estação, ou do gueto, em forma de seta, com a imagem de um judeu curvado e de óculos, e uma pequena mala na mão. («Zalmanson, que Deus tenha a sua alma em paz, dizia que aquele judeu era igualzinho a mim.») Agora, começam a descer do comboio, são centenas em cada carruagem, e os ucranianos incitam-nos a andar depressa com gritos e pancadas. Os recém-chegados ainda estão desorientados, paralisados pela imobilidade da longa viagem. Ainda estão vestidos, mas aos olhos de Wasserman já estão nus. Ainda estão vivos, mas ele já os vê empilhados uns sobre os outros. Geme para a terra. Já não consegue chorar.
Está a falar. Nesses momentos, parece desejoso de falar abertamente e sem inibições. Fala depressa, tentando freneticamente abafar os outros ruídos. Sara tinha vinte e três anos quando eles se encontraram. (Wasserman: «E então, o que podíamos fazer? Casámo-nos quatro semanas depois, e Zalmanson foi a minha testemunha.») A cerimónia realizou-se na casa de Zalmanson e da mulher Tsila que, como era costume fazer, convidou muitos amigos («Podes crer, Shloïmele, não conhecia quase nenhum dos convidados. Nu, mal conhecia a própria noiva…»). Mas, segundo parece, o casamento correu bem. Os quarenta anos de celibato obstinado, pretensamente deliberado, desvaneceram-se de um momento para o outro, quando compreendeu que precisava de outra pessoa. Para a família, Sara já era uma solteirona, e o pai não acreditava que ela alguma vez viesse a casar-se. O outro defeito que via nela era a inteligência e erudição. «Quem há de querer casar com uma estudante de yeshiva 21 !», gritava-lhe o pai quando a via dar cabo da vista com os livros. Era um homem cheio de energia, rude e sociável, que amava a filha e tinha pena dela. Foi provavelmente por considerar que ela era um mau partido, que consentiu em casá-la com o Wasserman da corcunda, que, além disso – que vergonha! –, tinha quase a mesma idade que ele! Wasserman diz-me laconicamente que passaram a lua de mel em Paris, que é obviamente o lugar no mundo que menos lhes convinha. Foi o pai da noiva que escolheu o sítio e ofereceu a viagem de núpcias (ao que parece) na esperança de que a Cidade-Luz iluminasse um pouco este casal de tímidos, sempre tão sérios. Wasserman recusa terminantemente falar dessa semana passada em Paris. Imagino a que ponto se devem ter sentido perdidos e desamparados quando passeavam abraçados pelos animados boulevards . Estava furioso consigo próprio por se armar em palhaço, por trair a sua solidão e o silêncio de entendimento entre ele e a sua vida.
Agora as famílias reúnem-se, os pais chamam os filhos para a sua beira. Arranjam a gola amachucada do filho, molham o dedo com cuspo para alisar um caracol despenteado da filha. Dão importância a pequenos nadas. Wasserman quer enfiar a cabeça na terra revolvida. Os recém-chegados são acolhidos por judeus, prisioneiros do campo do grupo dos «azuis». Estes sossegam-nos e sorriem-lhes. Também eles têm as suas razões para desejarem que o processo se desenrole com calma e rapidez. É por isso que contribuem para o prolongamento da fraude. Os viajantes começam a acalmar-se. A falsa estação engana-os. Tem tudo: uma bilheteira, um guiché de informações, painéis que indicam a direção do telégrafo, dos WC, do comboio para bialystok e para volkovysk, dos horários das partidas, um restaurante e um grande relógio de estação, pontual.
Wasserman puxa-me pela manga. Quer que eu o ouça. Tem coisas para me dizer. Agora, já.
Depois de voltarem de Paris para Varsóvia, as coisas começaram a melhorar. Sara era uma mulher inteligente e aprendeu rapidamente a conhecê-lo. Não introduziu nenhuma alteração no seu modo de vida. Não lhe impôs a sua presença. Tendo-se apercebido dos fios invisíveis que regiam a sua rotina, esforçou-se por não os romper. No verão, servia o jantar na mesa da varanda; às vezes tocava na flauta melodias de que ele gostava. A conselho dele, lia os livros que ele achava importantes ( Pecados de Juventude de Lilienblum; Flügelmann , de Nomberg; as novelas de Scholem Aleichem, Gordine, Asch e, naturalmente, Tolstoi, Gorki e muitos outros escritores nossos – Peretz e Mendele Mocher Sefarim, de que gostava particularmente). Os seus desenhos pequenos, alegres, executados com um traço muito fino, começaram gradualmente a rodeá-lo. Ela acompanhava-o na visita a casa dos pais, em Bolichov, e regozijava-se com as recordações que brotavam dele como duma fonte. Aprendeu com a mãe dele a fazer roguelech e strudel e biscoitos cujo sabor era tal e qual os dela, o que o levou a sentir uma irritação vaga e irracional por ela cozinhar tão bem como a mãe.
Em momentos como este, esforço-me por obter o máximo de informações possíveis. Sugiro-lhe uma frase e espero a reação dele. Já tenho uma ideia do que foi a vida deles em comum, mas às vezes cometo erros grosseiros, como quando lhe disse, quase espontaneamente: «Mas nunca fui um bom marido para ela, ai não, não fui, Shloïmele.» Ficou completamente furioso comigo, e só me corrigiu quando o acalmei: «Fui um bom marido. Fiz tudo o que ela queria e satisfiz-lhe as vontades todas. Só às vezes fui um pouco sovina. Em amor, quero dizer…» Um momento depois, acrescentou, para si próprio: «Sim, sim. Mas quem poderia prever que íamos viver tão pouco tempo juntos?»
Outra vez, disse um pouco mais: «Sim, fui um sovina, um forreta em amor. Podia ter sido mais indulgente e feliz do que fui, feliz com ela, quero dizer. Mas eu, que daria a vida por ela, era incapaz, mesmo quando queria, o que era raro, de lhe mostrar os meus sentimentos, sim, tinha uma coisa atravessada na garganta, como um papo de peru recheado, que me obrigava a calar-me e a desviar dela o meu rosto amante. E porquê? Não sei. Talvez tivesse medo de lhe mostrar o quanto precisava dela. Às vezes tinha a impressão de que podia explodir em mil pedaços se deixasse o meu amor por ela mostrar a ponta do nariz.»
Ajudo-o de todo o coração. «Talvez fosse uma espécie de raiva infantil, causada pela humilhação. A humilhação imaginária e estúpida de se encontrar, após quarenta anos de celibato, dependente dela, do timbre da sua voz, do seu cheiro depois do banho, do gesto da mão a afastar uma mecha de cabelos dos olhos.» E Anshel Wasserman, ligeiramente comovido, dá-me uma indicação que só eu, que o conheço tão bem, posso apreciar devidamente: «E a carne, perdoa-me, como dizê-lo, Shloïmele… o corpo, quero dizer…» E eu acudo logo: «E o corpo também tem tanta falta dela. Da sua agilidade juvenil, da pele esticada sobre a carne com a força selvagem da vida e do desejo. A desorientação originada pela nova geografia, não totalmente definida e completamente imaginária dos seus jovens seios, das ancas, do ventre e das coxas, e dos lábios, pois por vezes, avô, depois de todas as palavras de sabedoria, é grande a consolação que dois seres podem dar um ao outro através dos corpos…» E ele: «E mesmo no caminho para cá, que a maldição caia sobre a minha cabeça, Shloïmele, nu , então, não é fácil para mim falar dessas coisas…» Forneço-lhe as palavras: «Ficámos toda a noite abraçados no comboio, ela aninhada contra mim como um passarinho, e eu nem sequer pude aproveitar aqueles últimos momentos, porque estava sempre a olhar para os lados, inquieto, a ver se a nossa filha estava bem, se estava a dormir, e se alguém deitava olhadelas indiscretas aos nossos abraços desesperados e puros…»
Outra vez, disse-me Wasserman: «Hoje sei que há indivíduos para quem o trabalho é o sal da vida, e outros para quem a arte ou o amor são a fonte da felicidade e o único sentido da existência. Eu devo pertencer à categoria dos shlimazel , porque Sara era o sal e o sentido da minha vida. Mas só o descobri aqui. Ai, estou convencido de que a maioria das criaturas sabe preservar a sua alma de tal erro. Espero que também saibas fazer o mesmo. Porque quem ama o amor encontrará sempre alguém a quem amar. Eu dediquei-me de corpo e alma a uma única mulher e, quando ela desapareceu, a minha vida apagou-se, embora não tenha sabido amá-la como merecia.»
Agora o bufete. Os que chegaram reparam no bufete da falsa estação. Há lá de tudo: pãezinhos, cigarros, biscoitos, chocolates embrulhados em papel de prata vermelho. As crianças são as primeiras a descobri-lo, e pedem aos pais que lhes comprem alguma coisa. Wasserman continua: «Até nós, os adultos, mordíamos o isco das bebidas. Por momentos, voltávamos a ser todos crianças. Até os mais desconfiados sucumbiam à tentação. Ai, Shloïmele, lembras-te daquele jovem génio, o oficial Hopfler que me levou a Neigel? É ele o encarregado do bufete. Não vende nada, obviamente. É um oficial respeitável, e não um comerciante. Mas limpa diariamente a cinza das locomotivas e dos fornos crematórios, lava a montra de vidro, substitui os pães secos por outros mais frescos, e mete papel de cor nas fendas previstas para o efeito. Observo-o e interrogo-me: tão jovem e tão cheio de iniciativa! Com que cuidado constrói as lindas pirâmides de bolos, a fim de os tornar mais atraentes! É um prazer vê-lo trabalhar! Recua um pouco, avalia e aprova, como um pintor a observar a sua tela. Quando for adulto, será certamente arquiteto ou pasteleiro. Este jovem é um artista. Um artista verdadeiro e modesto. Lá está ele agora, agarrou um pano húmido, não, não, o que serviu para limpar o vidro não, Deus nos livre, e limpa o papel de prata vermelho dos chocolates, a garrafa de água de Selz sempre meio cheia.»
Wasserman cava buracos no solo e conta pelos dedos pretos. Viveram juntos vinte anos. Cerca de sete mil dias. Wasserman: «São mil quintas-feiras… Ai… Que pena!… Tantos dias estragados por pequenas discussões e pelo meu temperamento!… Não sabia, não era capaz de suportar a felicidade simples e cândida que ela me queria dar. Desprezava os sacrifícios que fazia por mim. O sacrifício da sua juventude e da sua capacidade de amar… Tinha enfiado na cabeça a ideia de que Sara casara comigo por causa de um ideal errado, o do escritor de talento, inspirado por nobres sentimentos, pela luta entre o bem e o mal, sim, ela também tinha devorado todas as minhas histórias na infância, elas é que a tinham atirado para os meus braços… Por isso é que eu estava sempre a tentar demonstrar-lhe que estava enganada a meu respeito, que o Wasserman com quem ela casara não passava de uma criatura fraca cobarde. Bah! Tinha de a pôr à prova, estás a compreender, tinha de saber até onde ia o seu amor, quando se fartaria de mim, e me rejeitaria para minha vergonha, a vergonha de a ter desiludido…»
E no entanto: «Eu só a tinha a ela, e ela, ao que parece, também me amava, gostávamos imenso de estar juntos e de conversar… que inteligente era a minha Sara, muito mais inteligente do que eu… E também gostávamos de fazer juntos a lida da casa, sim, não me envergonho de dizer… Às vezes, num momento de ternura, quando preparávamos juntos um bolo, ou quando tirávamos para fora as roupas de inverno e guardávamos as de verão no armário, ou quando varríamos o chão e os nossos olhares se cruzavam de repente, nu , compreendes… O ar, digo-te, o ar ficava carregado e corria entre nós como mel… Então olhávamo-nos nos olhos e, assim que o fazíamos, éramos obrigados, nu … quer dizer – a abraçar-nos, com o teu perdão. Ai, os nossos beijos eram, nessas alturas, como descargas elétricas…»
Wasserman nunca fala da filha. Chamava-se Tirza, e nascera nove anos depois do casamento. O pouco que sei dela foi através do que me contou a avó Henny quando eu tinha cinco ou seis anos, e de recordações confusas da minha mãe. É tudo.
«Vou revelar-te mais um segredo, Shloïmele», diz Wasserman, e a expressão adoça-se-lhe um pouco. «Ao princípio costumávamos ficar os dois calados, a minha Sara e eu. Ela era tímida e eu, nu , aquilo dava-me jeito, porque não achava nada na minha vida que valesse a pena contar-lhe à noite. Estava convencido de que era uma vida muito aborrecida, que não merecia que a embelezassem com belas palavras. Mas depois apareceu o meu cordeiro, a minha Sara, que me ensinou os segredos da vida conjugal e me mostrou, à sua maneira modesta, que cada momento tem os seus encantos, que não há ninguém que não tenha a sua graça, até uma bolha de sabão brilha à luz do Sol. Em suma, deu-me uma boa lição, dizendo, “Tudo, quero dizer-te tudo, Anshei (era assim que ela pronunciava o meu nome: Anshei, como um beijo), tudo, e tu, pelo teu lado, se encontrares alguém hoje, e lhe falares, conta-me por favor o que disseram, descreve-me a posição do seu chapéu, o seu riso e os seus suspiros”, e ela, por seu lado, contava-me tudo o que fazia e dizia, e aos poucos a nossa vida foi-se enchendo de pequenos nadas que se tornaram preciosos para nós, estás a ver, e foi assim que, com a sua sabedoria, Sara despertou a minha vida adormecida.»
Neigel sai da caserna. Muito elegante, impecável no seu uniforme, passa ao lado de Wasserman como se não o visse. Dirige-se para a plataforma, indicando assim que vai escolher cinquenta novos operários para substituir a equipa dos «azuis». Wasserman olha para os «azuis», e eles olham para Neigel. Sabem que, se ele se aproximar da rampa, quer dizer que vai haver uma seleção e que serão substituídos por novos operários. Mas, apesar disso, continuam a acolher os recém-chegados com palavras reconfortantes. «Deus Todo-Poderoso», murmura Wasserman, «podes explicar-me, Shloïmele, porque é que os «“azuis”» não se levantam contra os seus carcereiros e não arriscam a vida para salvar ao menos um deles, agora que sabem o que vai acontecer? Vou explicar-te…» Mas eu não tenho vontade de ouvir a explicação. Tenho a minha própria opinião sobre o «gado a abater».
«Um dia», Wasserman desvia os olhos da plataforma e continua a contar-me a sua vida, «um dia, cerca de dois anos depois do nosso casamento, fiz uma tal cena de autocomiseração que Sara decidiu ir sozinha à festa de Hanucá 22 em casa dos Zalmanson. Eu detestava essas festas, a que assistira nos anos anteriores para não magoar Zalmanson, que de qualquer maneira não me ligava nenhuma: nunca lhe faltavam novos auditórios para se exibir. Ah, aquele Zalmanson era um pavão.»
«Sim, sim», digo eu, impaciente. «Falaremos dele noutra altura. Conta-me o que aconteceu lá.»
«Não me espicaces, Shloïmele, não é fácil… Sara foi lá sozinha. Com os olhos vermelhos de chorar… E eu, teimoso como um burro, deixei-a ir sem nos reconciliarmos… e na festa» (a voz tornou-se-lhe mais distante e surda.) «Estás a ver, ela deixou Zalmanson arrastá-la para o vestíbulo e beijá-la na boca. Sim, foi o que aconteceu. Agora já sabes. Nunca falei disto a ninguém, nunca…»
O quê? Já nesse tempo se passavam coisas dessas?
«Mas como é que soube, avô?» Provavelmente andava sempre atrás dela, a massacrá-la com perguntas até ela confessar tudo. Talvez tenha encontrado uma carta de Zalmanson. Ou talvez alguém a tenha caluniado?
«Quando ela voltou para casa, contou-me tudo. Sem se desculpar, nem atirar as culpas para ele. O bandido! Disse-me que sentira que ele a desejava tanto que não conseguira recusar-lhe o beijo. Que ele precisava dela! Pobre ingénua! Podia lá saber que Zalmanson era um namoradeiro! Ah, sim, parecia um pai de família virtuoso, dedicado à mulher e às três filhas feiosas, mas eu sabia, da boca dele, que perdia a cabeça com qualquer saia que lhe passasse pela frente.»
Quando ela lhe contou, o pequeno Wasserman tremeu de raiva e humilhação. Os demónios escondidos na alma saltaram todos cá para fora. A única coisa que lhe interessava era saber se depois de a ter «desonrado» Zalmanson fizera troça dele. Sara olhou para ele, desgostosa, e respondeu que Zalmanson não dissera nada. Que não era de todo uma questão de desonra. Que ela se entregara de livre vontade, e nunca mais voltaria a fazê-lo. Zalmanson sabia-o. «Ele estava amargurado», disse ela. «Nunca pensei que um homem como ele pudesse estar tão pesaroso.» (Sara usava sempre palavras «delicadas».) E Wasserman: «Amargurado! Zalmanson estava tão amargurado como Jesus quando subiu ao céu ou Maomé voando para o piedoso Alá!» Sara disse-lhe que Zalmanson lhe pedira para não contar a Wasserman, mas ela preferira contar-lhe tudo, pois, de qualquer modo, nada se passara, aquilo não significara nada para ela e ela não queria que existisse a menor sombra entre ela e Wasserman. Pediu-lhe apenas para nunca mais falar no assunto. E ele aceitou, à sua maneira. «Com efeito, Shloïmele, durante um ano inteiro, construí um pequeno inferno de silêncio. Enfim, isso também já passou, como se diz nos contos, e tanto melhor. Durante muito tempo, quando os imaginava a ambos, no vestíbulo, entre os casacos, o sangue fervia-me nas veias… Sabes, um judeu é feito de matéria estranha…»
Entretanto, Neigel está sentado numa cadeira desdobrável, a escolher os operários entre os recém-chegados, como um juiz supremo. Está impassível, sem expressão. Himmler, se o visse, teria orgulho nele. Crava o olhar nos que passam à sua frente, e vira a cabeça para a direita e para a esquerda: links, rechts, links, rechts . Wasserman: «E a minha cabeça, cholera , seguia o movimento da dele, esquerda, direita…»
Neigel já escolheu os seus novos operários. Os antigos «azuis» são empurrados para a estação, para se despirem. Neigel volta ao seu trabalho, na barraca. Wasserman examina a nuca de Neigel. «Viste? Nem uma marca do movimento de virar a cabeça. Nem uma ruga!» Os velhos, os jovens e os inválidos são levados para o Lazaret, onde os espera o revólver de Stauke. Ouvem-se tiros abafados que se sucedem a intervalos curtos. Hopfler – com uma cara de miúdo responsável e sábio – baixa os estores do pequeno bufete, para que o sol não estrague a mercadoria até à chegada do próximo comboio. Wasserman despede-se dos chocolates por mais três horas. Wasserman: «E assim aconteceu que de uma extremidade do universo, a milhares de milhas de distância, a minha filha, a minha querida Tirzale, trouxe a sua jovem vida inocente, e do outro extremo veio a Morte, e encontraram-se no preciso momento em que a sua mãozinha ia atingir o chocolate.» Suspirou profundamente e disse: «É possível que nunca chegue a morrer, Deus nos livre, embora me sinta morrer tantas vezes, pelo menos três vezes por dia, quando o comboio chega…»
Depois, quando os prisioneiros nus correm pelo Caminho do Céu, ele inclina-se e enfia o rosto num buraco do canteiro de flores.
E depois da corrida, quando os focinhos ensanguentados dos cães ficam de novo silenciosos, Wasserman levanta-se, cheira os dedos e limpa-os do pó negro e húmido que os cobre. Sobe-lhe do corpo um forte cheiro a suor. «Vejo-a com os olhos do espírito, a minha querida Sara, a cheirar os sovacos das minhas camisas franzindo o nariz. A minha esposa era, sem querer ofendê-la, uma farejadora sem par.»
21 Instituição de estudos judaicos, em particular talmúdicos. ( N. da T. )
22 Festa que comemora a vitória dos macabeus contra os sírios, que queriam destruir a religião judaica e helenizar Israel. Conta a tradição talmúdica que, durante a purificação do Tempio, se descobriu um frasco com óleo santo destinado a acender o candelabro. Apesar de ser suficiente apenas para um dia, o óleo ardeu durante oito. Daí que se tenha instituído a festa de oito dias que comemora o milagre. ( N. da T. )