7.

O declínio da bruxaria

A caça às bruxas começou a declinar em meados do século XVII, mas a opinião popular, os intelectuais conservadores e os juízes obstinados prolongaram a perseguição, por vezes contra a vontade e as ordens do governo, que a percebia cada vez mais como fator de desintegração da ordem social. O delírio persistiu por mais tempo nos países protestantes do que nos católicos, possivelmente por causa da influência do pietismo conservador, típico do protestantismo popular da época. Também se prorrogou por mais tempo nas áreas periféricas, após ter começado a enfraquecer nos centros culturais. Isso era verdade no sentido amplo – a bruxaria atingiu o auge na América anglo-saxã e na Escandinávia em fins do século XVII – e no sentido restrito: a bruxaria persistiu mais no interior do que nas cidades. O julgamento mais espetacular na Suécia ocorreu em 1669, na cidade de Mora. Certo número de crianças do lugar afirmou terem sido levadas por bruxas até um local chamado Blocula, onde se realizou um sabá presidido pelo próprio Satã. A maioria dos elementos tradicionais da crença em bruxas em voga na Europa emergiria durante o julgamento; muitas das acusadas foram açoitadas e 85 delas condenadas à fogueira.

A notoriedade de julgamentos como os de Salem e Mora ajudou a indispor a opinião pública com as crenças em bruxaria. Os líderes culturais e políticos europeus abandonaram gradualmente seu apoio e exerceram sua influência para pôr termo às perseguições. O declínio foi contínuo e a instauração de processos contra bruxas cessou virtualmente em meados do século XVIII. A última execução por bruxaria na Inglaterra ocorreu em 1684; nas colônias americanas, em 1692; na Escócia, em 1727; na França, em 1745; e na Alemanha, em 1775.

O declínio legal da bruxaria na Inglaterra foi gradual, mas constante. Em 1684, Alice Molland foi executada por bruxaria em Exeter, quase trinta anos antes da condenação seguinte, a de Jane Wenhamem, em 1712, que foi perdoada e posta em liberdade. Em 1717, Jane Clerk foi denunciada por bruxaria, mas o processo foi arquivado. Em 1736, um novo estatuto revogou os de Maria da Escócia (1562), de Elizabeth I (1563) e de Jaime I da Escócia e VI da Inglaterra (1604), declarando que “nenhuma denúncia, demanda ou processo de lei será iniciado ou levado a efeito contra qualquer pessoa ou pessoas por bruxaria, feitiçaria, sortilégio ou conjuro”. O estatuto de 1736 continuou regulando a instauração de processos contra aqueles que se pretendiam detentores de poderes mágicos, mas negava qualquer realidade a esses poderes. Continuou vigendo como lei até 1951, quando foi substituído pelo ainda mais liberal Fraudulent Mediums Act, embora em 1963, em virtude da profanação de igrejas e cemitérios, fosse apresentada uma petição para o restabelecimento de leis contra a bruxaria, cujos signatários supunham, correta ou erroneamente, tal violação ter sido cometida por bruxas. O estatuto inglês de 1736 e leis equivalentes em outros países assinalaram o fim da perseguição oficial por bruxaria.

As mesmas elites jurídicas, intelectuais e religiosas que tinham iniciado e fomentado a caça às bruxas estavam agora empenhadas em dar-lhe um basta, ainda que o fizessem gradualmente; a crença em bruxaria e feitiçaria deixara de ter sua chancela de aprovação, e só depois que essas elites dirigentes a rejeitaram é que o apoio popular esmoreceu. A crença na bruxaria diabólica declinou rapidamente no século XVIII até seu virtual desaparecimento, sobrevivendo apenas na lenda, na literatura e no anedotário. Por outro lado, a crença na simples feitiçaria prosseguiu pelos séculos XVIII e XIX, chegando aos nossos dias. A união entre bruxaria diabólica e feitiçaria foi temporária e artificialmente urdida por intelectuais, não sendo, portanto, fruto de crenças populares e tradicionais. A feitiçaria simples, por sua vez, se fez presente antes, durante e depois da caça às bruxas; e persiste até hoje. A bruxaria diabólica foi inventada na Idade Média, floresceu entre 1450 e 1650, e depois declinou e se extinguiu. O colapso da caça às bruxas entre 1650 e 1750 foi provocado por uma combinação de mudanças intelectuais, pragmáticas e sociais.

Durante a caça às bruxas, céticos escreveram e discursaram contra a crença em bruxaria, mas sua influência foi cerceada pelo medo da perseguição e pelas poderosas pressões intelectuais exercidas pela mentalidade religiosa predominante. Rejeitar a bruxaria era cortejar a perseguição e o escárnio. Não havia qualquer referencial de natureza intelectual no qual fosse possível se basear para combater as crenças em bruxaria. Os céticos firmavam seus argumentos no senso comum, na caridade, na misericórdia ou em referências a antigos documentos, como o Canon Episcopi. Mas ainda arguiam sob a influência do mesmo referencial cristão tradicional que os caçadores de bruxas. Por isso a Reforma protestante nada fez para atenuar a perseguição. Na medida em que se aceitava a ideia de que o Diabo exerce grande poder no mundo com o propósito de contrariar a missão salvadora do Cristo, e de que grupos organizados de hereges conspiram contra a sociedade cristã, a conversão de hereges em adoradores do Diabo tornava-se fácil e natural. Poder-se-ia argumentar que este ou aquele herege não era realmente um bruxo, ou que os voos pelos ares não ocorriam realmente, ou que as medidas tomadas contra esta ou aquela pessoa acusada de bruxaria eram de uma atrocidade inaudita; mas era impossível desafiar a essência dessa crença. Nesse quadro de referência intelectual, a bruxaria diabólica não era superstição, e os críticos dessa crença, atuando sob esse mesmo referencial, não podiam opor-se-lhe como tal; participavam de uma cosmovisão coerente e dominante. Somente quando uma nova visão de mundo se impôs, os céticos puderam encontrar um sólido terreno intelectual onde se firmar e repelir a bruxaria como superstição.


Auto de fé das bruxas de Mora, em 1670, uma das últimas manifestações de caça às bruxas na Europa.


Os historiadores céticos, modernos e liberais não conseguiram explicar o declínio da bruxaria porque insistiram em ver a controvérsia como uma batalha entre superstição e razão, e por esse motivo ficaram atônitos ao se darem conta de que grandes e doutos espíritos podiam ter acreditado em bruxaria. Foram incapazes de perceber que a bruxaria não era uma superstição antes do surgimento da nova cosmovisão, em meados do século XVII, e que todas as visões de mundo, incluindo o cientificismo, alimentavam suas próprias superstições. A bruxaria declinou porque uma nova cosmovisão fez dela uma superstição. Declinou porque defender a bruxaria sob o novo referencial era intelectualmente tão indecoroso quanto tinha sido atacá-la sob o antigo sistema mental.

A nova cosmovisão emergiu das revoluções filosófica e religiosa que alteraram todo o conceito de cosmo e de como este funcionava. A revolução filosófica foi liderada por Descartes (1596-1650), que rejeitou a tradição medieval e defendeu a existência de leis universais, observáveis, mecânicas e descritíveis da natureza, que tornaram obsoleta e ilógica a intervenção de demônios (e anjos). Posteriormente, o ceticismo de Hume iria mais longe; e ainda mais tarde o fisicalismo declararia que só se poderia afirmar com razoável segurança a existência de fenômenos que fossem demonstráveis por método científico. Hoje, para a maioria das pessoas educadas sob os pressupostos do fisicalismo, a crença em bruxaria tornou-se, de fato, uma superstição.

À revolução filosófica seguiu-se a revolução religiosa. O cartesianismo conduziu ao pressuposto de um universo ordenado cujas operações regulares, prescritas pela divindade desde o começo, tinham remotíssimas probabilidades de ser perturbadas pela intervenção de poderes espirituais. Deus não podia desejar que fossem subvertidas as leis estabelecidas por Ele próprio; e muito menos concederia ao Diabo o poder de fazer isso. Eventos misteriosos, fossem eles supostos milagres de Deus ou pretensos maleficia provocados pelo poder do Diabo, eram tidos como relatos falsos ou lhes era atribuída alguma explicação material. O pensamento religioso “liberal” que resultou do Iluminismo abandonou a antiga luta entre o bom Deus e o Diabo perverso, admitindo a intervenção de ambos nas operações da natureza, e postulava agora uma deidade despida de paixão, ordenada, justa e racional. O pietismo e o otimismo reforçaram a ideia de um Deus amável e sensato, e essa ideia subsiste até hoje – com todas as suas boas e más consequências — entre a maioria daqueles que mantiveram alguma crença em Deus. Por outro lado, o cristianismo diluído representado por esse Deus carente de vitalidade, inteiramente supérfluo na concepção mecânica do universo, resultou em um crescente ateísmo. A religião liberal naturalmente entendeu a crença na bruxaria como uma superstição estúpida, porquanto não havia para ela um papel lógico no mundo mecânico. Após 1700, poucas pessoas com alguma pretensão à respeitabilidade intelectual se atreviam a admitir a crença em bruxaria. O clero, por seu lado, ou modificaria seus pontos de vista para refletir as novas ideias ou acabaria descobrindo estar pregando no deserto.


René Descartes. A substituição do pensamento aristotélico pelo cartesiano durante o século XVII ajudou a pôr fim às crenças em bruxas, pelo menos entre as pessoas educadas.


A diferença era enorme. Enquanto no século XVI a posição de Montaigne de “eterna dúvida” era amplamente ignorada, um século depois o ceticismo mais avançado de Male­branche era quase universalmente aceito, pelo menos entre a elite. Em 1674, Malebranche argumentou que a bruxaria e a possessão demoníaca eram falsas crenças produzidas por imaginações superativas e pelo uso de drogas soporíferas. Aqueles que imaginam sair para um sabá ou mudar de forma a seu bel-prazer são incapazes de distinguir entre seus sonhos e a realidade física. Jesus Cristo redimiu o mundo e Satã deixou de ter poder sobre os que renascem no Senhor. Malebranche acreditava que Deus poderia, excepcionalmente, por razões muito especiais, conceder a Satã um poder limitado para fazer o mal, e que feiticeiras poderiam ocasionalmente realizar sortilégios, mas esses eventos eram raríssimos.

A posição de Malebranche era muito moderada e transicional; outros avançariam bem mais. A “Carta contra as bruxas” (1654), de Cyrano de Bergerac, ridicularizou toda a crença em bruxaria como rematado absurdo, e atribuiu-a (erroneamente) à ignorância e à insensatez das pessoas comuns. Na Inglaterra, como vimos, o Historical essay concerning witchcraft (1718), de Francis Hutchinson, foi a última obra de importância que considerou necessário atacar a bruxaria com séria disposição. O riso e o escárnio estavam tomando o lugar da argumentação austera, e o ridículo suprimiu uma crença mais rapidamente do que a lógica mais convincente. Somente no começo do século XIX os intelectuais voltaram a considerar seriamente a bruxaria, mas sob uma perspectiva totalmente diferente. As pinturas de Goya, sem dúvida as mais aterradoras representações de bruxaria até hoje produzidas, mostraram que o entendimento das crenças em bruxaria exigia uma profunda compreensão psicológica do estado mental da bruxa e do caçador de bruxas.

A erosão intelectual da bruxaria foi acompanhada pela erosão institucional. O frenesi da caça às bruxas foi-se extinguindo até quando juízes crédulos começaram a perceber que a situação estava ficando fora de controle. Em meados do século XVII, juízes crentes simplesmente já achavam difícil distinguir inocente e culpado. Perturbava-os a ideia de que, possivelmente, muitas pessoas inocentes estavam sendo enviadas para a fogueira, e estarrecia-os a destruição de comunidades inteiras em virtude dos julgamentos de bruxas. O medo das bruxas, o medo da acusação de bruxaria e o terror da tortura estavam tornando a vida quase insuportável em muitas regiões. Uma comissão em Calw, na Alemanha, em 1683, observando a destruição causada pelos julgamentos de bruxas, aventou a possibilidade de os próprios julgamentos serem obra de astutas maquinações do Diabo, que induzira o medo da bruxaria na comunidade cristã a fim de voltá-la contra si mesma e destruí-la. De fato, a propagação dos julgamentos e a crescente promiscuidade das acusações levaram, finalmente, a uma de duas conclusões: ou o poder do Diabo estava aumentando de tal modo que o fim do mundo devia estar próximo ou, então, se Cristo ainda governava, as acusações contra bruxas deviam ser manifestações de puro delírio. As opiniões variaram, mas tanto a mudança na concepção intelectual do mundo quanto os escabrosos excessos dos julgamentos asseguraram a vitória da segunda opinião.

Tal como Salem, na América do Norte, e Mora, na Suécia, o incidente de Loudun, na França, também contribuiu bastante para incentivar o ceticismo. Juízes, médicos e teólogos debateram detalhadamente o caso de Loudun em Paris, nas décadas de 1630 e 1640, e poucos foram capazes de negar que se tratava, em grande parte, de uma fraude. A implicação de padres nos vergonhosos acontecimentos de Loudun e Louviers também causou agitação e alarme por parte do clero e dos profissionais liberais em geral. As acusações de bruxaria não se limitaram aos pobres e ignorantes; quando começaram a atingir mais frequentemente a classe dominate, os membros dessa elite passaram a temer por sua própria segurança. No fim da Guerra dos Trinta Anos, a caça às bruxas começou a encontrar resistência das autoridades governamentais na Alemanha. A punição para acusadores falsos e oportunistas tornou-se mais severa, e o procedimento para denúncias mudou. Acusações de feitiçaria simples – adivinhação, sortilégios, caça mágica ao tesouro – continuaram sendo comuns, mas, como no caso de séculos anteriores, já não apareciam associadas às acusações de satanismo. Envenenamentos e infanticídio eram julgados cada vez mais frequentemente pelos tribunais como homicídio por meios físicos, e não mágicos. O conceito de maleficium perdeu sua vitalidade; e a superestrutura teológica de diabolismo, enfraquecida pelas mudanças intelectuais, estava pronta para desmoronar quando a subestrutura de maleficium foi abalada.

A crença em bruxas manteve-se por mais tempo, naturalmente, em regiões rurais conservadoras: a bruxaria foi gerada nas cidades, mas sepultada no campo. Na Inglaterra, depois que o estatuto de 1736 revogou as leis contra a bruxaria, os aldeões continuaram usando meios informais e ilegais de vingança contra bruxas, incluindo o linchamento. Em Hertfordshire, em 1751, um casal de anciãos suspeito de bruxaria foi atacado por uma multidão que saqueou o albergue onde eles viviam, arrastou-os por três quilômetros até um rio, despiu-os e lançou-os à água. Quando subiram à superfície, foram empurrados de novo para baixo até serem sufocados, depois sacados da água e espancados até a morte. Tais atrocidades ocorreram eventualmente mesmo no século XX, mas a sociedade já não as tolerava. O líder da turba em Hertfordshire foi denunciado, condenado e enforcado como assassino.

Outras mudanças sociais ajudaram a abalar a crença na bruxaria. Se a falta de caridade ou de cortesia para com um vizinho estava, com frequência, na raiz das acusações de bruxaria, a mudança de comportamento da sociedade em relação à pobreza e à carestia conseguiu alterar esse padrão. Na Inglaterra, a National Poor Law (1601, emendada em 1722, 1782 e 1785) converteu a assistência aos pobres em obrigação legal da comunidade, aliviando o indivíduo do sentimento de culpa a respeito da existência da pobreza (embora não impedisse o crime de Hertfordshire). O movimento do século XVII, que combinou “uma religião menos coletivista, economia de mercado, maior mobilidade social [e] crescente individualização por meio da criação de vínculos mais institucionais do que pessoais”, enfraqueceu as crenças em bruxas.1 O principal efeito dessas transformações sociais sobre a bruxaria continuou sendo indireto. As crenças em bruxas definharam e desapareceram quando sua vitalidade intelectual se exauriu. Uma nova cosmovisão, que insistia em apresentar explicações racionais para inúmeros eventos, sustentava ser mais factível atribuir a morte de uma vaca ou a doença de um filho a causas naturais do que à feitiçaria ou aos demônios.


Frontispício para Historical essay, de Francis Hutchinson (segunda edição, 1720), o livro que pôs fim às crenças em bruxas entre as pessoas educadas, na Inglaterra.


Com o declínio da bruxaria, fenômenos ocultos de naturezas diversas tomaram o seu lugar. A Missa Negra nunca fez parte da história da bruxaria. Apareceu pela primeira vez durante o reinado de Luís XIV. Em 1673, alguns padres informaram à polícia de Paris que penitentes estavam confessando ter usado veneno para resolver dificuldades conjugais. Feita a investigação, a polícia descobriu uma rede internacional de envenenadores e vastos depósitos de venenos. As provas persuadiram o rei a estabelecer um tribunal secreto a fim de investigar o assunto a fundo. Este tribunal, estabelecido em 1679, foi denominado chambre ardente [câmara ardente], porque o recinto onde se instalou era decorado com colgaduras negras e iluminado com velas. Muitas pessoas distintas estavam entre os indiciados, mas as sentenças severas, incluindo a execução, atingiram somente as pessoas pobres e sem influência. No início, as acusações limitaram-se ao uso de substâncias como venenos, abortivos, afrodisíacos e outras drogas; mas, em 1680, vários padres foram acusados de celebrar missas negras sobre corpos de meninas nuas e de abusar sexualmente delas. Foi alegado que praticavam o coito ritual, pro­fanavam os sacramentos, misturavam substâncias re­pug­­­nan­tes no cálice e sacrificavam crianças. Algumas das acusações talvez tenham sido verdadeiras, mas não constituem realmente bruxaria ou satanismo, e sim uma paródia perversa da missa cristã, um refinamento grotesco introduzido pela arrebatada mentalidade barroca. As acusações atingiram a corte e até a ex-amante do rei, madame de Montespan, que foi acusada de conspirar para envenenar o monarca e sua nova amante, mademoiselle de Fontanges. O rei, acreditando terem as investigações fugido ao seu controle, ordenou que elas fossem suspensas; em 1682, promulgou um édito em que negou a existência de bruxas e eliminou as denúncias por bruxaria e feitiçaria. O conservadorismo das províncias, porém, permitiu que julgamentos isolados de bruxas e execuções prosseguissem na França por mais sessenta anos.

O caso de Catherine Cordière em Aix-en-Provence, em 1731, é outro exemplo de como a bruxaria estava sendo substituída por outros fenômenos sombrios da alma. Jean-Baptiste Girard, padre jesuíta, foi acusado de usar feitiçaria para seduzir Catherine, uma bela moça de 21 anos que estava obcecada pela ideia de tornar-se santa. Catherine relatou suas visões e experiências místicas ao padre Girard, que parece ter-se convencido da santidade dela, concordando em ajudá-la em suas devoções. Aos poucos, suas relações tornaram-se excessivas e impróprias. Então, em um dado momento Girard rejeitou as visões de Catherine como falsas, e a moça, ressentida, começou a ter convulsões, alucinações e a manifestar outras formas de histeria. Ela acusou o padre de se valer da ajuda demoníaca para seduzi-la e depravá-la. Girard foi preso, mas após um longo processo os juí­zes negaram provimento às acusações. A bruxaria, na acepção clássica, esteve virtualmente ausente do julgamento, e o demonismo deu lugar à sexualidade explícita e indecorosa. Em um mundo cada vez mais secularizado, os assombros continuariam aparecendo, mas deixaram de estar vinculados ao demonismo.


Goya, A Lâmpada do Diabo, c. 1794-5. Goya satirizou a crença em bruxas, ilustrando sua inumanidade grotesca e suas raízes na ignorância e no terror.


Em tal mundo secularizado, onde as crenças em bruxaria eram tratadas como superstições, o ressurgimento da crença demoníaca (exceto em algumas remotas áreas rurais) era inteiramente artificial. Na Inglaterra, no século XVIII, Sir Francis Dashwood presidia o Hellfire Club, que se gabava de ter entre seus sócios certo número de espíritos liberais e eminentes, incluindo Benjamin Franklin. O clube reunia-se em cavernas naturais do condado de Buckingham para comer, beber, jogar e entregar-se aos prazeres do sexo. Tal como na antiga tradição, essas reuniões eram subterrâneas, noturnas e secretas, e praticava-se algo semelhante a orgias. Mas os participantes faziam tudo isso em zombeteira paródia aos sabás. Divertia-os a reputação de devassos, mas nenhum deles acreditava no inferno ou no Diabo; e suas saudações a Satã eram totalmente jocosas (naturalmente, o melhor estratagema do Diabo é persuadir-nos de que ele não existe, e o da Igreja de Satã é ser, aparentemente, materialista, hedonista, antiespiritual, elitista e cínica). No fim do século XVIII e no século XIX, nenhuma pessoa educada acreditava que a bruxaria tivesse alguma vez existido, ou que sequer poderia existir; e a sabedoria popular, sempre pelo menos meio século atrás dos intelectuais, faria o mesmo, proclamando que “bruxa é coisa que não existe”. A feitiçaria simples continuou, e os grimoires – livros populares de magia do tipo “faça você mesmo”, baseados, em parte, em fontes cabalísticas, mas, sobretudo, nas tradições da feitiçaria simples –, que começaram a ser publicados no século XVIII, mantiveram sua popularidade nas áreas rurais até o século XX. Mas a bruxa diabólica retornou ao reino da fantasia, donde tinha brotado.


Goya, A Lâmpada do Diabo, c. 1794-5. Goya satirizou a crença em bruxas, ilustrando sua inumanidade grotesca e suas raízes na ignorância e no terror.

O ressurgimento romântico

Mesmo quando a sabedoria popular finalmente rejeitava a crença em bruxaria, já surgiam indícios de um novo ponto de vista entre os intelectuais no começo do século XX. Em 1828, Karl Ernst Jarcke argumentou que a bruxaria era uma religião natural que se mantivera ao longo de toda a Idade Média até o presente. Era a antiga religião do povo germânico, a qual a Igreja havia falsamente declarado como culto ao Diabo. Tal posição proveio de um romantismo que glorificava o passado e de um nacionalismo que glorificava a Alemanha. A tradição exemplificada por Jarcke rendeu frutos horrendos um século depois, quando os nazistas proclamaram o pseudorressurgimento da antiga religião teutônica. Em 1820, o escritor francês Lamothe-Langon, que também forjou uma suposta coletânea de memórias particulares de Luís XVIII, publicou vários documentos referentes à bruxaria no século XIV, que ele afirmava ter transcrito de registros da Inquisição que ulteriormente haviam sido destruídos. O efeito da falsificação foi estabelecer o que parecia ser algo como um culto organizado de bruxas já no século XIV, e assim conferir mais crédito à ideia de que a bruxaria poderia ter sido uma antiga religião que subsistiu durante a Idade Média.


Sir Francis Dashwood adorando Vênus. Essa gravura, satirizando um quadro de Hogarth, mostra o fundador do Hellfire Club na entrada de sua caverna, onde, vestido como um frade, venera seus deuses: o sexo, a comida e a bebida


O romantismo contribuiu para o ressurgimento da ideia de bruxaria tanto na Inglaterra quanto na Alemanha. Em 1830, Sir Walter Scott publicou suas Letters on demonology and witchcraft, as quais, em virtude da popula­ridade e prestígio de Scott, tiveram grande efeito no reaparecimento do interesse pela bruxaria. Nenhum desses novos escritores argumentou que a bruxaria era um culto dia­bó­lico ou que os julgamentos de bruxas deveriam ser restabelecidos. Ao contrário, acreditavam que as pretensas bruxas tinham sido mal compreendidas e maltratadas. Mas assumiram uma posição bem diferente da dos racionalistas do século XVIII, que negavam radicalmente a existência de bruxaria em qualquer época ou latitude. Em 1839, Franz-Josef Mone alegou ter a bruxaria derivado de um culto clan­destino pré-cristão do mundo greco-romano, um culto relacionado com Dionísio e Hécate e praticado pelas camadas mais baixas da sociedade. O argumento de Mone teve grande impacto em um mundo assustado com os excessos revolucionários e com medo de sociedades secretas. Em 1862, Jules Michelet aproveitou o argumento de Mone e deu-lhe sustentação histórica. A bruxaria originou-se nos estratos sociais inferiores, sustentou Michelet, mas isso era admirável: a bruxaria era uma manifestação primitiva do espírito democrático. Desenvolveu-se entre os camponeses oprimidos da Idade Média, que adotaram os remanescentes de um antigo culto da fertilidade em protesto contra a opressão da Igreja e da aristocracia feudal. A tese de Michelet, de que a bruxaria era uma forma de protesto, foi adaptada mais tarde pelos marxistas; seu argumento de que a bruxaria se baseou no culto da fertilidade foi adotado pelos antropólogos do começo do século XX, influenciando obras como O ramo de ouro, de Sir James George Frazer, From ritual to romance, de Jessie Weston, O culto das bruxas na Europa Ocidental, de Margaret Murray, e, indiretamente, The waste land, de T. S. Eliot.


Eliphas Lévi, A cabra sabática, 1896. Um dos líderes do ocultismo moderno, Lévi conferiu às crenças mágicas uma base nova e pseudo-científica. Seu retrato de Satã expressa a iconografia tradicional e agrega o simbolismo do ocultismo moderno, notadamente as características andróginas.


O interesse pelo ocultismo aumentou no entediado mundo do final do século XIX. Os rosa-cruzes e a Ordo Templi Orientis (oto) – sociedades mágicas, secretas e semielitistas – estavam adquirindo prestígio. Na França, o abade Boullan, Eliphas Lévi e J. K. Huysmans incentivaram o ressurgimento. Na Inglaterra, onde o espiritualismo era desde há muito proeminente, proliferaram os movimentos ocultistas. O mais influente deles foi a Ordem Hermética da Aurora Dourada (Hermetic Order of the Golden Dawn), que se vangloriava de ter entre seus membros escritores notórios como William Butler Yeats – Prêmio Nobel da Literatura em 1923 –, Algernon Blackwood, Arthur Machen, Bram Stoker e Sir Edward Bulwer-Lytton; assim como ocultistas dedicados, com destaque para MacGregor Mathers, A. E. Waite e Aleister Crowley, que se autodenominava “A Grande Besta”. A Ordem Hermética da Aurora Dourada deleitava-se na criação de chistes e imposturas literárias e ocultistas. Crowley e Mathers travaram uma espantosa disputa em que expediram poderes espirituais um contra o outro: Mathers mandou um vampiro atacar Crowley, e Crowley respondeu enviando Belzebu e 49 demônios subordinados para investir contra Mathers. Crowley usava um perfume feito de âmbar cinzento, almíscar e essência de civeta, que afirmava torná-lo irresistível às mulheres. A Ordem Hermética da Aurora Dourada traduziu livros cabalísticos e grimoires, e inventou sistemas criativos de numerologia, sortilégios, pragas e seus próprios afrodisíacos. Os elementos de magia cerimonial que atualmente aparecem na bruxaria moderna podem ter sua origem na influência de Crowley sobre Gerald Gardner, o fundador da bruxaria moderna; e a própria devoção de Crowley a Pã, embora meio séria, meio jocosa, também ajudou Gardner a desenvolver o neopaganismo. O Hino a Pã, de Crowley, é demasiado violento para a maioria dos neopagãos, mas possui, sem dúvida, um soberbo vigor próprio. Conclui assim:


Aleister Crowley, Autorretrato, um desenho dramatizado do mestre com um símbolo fálico sobre sua cabeça e um medalhão em volta de seu pescoço com a inscrição “A Grande Besta 666”, uma referência ao Livro da Revelação.


Com patas de aço os rochedos roço

De solstício severo a equinócio.

E raivo, e rasgo, e roussando fremo,

Sempiterno, mundo sem termo,

Homem, homúnculo, ménade, afã,

Na força de Pã.*



Leila Waddell, uma das mulheres de Aleister Crowley, c. 1912. Crowley gostava de marcar suas inúmeras amantes com o que ele chamava “o sinal da besta”.


MacGregor Mathers (1854-1918), um dos principais rivais de Crowley pela liderança entre os ocultistas, representando ritos de Ísis que ele mesmo havia inventado.


O grande deus Pã que, de acordo com a lenda, tinha morrido quando Cristo nasceu, parece não ter absolutamente perecido. Nessas últimas décadas, ele e seu séquito de deuses e deusas vêm desfrutando um pequeno mas crescente ressurgimento. Com o fim da caça às bruxas, a bruxaria diabólica desapareceu virtualmente, mas uma nova espécie de bruxaria surgiu, baseada no culto aos antigos deuses.


Pã ensinando o jovem Zeus Olímpico a tocar flauta. Deus grego da natureza, Pã forneceu muitas das características iconográficas do Diabo, e os ocultistas modernos escolheram-no como símbolo da oposição ao Cristo e ao cristianismo.


* Tradução de Fernando Pessoa, publicada em outubro de 1931 na revista Presença. No original: With hoofs of steel I race on the rocks / Through solstice stubborn to equinox. / And I rave; and I rape and I rip and I rend / Everlasting, world without end, / Mannikin, maiden, maenad, man, / In the might of Pan. [n. de e.]