12. As evidências no caso

EMBORA EU NUNCA TIVESSE COMPARECIDO a um tribunal policial antes, quando me aproximei do austero prédio em Bow Street na companhia de Lestrade, senti uma estranha sensação de familiaridade, como se tivesse sido convocado e minha ida ali fosse de algum modo inevitável. Lestrade deve ter visto a expressão em meu rosto, pois sorriu pesarosamente. “Suponho que não esperava se ver num lugar como este, hein, dr. Watson?” Disse-lhe que lera meu pensamento. “Bem, deveria perguntar a si mesmo quantos outros homens passaram por este caminho graças ao senhor e a Sherlock Holmes.”

Ele tinha toda a razão. Aquele era o fim do processo que com tanta frequência havíamos iniciado, o primeiro passo a caminho de Old Bailey * e, depois, talvez, da forca. É curioso refletir agora, no fim de minha carreira de escritor, que cada uma de minhas crônicas terminou com o desmascaramento ou a detenção de um patife, e que depois desse ponto, quase sem exceção, eu simplesmente supus que a sorte desses homens não teria nenhum interesse adicional para meus leitores e os deixei de lado, como se apenas seu erro justificasse sua existência e como se, uma vez que os crimes haviam sido solucionados, eles tivessem deixado de ser criaturas humanas com corações pulsantes e espíritos consternados. Nunca considerei uma vez sequer o medo e a angústia que eles devem ter suportado ao passar por aquelas portas de vaivém e entrar naqueles corredores sombrios. Teria algum deles chorado de arrependimento ou oferecido preces por sua salvação? Teria algum deles lutado até o fim? Isso não me importava. Não era parte de minha narrativa.

Mas, quando volto os olhos para aquele gélido dia de dezembro em que o próprio Holmes enfrentou as forças que tantas vezes desencadeara, penso que talvez lhes tenha feito uma injustiça; até a canalhas tão cruéis quanto Culverton Smith ou tão coniventes quanto Jonas Aldacre. Escrevi narrativas que são chamadas de histórias de detetive. Por acaso, meu detetive é o maior de todos. Em certo sentido, porém, ele foi definido pelos homens e, na verdade, as mulheres que enfrentou, e eu os deixei de lado com demasiada facilidade. Quando entrei no tribunal policial todos eles retornaram com muita força à minha mente e foi quase como se eu os pudesse ouvir chamando-me: “Seja bem-vindo. O senhor é um dos nossos.”

A sala do tribunal era quadrada e sem janelas, com bancos e divisórias de madeira e as armas reais adornadas com símbolos heráldicos na parede mais distante. Era ali que o juiz se sentava, um homem retesado, idoso, cujo porte lembrava a madeira também. Diante dele havia uma plataforma cercada por uma balaustrada, e era para lá que os prisioneiros eram levados, um após outro, pois o processo era rápido e repetitivo, de modo que, pelo menos para o espectador, tornava-se quase monótono. Lestrade e eu tínhamos chegado cedo, tomando nossos lugares na galeria pública com poucos outros espectadores, e observamos quando um falsificador, um arrombador e um trapaceiro foram todos mantidos sob custódia à espera do julgamento. No entanto, o juiz podia também ser compassivo. Um aprendiz acusado de bebedeira e comportamento violento – era seu aniversário de dezoito anos – foi mandado embora com os detalhes de seu crime registrados no Livro das Acusações Recusadas. E duas crianças, de não mais de oito ou nove anos de idade, recolhidas por mendicância, foram entregues à Missão dos Tribunais Policiais, com a recomendação de que deveriam ficar aos cuidados da Waifs and Strays Society, do orfanato do dr. Barnardo ou Centro Educacional para a Adolescência. Foi estranho ouvir o último nome, porque era a organização responsável por Chorley Grange, que Holmes e eu tínhamos visitado.

Tudo transcorrera de maneira ritmada, mas nesse momento Lestrade deu-me uma leve cotovelada e percebi uma nova atmosfera de gravidade no tribunal. Mais policiais uniformizados e funcionários entraram e tomaram seus lugares. O oficial de justiça do tribunal, um homem gorducho, com cara de coruja e enfiado numa toga preta, aproximou-se do juiz e começou a murmurar-lhe alguma coisa em voz baixa. Dois homens que reconheci entraram e sentaram-se num dos bancos, separados por cerca de um metro. Um era o dr. Ackland, o outro um homem de rosto vermelho que talvez estivesse na multidão fora da Casa de Creer, mas não me causara nenhuma impressão naquele momento. Atrás deles sentou-se o próprio Creer (Lestrade chamou-me a atenção para ele), esfregando as mãos, como se tentasse enxugá-las. Estavam todos ali, percebi de imediato, como testemunhas.

Em seguida Holmes foi trazido, usando as mesmas roupas com que fora detido e tão diferente de si mesmo que, se eu não soubesse ser isso impossível, eu teria pensado que ele havia se disfarçado de propósito para zombar de mim, como fizera tantas vezes antes. Estava claro que não dormira. Havia sido minuciosamente interrogado e tentei não imaginar as várias indignidades, todas muito conhecidas dos criminosos comuns, que deviam ter se acumulado sobre ele. Macilento nas condições mais favoráveis, parecia agora positivamente baço, mas quando era conduzido para o banco dos réus e olhou para mim, vi um brilho em seus olhos que me disse que a luta ainda não terminara e lembrou-me que Holmes sempre se mostrava mais formidável que nunca quando as probabilidades contra ele pareciam se acumular. A meu lado, Lestrade endireitou-se e murmurou alguma coisa baixinho. Ele estava zangado e indignado por Holmes, revelando um lado de seu caráter que eu nunca vira antes.

Um advogado apresentou-se, um tipo baixote e roliço, com lábios grossos e pálpebras pesadas, e logo ficou claro que ele assumira o papel do promotor, embora diretor de circo talvez fosse uma descrição melhor para a maneira como conduziu os procedimentos, tratando o tribunal quase como um picadeiro da lei.

“O réu é um conhecido detetive”, começou ele. “O sr. Sherlock Holmes conquistou renome graças a uma série de casos que, embora espalhafatosos e espetaculares, baseiam-se pelo menos em parte na verdade.” Ericei-me ao ouvir isso e poderia até ter protestado se Lestrade não tivesse estendido a mão e me dado uma batidinha no braço. “Isto dito, não vou negar que há um ou dois policiais menos capazes na Scotland Yard que têm para com ele uma dívida de gratidão por tê-los, uma vez ou outra, ajudado a orientar suas investigações com indicações e intuições que se revelaram frutíferas.” Ouvindo isso, foi a vez de Lestrade franzir as sobrancelhas. “Mas até o melhor dos homens tem seus demônios e no caso do sr. Holmes foi o ópio que o transformou de amigo da lei no mais desprezível malfeitor. É inquestionável que ele entrou num antro de ópio conhecido como Casa de Creer em Limehouse pouco depois das onze horas da noite de ontem. Minha primeira testemunha é o proprietário do estabelecimento, Isaiah Creer.”

Creer instalou-se no banco das testemunhas. Não havia juramento nesses procedimentos. Eu só podia ver a parte de trás de sua cabeça, que era branca e calva, emendando-se com o pescoço de tal maneira que era difícil ver onde terminava uma e começava o outro. Estimulado pelo promotor, ele contou a seguinte história.

Sim, o réu entrara em sua casa – um estabelecimento particular e legal, meu senhor, onde cavalheiros podiam entregar-se a seu hábito em conforto e segurança – logo após as onze horas. Ele dissera muito pouco. Havia pedido uma dose do agente tóxico, pagara-o e fumara-o imediatamente. Meia hora depois, pediu uma segunda. O sr. Creer ficara preocupado porque o sr. Holmes – nome que só mais tarde ficara sabendo, assegurou ao tribunal; no momento em que se encontraram o sujeito lhe era completamente estranho – mostrava-se agitado e excitado. O sr. Creer havia sugerido que uma segunda dose poderia ser imprudente, mas o cavalheiro discordara nos mais veementes termos e, para evitar uma cena e manter a tranquilidade pela qual o estabelecimento se distinguia, ele lhe fornecera o necessário em troca de mais um pagamento. O sr. Holmes fumara um segundo cachimbo e seu aparente delírio intensificou-se, a tal ponto que Creer mandara um rapaz sair à procura de um policial, temendo que pudesse haver uma perturbação da paz. Havia tentado argumentar com o sr. Holmes, acalmá-lo, mas sem sucesso. Com olhar transtornado, incontrolável, o sr. Holmes insistira que havia inimigos seus na sala, que estava sendo perseguido, que sua vida estava em perigo. Tinha mostrado um revólver, e nessa altura o sr. Creer insistira que devia se retirar.

“Temi pela minha vida”, disse ele ao tribunal. “Meu único pensamento foi conseguir tirá-lo da casa. Mas vejo agora que estava errado e que devia ter deixado que permanecesse ali até que chegasse ajuda na pessoa do guarda Perkins. Pois quando o soltei na rua ele estava fora de si. Não sabia o que estava fazendo. Já vi isso acontecer antes, Meritíssimo. É raro, anormal. Mas é um efeito colateral da droga. Não tenho nenhuma dúvida de que ao abater aquela pobre menina o sr. Holmes acreditava estar enfrentando um monstro grotesco. Se eu soubesse de antemão que estava armado, nunca lhe teria fornecido a substância, para início de conversa, Deus é testemunha!”

A história foi corroborada em todos os aspectos por uma segunda testemunha, o homem de rosto vermelho que eu já notara. Ele era lânguido e ultrarrefinado, um homem de tipo extremamente aristocrático, que inalava com repugnância este ar comum. Talvez não tivesse mais de trinta anos e vestia-se na última moda. Não forneceu nenhuma revelação nova, repetindo de maneira quase literal as palavras de Creer. Estava, contou ele, deitado num colchão do outro lado da sala e, embora se encontrasse num estado muito relaxado, estava pronto a jurar que tinha perfeita consciência do que se passava. “O ópio, para mim, é um prazer ocasional”, concluiu. “Proporciona algumas horas em que posso escapar das ansiedades e responsabilidades de minha vida. Não vejo vergonha nisso. Conheço muitas pessoas que tomam láudano na privacidade de seus lares precisamente pela mesma razão. Para mim, não é diferente de fumar tabaco ou beber álcool. Mas”, acrescentou num tom incisivo, “sou capaz de lidar com ele.”

Foi só quando o juiz pediu-lhe o nome para o registro que o jovem causou um rebuliço no tribunal: “Lorde Horace Blackwater.”

O juiz fixou os olhos nele. “Devo compreender, senhor, que é parte da família Blackwater de Hallamshire?”

“Sim”, respondeu o rapaz. “O conde de Blackwater é meu pai.”

Fiquei tão surpreso quanto todos os demais. Parecia extraordinário, até chocante, que o herdeiro de uma das famílias mais antigas da Inglaterra tivesse acabado num sórdido antro de drogas em Bluegate Fields. Ao mesmo tempo, eu podia imaginar o peso que seu testemunho acrescentaria ao processo contra meu amigo. Aquele não era apenas um marujo delinquente ou um charlatão dando sua versão dos acontecimentos. Era um homem que podia muito possivelmente provocar sua própria ruína pela mera confissão de que estivera na Casa de Creer.

Para sorte dele, sendo aquele um tribunal policial, não havia nenhum jornalista presente. O mesmo, nem preciso acrescentar, poderia ser dito a respeito de Holmes. Quando sir Horace afastou-se do banco, ouvi outros membros do público murmurando entre si e percebi que estavam ali apenas pelo espetáculo e alimentavam-se daquele tipo de detalhe devasso. O juiz trocou algumas palavras com seu oficial de justiça de toga preta enquanto o rapaz era substituído por Stanley Perkins, o guarda que eu encontrara na noite em questão. Perkins manteve-se de pé, empertigado, o capacete a seu lado; segurava-o como se fosse um fantasma na Torre de Londres e aquilo a sua cabeça. Pouco teve a dizer, mas afinal já haviam narrado grande parte da história por ele. Fora abordado pelo rapaz que Creer mandara à sua procura e solicitado a ir à casa da esquina de Milward Street. Estava a caminho de lá quando ouviu dois tiros e correu para Coppergate Square, onde descobriu um homem, jazendo inconsciente com um revólver na mão, e uma moça caída numa poça de sangue. Assumira o controle da cena enquanto uma multidão se reunia. Vira de imediato que nada poderia fazer pela menina. Descreveu como eu havia chegado e identificado o homem inconsciente como Sherlock Holmes.

“Não pude acreditar ao ouvir isso”, disse. “Lera algumas façanhas do sr. Sherlock Holmes, e pensar que ele pudesse estar envolvido naquele tipo de coisa… bem, era inacreditável.”

Perkins foi seguido pelo inspetor Harriman, reconhecível de imediato pela basta cabeleira branca. Pela maneira como ele falou, com cada palavra medida e cuidadosamente pronunciada para obter o efeito ideal, podia-se imaginar que passara horas ensaiando, o que sem dúvida podia mesmo ter acontecido. Nem sequer tentou disfarçar um tom de desdém. Mais parecia que a prisão, e na verdade a execução de meu amigo, era sua única missão na vida.

“Permitam-me descrever para o tribunal meus passos ontem à noite.” Assim ele começou. “Eu havia sido chamado para o arrombamento de um banco na White Horse Road, a pouca distância dali. Quando ia embora, ouvi o som de tiros e o apito do guarda e rumei para o sul para ver se poderia prestar ajuda. Quando cheguei, o guarda Perkins estava no comando e fazendo um admirável trabalho. Eu o recomendarei para uma promoção. Foi ele que me informou da identidade do homem que se encontra agora diante dos senhores. Como já ouviram, o sr. Sherlock Holmes tem alguma reputação. Estou certo de que muitos de seus admiradores ficarão desapontados ao ver que a verdadeira natureza do homem, seu vício em drogas e as consequências assassinas do mesmo situam-se tão abaixo da ficção que todos nós apreciamos.

“Que o sr. Holmes assassinou Sally Dixon está fora de questão. De fato, nem os poderes imaginativos de seu biógrafo seriam capazes de suscitar a menor dúvida nas mentes de seus leitores. Na cena do crime observei que o revólver que ele tinha nas mãos ainda estava quente, que havia resíduos de pólvora enegrecendo-lhe a manga da camisa e várias pequenas manchas de sangue em seu paletó, o que só poderia ter acontecido se ele estivesse parado muito perto da moça quando ela recebeu os tiros. O sr. Holmes estava semiconsciente, ainda emergindo de um transe induzido pelo ópio e mal se dando conta do horror que praticara. Eu disse ‘mal se dando conta’, mas com isso não quero dizer que estava em completa ignorância. Ele conhecia sua culpa, Meritíssimo. Não ofereceu nenhuma defesa. Quando o adverti e lhe dei voz de prisão, não fez nenhuma tentativa de me persuadir de que as circunstâncias eram sob qualquer aspecto diversas do que descrevi.

“Foi só esta manhã, após oito horas de sono e uma chuveirada fria, que ele veio com uma história do arco-da-velha, proclamando sua inocência. Disse-me que tinha visitado a Casa de Creer não levado pela tentação de satisfazer seu detestável apetite, mas por estar investigando um caso, cujos detalhes recusou-se a compartilhar comigo. Disse que um homem, que conhece apenas pelo nome de Henderson, o havia enviado a Limehouse na busca de alguma pista, mas que a informação se revelara uma armadilha e que tão logo entrara no antro tinha sido subjugado e obrigado a consumir um narcótico. Pessoalmente, julgo um pouco estranho que um homem visite um antro de ópio e depois se queixe de ter sido drogado. E como o sr. Creer passa toda a sua vida vendendo drogas para homens que desejam comprá-las, é inexplicável que nessa ocasião ele tenha decidido dá-las gratuitamente. Mas sabemos que isso é um amontoado de mentiras. Já ouvimos uma eminente testemunha que viu o sr. Holmes fumar um cachimbo e depois pedir um segundo. O sr. Holmes também afirma que conhece a moça assassinada e que ela era igualmente objeto de sua misteriosa investigação. Estou disposto a aceitar essa parte de seu depoimento. É bem possível que ele a tivesse encontrado antes e, em seu delírio, a confundido de alguma maneira com algum criminoso de alta periculosidade. Não tinha outro motivo para matá-la.

“Resta-me apenas acrescentar que o sr. Holmes insiste agora que é objeto de uma conspiração engendrada por mim, o guarda Perkins, Isaiah Creer, lorde Horace Blackwater e, muito possivelmente, até o Meritíssimo. Eu descreveria isto como delirante, mas na verdade é pior ainda. É uma tentativa deliberada de se eximir das consequências dos delírios que o acometeram ontem à noite. É mesmo uma pena para o sr. Holmes que tenhamos uma segunda testemunha que presenciou o próprio assassinato. Seu depoimento, estou seguro, porá fim a estas formalidades. De minha parte, posso dizer apenas que em meus quinze anos na Polícia Metropolitana nunca encontrei um caso em que o conjunto de evidências fosse mais nítido e o culpado, mais óbvio.”

Quase esperei que ele se curvasse para os aplausos. Em vez disso, inclinou a cabeça respeitosamente para o juiz e sentou-se.

A última testemunha foi o dr. Thomas Ackland. Eu mal o havia examinado na escuridão e na confusão da noite, mas agora, de pé diante de mim, ele me pareceu um homem pouco atraente, com cachos de cabelo de um ruivo muito vivo (teria tido um lugar assegurado na Liga dos Cabeças Vermelhas) tombando de maneira irregular de uma cabeça alongada, e sardas escuras que faziam sua pele parecer quase doente. Tinha um bigode incipiente, um pescoço inusitadamente comprido e olhos de um azul aquoso. É possível, suponho, que eu exagere sua aparência, pois quando ele falou senti uma profunda e irracional aversão por um homem cujas palavras pareciam selar a sorte de meu amigo, provando sua culpa. Retornei às transcrições oficiais, o que me permite expor com exatidão o que lhe foi perguntado e o que ele próprio disse, para que não se possa alegar que minhas próprias ideias preconcebidas distorcem o registro.

O PROMOTOR: Queira por favor declarar seu nome ao tribunal.

TESTEMUNHA: É Thomas Ackland.

O PROMOTOR: O senhor é da Escócia.

TESTEMUNHA: Sim. Mas atualmente moro em Londres.

O PROMOTOR: Queira por favor nos falar um pouco sobre sua carreira, dr. Ackland.

TESTEMUNHA: Nasci em Glasgow e estudei medicina na universidade desta metrópole. Obtive meu diploma de médico em 1867. Tornei-me professor-assistente na Royal Infirmary School of Medicine em Edimburgo e, mais tarde, catedrático de cirurgia clínica no Royal Hospital for Sick Children de Edimburgo. Mudei-me para Londres há quatro anos, após a morte de minha mulher, e fui convidado a ocupar um cargo de direção no Westminster Hospital, onde me encontro agora.

O PROMOTOR: O Westminster Hospital é uma instituição voltada para os pobres e é financiado por doações públicas. Isto é correto?

TESTEMUNHA: Sim.

O PROMOTOR: E o senhor mesmo, segundo creio, fez uma generosa doação para a manutenção e a ampliação do hospital.

JUIZ: Penso que deveríamos passar ao que interessa, se não se incomoda, sr. Edwards

O PROMOTOR: Muito bem, Meritíssimo. Dr. Ackland, poderia por favor relatar ao tribunal por que se encontrava nas vizinhanças de Milward Street e Coppergate Square ontem à noite?

TESTEMUNHA: Eu fora visitar um de meus pacientes. É um homem trabalhador, mas de família pobre, e depois que deixou o hospital fiquei preocupado com seu bem-estar. Fui tarde à sua casa porque antes compareci a um jantar no Royal College of Physicians. Deixei sua casa às onze horas, com a intenção de voltar a pé para a minha – resido em Holborn. Contudo, fiquei perdido no nevoeiro, e foi por um completo acaso que entrei na praça pouco antes da meia-noite.

O PROMOTOR: E o que viu?

TESTEMUNHA: Assisti à coisa toda. Havia uma menina, pobremente vestida nesse tempo rigoroso, de não mais de catorze ou quinze anos. Tremo em pensar no que ela teria estado fazendo na rua àquela hora, pois aquela é uma área conhecida por toda espécie de vícios. Logo que a notei, ela estava com as mãos levantadas e claramente aterrorizada. Pronunciou duas palavras: “Por favor!” Depois ouvi dois tiros e ela caiu no chão. Soube de imediato que estava morta. O segundo tiro havia penetrado no crânio e deve tê-la matado no mesmo instante.

O PROMOTOR: Viu quem disparou os tiros? testemunha: Não, a princípio não. Estava muito escuro e fiquei absolutamente chocado. Temia também por minha vida, pois me ocorreu que devia haver um louco à solta para desejar fazer mal àquela menina indefesa. Em seguida divisei uma figura parada a pouca distância dela, segurando uma arma que ainda fumegava em sua mão. Enquanto eu olhava, ele gemeu e caiu de joelhos. Depois se estatelou, inconsciente, no chão.

O PROMOTOR: Viu esta figura hoje?

TESTEMUNHA: Sim. Está em pé diante de mim no banco dos réus.

Houve mais um alvoroço na galeria pública, pois estava tão claro para todos os espectadores quanto para mim que se tratava da evidência mais condenatória de todas. Sentado ao meu lado, Lestrade ficara paralisado, os lábios contraídos, e ocorreu-me que a fé em Holmes que tanto depusera em seu favor decerto estava abalada. E quanto a mim? Confesso que estava muito perturbado. À primeira vista, era inconcebível que meu amigo pudesse ter matado exatamente a menina com quem mais desejava falar, pois ainda havia uma chance de que Sally Dixon pudesse ter ouvido do irmão alguma coisa capaz de nos levar à Casa da Seda. Depois, ainda havia a questão do que ela estava fazendo em Coppergate Square, para começar. Teria sido capturada e mantida presa antes mesmo que Henderson nos visitasse, e poderia ele nos ter atraído de caso pensado para uma armadilha com esse intuito preciso? Essa me parecia ser a única conclusão lógica. Ao mesmo tempo, porém, eu me lembrava de algo que Holmes me dissera várias vezes, a saber, que quando eliminamos o impossível, o que quer que sobre, por mais improvável que seja, deve ser a verdade. Eu seria capaz de rejeitar as evidências apresentadas por Isaiah Creer, pois um homem como ele estaria certamente aberto ao suborno e diria qualquer coisa que lhe fosse solicitada. Mas era impossível, ou no mínimo absurdo, sugerir que um eminente médico de Glasgow, um policial graduado da Scotland Yard e o filho do conde de Blackwater, um membro da aristocracia inglesa, tivessem todos se reunido, sem nenhuma razão óbvia, para urdir uma história e incriminar um homem com quem nenhum deles jamais estivera. Essa era a escolha que eu tinha diante de mim. Ou bem os quatro estavam mentindo, ou Holmes, sob a influência do ópio, havia de fato cometido um terrível crime.

O juiz não precisava fazer esse tipo de reflexão. Tendo ouvido as evidências, pediu o Livro das Acusações e anotou o nome e o endereço de Holmes, sua idade e a acusação proferida contra ele. A isso acrescentou os nomes e os endereços do promotor e de suas testemunhas e um inventário de todos os objetos encontrados em posse do prisioneiro. (Estes incluíam um pincenê, um pedaço de barbante, um anel de sinete exibindo o timbre do duque de Cassel-Felstein, duas pontas de cigarro embrulhadas numa página rasgada do London Corn Circular, uma pipeta química, várias moedas gregas e um pequeno berilo. Até hoje pergunto a mim mesmo o que as autoridades devem ter deduzido de tudo isso.) Holmes, que não pronunciara uma palavra durante todo o processo, foi então informado de que teria de permanecer sob custódia até que o tribunal legista se reunisse após o fim de semana. Depois disso, seria julgado. E o assunto terminaria aí. O juiz tinha pressa de continuar seu trabalho. Havia vários outros casos a julgar e a luz já se extinguia. Observei Holmes quando o levavam embora.

“Venha comigo, Watson!” disse Lestrade. “Apresse-se agora. Não temos muito tempo.”

Saí do tribunal principal atrás dele, desci um lance de escada e cheguei a uma área no subsolo que carecia de todo e qualquer conforto, onde até a pintura vagabunda estava em mau estado, e que poderia ter sido expressamente projetada para prisioneiros, para homens e mulheres que se despediam do mundo acima dali. Lestrade estivera ali antes, é claro. Ele me conduziu às pressas por um corredor até um cômodo de pé-direito alto, ladrilhado de branco com uma única janela e um banco que contornava todo o espaço. Esse banco era compartimentado por uma série de divisórias de madeira, de modo que qualquer um que se sentasse ali estaria isolado e incapaz de se comunicar com os que estivessem em qualquer dos lados. Soube de imediato que aquela era a Sala de Espera dos Prisioneiros. Talvez Holmes tivesse sido mantido ali antes do julgamento.

Mal entramos, houve um movimento à porta e Holmes apareceu, escoltado por um policial de uniforme. Corri para ele e teria até lhe dado um abraço se não tivesse compreendido que, na visão dele, essa teria sido apenas mais uma indignidade acrescentada a tantas outras. Mesmo assim, minha voz embargou-se quando lhe falei. “Holmes! Não sei o que dizer. A injustiça da sua prisão, a maneira como você foi tratado… é mais do que se poderia imaginar.”

“É com certeza muito interessante”, retrucou ele. “Como vai você, Lestrade? Um estranho e inesperado desdobramento, não lhe parece? Que deduz dele?”

“Eu de fato não sei o que pensar, sr. Holmes”, murmurou Lestrade.

“Bem, nisso não há nenhuma novidade. Parece que nosso amigo Henderson nos armou uma linda esparrela, hein, Watson? Bem, não esqueçamos que, de certo modo, eu previa isso e apesar de tudo ele se provou útil para nós. Antes, eu suspeitava que tínhamos topado com uma conspiração que ia muito além de um assassinato num quarto de hotel. Agora tenho certeza disso.”

“Mas de que lhe adianta saber essas coisas se vai ficar preso e ter sua reputação destruída?” contestei.

“Creio que minha reputação cuidará de si mesma”, respondeu Holmes. “Se me enforcarem, Watson, deixo-lhe a tarefa de convencer seus leitores de que tudo não passou de um mal-entendido.”

“Pode brincar com tudo isso, sr. Holmes”, resmungou Lestrade. “Mas advirto-o de que temos muito pouco tempo. E as evidências contra o senhor parecem, numa palavra, incontestáveis.”

“Que deduz você das evidências, Watson?”

“Não sei o que dizer, Holmes. Esses homens não parecem se conhecer. Vêm de diferentes partes do país. No entanto, estão de completo acordo quanto ao que aconteceu.”

“Apesar disso, com certeza você dá mais crédito à minha palavra que à de nosso amigo Isaiah Creer, não é?”

“Claro.”

“Então permita-me dizer-lhe de uma vez que o que contei ao inspetor Harriman é a versão verdadeira dos acontecimentos. Quando entrei no antro de ópio, Creer aproximou-se de mim e acolheu-me como um novo cliente – isto é, com um misto de cordialidade e desconfiança. Havia quatro homens deitados num estado de semiconsciência, ou fingindo isso, nos colchões e um deles era de fato lorde Horace Blackwater, embora, é claro, eu não o conhecesse naquele momento. Fingi sair para uma dosezinha de ópio e Creer insistiu que eu o seguisse até o escritório para fazer o pagamento ali. Não desejando levantar suas suspeitas, fiz o que ele pedia e mal transpus o vão da porta dois homens pularam sobre mim, agarrando-me o pescoço e imobilizando-me os braços. Um deles, Watson, nós conhecemos. Era Henderson em pessoa! O outro tinha a cabeça raspada e os ombros e os antebraços de um lutador, com a força compatível. Eu não conseguia me mexer. ‘Foi muita imprudência sua, sr. Holmes, interferir em coisas que não lhe diziam respeito, e muita imprudência acreditar que poderia enfrentar pessoas mais poderosas que o senhor mesmo’, disse Henderson, ou coisa que o valha. Ao mesmo tempo, Creer aproximou-se de mim segurando um frasquinho com um líquido malcheiroso. Era algum tipo de narcótico, e não houve nada que eu pudesse fazer quando ele me foi empurrado entre os lábios. Eles eram três, e eu só um. Não podia pegar minha arma. O efeito foi quase imediato. A sala girou e a força se esvaiu de minhas pernas. Eles me soltaram e caí no chão.”

“Que demônios!” exclamei.

“E depois?” perguntou Lestrade.

“Não me lembro de mais nada até que acordei com Watson do meu lado. A droga devia ser extremamente forte.”

“Tudo isso está muito bem, sr. Holmes. Mas como explica os testemunhos que ouvimos do dr. Ackland, de lorde Horace Blackwater e de meu colega Harriman?”

“Eles estão de conluio.”

“Mas por quê? Esses não são homens comuns.”

“De fato não. Se fossem comuns eu estaria mais propenso a acreditar neles. Mas não lhe parece estranho três espécimes tão notáveis emergirem da escuridão ao mesmo tempo?”

“O que eles disseram fazia sentido. Nem uma só palavra questionável foi pronunciada neste tribunal.”

“Não? Permita-me discordar de você, Lestrade, pois ouvi várias. Poderíamos começar com o bom dr. Ackland. Não lhe pareceu surpreendente que, embora ele dissesse que estava escuro demais para que pudesse ver quem disparara o tiro, declarasse no mesmo fôlego que pôde ver fumaça saindo da arma? Ele deve ter um tipo singular de visão, esse dr. Ackland. Depois há o próprio Harriman. Talvez considere que vale a pena verificar se houve de fato o arrombamento de um banco na White Horse Road. Esse me pareceu um toque providencial.”

“Por quê?”

“Porque se eu fosse roubar um banco esperaria até a meia-noite, quando há um pouco menos de movimento nas ruas. Eu poderia também me dirigir para Mayfair, Kensington ou Belgravia – qualquer lugar cujos residentes poderiam ter depositado dinheiro suficiente para merecer ser roubado.”

“E quanto a Perkins?”

“O guarda Perkins foi a única testemunha honesta. Watson, eu me pergunto se eu poderia lhe dar o incômodo de…”

Mas antes que Holmes pudesse continuar Harriman apareceu no vão da porta, o semblante ameaçador. “Que diabo está acontecendo aqui?” perguntou. “Por que o prisioneiro não está a caminho de uma cela? Quem é o senhor?”

“Sou o inspetor Lestrade.”

“Lestrade! Eu o conheço. Mas este caso é meu. Por que está interferindo?”

“Sei muito bem quem é o sr. Sherlock Holmes…”

“Muitas pessoas sabem muito bem quem é o sr. Sherlock Holmes. Vai convidá-las todas a entrar para conhecê-lo?” Harriman virou-se para o policial que trouxera Holmes do tribunal e que estava de pé na sala, parecendo cada vez mais constrangido.

“Policial! Vou anotar seu nome e seu número e o senhor ouvirá mais sobre isto no devido tempo. Por enquanto, trate de escoltar o sr. Holmes até o pátio dos fundos, onde um furgão da polícia está à espera para levá-lo à sua próxima residência.”

“E onde fica ela?” perguntou Lestrade.”

O prisioneiro deverá ser mantido na Casa de Correção em Holloway.” Fiquei pálido ao ouvir isso, porque Londres inteira conhecia as condições que prevaleciam nessa soturna e imponente fortaleza. “Holmes!” eu disse. “Vou visitá-lo…”

“Lamento contradizê-lo, mas o sr. Holmes não receberá visitas até que minha investigação seja concluída.”

Não havia mais nada que Lestrade ou eu pudéssemos fazer. Holmes não tentou resistir. Permitiu que o policial o erguesse e o conduzisse para fora da sala. Harriman foi atrás e nós dois ficamos sós.

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* O Tribunal Criminal Central da Inglaterra. (N.T.)