BOA NOITE 

 

 

 

 

Yukihiko era violento por natureza.  

Haverá quem se admire que eu o caracterize assim. Pensam essas pessoas que a palavra «violento» não se aplica a alguém como Yukihiko. 

Cabelo espesso. Queixo anguloso, mas não demasiado protuberante. Olhos profundamente negros. Os cantos dos lábios sempre virados para cima.  

Yukihiko nunca me levantava a voz. Ao chamar-me pelo nome – Manami −, fazia-o com ternura. Sempre a sorrir. Quando os nossos olhares se cruzavam, a boca abria-se num sorriso. A suavidade da pele debaixo do queixo. O toque áspero quando acariciava a barba de três dias. 

Fosse qual fosse o ângulo, Yukihiko era um tipo impe-cável. Isto aplica-se igualmente à vertente profissional: era um empregado-modelo. Um colega de trabalho com quem se podia contar sem reservas. Um trabalhador que os superiores hierárquicos tinham gosto em convidar para beber um copo após o expediente. A todos, Yukihiko agradava sobremaneira. Era de tal modo impecável que chateava.  

Contudo, Yukihiko primava pela violência.  

Não digo isto pelo facto de Yukihiko me ter beijado pela primeira vez numa sala vazia, às escuras e de porta fechada. Nem porque depois desse beijo impetuoso me empurrou de costas contra a mesa da sala de reuniões e começou a desabotoar-me a blusa devagar. Nem por ter acariciado demoradamente a minha pele nua, indiferente à possibilidade de entrar alguém a qualquer momento. Tão-pouco porque ele, apesar de vezes sem conta lhe ter pedido que parasse, se negou a isso. 

Nunca lhe dei a conhecer que gostava dele. Chamava-me Manami Enomoto e desempenhava as funções de subdiretora do departamento ao qual Yukihiko pertencia. Yukihiko Nishino trabalhava às minhas ordens. Era três anos mais novo que eu. Jamais tínhamos ficado os dois sozinhos na mesma sala, nem houvera da minha parte a mínima insinuação. Viajáramos juntos em negócios por mais do que uma ocasião. Apanhávamos o comboio (ou o autocarro, se fosse caso disso), despachávamos as reuniões, tornávamos a apanhar o comboio e regressávamos. A seguir, entregávamos um relatório e as notas de despesa e pronto: a isso se resumia o nosso contacto.  

Confesso, porém, que Yukihiko me agradara desde o primeiro momento. Sempre que ele passava por trás da minha cadeira, vinha-me à cabeça a frase «misturar trabalho com prazer». Uma vez que tinha por objetivo triunfar na minha profissão, sempre procurei não me apaixonar por outro funcionário da empresa que trabalhasse na empresa. Contudo, mal Yukihiko entrou para o departamento, apaixonei-me por ele de caixão à cova. 

Amor? Uma expressão tão morna e curta. Para descrever o que eu sentia por ele deveria utilizar termos menos prosaicos, como «delírio» e «fervor». Assim que pus a vista em cima de Yukihiko, fui tomada por um fervoroso delírio. 

E ele sabia disso. Sabia, e nem sequer fazia questão de fingir o contrário. Apesar de ter consciência de que eu não queria que ele soubesse. 

Ao perceber perfeitamente que o amava em segredo e que me esforçava por esconder esse sentimento no mais fundo recesso da alma, não me deu tréguas. Que é como quem diz, não me permitiu apaziguar o meu coração. 

Foi em maio que Yukihiko me beijou na sala de reuniões às escuras. Conhecíamo-nos há um ano e um mês. Durante treze meses, embora me esforçasse por anular esse sentimento, o meu amor por ele crescera. Yukihiko olhava para mim com manifesta indiferença. Quanto mais me esforçava por negar, maior era o desejo. 

Nesse mês de maio, Yukihiko aprisionou-me facilmente na sua teia. À imagem e semelhança do colecionador que estica as asas de uma borboleta e as fixa com alfinetes numa caixa. Como quem manuseia delicadamente o corpo sem vida de um inseto, a fim de preparar um mostruário. Pode dizer-se que ele me capturara. Sem me ter sequer tocado com um dedo. Sem que tivéssemos trocado um olhar. 

Se alguém me tivesse dito isto antes de o conhecer, teria desatado a rir. «Que disparate estás para aí a dizer?» Uma rapariga não se apaixona sem conhecer minimamente o objeto do seu amor. Mais a mais, os anos contam. Não tenho idade para romances pueris. Nos adultos, o amor significa querer estar próximo da outra pessoa, ler e interpretar os sinais, pressentir o outro, aspirar a sua presença, comunicar com o ente amado e tocar-lhe. Aqui têm o que teria respondido, entre gargalhadas. Agora, porém, já não tenho vontade de rir. É um amor estúpido. Um amor que nos deixa tolhidos, que faz de nós um animal ferido e encurralado, que nos paralisa. Yukihiko tornou-se meu dono e senhor, deixou-me ferida de amor, com a maior facilidade do mundo, sem me apontar uma arma, sem garras nem presas. Se vissem como eu tremia! O tremor brotava das minhas entranhas pelo contentamento de me saber apanhada por ele. 

Quando me tocou pela primeira vez – com calma mas de forma decidida −, Yukihiko mostrou-se francamente violento. Nem a respiração contida, a ternura dos gestos, a suavidade da voz foram suficientes para escamotear a selvajaria do seu comportamento. Faz parte da natureza das bestas quando capturam a presa. As criaturas poderosas abatem-se sobre as mais pequenas com movimentos graciosos e sem desperdiçar energia. Quanto mais refinadas e eficazes, mais violentas são.  

Manami... Yukihiko pronunciou o meu nome na penumbra da sala de reuniões. Na escuridão provocada pelas persianas fechadas. Não respondi. Fiquei chocada por ele saber o meu primeiro nome, uma vez que até à data sempre me tratara pelo apelido: senhora Enomoto, diretora do departamento. Recordar que tinha um nome chocou-me, bem como o facto de o ouvir pela primeira vez da boca de Yukihiko, derretendo-se docemente. Por detrás das pálpebras fechadas, o céu descoberto que havia do outro lado da janela invadiu o meu espírito. Yukihiko empurrou-me e fez-me cair sobre a mesa da sala de reuniões. «Não», murmurei. Repeti a palavra várias vezes. Yukihiko calou a minha voz dando mostras de uma violência refinada. Fez-me sua por completo. 

O meu corpo, a minha cabeça, a minha alma – tudo isso era meu. Porém, desde o fatídico dia de maio, um ano e um mês depois de o ter conhecido, o meu ser pertencia-lhe. Digo isto apesar de, na realidade, ser impensável que uma pessoa possa pertencer a outra. No entanto, eu desejava ser sua. Estava decidida a entregar-me a ele. 

Ao sair da sala, como seria de esperar, não encontrámos vivalma no corredor. Yukihiko era precavido por natureza. As minhas faces estavam ligeiramente enrubescidas. A camisa dele não tinha uma ruga, a gravata estava impecável, e aparentava total serenidade. Separámo-nos: eu fui para a esquerda, ele para a direita. Yukihiko encaminhou-se para o elevador, carregou no botão e ficou à espera. Já eu, abri a porta que dava acesso às escadas de emergência e desci, com os saltos a fazerem barulho. Ao chegar ao andar de baixo, encostei o rosto à porta metálica. Senti o toque frio do aço de encontro à minha cara. Dei livre curso às lágrimas. A seguir, compus o cabelo, para me certificar de que não estava despenteada, com um lenço sequei as lágrimas que tinham corrido até ao queixo e pestanejei por mais de uma vez. Empurrei a porta de aço e comecei a caminhar, pisando a alcatifa com os saltos altos. 

Yukihiko não se encontrava à vista. Passei por trás do diretor do departamento, entretido a analisar uma série de documentos, e suspirei de alívio. Não percebia como é que conseguia estar ali de pé. O céu de maio era luminoso, e eu convertera-me num ser estranho. Regressei ao meu gabinete e meti na boca um rebuçado de menta. Posto isto, retomei tranquilamente o meu trabalho. 

 

 

Uma vez, fui apresentada a uma antiga amante de Yukihiko.  

− Kanoko! – chamou ele. Fiquei para morrer. Por que carga de água é que a chamava pelo nome próprio à minha frente? A um antigo amor, naquele tom tão terno? 

− Boa noite, muito gosto em conhecê-la. – Apesar da fúria que sentia, foram estas as palavras que me saíram da boca.  

Dias antes, Yukihiko disse-me que Kanoko tinha proposto que fôssemos jantar os três. Quando quis saber quem era a tal Kanoko, respondeu-me «uma amiga», ao mesmo tempo que me acariciava o traseiro. 

− O rabo das mulheres está sempre tão fresco e tão suave. É um prazer tocar-lhe... – acrescentou, visivelmente deleitado. 

– Aposto que o teu também deve estar fresco. Porque não experimentas? Logo tiras a conclusão – ripostei, e Yukihiko abafou uma gargalhada. Fiz coro com ele. Mas enquanto me ria, dava voltas à cabeça, pensando em quem seria a dita Kanoko. 

– Manami, o que te atrai no Yukihiko? – perguntou-me Kanoko.  

A cabra! Fiquei para morrer, mas consegui não deixar transparecer a minha raiva. Limitei-me a esboçar um sorriso tímido. 

Yukihiko manteve-se calmo durante a refeição. Correu tudo bem. Ementa satisfatória. Álcool em doses moderadas. Conversa inofensiva. Pouco a pouco, caiu a noite. Kanoko achou curial tratar-me com altivez. Só faltou dizer: «O quê? É esta a nova amante do Yukihiko? Que enjoo!» Nem se deu ao trabalho de esconder os seus sentimentos. Pela parte que me toca, portei-me como uma adulta com mais três anos que eles os dois, bebi o meu saqué com um sorriso estampado na cara e, usando uma cintilante colher prateada, deliciei-me com o gelado de pêssego servido à sobremesa.  

Quando por fim nos despedimos de Kanoko, virei as costas a Yukihiko e fiz menção de me afastar rapidamente. 

– Que se passa, Manami? – perguntou ele, apressando-se a vir atrás de mim. 

Continuei a andar, como se não fosse nada comigo. Com passos vigorosos, lembrando um mamute a pisar um manto de gelo em plena tundra. 

– Ficaste zangada? – Não fiz caso. – Não te percebo. – Não fiz caso.  

Às tantas, Yukihiko ultrapassou-me e, de frente para mim, abraçou-me com força. Explodi. Ele afastou-se imediatamente.  

– Como é que foste capaz de me apresentar a uma antiga amante? – atirei-lhe à cara. Yukihiko abriu ligeiramente a boca. 

– Deste por isso?  

– Obviamente! 

– Mas como? 

– Só se fosse estúpida é que não percebia! 

– A sério? 

– És um insensível da gaita! 

– Insensível, eu? 

– Sim, não tens ponta de sensibilidade! 

– Não tenho sensibilidade? 

– És como uma criança pequena! 

– Uma criança pequena? 

Yukihiko repetia tudo o que eu dizia com uma genuína expressão de espanto. Aos poucos, fui ficando sem energia. Agachei-me e desatei num pranto. Ele deixou-me chorar e depois pegou em mim por baixo dos braços para me levantar. A seguir, segurou-me no queixo e beijou-me. Duas, três vezes, suavemente. Os seus beijos faziam-me lembrar as ondas do mar. Encostada a ele, continuei a soluçar. 

– Desculpa – disse Yukihiko.  

Assenti com a cabeça, sem deixar de chorar. 

Yukihiko tornou a pedir desculpa. Apertei-me mais contra ele. Tinha consciência de me comportar como uma menina mimada. Longe de mim ser uma menina mimada. Nesse preciso momento, decidi nunca mais telefonar a Yukihiko por minha livre iniciativa. Tomei essa decisão ao compreender que me transformara numa mimalha, sem tirar nem pôr. Decididamente, precisava de impor limites a mim mesma. Guardei essa decisão no meu coração. 

 

 

Foi então que Yukihiko resolveu apaixonar-se por mim.  

Mesmo quando começámos a andar e eu passei a dormir lá em casa (nunca permitia que ele dormisse em minha casa, pelo mesmo motivo que me levara a deixar de lhe telefonar), não se podia dizer que Yukihiko me amasse verdadeiramente. De certa maneira, pressentia-o. Yukihiko era um cabeça de vento. A tal ponto que se tornava impossível saber se estava perdido no seu mundo ou não. 

Funcionava como o mecanismo de um relógio.  

Em que bairro de Tóquio é que a cena se passou? Deve ter sido daquela vez que fomos ao cinema. Estávamos na primavera e eu levava o casaco de manga comprida no braço. Da janela do comboio avistavam-se as flores amarelas do nabo-silvestre e outras florzinhas cor de violeta que cresciam em abundância à beira da linha férrea. Dirigíamo-nos os dois, lado a lado, para o cinema. O asfalto, a ferver, parecia vibrar debaixo dos nossos pés. 

Era meio-dia. A pessoa que caminhava diante de nós estacou de repente e observou o céu. Um parzinho que avançava em diagonal, na nossa direção, olhou para cima no mesmo ângulo. Yukihiko e eu imobilizámo-nos. As nuvens pairavam sobre a nossa cabeça.  

– Não há nada que ver – observei, mas Yukihiko apontou para o telhado de uns grandes armazéns, do outro lado da rua. 

– Olha! – disse ele. 

Yukihiko apontava para um relógio de carrilhão. Havia várias figuras que entravam e saíam, ao mesmo tempo que soava uma melodia divertida com o seu quê de melancólico. Ouviu-se o carrilhão. As pessoas que passavam tinham parado todas, sem exceção, e olhavam para cima. 

– Se me dessem a escolher, gostaria de ser a rã – declarei. 

Quando o relógio deixou de tocar e os presentes retomaram o seu caminho, Yukihiko e eu deixámo-nos ficar ali quietos, de mão dada. A figura da rã surgira, vinda de trás, na zona da esfera onde estava assinalado o número quatro. Após ter saído, permaneceu momentaneamente imóvel, antes de girar sobre si mesma. Como se estivesse a dar um salto mortal. Ato contínuo, voltou para o interior do relógio. 

– Porquê a rã, quando podes ser a princesa, o príncipe, ou outra figura qualquer? – perguntou Yukihiko. 

– Não te sei explicar, mas sinto-me uma rã. 

– Hum... 

E mais não disse. Depois, assistimos a um filme (daqueles cheios de drama, ação e com direito a final feliz, como Yukihiko gosta), fomos beber um chá, demos um passeio e, ao anoitecer, jantámos caril (diz ele que não se importa de comer caril ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar, todos os dias da semana) e bebemos cerveja. Durante todo o tempo, Yukihiko parecia pensativo. 

– Não formulei como deve ser a pergunta que te fiz antes – disse ele, abruptamente. Terminara o caril e tínhamos acabado de pedir galinha picante, salada de ovo e cerveja. – Não te queria perguntar acerca da rã, mas sim porquê uma figura mecânica. Tanto me faz que sejas uma rã, uma princesa ou um príncipe. 

Fiquei sem saber que responder. Já me esquecera do que me levara a afirmar que queria ser uma rã. Mas Yukihiko olhava para mim tão sério que tentei desesperadamente lembrar-me. 

– Bom, os bonecos mecânicos, de uma forma geral, ficam quietos em lugares escuros – comecei a explicar. 

– Ahã – assentiu Yukihiko, muito sério.  

– Por outro lado, saem da toca de hora a hora, certo? 

– Ahã. 

– E, quando saem, cantam e dançam alegremente, certo? 

– Ahã. 

– E no fim regressam às trevas, certo? 

– Ahã. 

– Repetem para sempre os mesmos gestos até se estragarem. 

Yukihiko respondeu afirmativamente com a testa franzida. Pegou num pedaço de galinha picante que tinham acabado de trazer para a mesa e deu uma dentada. 

– Fim da história. 

– Ahã – repetiu Yukihiko. Mastigou a galinha em silêncio. A seguir, devorou praticamente os pedaços de ovo que vinham na salada sem deixar um para amostra (gostava de ovos de todas as maneiras e feitios: cozidos, mexidos, estrelados, em omeleta japonesa, em omeleta francesa, fritos ou crus). Bebeu o resto da cerveja. Com as faces coradas, franziu de novo a testa e declarou:  

– Estou pronto. 

Foi então que Yukihiko se apaixonou por mim. 

Soube-o instantaneamente. Sem sombra de dúvida.  

− Pronto para quê? – perguntei, mas ele não respondeu. Não soube que dizer. Yukihiko, que nunca estivera apaixonado de verdade por nenhuma rapariga. Yukihiko, o temeroso.  

Apesar de tratar as mulheres com toda a cortesia. Apesar de se poder revelar extremamente violento. Apesar de tudo, Yukihiko tinha medo. 

De quê? De tudo o que tivesse que ver com as palavras «para» e «sempre», provavelmente. Talvez do odor impercetível que se desprendia da respiração tépida das pessoas. Talvez do perfume do orvalho húmido que o céu ou a terra nos proporcionam. 

Aos olhos de Yukihiko, eram tudo coisas a temer, e o mesmo acontecia relativamente às mulheres que lhes estavam associadas, daí que nunca se apaixonasse por elas. Não quer isto dizer que não fosse capaz e, mais, que não tivesse tentado. Simplesmente, esse sentimento estava fora do seu alcance. Carecia dele. 

E, no entanto, tomara-se de amores por mim. 

− Vamos embora? – perguntou calmamente. 

Ato contínuo, pôs-se de pé, deixando ficar no prato os restos de frango picante, da salada de alface, os cogumelos, a rúcula e as nozes. Pagou a conta no balcão, acompanhou-me à estação mais próxima e foi-se embora a pé. Em direção à noite, rumo às ruas escuras. À atmosfera sólida e inóspita (Yukihiko precisava dessa dureza para se sentir nas suas sete quintas). 

 

 

Quanto tempo duraria aquela inclinação de Yukihiko pela minha pessoa? 

− Detesto quando não estás por perto, Manami – declarava ele. Não parecia feliz. Isto para não dizer que se mostrava genuinamente perturbado. 

− Estarei sempre a teu lado – respondia eu. 

− Isso é impossível. 

− Fisicamente, sim, mas... 

− Não envelhecerás? 

− Como assim? 

− Não vais engordar nunca, nem emagrecer? 

− Claro que vou engordar, daqui a uns dez anos. 

− Irás aceitar-me como eu sou, Manami? 

− Não sou a Virgem Maria, nem nada que se pareça. 

− Continuarás a querer fazer amor comigo? 

− Depende do local e da hora do dia. 

− Quer dizer que não podemos fazer amor sempre? 

− Tudo pode acontecer, depende. 

− Alguma vez te fartarás de mim? 

− Quem sabe? 

− E eu, ficarei farto de ti? 

− Cala-te com isso! – dizia eu, atirando-lhe com uma almofada. Ou dando-lhe um empurrãozinho. Ou levantando-me para ir fazer chá. 

Manda a verdade que se diga que Yukihiko se tornara um chato do caraças. Bom, tinha dias. Refiro-me à época em que desenvolveu a dita inclinação por mim. 

− Será que te amo, Manami? – dizia ele. 

− Descobre por ti. 

− Até tenho medo de pensar nisso. 

Havia sempre qualquer coisa de ignóbil em Yukihiko. Por mais amáveis que o seu comportamento, as suas palavras e os seus atos fossem. Era simpático, impecável, fora de série. No entanto, dentro dele escondia-se algo que causava repulsa. Uma espécie de rigidez interior. 

− É de nascença – confessou ele, suspirando. 

− De nascença? 

− Sim, de nascença. Creio que uma parte do meu cérebro, ou outra parte qualquer do meu fígado ou dos rins, é artificial.  

− Estás a falar a sério? – perguntei, e ele assentiu. 

− Lá em casa, toda a gente... a minha mãe, o meu pai e a minha irmã... me protegia excessivamente. Resultado: estragaram-me com mimos. Só pode ter sido porque sou um ser humano artificial − concluiu, muito sério. 

− Qual é o mal de uma pessoa ser artificial? – murmurei, fazendo-lhe festas no cabelo. 

Yukihiko abanou a cabeça. 

− Não é bom sinal. 

− Não te rales! Gosto de ti na mesma. 

− Não, bom não é... 

− Porquê? 

− Porque, se eu for artificial, um dia deixarás de gostar de mim. 

− Ah, sim? 

− Sim. É sabido que os seres artificiais não se dão com seres humanos de verdade. 

Já não me lembro bem, mas acho que lhe disse para ficar caladinho. Qualquer coisa como: «Mesmo que deixes de gostar de mim, amar-te-ei sempre.» 

Yukihiko deixou entrever alguma descrença. 

− Sinto nojo de mim por te levar a dizer essas coisas – declarou, abraçando-me. Sim, és um tipo que mete nojo, pensei. E eu a mesma coisa

Abraçámo-nos ternamente. Como a água. Mas sem nos transformarmos em água. 

Estávamos inquietos. Delirantes, mas desesperadamente felizes. Sentíamo-nos mais leves. Começávamos a amar-nos. Porém, incapazes de levar o nosso amor a bom porto, estávamos condenados a ficar à beira do abismo, para sempre. 

 

 

E foi assim que Yukihiko se fartou de mim. 

Estas palavras fazem-me doer o coração, mas não há outras que traduzam melhor o meu estado de espírito.  

Yukihiko fartou-se de mim. 

− Gosto dos dónutes recheados de anko – disse ele. Foi nesse preciso momento que soube.  

− Pois eu não lhes acho graça nenhuma – retorqui.  

Yukihiko estava encostado à cabeceira da cama, a ler uma revista. Eu sentara-me na alcatifa, a assistir a uma sessão tardia de cinema na televisão. Era um filme triste, a preto-e-branco. Do género que Yukihiko não apreciava minimamente. «Faltam-lhe cenas de dança e de ação», comentaria. 

Yukihiko regressara ao seu modo ensimesmado. Passava o tempo na lua, absorto. Ficara farto de mim. 

− O que achas do melon-pan6?  

− Provoca-me tristeza. 

Estava precisamente a assoar-me quando ele disse aquilo. Deixei cair duas ou três lágrimas. Ao dar-me conta de que Yukihiko já não sentia a mesma inclinação por mim, entrei em pânico. E, daí, talvez ainda fosse a tempo. A tempo? Mas a tempo de quê? 

− Manami! – interpelou-me Yukihiko, com grande calma. 

Não me interessava ouvir o que ele tinha para me dizer. «Manami, vamos acabar tudo.» «Manami, este domingo não me dá jeito.» «Manami, perdi o interesse em ti.» Só me apetecia tapar os ouvidos. Em vez disso, voltei-me lentamente para ele e sorri. 

− O que é? 

− Que me dizes ao pão de caril? Não tem nada de triste, pois não? 

− Tens razão – respondi, com um sorriso de orelha a orelha. (Ah, os pãezinhos adocicados com sabor a caril que faziam as delícias de Yukihiko. O meu amado Yukihiko. Que deixara de gostar de mim.  

Todavia, ele ainda não sabia que se fartara de mim. Também não vou ser eu a dizer-lho, pensei, com um resquício de esperança. Se calhar, é impressão minha

− Porque choras? – perguntou ele. Às tantas, sem querer, dei por mim a soluçar. 

− Por causa do filme... É tão triste! 

− Não sei qual é o gozo de ver filmes patéticos – afirmou Yukihiko, sem passar cartão, regressando às suas leituras. Assoei-me e não voltei a chorar. Quando olhei para ele, adormecera. Tinha a revista aberta sobre o peito. 

− Acorda! Ainda não tomaste os comprimidos de vitamina B1, vitamina C e o extrato de ginkgo.  

Ele acreditava que os comprimidos específicos eram mais eficazes do que os suplementos vitamínicos. Quando o abanei, Yukihiko resmungou qualquer coisa. Estava bastante mais musculado do que parecia à primeira vista. 

Coitadinho, pensei. Por algum motivo, não sentia pena de mim mesma, apenas dele. Yukihiko estava prestes a cortar comigo, podendo mesmo abandonar-me de vez. Apesar de tudo, não conseguia impedir-me de pensar no que lhe aconteceria quando acabasse comigo, quando me largasse da mão. Morria de pena. 

Por mais que tentasse acordá-lo, ele não havia meio de abrir os olhos. Por isso, tomei o extrato de ginkgo e uns suplementos multivitamínicos (palpita-me que também são eficazes). Apaguei a luz e deitei-me a seu lado. Depois de o beijar, fechei os olhos. 

* * * 

− Porque é que as pessoas mudam? – perguntou Yukihiko.  

Lá fora chovia. O tempo combinava às mil maravilhas com a situação. 

Pronto, chegou a hora... murmurei para comigo, suspirando. Foi então que se apoderou de mim um estranho espírito combativo. Ou uma sensação de plenitude, se preferirem. 

− Talvez porque mudar é humano – disse eu, e Yukihiko respondeu com um ronco. 

− Isso é demasiado óbvio, Manami. 

− É natural, sou uma mulher solteira de trinta e três anos, tua superior hierárquica... 

Pensando bem, tinham passado três anos desde que conhecera Yukihiko. Fiquei siderada. Não sabia se três anos era muito ou pouco tempo.  

Yukihiko observava a chuva, que caía em grandes bátegas. Gotas típicas dos primeiros dias de primavera.  

− Amo-te, Manami – disse ele.  

− Mas queres acabar com tudo, certo? 

Yukihiko lançou-me um olhar penetrante. Tinha as maçãs do rosto tensas. Porém, não previra a minha reação.  

− Queres deixar-me, não é verdade? – repeti. 

− Manami... – Yukihiko mostrava-se visivelmente espantado. Já eu, estava ainda mais espantada por vê-lo assim. 

− O que é que te choca? – perguntei. 

− O facto de ter acabado de dizer que te amo. 

− Mas, Yukihiko, perdeste o interesse por mim... 

− Não é verdade. 

− Óbvio que é. 

Yukihiko empalidecera. Fizera de mim parva. O tempo todo. Apesar de eu nunca o ter tomado por parvo. Como é que se pode amar alguém sem ser cego? No fundo, não teremos de ser indulgentes para amar? Pela minha parte, nunca tive ilusões sobre Yukihiko, nem por um minuto. 

− Manami... – Ele pronunciou o meu nome num tom lamurioso. – Como és capaz de dizer uma coisa dessas, Manami? 

Compreendera que a sua indiferença tíbia não me escapara. Não havia volta a dar. Era demasiado tarde. Eu própria me encarregara de conduzir Yukihiko a um ponto em que a esperança passara a ser uma miragem. 

A chuva intensificou-se. O tempo ideal, volto a dizer.  

Deixei Yukihiko sozinho no apartamento. Fechei a porta sem fazer barulho. Ele seguiu-me até à entrada, como um cão fiel. A violência inicial que exercera sobre a minha pessoa desvanecera-se por completo. Dir-se-ia que tinha sido eu a pôr um ponto final na relação. 

− Adeus – despedi-me, mas Yukihiko não se dignou responder. 

− Porquê? – perguntou ele. Foi a minha vez de ficar calada. Saí ao encontro da chuva. 

Enquanto caminhava debaixo da forte carga de água, invadiu-me uma misteriosa sensação de plenitude. Chovia com tal violência que me vi obrigada a andar com o guarda-chuva formando um ângulo agudo. 

Avancei a passos largos, feliz da vida por ter deixado de lhe pertencer. 

 

 

Moral da história. 

Durante uma temporada, Yukihiko ligava-me todos os dias. Escusado será dizer que nunca lhe telefonei (tomara a minha decisão e ative-me a ela, até às últimas consequências). 

Inevitavelmente, perguntava-me como é que eu adivinhara que ele já não me amava. Respondia-lhe que, para começar, nunca me amara. 

− Podia dizer o mesmo a teu respeito – afirmava. 

− É possível – respondia eu, mas era mentira. Yukihiko não me dera hipótese de escolher. A culpa fora dele, por não querer que eu o amasse. Ele, que se recusava obstinadamente a ser amado. Eu, que passava a vida a tentar compreendê-lo. Um casal condenado ao fracasso. 

Durante uns tempos, fiz os possíveis e os impossíveis para não ficar a sós com ele. 

Passados meses, Yukihiko foi transferido para outro andar. Pouco depois, nomearam-no assessor do diretor do departamento (um cargo acima do de subdiretora). 

Nessa noite, propôs-me que fôssemos celebrar a sua promoção. Já está na altura de retomarmos o contacto, pensei. As coisas acalmaram. 

Acalmaram? 

− Porque será que não consigo amar uma mulher? – murmurou Yukihiko, com os cotovelos apoiados no balcão. 

Estávamos sentados nos tamboretes de um pequeno bar.  

− Porque será? – retorqui tranquilamente, bebendo um gole do meu gim-tónico. 

− Haverá algo de errado comigo? 

− Seres capaz de reconhecer isso já não é mau de todo. 

− Não gozes comigo, Manami! 

Yukihiko expeliu o fumo do cigarro. Pelos vistos, começara a fumar depois da separação. 

− O sushi estava ótimo. 

− Achei um bocado caro. 

− Hoje convido eu... 

Yukihiko apagou o cigarro. Após termos estado algum tempo sem nos vermos, parecia-me mais maduro. Compreendi que continuava apaixonada por ele. Arrependi-me profundamente de o ter deixado escapar. Ao mesmo tempo, tinha consciência de que era um erro pôr a questão nesses termos, que é como quem diz, de o ter abandonado, ou de ter posto um fim à relação. Acabara tudo, pura e simplesmente. Tudo acaba. 

− Queres ir até lá a casa? 

No momento em que Yukihiko me convidou a ir ao seu apartamento, concordei sem hesitar. Não porque estivesse feliz da vida. Pelo contrário. Aceitei porque não estava feliz de todo. Vai correr tudo bem!, sosseguei os meus temores. Seria loucura pensar que ele voltaria a cometer o disparate de me querer deitar as garras. 

Sim, respondeu o meu outro eu. Conhecera toda a tristeza possível e imaginária. Vivera paredes-meias com esse sentimento tempo suficiente. 

Yukihiko agarrou-me na mão com a leviandade do costume.  

− Cheiras bem – sussurrou, aproximando a cara do meu peito. 

O apartamento de Yukihiko estava na mesma. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, despiu-me (sempre detestara que fosse eu a fazê-lo) e, seguindo um ritual preciso, fizemos amor. Tive imenso prazer. Ele também, calculo. 

No fim, quando quis vestir a roupa interior, Yukihiko agarrou-me pelo braço. 

− Fica!  

− Amanhã tenho de me levantar cedo. 

− Casa comigo, Manami. 

− Parvo! 

Não vaciles, disse para mim mesma, e apertei o sutiã. Passei mentalmente em revista a lista de coisas que tinha para fazer. Ouviu-se um ruído bizarro. Um som parecido com o que faz um rádio mal sintonizado. 

Yukihiko lamentava-se: 

− Qual será o meu problema? 

Era a primeira vez que o via com semelhante semblante, em tudo diferente da refinada violência dos primórdios e da angústia dos tempos em que se sentira atraído por mim. 

− Problema? Como assim? – repeti, abotoando devagar a blusa. 

− Queria ficar eternamente apaixonado por ti. 

Acabei de abotoar a blusa e comecei a calçar as meias. 

− Contava passar o resto da vida contigo. 

− Que queres que te diga? – retorqui. Puxei lentamente o fecho da saia. 

− Porque é que sou incapaz de amar? 

Porque és como és, pensei em dizer-lhe, mas refreei os meus impulsos. Sentia pena de Yukihiko. Como no dia em que ficara a vê-lo dormir. Pobre Yukihiko! Mas a culpa apenas a ele podia ser imputada, eu não era tida nem achada. 

− Um dia, encontrarás a quem amar – disse com ternura, e vesti o casaco. Apesar de, na realidade, não teres vontade de amar ninguém

− Manami – murmurou ele baixinho. 

− O que é? − respondi. Consultei o relógio de pulso, exagerando no gesto. 

− Boa noite, Manami – disse Yukihiko, de cabeça baixa. 

− Boa noite, Yukihiko – disse eu, por meu turno, encarando-o. Fechei a porta de casa e encaminhei-me para a rua. Enchi os pulmões com o cheiro a erva que impregnava o ar de junho. Coitado do Yukihiko, murmurei. Coitada de mim, pensei em dizer, mas desisti. Não tinha nada que sentir pena de mim mesma. Em vez disso, pedi aos deuses que ajudassem Yukihiko a encontrar a felicidade. Como não tinha o hábito de rezar pela felicidade de ninguém, ignorava como fazê-lo, mas depois lembrei-me de uma história que lera em pequena. 

Primeiro, enfiei a mão esquerda no bolso direito e disse: «Oxalá Yukihiko seja feliz!» A seguir, enfiei a mão direita no bolso esquerdo e repeti: «Oxalá Yukihiko seja feliz!» Segui o ritual à risca. Mal acabei, virei-me na direção do apartamento dele. 

Boa noite, meu pobre Yukihiko, sussurrei. A brisa noturna de junho envolveu-me docemente. 

Boa noite, Manami. Pareceu-me ouvir a voz de Yukihiko, mas sabia que não passava de uma ilusão. Lentamente, comecei a andar.  


6 Bolo típico do Japão. (N. da T.)