Eu era a «amante» da Muau; Nishino, o «melhor amigo».
Isso fazia-nos muitas vezes rir e discutir, mas as expressões tinham sentido.
Muau é uma gata malhada20. Esguia e flexível, a imagem da serenidade. Num belo dia de verão, apareceu na minha varanda, enquanto me entretinha a ouvir rádio e a abanar-me por causa do calor.
Sintonizado na FEN, a estação militar americana, passava uma canção muito popular décadas antes, quando eu estava na casa dos vinte.
Cantarolava e abanava o leque ao ritmo da música quando, pelo canto do olho, vi algo mexer-se. Imóvel, olhei na direção da porta de rede da varanda e lá estava a gata. Após meia dúzia de voltas, empoleirou-se na máquina de lavar. Sentindo-se observada, devolveu-me o olhar.
Pousei o leque e experimentei chamá-la, mas a gata não fez caso. «Miau», tentei de novo, e ela lá me respondeu. Aos meus ouvidos, o miado soou como «muau».
Abri a porta com rede mosquiteira. A gata olhou-me diretamente nos olhos, mas não fugiu.
– Tens fome? – perguntei, e recebi outro «muau».
Regressei a casa, peguei num prato que tinha um caroço de pêssego e pousei-o no chão. A gata saltou da máquina de lavar e começou a lamber o resto do fruto. O movimento adorável da sua língua pequenina era digno de se ver. Comparado com o focinho dela, o caroço, que segundos antes se me afigurava minúsculo, parecia enorme.
Passado um bocado, a gata saltou outra vez para cima da máquina de lavar e depois para o parapeito da varanda. Finalmente, saltou para terra firme e aterrou com um som suave, lembrando uma gota de água.
– Miau – chamei da varanda, e ela olhou para cima. Respondeu-me com outro «muau», virou costas e desapareceu.
No chão da varanda, as formigas começavam a agregar-se no prato. Peguei num lenço de papel, embrulhei o caroço com cuidado e trouxe-o para dentro. Depois, deitei a caixa dos lenços vazia para o caixote do lixo.
– Vou chamar-te Muau, pode ser? – murmurei para a gata, que entretanto já fora à sua vida. No rádio, o animador de serviço lia as notícias em inglês a grande velocidade. O canto das cigarras ecoava nas árvores do parque.
Experimentei dizer em voz alta.
– Muau. – Soava bem. – Muau – repeti. Dirigi-me à casa de banho para tomar duche.
Foi mais ou menos na altura – isto é, quando a Muau começou a dar um ar da sua graça – em que conheci Nishino. Ele vivia no apartamento ao lado do meu. Ambos nos tínhamos mudado para aquele prédio assim que as obras terminaram, o que significa que éramos vizinhos há mais de cinco anos. Porém, só começámos a trocar dois dedos de conversa após a entrada em cena de Muau. Até aí, quando nos cruzávamos no prédio, limitávamo-nos a acenar com a cabeça, procurando evitar o contacto visual.
Um dia, enquanto preparava um prato de carapaus destinado à Muau, Nishino chamou-me.
Desencantara lá em casa um pesado prato castanho e decidi usá-lo para alimentar a gata. Adquirira-o pouco antes, num pequeno antiquário a caminho da estação de comboios.
A loja transbordava de tigelas, chávenas de chá e copos para saqué. O rebordo do prato apresentava duas ou três carpas a nadar. Não vou ao exagero de dizer que se tratava de uma antiguidade, mas, como estava lascado, tinha sido uma pechincha. Lavara-o bem (a loja não primava pela limpeza) e usava-o desde então para servir sardinhas secas e coisas do género à gata.
– É um artigo de fino gosto – disse Nishino, olhando para cima. A minha varanda situava-se a poucos centímetros do chão.
– Sim – respondi laconicamente, e devo ter feito um ar desconfiado.
– O peixe é para o gato? – continuou ele, sem dar mostras de ter reparado na minha expressão.
– É – respondi.
Senti-me tentada a dizer que era para a Muau, e não para um gato qualquer, mas o desejo de não partilhar assim do pé para a mão o nome que escolhera para a gata foi mais forte.
Nishino ficou ali quieto a olhar para mim. Pousei o prato no chão da varanda. Visto de cima, o rosto dele lembrava-me o focinho da gata. Havia algo de feroz, algo de delicado, na sua expressão. Calculei que tivesse passado há muito os trinta anos, embora da sua pessoa se desprendesse uma estranha jovialidade.
Muau não tardou a parecer, miando aos sete ventos a verdadeira identidade. Comeu o carapau com gosto. Enquanto a observava, esqueci-me completamente de Nishino. Assim que limpou o prato, a gatita subiu para o parapeito e, de lá, saltou para a rua.
– Miau – imitou Nishino, e Muau chegou-se ao pé dele, com os olhos fechados e a ronronar, permitindo que lhe fizesse festas.
– É um bichano simpático – comentou Nishino, acariciando a gata.
– Muito – respondi, fingindo-me desinteressada, mas aquilo irritou-me. Por que carga de água se punha a gata a ronronar para um tipo que não conhecia de parte nenhuma?
– E que tal se eu também lhe desse de comer? – alvitrou ele, com a mesma delicadeza que caracterizava a nova amiga de quatro patas.
Limitei-me a sorrir. Peguei no prato e voltei para dentro. Nishino olhou para mim como se quisesse acrescentar qualquer coisa, mas fechei-lhe a porta da varanda na cara.
– Eras um bocadinho assustadora quando te conheci, sabes? – recordou Nishino, passados uns tempos. Na altura, calculo que essa fosse a imagem que projetava junto dos outros. Não podia adivinhar que, dois meses depois, eu me tornaria aquilo a que se pode chamar a «amante» de Nishino.
Da mesma maneira que a Muau assentou arraiais na varanda, Nishino ganhou lugar cativo no meu apartamento. Podia não miar como a gata, mas subjugou o meu coração com a mesma subtileza. Só precisava de abrir a porta da rua e de a convidar a entrar − com a promessa de uns amendoins ou de umas bolachas, em vez de um caroço de pêssego −, e, com o andar da carruagem, não tardou a conquistar o direito ao prato de comida e à tigela com água.
– O gato aparece todos os dias? – perguntou Nishino.
– Não é um «gato», chama-se Muau – corrigi, e ele riu-se.
– Andei este tempo todo a chamar-lhe Príncipe Miau.
– Bom, o certo é que é uma gata, e o nome assenta-lhe às mil maravilhas.
Ao dizer aquilo, Nishino beijou-me de raspão. Depois apanhou o prato de Muau, que estava debaixo da mesa.
– Bonita peça! – comentou, examinando o prato ao pormenor.
– Se queres que te diga, foi barato.
– É um desperdício usá-lo desta maneira.
– Porquê? A Muau é a minha amante.
Nishino riu-se.
– A tua amante? Nesse caso, Eriko, sou o quê?
– Um bom amigo, acho eu.
Nishino riu-se outra vez e beijou-me, desta vez com redobrada fogosidade.
– É isto que os amigos fazem? – perguntou com voz doce.
– Óbvio que sim – respondi, a sorrir.
– Vejo que a Muau é a tua prioridade – disse Nishino, fingindo-se desolado. Contudo, os olhos riam-se.
– Ela é tudo para mim, e eu sou tudo para ela.
– Bom, acho que isso confirma que sou apenas um bom amigo das duas.
Nishino soltou um suspiro teatral. Cobrindo o rosto com as mãos, fingiu que chorava.
– Não é caso para ficares assim – disse eu.
Ele espreitou por entre os dedos, e a seguir soltou uma enorme gargalhada, fazendo-me rir também.
– És uma miúda porreira, Eriko – disse, com uma voz esganiçada, abraçando-me. Deitou-me suavemente no tapete e beijou-me com ternura.
O prato da Muau encontrava-se por cima da minha cabeça. De vez em quando, o meu braço estendido chocava com ele e fazia-o chocalhar. Estava prestes a apaixonar-me por Nishino – a qualquer momento –, mas decidira que isso não aconteceria. Recusava-me a amá-lo. Nada neste mundo me obrigaria a mudar de ideias.
O meu primeiro casamento tinha fracassado. O meu marido e eu estávamos violentamente apaixonados, mas as coisas não resultaram. A culpa não foi dele nem minha. Um dia, por nenhum motivo em especial, soubemos que não valia a pena continuarmos juntos. Tão simples quanto isso.
Não posso afirmar que tenha perdido a coragem. Pelo contrário, talvez me tenha tornado mais atenta e mais observadora. No que toca ao amor, a perspicácia leva-nos a pôr tudo em causa e a hesitar.
– Porque é que não posso ser o teu amante? – perguntava-me Nishino a toda a hora, como um fedelho mimado. Neste caso, um fedelho de trinta e cinco anos. Melhor dizendo, um fedelho cinco anos mais novo que eu.
– Porque não posso ser responsável por ti – respondia, acariciando-lhe o pescoço.
– Não percebo porque és tão arrogante comigo – dizia ele, indignado.
– Arrogante?
– É arrogante da tua parte pensares que podes ser responsável por outra pessoa. Ou condescendente, no mínimo.
– Compreendo – respondia-lhe, o que tinha o condão de o deixar ainda mais exasperado.
– Não procuro a tua aprovação. Só quero ser teu amante!
Havia um tom de genuína indignação na voz dele, mas os olhos brilhavam como de costume.
Se Nishino se sentia próximo de mim, isso devia-se porventura ao facto de o manter à margem. Baixando a guarda, tinha a certeza de que ele fugiria a sete pés. Eu faria isso, pelo menos. Éramos demasiado parecidos. Após refletir maduramente sobre o assunto, chegara a essa conclusão.
– A Muau é autêntica – declarei, e Nishino baixou a cabeça, desapontado.
– Estás a dizer que confias mais na gata do que em mim?
– Acho que sim, se queres pôr as coisas dessa maneira.
– Tens-me assim em tão pouca conta?
Na minha opinião, Nishino era o retrato acabado de um homem frívolo. Depois das dez da noite, o telemóvel não parava de tocar com chamadas de mulheres, com as quais estava sempre disponível para falar. Quando vinha a minha casa, pedia-lhe para desligar o telemóvel. A resposta dele nunca variava: que assim faria a partir do momento em que aceitasse ser sua amante.
– Há algo de errado contigo, Nishino – disse-lhe.
– Não precisas de mo dizer – anuiu ele. – Sei isso melhor do que ninguém.
Apesar da ironia que era seu apanágio, deu-me a impressão de que Nishino falava a sério.
– Muito bem. Nesse caso, a partir de hoje, conto que não me desiludas, que não te desvies do caminho certo.
Ele ergueu os olhos e suspirou.
– Tenho medo de dar o primeiro passo.
– Medo de quê?
– De me converter a uma existência comezinha.
– E detestavas que isso acontecesse?
– Não sei, acho que tenho mais medo do que outra coisa.
Ato contínuo, Nishino escondeu o rosto no meu peito. «Adoro os seios de uma mulher», passava a vida a dizer-me. O telemóvel tocou, mas ele não reagiu.
– Não vais atender? – perguntei.
– Não quero – respondeu. – Estou a falar a sério, sabes? – Afundou o rosto no meu peito. – Além disso, estás a ser má, Eriko.
Mantive o olhar cravado no prato da Muau. Estou a dois passos de me apaixonar por ele, disse para comigo. Mas não podia dar-me ao luxo de o amar. Pensei na estranheza do vocábulo «amor». Lembrava-me o interior da loja de antiguidades onde comprara o prato: silenciosa e cheia de pó, recheada de lembranças de tempos idos. A um tempo nostálgica e triste.
Aninhado no meu peito, Nishino permaneceu em silêncio, com os olhos fechados.
Nishino saiu da minha vida um pouco antes de a gata se evaporar.
– Vou ser transferido – anunciou.
– Palavra de honra? – respondi, com o ar mais calmo do mundo.
– Porque não te casas comigo? – atirou ele, virando-se um tudo-nada, a fim de evitar o contacto visual.
Ri-me baixinho, mas não respondi.
Ele olhou na minha direção, mas desviou rapidamente o olhar. A Muau tinha deixado um resto das sardinhas no prato. Em vez de me encarar, Nishino concentrou a sua atenção no prato de sardinhas.
– Não me digas que queres? – perguntei.
– Sim, não me importava de comer uma sardinha – respondeu ele, baixinho. – Se queres mesmo saber, gostava de ser a Muau. Assim, davas-me sardinhas e carapaus todos os dias.
O tom de voz, um nadinha infantil, fez-me soltar uma gargalhada. Mas ao reparar na maneira como me olhava, parei de imediato.
– Estás a falar a sério? – perguntei.
Ele baixou os olhos.
– Não sei. Tive sempre cuidado para não chegar a este ponto.
Ao ouvir a palavra «cuidado» na boca dele, não tive outro remédio senão rir-me. Nishino fez coro comigo. Chegara a hora de me afastar dele. O meu instinto avisara-me para não me aproximar demasiado. Caso contrário, apaixonar-me-ia de caixão à cova. E talvez ele se apaixonasse de caixão à cova por mim, quem sabe?
Sem fazer barulho, peguei no prato da Muau e encaminhei-me para o lava-loiça. Raspei os restos de sardinha e comecei a lavar o prato. Senti que ele me observava. Tinha os olhos cravados nos meus ombros de uma forma quase dolorosa.
O meu único amante é a Muau e mais ninguém, recitei para mim mesma, como uma espécie de mantra.
– Eriko?
– Sim? – respondi baixinho, de costas para ele.
– Eriko? – repetiu Nishino.
Não me virei. O prato estava mais do que lavado, mas continuei empenhada na tarefa.
– Depois telefono-te – disse ele. – Prometo ligar todas as noites.
– Que bom – respondi, de costas voltadas.
E foi assim que Nishino desapareceu do mapa.
Mesmo depois de se ter ido embora, continuei a lavar o prato em água corrente até cintilar. Não parecia o mesmo. Antigo e desgastado, o prato reluzia agora como novo.
Consegui, pensei. Consegui ultrapassar a situação o melhor possível, sem me apaixonar. E como tal, não infligi qualquer sofrimento nem sofri.
Dei-me ao luxo de um banho demorado, e até fiz uma máscara de beleza e arranjei as unhas. Mantive-me atenta aos meus sentimentos, tentando perceber se o coração me doía, mas quando o sentia mais apertado, a sensação depressa se desvanecia.
Enfiei-me na cama, fechei os olhos e tentei adormecer. O sono teimava em não chegar. Dei por mim a pensar na Muau, em como no dia seguinte iria presenteá-la com um delicioso prato de sashimi de atum.
Assim que tomei essa decisão, uma onda enorme desabou sobre o meu coração. Sentia saudades de Nishino. Não estou apaixonada, esforcei-me por recordar a mim própria, cerrando os dentes. Não era amor que sentia. Só não devia ter permitido que ele se aproximasse tanto. Martelei com insistência nesta tecla.
O sono chegou. Ocorreu-me então que o telemóvel de Nishino não tocara a noite inteira. Não houvera uma única chamada de todas aquelas mulheres com quem ele se dava. Percebi, mesmo antes de cair nos braços de Morfeu, que Nishino devia ter desligado o telemóvel. Ao mergulhar no sono, receei que talvez ele estivesse realmente a ser sincero em relação à promessa que me fizera.
Em que dia, ao certo, é que a Muau deixou de aparecer?
A última vez que a vi foi na véspera de Ano Novo – disso tenho a certeza. Devorara o salmão que sobrara dos rolos maki que eu fizera. Quando a chamei, respondera com o «muau» da praxe. Para não variar.
No dia seguinte, porém, e nos dias depois desse, volatilizou-se. Lembro-me de achar piada à situação e de pensar para mim mesma que ela devia ter tirado umas merecidas férias de Ano Novo. Mas passou uma semana, que se prolongou por um mês, e nem sinal da Muau.
Passaram três meses desde que Nishino partira, e os seus telefonemas tinham-se tornado menos frequentes.
Fui abandonada pela minha amante e pelo meu bom amigo. Dava por mim a sussurrar estas palavras quando saía ao encontro do sol de inverno que inundava a varanda.
«Tenho saudades tuas, Muau», cheguei ao ponto de declarar em voz alta.
Escusado será dizer que não confessei que Nishino me fazia falta.
Lavei muito bem o prato da Muau e guardei-o na prateleira de baixo no móvel da cozinha. Volta e meia, apareciam outros gatos na varanda, mas nunca me dei ao trabalho de os alimentar. Outras vezes, dava por mim a recordar o timbre de voz e as expressões de Nishino, a maneira como se revelava ao mesmo tempo desprendido e sensível.
O que receava ele? E porque tivera eu tanto medo de o amar, já agora? Na altura, tudo isto fazia perfeito sentido. Com o passar do tempo, porém, da mesma forma que os movimentos ágeis da Muau se diluíram na memória, as minhas certezas tornaram-se mais vagas.
Ainda hoje, onde quer que esteja, pergunto-me se Nishino continua a ter cuidado para não se apaixonar. Será que continua a falar ao telefone com todas aquelas mulheres – e a seduzir algumas – com a sua voz doce?
Devia ter servido sardinhas e carapaus todos os dias. A Nishino, quero dizer. Talvez assim tivéssemos sido felizes até à morte. Há momentos em que esse pensamento me persegue, mas felizmente esvaem-se depressa, e só restam as saudades da gata. Sinto falta da Muau. Profundamente.
Muau, digo em voz alta. E a seguir murmuro também o nome dele.
Nishino.
O sol de inverno continua a inundar a minha varanda.
20 Gato escama-de-tartaruga, tricolor, com pelagem cor de laranja. (N. da T.)