3. Sempre-viva Viscosa
Sempre-viva Viscosa
Significado: O meu amor jamais te abandonará
Xerochrysum viscosum | Nova Gales do Sul e Victoria
Estas flores com a aparência de papel podem exibir tonalidades que vão do amarelo limão ao dourado, do laranja-manchado ao bronze-vivo. Cortam-se facilmente e, quando secas, mantêm as suas cores magníficas por muito tempo.
Um mês depois de ter descoberto a biblioteca, Alice estava a brincar no quarto quando ouviu a voz da mãe a chamá-la:
– Hoje é dia de monda, Coelhinha.
Era uma tarde tranquila. O jardim estava cheio de borboletas cor de laranja. A mãe sorriu para ela por baixo das abas largas do chapéu que trazia. Era o mesmo sorriso com que habitualmente cumprimentava o pai quando ele chegava a casa: está tudo bem, está tudo ótimo, está tudo fantástico. Alice devolveu-lhe o sorriso, mesmo notando que a mãe estremecera e se agarrara às costelas ao erguer um braço para arrancar uma erva daminha.
Desde a história da biblioteca que as coisas não andavam bem. Alice não se conseguiu sentar durante vários dias, depois da lição que o pai lhe deu com o cinto. Rasgou-lhe o cartão da biblioteca em dois e confiscou-lhe o livro – mas não sem que Alice o tivesse lido antes, de uma assentada só. Absorveu todas as histórias das selkies e das suas peles mágicas como se fossem açúcar na língua. As feridas sararam e o pai só a castigou daquela vez; já a mãe, por seu lado, continuava a aguentar os seus ataques de raiva. Várias vezes a menina acordava a meio da noite com os sons sinistros vindos do quarto dos pais. Aqueles sons paralisavam-na. Nessas noites, Alice ficava na cama, encostava as mãos aos ouvidos e esforçava-se para fugir para os seus sonhos. Na maior parte deles, corria com a mãe até ao mar onde ambas trocavam de pele antes de mergulharem. Lado a lado, vinham à tona e olhavam para trás apenas uma vez antes de desaparecerem nas profundezas do oceano. Na praia, as suas peles transformavam-se em flores prensadas, espalhando-se por entre conchas e algas.
– Toma, Alice – disse-lhe a mãe, estendendo-lhe outro tufo de ervas daninhas com um novo estremeção de dor. A pele da menina ardia-lhe, tal era a vontade de livrar para sempre o jardim de todas as ervas daninhas – para que a mãe pudesse passar o seu tempo a conversar com as flores na sua linguagem secreta, enchendo os bolsos de bolbos floridos.
– E esta, mãe? É erva-daninha?
A mãe não respondeu. Era tão inconstante quanto as borboletas, os olhos dardejando constantemente para a estrada, temendo as inevitáveis nuvens de pó.
E, como já era de esperar, elas lá apareceram.
Ele saltou do lugar do condutor, ágil e arrogante, segurando o chapéu voltado para cima – um Akubra3 original – e atrás das costas. A mãe de Alice levantou-se para cumprimentá-lo com os joelhos sujos de terra e um ramo de dentes-de-leão no punho fechado. Os caules tremeram quando ele se inclinou para lhe dar um beijo. Alice afastou o olhar. Quando estava bem-disposto, o pai tinha sempre a expressão de uma chuvada repentina caída de um céu soalheiro – era algo quase inacreditável. Quando Alice lhe encontrou o olhar, viu-o sorrir.
– As coisas têm estado péssimas desde que fugiste, não é verdade, Coelhinha? – disse-lhe o pai, agachando-se, mas mantendo o chapéu atrás das costas. – Mas penso que aprendeste a lição e percebeste que não podes sair da propriedade.
Alice sentiu o estômago revirar.
– Tenho andado a pensar nisso – prosseguiu ele, docemente –, e acho que mereces ter de volta o teu cartão da biblioteca. – Ela olhou-o, desconfiada. – Estou disposto a ir lá buscar-te livros, desde que prometas seguir sempre as nossas regras. E para te ajudar com essa promessa, achei que talvez gostasses de ter uma companhia cá em casa. – O pai não olhou para ela enquanto falava. Em vez disso, tinha o olhar cravado na mãe, que se mantinha muito quieta e sem pestanejar, com o rosto franzido num sorriso. Em seguida, voltou-se para Alice e estendeu-lhe o chapéu. A menina aceitou-o e pousou-o no colo.
Dentro dele estava uma bola de pelo preta e branca, toda enroladinha. Alice susteve a respiração. Embora estivessem meio fechados, os olhos do cachorrinho eram do mesmo azul que o mar de inverno. Endireitou-se e soltou um latido agudo, mordiscando o nariz de Alice. Ela soltou um gritinho de alegria; era o seu primeiro amigo. O cachorro lambeu-lhe o rosto.
– Que nome lhe queres dar, Coelhinha? – quis saber o pai, levantando-se. Alice não conseguiu decifrar-lhe a expressão do rosto.
– Tobias – decidiu. – Mas tratamo-lo por Toby.
O pai riu-se.
– Fica Toby, então – declarou.
– Queres pegar nele, mamã? – perguntou Alice. A mãe assentiu e estendeu as mãos para o cãozinho.
– Oh, é tão novinho ainda – exclamou, incapaz de conter o tom surpreso na voz. – Onde o arranjaste, Clem? Tens a certeza de que já tem idade suficiente para ser desmamado?
Os olhos do homem dardejaram fogo. O rosto ensombrou-se-lhe.
– É claro que sim – disse, entre dentes semicerrados, pegando no cão pelo cachaço. O bichinho ganiu e ele passou-o à filha.
Mais tarde, Alice escondeu-se lá fora, por entre os fetos da mãe, encostando o cachorro ao coração, tentando não ouvir os sons que vinham de dentro de casa. Toby lambeu-lhe o queixo, onde as lágrimas se juntavam, enquanto o vento soprava ligeiro, pelo meio do odor doce das canas-de-açúcar e em direção ao mar.
As marés dos estados de espírito do pai mudavam como as estações. Depois de ele ter furado um tímpano a Toby, Alice dedicou-se a ensinar ao cachorro língua gestual. Fez oito anos, passou para o terceiro ano do ensino doméstico, e terminava sempre de ler as pilhas de livros que o pai lhe trazia da biblioteca duas semanas antes do prazo de entrega. A mãe passava cada vez mais tempo no jardim, falando sozinha no meio das suas flores.
Num fim de tarde de inverno, sopraram rajadas tão fortes vindas do mar que Alice temeu que a casa viesse abaixo, tal como na fábula. Dos degraus da porta de entrada, ela e Toby ficaram a ver o pai arrastar a prancha de windsurf da garagem até ao quintal.
– Está um vento de noroeste de 40 nós, Coelhinha – disse ele, apressando-se a carregar a prancha para a carrinha de caixa aberta. – Isto é uma raridade! – exclamou, varrendo as teias de aranha da vela.
Alice limitou-se a concordar com a cabeça, afagando as orelhas de Toby. Ela sabia que era raríssimo; só tinha visto o pai levar a prancha para o mar um punhado de vezes. Nunca lhe fora permitido ir com ele, claro. Ouviu-se o ligar do motor da velha carrinha.
– Anda lá então, Coelhinha. Acho que hoje vou precisar de um amuleto. Despacha-te – chamou-a ele, com o rosto a surgir na janela do condutor.
Mesmo com o olhar selvagem do pai a deixá-la desconfortável, a inacreditável alegria que Alice sentiu por ser convidada levou-a a mexer-se. Correu ao seu quarto para vestir o fato de banho e, como um raio, passou pela mãe, despedindo-se, com Toby sempre colado aos seus calcanhares. Com um sonoro rugir do motor, o pai arrancou da entrada de casa em direção à baía.
Lá em baixo na praia, o pai de Alice vestiu o arnês e arrastou a prancha para junto da água. Alice ficou a observá-lo. Quando o pai a chamou, a menina seguiu o trilho fundo deixado na areia pela prancha, diretamente até ao mar. Ele empurrou a prancha até às ondas, estabilizando a vela contra o vento. As veias da testa sobressaíam-lhe, do esforço. Alice deixou-se ficar, com a água pelas coxas, sem saber o que esperar. O pai preparou-se para saltar para a prancha, depois voltou-se para ela, sobrancelhas erguidas e sorriso imprudente. Fez-lhe um sinal de cabeça para que avançasse. Alice sentiu as batidas do coração nos ouvidos. Na praia Toby ladrava incessantemente, e a menina ergueu a mão com a palma voltada para ele: fica calmo. O pai nunca lhe pedira que fosse com ele. Por isso ela não se atreveu a recusar-lhe o convite.
Enquanto avançava rapidamente pelo mar na direção do pai, Alice ouviu a voz da mãe. Voltou-se e viu-a no cimo das dunas, a gritar o nome dela e a agitar freneticamente os braços, agarrada ao colete de salvação cor de laranja fluorescente da filha. Os gritos dela soavam cada vez mais alarmados. O cachorrinho desatou a correr para ir ter com ela. Dentro de água, o pai de Alice enxotava o pânico da mãe como se fosse um inseto irritante que esvoaçasse à sua volta.
– Não precisas de um colete de salvação aos oito anos. Com a tua idade eu já era rei do meu reino. – Fez-lhe sinal para que avançasse. – Salta pr’aqui, miúda.
Os olhos de Alice brilharam. O chamamento do pai era hipnótico.
Ele ergueu-a para cima da prancha, as mãos fortes e firmes debaixo dos braços dela, e posicionou-a à frente, diretamente contra o vento. Depois deitou-se de barriga na prancha e deu aos pés, levando-os mar adentro. Peixes prateados saltavam nas águas rasas. O vento estava forte e os salpicos de água salgada faziam arder os olhos de Alice. Ainda se virou para trás uma última vez para ver a mãe na praia, cada vez mais pequena, dada a expansão do mar entre ambas.
Já nas profundezas azuis esverdeadas do mar, o pai ergueu-se na prancha, enfiando os pés nas correias. Alice cravou os dedos nas bordas da prancha. O pai ergueu a vela na vertical, servindo-se das pernas para se equilibrar. Os músculos e tendões dos seus gémeos ondulavam sob a pele.
– Senta-te entre os meus pés – instruiu-a. Ela foi-se chegando. – Agarra-te bem! – Alice abraçou-se às pernas do pai.
Houve um momento de calmaria; o mundo era sereno e verde-azulado. Até que, vvuuuu, o vento encheu a vela e Alice sentiu um borrifo de água salgada na cara. O mar resplandecia, lindo. Velejaram pelas ondas, ziguezagueando ao longo da baía. Alice lançou a cabeça para trás e fechou os olhos; o calor do sol na sua pele, as cócegas dos salpicos do mar, o vento enfiando os seus dedos pelo cabelo dela.
– Alice, olha! – gritou-lhe o pai. – Um grupo de golfinhos surgiu ao lado deles, exibindo-se, mergulhando em arco. Alice soltou um gritinho maravilhado, lembrando-se do livro das selkies. – Levanta-te para os veres melhor – disse ele. – Agarrando-se às pernas do pai, a menina lá foi arranjando o equilíbrio necessário para se levantar, cativada pela beleza dos golfinhos. Os arcos prateados na água transmitiam uma sensação de paz e liberdade. Aos poucos, hesitantemente, Alice foi largando as pernas do pai, recorrendo ao próprio peso para se equilibrar. Por fim, abriu completamente os braços, fez rodar a cintura, depois as ancas, imitando os golfinhos. O pai gritou entusiasmado.
Seguiram, já bem afastados da baía, até ao canal onde um barco de turistas dava a volta para regressar ao porto da vila. Viu-se o flash de uma câmara apontada para eles e o pai de Alice acenou na sua direção.
– Faz o hoola para eles – encorajou-a o pai. – Estão a olhar para nós, Alice. Faz o hoola, agora!
Alice não percebeu o que era o hoola. E a urgência no tom do pai confundiu-a. Voltou-se lentamente da frente da prancha e olhou para ele. Aquele momento de hesitação foi um erro crasso; captou a sombra irada a invadir-lhe o rosto. Chegando-se à ponta da prancha tentou levantar-se nas pernas trémulas, abanando a cintura e as ancas atabalhoadamente. Tarde de mais. O barco já se tinha afastado, os flashes refletiam na água, na direção oposta. Alice ainda sorriu, esperançada, com os joelhos a tremer. Olhou de relance para o pai. Viu-lhe a mandíbula cerrada.
Quando ele deu a volta à vela e mudou de direção, a menina quase perdeu o equilíbrio. O sol, garrido e forte, mordia-lhe a pele. Agachou-se na prancha e agarrou-se aos rebordos. A voz da mãe era trazida pelo vento, chamando-os incessantemente enquanto atravessavam o canal, de regresso à baía. As ondas tornaram-se mais fortes, mais escuras. O pai nada disse. Ela deslizou até ele. Ao aninhar-se de novo entre os pés do pai, agarrando-se às barrigas das pernas, sentiu um músculo tremer-lhe sob a pele. Ergueu os olhos para ele e viu-lhe no rosto uma tela em branco. Alice não conteve as lágrimas. Tinha estragado tudo. Agarrou-se com mais força às pernas dele.
– Desculpa, Papá – disse, num fio de voz.
Sentiu uma pressão nas costas, rápida e firme. Viu-se lançada de frente para dentro da água gelada, gritando ao ser engolida pelas ondas. Esbracejando até à superfície, tossiu e cuspiu, tentando ignorar a dor da água salgada a queimar-lhe os pulmões. Dando fortes pontapés dentro de água, levantou os braços no ar, tal como a mãe lhe ensinara, caso alguma vez se visse apanhada num agueiro. Não muito longe, o pai observava-a da prancha, o rosto tão branco como a espuma nas ondas. Alice continuou a pedalar dentro de água. Com um gesto rápido, o pai virou novamente a vela. Ele está a voltar para trás. Alice gemeu de alívio. Mas quando a vela apanhou o vento e o fez afastar-se ainda mais, a menina parou de mexer as pernas, incrédula. Sentiu-se afundar. Quando a água lhe cobriu o nariz, Alice esbracejou e pedalou com toda a força que tinha, lutando contra as ondas que insistiam em puxá-la para baixo.
Lançada para cima e para baixo em plena corrente, Alice conseguiu vislumbrar a mãe sobre as ondas. Tinha-se lançado ao mar e nadava, aflita. A visão de Agnes deu à criança um novo alento.
Pontapeou e pedalou dentro de água até sentir um ligeiro aumento da temperatura, levando-a a perceber que se aproximava dos baixios. A mãe agarrou-a finalmente numa braçada frenética e cravou-se nela como se a própria filha fosse um colete de salvação. Assim que ambas sentiram a areia sólida sob os pés, Alice levantou-se e vomitou bílis, num gorgolejo aflito. Os braços e as pernas cederam. Arquejou, em busca de ar. Os olhos da mãe estavam baços como vidrinhos do mar. Levou a filha até à praia e envolveu-a no vestido que despira antes de entrar no mar. Embalou-a, para a frente, para trás, até Alice parar de chorar. Rouco de tanto ladrar, Toby gania enquanto lambia o rosto de Alice. Ela afagou-o debilmente. Quando começou a tremer, a mãe pegou-a ao colo e levou-a para casa. Não disse uma palavra.
Enquanto deixavam a praia, Alice olhou para trás, para as pegadas frenéticas que a mãe deixara na areia. Lá bem longe, em pleno oceano, a vela do pai cortava as ondas – impecavelmente resplandecente.
Ninguém falou sobre o que aconteceu naquele dia. A partir de então, sempre que Clem regressava dos canaviais, evitava ficar em casa. Em vez disso, para aliviar a culpa, fazia o de sempre: refugiava-se no seu casebre de madeira. Às refeições mostrava-se distante e mantinha apenas uma conversa educada. Estar perto dele era o mesmo que ficar na rua, sem abrigo, durante uma tempestade, sempre de olhos no céu. Alice passou ainda algumas semanas ansiosa, na esperança de que ela, Toby e a mãe pudessem fugir para dentro das histórias que ela contava, onde a neve cobria a terra como açúcar em pó, e cidades antigas e mágicas se erigiam dentro de água. Mas quando as semanas se transformaram em meses e o verão se foi esvaindo no outono, acabaram-se as explosões de raiva. As marés do pai tornaram-se pacíficas. Construiu-lhe uma secretária. Alice perguntou-se se ele teria deixado as tempestades da alma nas profundezas do mar, naquele dia em que ela vira o oceano ficar verde-escuro.
Numa manhã límpida, ao pequeno-almoço, o pai de Alice anunciou que, na semana seguinte, teria de viajar até à cidade para tratar da compra de um novo trator. Não estaria presente no dia do nono aniversário da filha. Era inevitável. A mãe da menina assentiu com a cabeça e tratou de levantar a mesa. Alice balançou as pernas debaixo da mesa, escondendo o rosto no cabelo enquanto digeria a notícia. Ela, a mãe e Toby teriam uma semana inteira juntos, só para eles. Sozinhos. Em paz. Era o melhor presente de aniversário que lhe poderiam dar.
Na manhã em que o pai partiu, ficaram ambas à porta a dizer-lhe adeus. Até Toby ficou sentado ao lado delas até as nuvens de pó levantadas pela carrinha se dissiparem. A mãe de Alice ainda ficou um momento de olhos fixos na estrada.
– Bom – disse, finalmente, dando a mão à filha –, este fim de semana é todo teu, Coelhinha. O que é que gostavas de fazer?
– Tudo! – disse Alice, num sorriso radioso.
Começaram com música. A mãe desencantou uns discos antigos e Alice fechou os olhos enquanto dançava e escutava.
– Se pudesses escolher o que quisesses, o que escolherias para o almoço? – perguntou-lhe a mãe.
Alice arrastou uma cadeira da cozinha até à bancada para ficar à altura da mãe e prepararam lado a lado biscoitos Anzac, crocantes por fora e fofos e húmidos por dentro, com muito melaço, exatamente como ela gostava. Alice comeu mais de metade da massa crua, partilhando colheradas com Toby.
Enquanto os biscoitos estavam no forno, Alice sentou-se aos pés da mãe e esta escovou-lhe o cabelo. O ritmo lento da escova no cabelo da menina soava ao bater de asas. Depois de Agnes contar a centésima escovadela, chegou os lábios ao ouvido da filha e fez-lhe uma pergunta. Alice respondeu com um entusiasmado aceno de cabeça. A mãe saiu do quarto e voltou momentos depois. Pediu a Alice que fechasse os olhos. Alice esboçou um grande sorriso, desfrutando da sensação dos dedos da mãe a entrelaçar-lhe o cabelo. Quando acabou, a mãe levou-a pela casa.
– Ok, Coelhinha, podes abrir – disse-lhe, com um sorriso na voz.
Alice esperou até não aguentar nem mais um segundo de expectativa. Quando abriu os olhos, ficou de boca aberta ao ver o seu reflexo no espelho. Entrançada à volta da sua cabeça, uma coroa laranja-vivo feita de flores do algodoeiro-da-praia. A menina nem se reconheceu.
– Feliz aniversário, Coelhinha – murmurou a mãe. Alice pegou-lhe na mão. Quando estavam ambas de pé e lado a lado em frente ao espelho, uma chuva forte desabou sobre o telhado. A mãe apressou-se para a janela, olhando lá para fora.
– O que foi, mamã?
Agnes fungou e limpou os olhos húmidos.
– Vem comigo, querida – disse-lhe. – Tenho uma coisa para te mostrar.
Esperaram à porta de casa que as nuvens de tempestade passassem. O céu estava violeta, a luz prateada. Alice seguiu a mãe até ao jardim, brilhante da chuva. Chegaram junto a um arbusto que Agnes plantara recentemente. Da última vez que a menina o vira, não passava de um tufo de folhas verdes. Agora, depois da carga de água, o arbusto estava coberto de florinhas brancas e perfumadas. Alice observou-as, estarrecida.
– Achei que ias gostar – disse a mãe.
– É magia? – Alice levou a mão às pétalas.
– Da melhor – concordou a mãe. – A magia das flores.
A menina inclinou-se para ficar o mais próxima possível das flores.
– O que são, mamã?
– Lírios-da-tempestade. Iguais aos da noite em que tu nasceste. Só florescem depois de uma boa chuvada.
Alice estudou-as cuidadosamente. As pétalas estavam completamente abertas, exibindo plenamente os centros.
– Não existem sem chuva? – perguntou Alice, endireitando-se. A mãe olhou-a por um momento antes de responder.
– Quando eu estava na carrinha do teu pai, na noite em que nasceste, os arbustos de ambos os lados da estrada explodiram em florinhas destas. Lembro-me bem de os ver, em plena tempestade. – Afastou o olhar, mas Alice viu os olhos dela encherem-se de água.
– Alice – começou a mãe. – Eu… plantei estes lírios-da-tempestade por uma razão. – A menina assentiu. – São um sinal de expectativa. Da bonança que vem sempre depois de tempos maus. – A mãe poisou a mão na barriga.
Alice olhou-a, incitando-a a prosseguir. Ainda não tinha entendido.
– Querida, eu vou ter outro bebé. E tu vais ter um irmão ou irmã para brincares e para cuidares. – A mãe arrancou um lírio do caule e enfiou-o na ponta da trança de Alice. A menina olhou para baixo, para a florinha aberta, um coração exposto e vulnerável.
– Não são ótimas notícias? – perguntou Agnes. Alice viu os lírios-da-tempestade refletidos nos olhos da mãe. – Alice?
A menina escondeu o rosto no pescoço da mãe e fechou os olhos com força, inalando o cheirinho da pele dela, esforçando-se para não chorar. Saber que existia um tipo de magia que fazia flores e bebés nascerem depois de tempestades assustava-a; mais coisas preciosas no seu mundo que o pai poderia maltratar.
Durante a noite o tempo voltou a mudar, trazendo uma nova tempestade. Alice e Toby acordaram de manhã com uma chuva torrencial a açoitar as janelas e a porta da frente. Alice bocejou, deambulando pela casa, sonhando com panquecas. Tentou não contar as horas que faltavam para o pai regressar, nessa tarde. A cozinha estava escura como breu. Confusa, Alice tateou a parede à procura do interruptor. Acendeu-o. A cozinha estava fria e vazia. Correu ao quarto dos pais e aguardou que os olhos se habituassem à escuridão. Quando percebeu que a mãe não estava, correu lá para fora, chamando-a. Ficou ensopada em segundos. Toby ladrou. No meio do pesado aguaceiro, Alice vislumbrou o vestido de algodão da mãe a desaparecer por entre os arbustos do quintal da frente, em direção ao mar.
No momento em que Alice chegou à praia, já a mãe tinha espalhado as roupas pela areia. Ainda que a chuvada a deixasse praticamente sem visibilidade, conseguiu distinguir o vulto da mãe dentro de água. Tinha nadado até tão longe que não passava de um ponto pálido no meio das ondas, imergindo, mergulhando em arco, abrindo caminho pelas ondas como se a própria vida dependesse disso. Passado um bom bocado, surgiu à tona de um salto só e gritou violentamente ao mar enquanto ele a trazia de volta a terra.
Alice envolveu nos ombros as roupas da mãe, como uma estola, gritando por ela até lhe falhar a voz. Agnes não parecia ouvi-la. Levantou-se no meio da areia, nua, extenuada e sem fôlego. A visão da sua nudez silenciou a menina. A chuva caía, impiedosa, sobre elas. O cão gania, avançando e recuando. Alice não conseguia tirar os olhos do corpo da mãe. A barriga redonda estava tão grande, inimaginável. A toda a volta, feridas e hematomas que lhe subiam até às omoplatas, desciam pelos braços, sobre as costelas, em torno das ancas e no interior das coxas – como líquen do mar espalhado sobre as rochas. Durante todo aquele tempo em que Alice achou que não houvera tempestades, estivera redondamente enganada.
– Mamã! – A menina começou a chorar. Tentava limpar a chuva e as lágrimas do rosto, mas em vão. Os dentes batiam-lhe de frio e emoção. – Estava com medo que não voltasses.
A mãe de Alice pareceu olhar através dela. Os olhos grandes e escuros, as pestanas coladas. E assim ficou olhando, olhando, por um longo momento. Finalmente, pestanejou e disse:
– Sei que estavas preocupada, desculpa. – Retirou suavemente as suas roupas dos ombros da filha e vestiu-as sobre a pele molhada. – Vamos, Coelhinha – disse. – Vamos para casa. – Alice deu a mão à mãe e juntas percorreram a areia ensopada, debaixo de chuva, de regresso a casa. E por mais que o corpo da mãe tremesse, Alice certificou-se de que não a largaria.
Umas semanas depois, dias passados da tarde em que estivera a ler sobre a fénix, Alice e a mãe estavam no jardim a plantar sementes de ervilha e de abóbora. Espirais de fumo negro surgiram no horizonte.
– Não te preocupes, Coelhinha – disse a mãe, escavando terra nova para o canteiro. – É uma queimada, numa das quintas.
– Queimada?
– Em todo o mundo as pessoas fazem queimadas na jardinagem – explicou-lhe a mãe. Alice sentou-se no chão, junto à covinha que acabara de fazer para colocar as sementes e a terra fresca, e considerou, incrédula, o que acabara de ouvir. – A sério – prosseguiu a mãe, apoiando-se no ancinho. – Queimam plantas e árvores secas para permitir que coisas novas cresçam. São incêndios controlados, entendes, sem qualquer perigo, e também servem para reduzir os riscos dos incêndios maus.
Alice abraçou os joelhos:
– Então… um fogo pequenino pode impedir um grande? – indagou, pensando no livro que trouxera da biblioteca com histórias de feitiços que transformavam sapos em príncipes, meninas em pássaros, e leões em cordeiros. – É tipo… um feitiço?
A mãe espalhou sementes de abóbora nas fileiras de terra fresca.
– Sim, suponho que seja isso mesmo, uma espécie de feitiço que transforma uma coisa noutra. Certas flores e plantas necessitam inclusivamente de fogo para se abrirem e desenvolverem; as orquídeas, por exemplo, e os carvalhos-do-deserto, esse tipo de coisas. – Limpou as mãos e afastou o cabelo da testa. – Menina esperta – observou e, pela primeira vez em muito tempo, um sorriso invadiu-lhe os olhos. Passado um momento, Agnes regressou à jardinagem.
Enquanto trabalhava no jardim, Alice não deixou de olhar para a mãe, de relance, iluminada pelo sol vespertino, fazendo crescer coisas novas do nada. Quando a mãe olhou em volta para a propriedade e o seu rosto ensombrou-se ao ver a cabana de madeira, Alice entendeu tudo com plena clareza: tinha de descobrir o feitiço adequado, o fogo certo na estação certa, para transformar o pai noutra coisa.
3Mais do que um chapéu, é um autêntico ícone australiano. De aba e copa larga, foi sendo decorado com materiais da região, como dentes de crocodilo, penas ou pele de cobra. (N. da T.)