A humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir.
Karl Marx*
“Quando o manto imperial finalmente cair sobre os ombros de Luís Bonaparte”, previu Marx em 1852, “a estátua de bronze de Napoleão despencará do alto da coluna de Vendôme.”[1] Em 16 de maio de 1871, o odiado símbolo desmoronou diante de uma multidão de communards, cuja atenção temporariamente se desviou dos tiros ameaçadores das forças da reação que cercavam Paris. Entre a previsão e o evento, houve dezoito anos de “farsa feroz”**.
A ferocidade tinha origens duais, que eram às vezes complementares, mas por fim se tornaram conflitantes. Para proteger tanto a si mesmo quanto à sociedade civil sobre a qual reinava, o Império recorreu a uma arbitrariedade do poder do Estado que atingia a todos, desde artistas de rua perseguidos e expulsos dos bulevares até banqueiros excluídos do lucrativo negócio de empréstimos da cidade. Mas o poder cada vez mais acelerado da circulação e da acumulação do capital também estava em ação, transformando processos de trabalho, integrações espaciais, relações de crédito, condições de vida e relações de classe com a mesma brutalidade que assumia na destruição criativa do meio ambiente construído parisiense. No rescaldo de 1848, a arbitrariedade do poder do Estado parecia ser um sustentáculo fundamental à propriedade privada e ao capital. Contudo, quanto mais o Império degenerava em farsa explícita, mais evidente se tornava que a modernidade não podia ser produzida pela tradição imperial, que não havia nem poderia haver base de classe estável para o poder imperial e que a suposta onipotência do governo não se harmonizava tão bem com a onisciência da racionalidade do mercado. Por isso, o cisma entre os saint-simonianos e os economistas políticos liberais simbolizava um profundo antagonismo entre processos políticos e econômicos.
Figura 99: A representação de Daumier da história do Segundo Império mostra a tradicional figura feminina da Liberdade de mãos e pés atados entre o canhão do golpe de Estado de 1851 e o da derrota do imperador em Sedan, em 1870.
Figura 100: A derrubada da coluna de Vendôme pelos communards ocorreu em 16 de maio de 1871. Nesta foto de Braquehais, é provável que o pintor Courbet (que mais tarde foi obrigado a pagar do próprio bolso a reconstrução da coluna) seja a figura do meio entre os que estão ao fundo. A coluna tinha uma história marcada por contrastes. Com a restauração da monarquia, em 1815, a estátua imperial de Antoine Chaudet (feita de um canhão austríaco capturado) foi retirada, fundida e usada na reconstrução da estátua destruída de Henrique IV na Pont-Neuf. A figura de Napoleão como César foi substituída no alto da coluna por uma simples flor-de-lis. A Monarquia de Julho, ansiosa para se vincular à revolução e ao populismo de Napoleão, recolocou-o no topo da coluna em 1834, mas como um cidadão-soldado em um uniforme de campanha. Em 1863, a representação de Seurre foi substituída pela figura criada por Dumont, que mostrava Napoleão como César, com vestes antigas e um símbolo romano da vitória na mão. Esta foi a versão que os communards derrubaram.
A estratégia de Napoleão III para manter o poder era simples: “Satisfaça os interesses das classes mais numerosas e se vincule às classes superiores”[2]. Infelizmente, a força explosiva da acumulação do capital tendia a minar tal estratégia. O crescente abismo que separava ricos (favoráveis ao Império justamente porque ele oferecia proteção contra as demandas socialistas) e pobres conduziu ao aumento do antagonismo entre eles. Cada movimento que o imperador fazia para se ligar a um acabava alienando-o do outro. Além disso, os trabalhadores tinham lembranças vívidas (adornadas com ficções cada vez maiores) de uma República que eles haviam ajudado a produzir e que dera voz a suas preocupações sociais. A demanda por liberdade e igualdade no mercado também destacava uma ideologia política republicana dentro de segmentos da burguesia. Isso era antagônico tanto ao autoritarismo do Império quanto aos planos para a república social.
A cisão entre as concepções política e social da República – tão evidente em 1848 – continuou a ter grande importância. Ela podia ser usada – e de fato o foi – de forma bastante eficiente no sentido de dividir para reinar; o que, no entanto, não dava nenhuma base de classe segura para o poder político. Entretanto, o Império estava tão preso no turbilhão do progresso capitalista que não conseguia satisfazer tradicionalistas e conservadores (particularmente os católicos) que se opunham ao novo materialismo e às novas configurações de classe em formação. Por trás da autoridade imperial, era difícil manter o consenso, que por pouco não evaporou completamente quando problemas de superacumulação e desvalorização voltaram a ocorrer. As contradições do crescimento capitalista coincidiam, portanto, com oscilações políticas de um ou outro lado de facções ou do espectro de classe. Quando, em 1862, o imperador honrou James Rothschild com uma visita à sua casa de campo (para enorme desgosto dos Péreires) e, no mesmo ano, concedeu 200 mil francos aos trabalhadores para que enviassem seus delegados eleitos a Londres (onde Karl Marx os esperava ansiosamente e de onde retornariam para formar o ramo parisiense da Primeira Internacional), havia claramente certa incoerência. Longe de mitigar as questões, essa volubilidade só aumentou a apreensão com respeito ao que iria substituir o Império se e quando ele caísse.
Os monarquistas, embora extremamente poderosos, não ofereciam nenhuma alternativa real. Divididos entre si, reuniam ao seu redor católicos ultraconservadores, tradicionalistas e, quase sempre, todo sentimento reacionário antagônico ao progresso capitalista. Com uma forte base na França rural, sua influência em Paris encolheu durante o Segundo Império e, por fim, restringiu-se principalmente aos salões muito tradicionais da aristocrática Rive Gauche. Embora o Império tivesse seus defensores, particularmente entre capitalistas financeiros, funcionários do Estado e proprietários burgueses de imóveis no oeste de Paris, que estavam muito satisfeitos com as obras de Haussmann, os centros de negócios, comércios e profissões liberais (como a advocacia) na Rive Droite tornaram-se bastiões do republicanismo, em geral aplacados pelo oportunismo financeiro pragmático, que dava ao Império muitas oportunidades de cooptá-los. O Café de Madrid, no Boulevard Montmartre, era o ponto de encontro geopolítico desse tipo de republicanismo com a atitude mais déclassé e às vezes boêmia de escritores, atraídos a essa área por ser um centro do poder da imprensa e das comunicações. O republicanismo da Rive Gauche era de uma ordem um tanto diferente. Produto de estudantes e acadêmicos, ele era menos pragmático e mais revolucionário e utópico, capaz de se desdobrar em todas as direções em alianças com trabalhadores e artesãos ou em suas próprias formas de política revolucionária e conspiratória. A Paris da classe trabalhadora, espalhada em uma vasta zona periférica que ia do noroeste ao sudoeste, passando pelo leste (com sua maior concentração no nordeste), era solidamente republicana, mas tinha fortes preocupações sociais e não eram poucos seus ressentimentos contra a traição sofrida nas mãos do republicanismo burguês em 1848.
A luta que se desenrolou em Paris durante a década de 1860 e pressagiou a Comuna foi de proporções épicas. Ela buscava dar significado político a conceitos de comunidade e classe; identificar as verdadeiras bases das alianças e dos antagonismos de classe; e encontrar espaços políticos, econômicos, organizacionais e físicos de mobilização, a partir dos quais as demandas seriam reivindicadas. Tratava-se, em todos esses sentidos, de uma luta geopolítica pela transformação da economia, da política e da cultura parisienses.
A separação dos caminhos entre o capital e o Império não foi marcada por um confronto dramático, mas pela lenta erosão dos vínculos orgânicos entre eles. A represália dos proprietários imobiliários parisienses contra as condições da expropriação, a resistência do Banco da França ao barateamento do crédito que os saint-simonianos buscavam, a indignação cada vez maior dos industrialistas com a importunação de Haussmann e a crescente dominação do capital financeiro sobre pequenos proprietários e lojistas assinalou um aumento paulatino do desafeto de diferentes setores burgueses. Embora alguns, como parte dos proprietários imobiliários, tenham retornado ao rebanho imperial, outros estavam cada vez mais alienados. Ironicamente, quanto mais bem-sucedida era a repressão do Império contra os trabalhadores, mais livre a oposição burguesa se sentia para se expressar. No entanto, à medida que essa oposição aumentava, crescia também o espaço político de atuação dos trabalhadores. Por um lado, a retórica republicana dos burgueses os escudava; por outro, o crescimento da oposição burguesa obrigava o Império a bajular os trabalhadores, que faziam parte de sua base populista.
A recomposição do partido republicano foi um dos feitos mais marcantes do Segundo Império. E, embora ela dependesse da união entre variadas correntes de opinião em muitas partes do país, o que aconteceu em Paris foi crucial. O republicanismo burguês, incutido de forma profunda, mas incoerente, nas profissões liberais (que talvez vissem a República como um meio para adquirir um poder de classe autônomo), e que tinha grande potencial para receber apoio dos negócios, da indústria e do comércio, necessitava de uma cartilha muito mais bem definida do que a formulada em 1848. A imagem indisciplinada e explosiva da feminilidade nas barricadas tinha de ser contida, domada e tornada totalmente respeitável. O republicanismo déclassé de estudantes, intelectuais, escritores e artistas devia ser de algum modo confrontado e controlado. Mas, para terem êxito, os republicanos burgueses também necessitavam do apoio da classe trabalhadora. O problema mais premente do novo partido republicano estava em como obter esse apoio sem fazer nada mais do que mínimas e tímidas concessões às concepções sociais da República, que tipicamente ameaçavam a propriedade privada, o poder do dinheiro, a circulação do capital e, inclusive, o patriarcado e a família. Era possível transformar questões relativas a liberdade política, legalidade, liberdade de expressão e governo representativo (tanto no âmbito local quanto no nacional) em uma causa comum. Por isso, os republicanos burgueses tentavam mantê-las no centro do debate político. Temas relacionados a liberdade de associação, representação e direitos dos trabalhadores eram mais sensíveis. E o debate sobre a república social tinha de ser abafado por uma retórica reformista sobre questões relativamente seguras, como a melhoria da educação. O republicanismo burguês em geral tornava-se violento em sua defesa do patriarcado e vicioso em suas atitudes relativas ao socialismo. Mas os termos da aliança com a classe trabalhadora sempre tinham de estar abertos à negociação, ao mesmo tempo que a batalha entre as concepções sociais e políticas da República tinha de ser travada até a morte, como o banho de sangue da Comuna veio a revelar.
Figura 101: Aqui, Daumier retrata uma das contradições secundárias que atormentavam o “bom burguês” em uma época em que este enfrentava sérias complicações políticas.
O revigoramento da política da classe trabalhadora no início da década de 1860 foi, de início, baseado na reafirmação dos direitos institucionais tradicionais. Apesar da regulamentação imperial, as sociedades de ajuda mútua haviam desde cedo se tornado a frente legal de todos os tipos de organizações secretas de trabalhadores. Sua subversão direta mediante formações sindicais (que estavam na raiz da maioria das atividades grevistas) provocou inúmeras perseguições na década de 1850. Mas seu uso indireto para propósitos políticos era praticamente incontrolável. Daí a importância dos funerais, por exemplo, pois estes eram um elemento fundamental de auxílio que reunia todos os membros para ouvir os discursos diante do túmulo, que com frequência assumiam um caráter político. O Império tornou-se menos disposto a atacar as sociedades de ajuda mútua porque cada vez mais precisava delas para administrar e mobilizar o apoio da classe trabalhadora. Há evidências consideráveis de que associações e coalizões existiam efetivamente e não eram perseguidas já no início da década de 1860[3]. As sociedades de ajuda mútua tornaram-se centros de formação de consciência e meios para organizar a expressão coletiva das reivindicações. As formas corporativistas que ocultavam tornaram-se mais explícitas quando os trabalhadores de ofício procuraram se proteger contra os efeitos devastadores da mudança tecnológica e organizacional e da inundação de imigrantes não qualificados. Esse uso da estrutura da ajuda mútua trouxe resultados importantes. Auxiliou a transpor a separação entre trabalhar e viver e preservou a coesão de interesses em questões relativas a produção e consumo. No contexto da indústria parisiense, também reforçou a busca de alternativas por caminhos mutualistas e cooperativos. Tanto a consciência quanto a ação política iriam extrair grande parte da sua força desse senso de unidade.
A onda de fortalecimento institucional e modernização, que seria fonte de inspiração para administrações posteriores, tornou-se mais marcante após 1862. O imperador, sob o ataque crescente dos monarquistas da classe alta aliados aos católicos conservadores, e ameaçado no outro flanco pela restauração do republicanismo burguês, foi obrigado a buscar apoio de uma classe trabalhadora que até seus próprios maires lhe diziam estar em situação desesperadora. Mas as iniciativas imperiais voltadas a atrair os trabalhadores para o lado do Império e do progresso industrial tiveram pouca resposta na base, salvo uma longa explanação de Henri Tolain, o que lhe rendeu uma entrevista com o imperador e o direito de formar uma comissão de trabalhadores composta pelos presidentes das sociedades de ajuda mútua; o que atesta o reconhecimento do real papel corporativista e profissional destas últimas. Ironicamente, os encontros da comissão começaram no exato momento em que teve início uma das primeiras grandes greves dos trabalhadores de ofício parisienses, a dos tipógrafos, em 1862. Seus líderes foram presos pelo crime de coalizão, embora a opinião pública (inclusive muitos republicanos) tivesse ficado solidária a eles. Ao perdoá-los, o imperador na verdade tornou irrelevantes as leis contra coalizão e associação. Ele o fez quando os trabalhadores que havia ajudado a enviar à fatídica exposição de Londres estavam retornando, trazendo dos sindicatos britânicos histórias de melhores condições laborais e salariais.
Mas, curiosamente, nenhum dos lados estava disposto, até o momento, a reconhecer as realidades da luta de classes. A abertura concedida à política da classe trabalhadora no início da década de 1860 provocou de início uma onda de posicionamentos mutualistas. As sociedades de ajuda mútua floresceram em número e filiação, enquanto os esquemas de crédito mútuo (como o Crédit au Travail), as cooperativas de consumidores (duas fundadas em 1864) e a habitação cooperativa explodiram em toda parte (algumas chegaram a atrair o apoio privado do imperador). Os estatutos da Internacional foram aprovados pelo governo em 1864. Ao mesmo tempo, Luís Bonaparte escalou Émile Ollivier (que mais tarde estaria à frente do Império liberal de 1869) para reformular a lei de associações. Projetada para evitar a luta de classe organizada, ela deu aos trabalhadores o direito de greve, mas não o de organização ou reunião. Os encadernadores e os bronzistas, seguidos pelos canteiros, imediatamente celebraram deflagrando uma greve pela diminuição da jornada de trabalho sem reduções salariais. Contudo, no início da década de 1860, o principal foco do movimento trabalhista estava mais voltado à organização de direitos e condições de trabalho do que aos índices salariais. Nesse momento, a influência de Proudhon estava no auge, e ele atacava greves e sindicatos (quase parecia aprovar a lei de Ollivier) e defendia a implantação de uma democracia mutualista dos trabalhadores (assim como advogava o retorno de todas as mulheres à esfera doméstica, à qual elas pertenciam). Os delegados franceses dos encontros da Internacional de 1866 em Genebra, liderados por Tolain, levaram consigo uma verdadeira cartilha de princípios proudhonistas e mutualistas, atestando assim a profunda influência dessas ideias na consciência dos trabalhadores de ofício.
O movimento dos trabalhadores também teve seus revezes. As investidas dos trabalhadores na criação de uma imprensa independente foram logo reprimidas, em parte devido à oposição republicana burguesa. A tentativa de definir um espaço político independente também fracassou. Com certo apoio dos republicanos radicais, em 1864 os trabalhadores de ofício lançaram o Manifesto dos sessenta, que se concentrava nos direitos trabalhistas como uma questão política. O resultado geral disso foi erguer o temido espectro da luta de classes e da suspeita infundada, mas não insensata, de que o movimento dos trabalhadores estava sendo usado pelo Império para frustrar as aspirações republicanas burguesas. Quando Tolain, signatário do Manifesto e um dos fundadores do ramo parisiense da Internacional, disputou a eleição como candidato independente dos trabalhadores, em 1863, para enfatizar a distinção da causa trabalhista, ele foi vilipendiado pela imprensa republicana e tão massacrado pela oposição daquela região que recebeu menos de quinhentos votos em uma eleição parlamentar na qual os republicanos burgueses arrebataram o poder em grande parte de Paris.
A recessão de 1867-1868 marcou um realinhamento radical das forças de classe e também um ponto de virada na militância e na retórica dos trabalhadores. O que se tornou conhecido como a “greve dos milionários” viu a acumulação maciça de capital excedente nos cofres do Banco da França, a estagnação das obras públicas e do mercado imobiliário parisiense de luxo, o acirramento da concorrência internacional e o aumento do desemprego diante de preços em forte elevação. A queda dos Péreires, a tensão do mercado de ações e a probabilidade cada vez maior de um conflito geopolítico com a Prússia minaram a sensação de segurança que outrora o autoritarismo do Império havia conseguido passar. De certo modo, o espetáculo da Exposição Universal de 1867 desviou o foco de tais questões, embora muitos tenham notado a ironia de que ela celebrava o fetiche da mercadoria e o consumismo em uma época de encolhimento das rendas reais, e trouxe produtos competitivos, além do rei da Prússia, ao próprio coração de Paris em uma época de alta concorrência internacional e tensão geopolítica.
O movimento dos trabalhadores tornou-se então muito mais militante e deslocou seu foco dos direitos organizacionais para os salários reais. Dentro da Internacional isso foi marcado pelo eclipse de mutualistas como Tolain e Fribourg e sua substituição por comunistas como Varlin e Malon, cujas atitudes, dada a juventude, eram menos afetadas pelas memórias de 1848 e mais forjadas nas realidades do conflito de classe da década de 1860. A perseguição da Internacional naquele momento só ajudou o processo de transição, pois removeu os líderes originais, deu-lhe uma credibilidade cada vez maior entre os trabalhadores parisienses e a empurrou para a clandestinidade, onde encontrou blanquistas militantes – que estavam se voltando à organização da classe trabalhadora como parte de sua estratégia revolucionária. Mas embora Varlin, por exemplo, tenha se aproximado rapidamente de uma política cada vez mais coletivista, esforçando-se para organizar e federalizar os sindicatos e, assim, torná-los agentes de ação maciça da classe trabalhadora, ele ainda acreditava que os princípios mutualistas de organização eram a base da transição ao socialismo[4]. Os trabalhadores de ofício se equilibravam na ambiguidade entre a organização de classe e o mutualismo, e, pelo visto, não tinham muita consciência da tensão entre eles.
Em 1867, houve importantes greves de bronzistas (apoiados pela primeira vez por recursos internacionais), alfaiates e trabalhadores de construção, cuja causa principal era o aumento dos salários. Nesse mesmo ano, o descontentamento generalizado com os padrões de vida transformou-se em protestos nas ruas que envolveram, inclusive, trabalhadores não organizados e não qualificados. Pela primeira vez desde 1848, os não organizados de Belleville desceram até o espaço dos trabalhadores de ofício no centro da cidade para expressar seu descontentamento. Barricadas apareciam esporadicamente, e acabavam sendo varridas quase de imediato pelas forças da ordem. A burguesia também não estava deslumbrada com as importantes concessões que lhe foram feitas. O retorno ao governo quase parlamentar (simbolizado pela volta da tribuna do orador na legislatura) abriu um fórum para queixas. E havia muito do que se queixar. O movimento da liberdade de expressão do início da década de 1860 já havia transformado a Rive Gauche em um foco de agitação estudantil e intelectual. Os industrialistas se queixavam de Haussmann, e os mestres das oficinas e lojistas reclamavam ferozmente das condições do crédito e do poder dos grandes monopólios, que haviam recebido apoio do Estado. A recessão e a vitória da Prússia sobre a Áustria em Sadowa (sem falar da infeliz aventura mexicana) abalaram a confiança de todos em um governo que tinha subido ao poder sob a promessa de paz e prosperidade e agora parecia não proporcionar nem uma coisa, nem outra. Burgueses como Thiers, que havia muito se sentiam excluídos do grande banquete da riqueza e do poder do Estado, estavam prontos para utilizar a agitação e o mal-estar em benefício próprio. Até os monarquistas conseguiram encontrar causas, como a descentralização, para congregar o descontentamento popular.
Tudo isso foi um mero prelúdio às impressionantes lutas de 1868-1871. Mas foi um prelúdio importante, visto que colocou a questão de qual aliança de classe poderia substituir o Império. Será que os monarquistas tinham como desviar apoio suficiente do centro da burguesia para frustrar o impulso republicano? Será que os republicanos burgueses conseguiriam controlar o movimento da classe trabalhadora e manter a república política longe das garras dos socialistas? Será que os livres-pensadores radicais e os republicanos déclassé poderiam se aliar a um movimento dos trabalhadores que superasse o viés artesão e conseguisse abranger os não qualificados, criando assim uma república revolucionária e socialista? Será que o Império conseguiria dividir para reinar e manipular cada uma dessas facções por meio de cooptação e de seu poder policial e de incitação? Na prática, o Império era obrigado a fazer cada vez mais concessões. Ele abrandou a censura da imprensa (maio de 1868) e autorizou reuniões públicas sobre tópicos “não políticos” (junho de 1868). O direito à formação de sindicatos foi concedido em 1869. Mas o Estado de modo algum renunciou a seus poderes provocadores e repressores.
Os líderes da Internacional procuravam colaborar com a oposição burguesa republicana e foram presos já no fim de 1867. Os republicanos respeitáveis ignoravam a demanda por uma aliança de classe, e os trabalhadores eram igualmente críticos a essa tática, pois se lembravam muito bem de como a república política os havia traído em 1848. O segundo grupo de líderes da Internacional buscou um espaço independente no qual pudesse compor a força do seu próprio movimento. Líder da sociedade de ajuda mútua dos encadernadores, Varlin a transformou em um sindicato vigoroso e coerente em 1869. Em 1867, ele havia contribuído para a fundação de um sistema extensivo de cooperativas de consumo (La Marmite), unindo alimentação barata, política e consumo de forma mais coesa do que a taberna ou o cabaré, locais regularmente frequentados pela maioria dos trabalhadores que viviam em pensões. Defendeu intensamente a igualdade de direitos para as mulheres nos locais de trabalho e nas organizações dos trabalhadores; esteve à frente do movimento para federalizar os numerosos sindicatos parisienses (que provavelmente chegaram à cifra de 20 mil) em 1869; e desempenhou um papel fundamental nos esforços da Internacional para unificar a ação da classe trabalhadora dentro e fora do país. Era exatamente essa ampla concepção geopolítica da luta que aterrorizava os “burgueses honestos”. O problema enfrentado por Varlin estava na integração da inquieta massa de trabalhadores não organizados e não qualificados a um movimento cuja base sempre fora composta por trabalhadores de ofício. As estruturas que ele e outros ergueram em 1870 não foram de modo algum suficientes para lidar com essa tarefa. Ao reconhecer tal fraqueza, ele procurou fazer alianças táticas com a ala radical e geralmente revolucionária da burguesia.
Essa ala sempre existiu dentro de la bohème e do movimento estudantil, e os blanquistas começaram a organizar esses descontentes em torno do seu próprio programa. Mas o relaxamento da censura sobre a imprensa revelou uma faixa muito mais ampla de insatisfação. Henri de Rochefort, proprietário de um jornal, tornou-se o herói do momento para as classes populares e insatisfeitas após lançar La Lanterne, publicação repleta de críticas radicais e retóricas revolucionárias (que horrorizavam a burguesia conservadora e renderam a Rocheford passagens periódicas pela cadeia). Reconhecendo o poder desse movimento, Varlin estabeleceu uma aliança tática na tentativa de garantir que as questões sociais fossem adequadamente integradas em qualquer programa republicano radical. No entanto, os republicanos radicais, por sua vez, precisavam apagar da memória a traição de 1848. Foi o que tentaram fazer em 1868 ao relembrar a morte de um representante republicano, Baudin, nas barricadas de 1851. Propuseram uma peregrinação maciça até sua tumba no Dia dos Mortos, mas o governo tentou impedir a passagem, e os que conseguiram chegar ao cemitério de Montmartre tiveram dificuldade para encontrar o túmulo. Daí surgiu a ideia de uma subscrição pública. A perseguição do governo aos envolvidos no episódio só atraiu mais atenção para o “crime” do golpe de Estado, enquanto permitiu que um jovem advogado, Gambetta, se tornasse outro herói instantâneo da causa radical. A ressurreição simbólica de Baudin, a criação da tradição, foi, de certa maneira, uma grande jogada. Ela se concentrava na ilegitimidade do Império para simbolizar o papel dos burgueses no coração do espaço da luta dos trabalhadores (essa era a virtude especial do cemitério de Montmartre). Foi por meio de gestos como esse que a burguesia radical conseguiu abraçar a “outra Paris” em uma unidade simbólica.
Figura 102: A localização e a frequência das reuniões públicas em Paris, 1868-1870.
Os encontros públicos “não políticos” que tiveram início em 28 de junho de 1868 foram acontecimentos extraordinários. Densamente concentrados nas zonas de insatisfação, nenhum poder de vigilância do governo conseguia impedi-los de se transformarem em ocasiões para a educação de massa e politização[5]. Sua geopolítica foi extremamente profética da Comuna. Os encontros não só se espalhavam de forma irregular pelo espaço parisiense, como rapidamente se estabeleceu uma especialização de público, tópico e lugar. Os economistas políticos e reformistas burgueses, que viam os encontros como oportunidades para educar as massas sobre sua causa, estavam em desvantagem e a fala deles era geralmente abafada por gritos nos locais de encontro da “outra Paris”. Uma variedade de radicais, feministas, socialistas, blanquistas e outros revolucionários dominou o palco político em muitos bairros da cidade. Os economistas políticos e reformistas foram obrigados a se retirar para a relativa segurança do centro da Rive Gauche e da Rive Droite, deixando o norte e o nordeste da cidade inteiramente nas mãos de radicais, socialistas e revolucionários. Parecia que a “outra Paris” era agora espaço exclusivo de agitação política popular. Essa tendência foi reforçada por um repentino ressurgimento da cultura de rua popular e de canções e baladas revolucionárias que subitamente irromperam de uma clandestinidade sombria onde estiveram adormecidas por quase duas décadas.
Esse tipo de agitação era tão perturbador para o burguês respeitável quanto para os defensores do Império. Será que o Império conseguiria reunir os insatisfeitos em nome da lei e da ordem? Só se fizesse importantes concessões. Assim, o ano de 1869 começou com o repúdio oficial dos métodos escorregadios de financiamento empregados por Haussmann em face das críticas da burguesia adepta do conservadorismo fiscal. O ataque severo de Jules Ferry ao prefeito nos Comptes fantastiques d’Haussmann, em 1868, acusava-o de inúmeras impropriedades. O rescaldo disso foi curioso. Por um lado, obrigou Haussmann a reduzir as atividades das obras públicas e lesou ainda mais o comércio e o setor da construção parisienses, exacerbando assim o descontentamento social. Por outro, nenhum de seus opositores negava a utilidade de suas obras, e muitos deles lhe suplicavam em 1869 a conclusão de uma ou outra parte dos projetos ou, como Rothschild, ficavam bastante satisfeitos em emprestar à prefeitura o dinheiro que fosse necessário. Parecia cada vez mais que Haussmann era um mero alvo substituto do imperador, e que o que estava em jogo era a exclusividade de seu aparente patronato.
A subsequente campanha eleitoral de maio de 1869 foi cercada de agitação política. A tentativa de Ollivier de trazer o tema do apoio ao Império liberal para o centro de Paris foi seguida de motins. A multidão que estava em Châtelet se deslocou estrondosamente até o Faubourg Saint-Antoine, o tradicional coração da revolução, antes de se dispersar. No dia seguinte, 20 mil pessoas se manifestaram ao redor dos bairros dos trabalhadores de ofício; e, no outro dia, cerca de 15 mil tentaram ir da Sorbonne, onde haviam se reunido, até a Bastilha, mas o caminho havia sido interditado. Durante essa fase, os bulevares de Haussmann se transformaram em campos de batalha. Até então utilizados por transeuntes e consumidores burgueses, eles de repente foram tomados por uma onda maciça de trabalhadores, estudantes, lojistas e moradores de rua insatisfeitos. Em 12 de junho, uma multidão foi até o Opéra e ali estabeleceu a primeira barricada de fato. A reação dos burgueses foi no sentido de reafirmar seus direitos ao espaço do bulevar, expulsando os indesejáveis. Até o imperador enxergou o valor simbólico de atravessar o disputado território entre o Opéra e o Port-Saint-Denis, embora tenha sido saudado com um silêncio glacial enquanto fazia o trajeto.
Figura 103: A queda de Haussmann foi seguida de uma campanha para difamar sua contabilidade criativa, com especulações e insinuações de que ele havia roubado o Tesouro público. Nesta charge de Mailly, ele aparece com um carimbo escrito “ladrão”, como o homem que vendeu Paris para fins de destruição. Entretanto, há poucas evidências de que ele pessoalmente tenha lucrado com as obras que levou a cabo.
Mas a multidão nos bulevares escondia segredos. Nunca ficou claro, por exemplo, se as agitações violentas e os “camisas brancas” eram ou não sinais de atividade policial secreta. Certamente, houve muitas oportunidades de instigar ameaças à lei e à ordem e intimidar os burgueses respeitáveis, atraindo-os de volta ao rebanho imperial. Também nunca ficou claro até que ponto as multidões eram de fato revolucionárias. Grandes aglomerações de 20 mil pessoas ou mais se dispersavam quando solicitadas a fazê-lo por republicanos obedientes à lei. E a enorme manifestação de mais de 100 mil pessoas, que se mobilizaram quando o sobrinho do imperador atirou no jornalista radical Victor Noir, dispersou-se silenciosamente a pedido de Rochefort, em vez de enfrentar as forças da ordem que impediam sua entrada no centro de Paris. Entretanto, na véspera, Rochefort havia deixado muito claro que o dia da revolução estava próximo. Os blanquistas também queriam iniciar a insurreição naquele momento, mas encontraram pouco apoio. Os tempos estavam muito revoltos, mas a liderança era incerta. Será que a ambiguidade e a dispersão das opiniões da oposição poderiam ser superadas e transformadas em revolução?
As eleições de maio e junho de 1869 pareciam indicar o contrário. Foi só em Belleville que um simpatizante radical foi eleito, e León Gambetta ainda era um político que conseguia reduzir as distâncias entre o posicionamento de socialistas moderados e burgueses de esquerda com habilidade e autenticidade. Em todas as outras regiões, os republicanos levaram a melhor; no oeste burguês, foi o mais que conservador Thiers que superou, e com pequena margem, o candidato do Império no oeste burguês. O plebiscito do ano seguinte foi mais difícil de interpretar, mas as abstenções (estimuladas pela esquerda radical) não aumentaram de forma significativa e, embora os votos contra tenham prevalecido, o Império ainda recebeu um número surpreendente de votos a favor. Ao que parecia, seriam necessárias ações muito mais abrangentes de organização e educação das classes populares para que uma república social pudesse ser produzida. E os socialistas concentraram seus esforços justamente nessa tarefa. As reuniões públicas proporcionaram uma base para as organizações de bairro, e os temas ali levantados estimularam a formação de sindicatos, cooperativas de consumo e de produção, organizações feministas etc. Todos esses formaram a infraestrutura organizacional que seria usada com êxito na Comuna. E não há dúvidas sobre sua orientação política revolucionária, embora houvesse muito espaço para desacordos, rixas interpessoais e conflitos bairristas. No entanto, as diretrizes dessa forma de oposição não eram iguais às das ruas. As greves no comércio, nos curtumes, nas carpintarias e a formação de vínculos entre sindicatos e bairros tinham um ritmo diferente e alvos definidos, ao mesmo tempo que eram relativamente mais imunes à infiltração da polícia. Aqui estava a grande linha divisória entre os socialistas, que estimulavam a construção paciente de um movimento revolucionário, e os blanquistas, que buscavam uma insurreição espontânea e violenta.
Contudo, em 1870 estava claro que a maioria dos burgueses buscava uma saída legal para o impasse do Império, e se afastava de qualquer coalizão com os “vermelhos”. Eles usavam seus meios de comunicação e influências dentro da imprensa para reiterar a mensagem da lei e da ordem tanto aos trabalhadores quanto à pequena burguesia. O descontentamento, no entanto, continuava a se agravar, tornando-se cada vez mais ameaçador à medida que as condições de vida deterioravam e a economia estagnava. O conflito em Belleville, em fevereiro de 1870, deixou vários mortos, muitos presos e danos consideráveis à propriedade (em geral àquelas de lojistas e proprietários imobiliários impopulares). Uma greve importante nas fábricas de locomotivas em Cail indicou um nível de revolta e organização dos trabalhadores que até então não estava evidente. Diante de um Império intimidado e uma burguesia inflexível, a comoção causada pelo descontentamento parecia impossível de ser contida. Embora a situação fosse desesperadora, os líderes da Internacional (ao contrário dos blanquistas) achavam que as condições políticas ainda não estavam maduras o suficiente para a revolução social. Eles estavam certíssimos nesse julgamento, como a Comuna, infelizmente, iria mostrar. O que surpreende é a distância, a abrangência e a profundidade que conseguiram alcançar na formação de uma organização revolucionária capaz de unir muitos elementos disparatados no espaço disperso de Paris (assim como da França). No fim, a conjunção dos eventos tragicamente os obrigou a pôr seus esforços na linha de frente de forma muito prematura, em defesa de uma causa perdida. Entretanto, essa conjuntura foi menos acidental do que se podia supor, pois ela dava todos os sinais de que a “burguesia honesta” – liderada por Thiers – não só estava interessada em acabar com o Império e colher os frutos do poder político, como estava determinada a acabar de uma vez por todas com os “vermelhos” e sujeitá-los a seu próprio conceito vil de “solução final”. Foi assim o ato final daquela farsa feroz até a sangrenta semana de maio de 1871, quando cerca de 30 mil communards foram mortos.
Saber o que aconteceu exatamente na Comuna está além do nosso alcance. Mas grande parte do que se sucedeu estava enraizada nos processos e efeitos da transformação de Paris no Segundo Império. A organização de oficinas municipais para mulheres; o estímulo às cooperativas de produção e de consumo; a suspensão do trabalho noturno nas padarias; a moratória a dívidas e aluguéis e a venda de itens da casa de penhores municipal em Mont-de-Piété refletiam os pontos nevrálgicos que haviam por anos atormentado a classe trabalhadora de Paris. As assembleias dos trabalhadores de ofício; o fortalecimento dos sindicatos; o vigor dos clubes de bairro que se originaram das reuniões públicas de 1868-1870 e que desempenhariam um papel fundamental na defesa dos bairros; a criação da Union des Femmes pour la Défense de Paris et les Soins aux Blessés [União de Mulheres para a Defesa de Paris e o Cuidado com os Feridos]; e a tentativa de unir organizações políticas de trabalhadores que superassem as tensões entre centralização e descentralização, entre hierarquia e democracia (o Comitê dos Vinte Arrondissements, o Comitê Central da Guarda Nacional e a própria Comuna), todos evidenciam a intensa busca por novas formas organizacionais geradas a partir das antigas. A criação do Ministério do Trabalho e as fortes medidas voltadas à educação primária e profissionalizante gratuita e laica atestaram a profundidade da preocupação social.
Figura 104: A greve dos trabalhadores da grande fábrica de Cail, em 1870, foi extensa e importante o bastante para sair na imprensa burguesa.
No entanto, a Comuna jamais desafiou com seriedade a propriedade privada ou o poder do dinheiro. Ela requisitou apenas oficinas e moradias abandonadas, e se prostrou diante da legitimidade do Banco da França (episódio que Marx e Lenin bem observaram). A maioria buscava a conciliação baseada em altos princípios e na aceitação mútua em vez da confrontação (até alguns blanquistas acabaram, na prática, seguindo esse caminho). Mas grande parte da oposição à Comuna também já estava determinada. A discórdia entre a Comuna e os maires republicanos “moderados” dos arrondissements (que obtiveram pouca atenção em Versalhes quando tentaram dirimi-la) aumentava à medida que as tensões cresciam. A burguesia, que havia se dignado a permanecer e enfrentar as vicissitudes impostas pelo cerco da Prússia de 1870, rapidamente mostrou as garras, mobilizando o protesto dos “Amigos da Ordem” de 21 e 22 de março de 1871, e a partir daí fez do oeste de Paris um ponto de penetração fácil para as forças de reação. O mapa dos padrões de votação para a Comuna era previsível o suficiente. A diferença, dessa vez, era que o poder hegemônico agora estava nas mãos de um movimento de base trabalhadora.
Figura 105: As eleições de 26 de março de 1871 e as fases da reocupação de Paris durante a “semana sangrenta” de maio de 1871 ilustram muito claramente o desequilíbrio das afiliações políticas na cidade. O baixo número de eleitores no oeste reflete o fato de que muitos dos cidadãos mais ricos fugiram para seus retiros rurais.
A decisão de Thiers de transferir a Assembleia Nacional de Bordeaux para Versalhes depois de assinar uma humilhante rendição aos prussianos e sua retirada de todas as funções executivas de Paris após ter fracassado no desarmamento da cidade em 18 de março de 1871 cristalizaram as forças da reação rural de tal modo que as deixaram em grande vantagem sobre os fracos apelos da Comuna à solidariedade entre cidade e campo. Ao reunir a ignorância e o medo rurais, alimentados por uma propaganda viciosa, em um Exército preparado para não dar quartel (afinal, eles não foram encarregados de extirpar os demônios vermelhos de uma Paris pecadora e ateia?), Thiers mostrou que pretendia conseguir uma resolução catártica a qualquer custo. Uma vez que a possibilidade de um ataque rápido e preventivo contra Versalhes fora perdida, a Comuna tinha pouco a fazer exceto esperar seu destino. A tensão decorrente disso provocou divisões e alimentou descontentamentos e rivalidades internas na precária aliança de classes e facções que produziram a Comuna. Rachas entre burgueses radicais, cada qual armado com sua própria teoria esplêndida da revolução; entre patriotas práticos e mascates de retórica e sonhos; entre trabalhadores desnorteados com os eventos e líderes de sindicatos de trabalhadores de ofício que tentavam produzir interpretações coerentes e convincentes; entre lealdades ao bairro, à cidade e à nação; entre centralizadores e descentralizadores, todos davam à Comuna um ar de desarmonia e de uma prática política crivada de conflitos internos. Mas essas divisões havia muito estavam em desenvolvimento; tinham raízes profundas na tradição, e sua evolução ficara confusa com a guinada para a modernidade capitalista e o choque entre a política do Império e a economia do capital. Novamente, como Marx escreveu em O 18 de brumário, “A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”*, mas dessa vez era o movimento da classe trabalhadora que internalizava o pesadelo. Extraídos do espírito reconstruído de 1789, o proudhonismo e o jacobinismo puros caíram em descrédito com o fracasso da Comuna. Mas esse foi um preço alto demais a ser pago. A tragédia foi que uma modernidade alternativa, fundamental para o que a Comuna buscava alcançar, foi morta no útero de uma sociedade burguesa que jamais conseguiu enxergar além da república política e contemplar a república social como uma potencial realização de suas aspirações.
A Comuna foi um evento singular, único e dramático, talvez o mais extraordinário desse tipo na história urbana capitalista. Foi preciso a guerra, o desespero do cerco prussiano e a humilhação da derrota para acender a fagulha. Mas os ingredientes da Comuna foram reunidos lentamente pelos ritmos da transformação capitalista da geografia histórica da cidade. Busquei neste trabalho expor as complexas transformações na economia e na organização social, na política e na cultura que alteraram a face de Paris de maneiras irreversíveis. A cada momento do trajeto encontramos pessoas como Thiers e Varlin, Paule Minck e Jules Michelet, figuras como Haussmann e Louis Lazare, como Luís Bonaparte, Proudhon e Blanqui, os Péreires e os Rothschilds, girando em torno da multidão de cantores e poetas de rua, trapeiros e trabalhadores de ofício, banqueiros e prostitutas, trabalhadores domésticos e ricos ociosos, estudantes e grisettes, turistas, lojistas e penhoristas, donos de cabarés e especuladores imobiliários, proprietários, advogados e professores. De alguma maneira, eles estavam dentro do mesmo espaço urbano e ocasionalmente se confrontavam em bulevares ou barricadas, mas todos lutavam do jeito que podiam para moldar e controlar as condições sociais de sua própria existência histórica e geográfica. O fato de não o terem feito sob as condições históricas e geográficas da sua própria escolha é óbvio. A Comuna surgiu a partir da busca pela transformação do poder e das relações sociais no interior de uma determinada configuração de classe formada em determinado espaço de um mundo capitalista que estava, por sua vez, ele próprio no auge de um processo de intensa transição. Temos muito a aprender com o estudo dessas lutas. E nelas também há muito para admirar e em que se inspirar.
[1]* “Prefácio”, em Contribuição à crítica da economia política, cit., incluído em Emir Sader e Ivana Jinkings (orgs.), As armas da crítica, cit., p. 106. (N. E.)
Karl Marx, The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte, cit., p. 135 [ed. bras.: O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 154].
** “Primeira mensagem do Conselho Geral sobre a guerra franco-prussiana”, em A guerra civil na França, cit., p. 23. (N. E.)
[2] Theodore Zeldin, The Political System of Napoleon III, cit., p. 10.
[3] Albert Thomas, Le Second Empire, cit., p. 192.
[4] Paule Lejeune, Eugène Varlin, cit.; Jacques Rougerie, Procès des communards, cit.
[5] A batalha pela consciência política está descrita de forma detalhada em Alain Dalotel, Alain Faure e Jean-Claude Freiermuth, Aux origines de la Commune, cit.
* O 18 de brumário de Luís Bonaparte, cit., p. 25. (N. E.)