12. Bandidos romanos
NO DIA SEGUINTE, Franz acordou primeiro e, assim que acordou, fez soar a campainha.
O tilintar da sineta ainda vibrava, quando mestre Pastrini em pessoa entrou.
— Pronto! — disse o hoteleiro triunfante, sem sequer esperar que Franz o interrogasse. — Eu já desconfiava desde ontem, Excelência, quando não queria prometer nada; os senhores chegaram muito tarde, não resta mais uma única caleche em Roma: para os últimos três dias, claro.
— Sim — disse Franz —, ou seja, para quando ela é absolutamente necessária.
— O que houve? — perguntou Albert, entrando. — Nada de caleche?
— Isso mesmo, prezado amigo — respondeu Franz —, adivinhou de primeira.
— Muito bom! Que bela cidade é esta sua cidade eterna!
— Isso quer dizer, Excelência — continuou mestre Pastrini, desejando preservar, aos olhos de seus hóspedes, certa dignidade para a capital do mundo cristão —, que não há mais caleche a partir de domingo de manhã até terça-feira à tarde, mas que daqui até lá encontrarão cinquenta, se quiserem.
— Já é alguma coisa — disse Albert. — Hoje é domingo; quem sabe o que pode acontecer daqui até o próximo domingo?
— A chegada de dez a doze mil turistas — respondeu Franz —, os quais dificultarão ainda mais as coisas.
— Meu amigo — disse Morcerf —, desfrutemos o presente e não agouremos o futuro.
— Pelo menos — perguntou Franz — podemos ter uma janela?
— Dando para onde?
— Para a rua do Corso, caramba!
— Ah, claro, uma janela! — exclamou mestre Pastrini. — Impossível, completamente impossível! Restava uma no quinto andar do Palácio Doria, que foi alugada a um príncipe russo por vinte sequins ao dia.
Os dois rapazes entreolhavam-se estupefatos.
— Muito bem, meu caro — disse Franz a Albert —, sabe o que de melhor temos a fazer? É irmos passar o Carnaval em Veneza; lá, pelo menos, se não encontrarmos um coche, encontraremos uma gôndola.
— Mas de jeito nenhum! — exclamou Albert. — Decidi assistir ao Carnaval de Roma e o farei, nem que seja em cima de uma perna de pau.
— Apoiado! — exclamou Franz. — É uma ideia triunfal, sobretudo para apagar os moccoletti3 ; vamos nos fantasiar de polichinelos-vampiros ou de habitantes das Landes e faremos um sucesso estrondoso.
— Suas Excelências continuam a querer um coche até domingo?
— Em nome de Deus! — disse Albert. — Acha que vamos percorrer as ruas de Roma a pé feito os contínuos da administração pública?
— Vou correr para executar as ordens de Suas Excelências — disse mestre Pastrini. — Aviso-lhes, porém, que o coche lhes custará seis piastras por dia.
— E eu, meu caro sr. Pastrini, eu, que não sou nosso vizinho milionário, aviso-lhe da minha parte que, considerando ser esta a quarta vez que venho a Roma, sei muito bem o preço das caleches, dias comuns, domingos e festas. Nós lhe daremos doze piastras por hoje, amanhã e depois de amanhã, e ainda terá um belíssimo lucro.
— Mas, Excelência…! — exclamou mestre Pastrini, tentando se rebelar.
— Aceite, meu caro anfitrião, aceite — disse Franz —, ou vou eu mesmo fazer meu preço com seu affetatore4 , que é o meu também; trata-se de um velho amigo, que já me roubou não muito pouco dinheiro em sua vida e que, na esperança de me roubar mais, fará por um preço menor que o que lhe ofereço: o senhor perderá a diferença e a culpa será sua.
— Não se dê esse trabalho, Excelência — disse mestre Pastrini, com aquele sorriso do especulador italiano que se declara vencido —, farei o melhor que puder e espero que fique satisfeito.
— Magnífico! Assim é que se fala.
— Para quando quer o coche?
— Para daqui a uma hora.
— Daqui a uma hora estará na porta.
Com efeito, uma hora depois o coche esperava os dois rapazes: era um modesto fiacre, que, considerando a solenidade da circunstância, fora promovido a caleche; no entanto, por mais medíocre sua aparência, os dois rapazes viram-se bem felizes de contar com ele para os últimos três dias.
— Excelência! — gritou o cicerone, ao ver Franz pôr o nariz para fora da janela. — Convém aproximar a caleche do palácio?
Por mais habituado que Franz estivesse com a grandiloquência italiana, sua primeira reação foi olhar em volta; mas era a ele mesmo que aquelas palavras se dirigiam.
Franz era a Excelência, a caleche era o fiacre, o palácio era o Hotel de Londres.
Todo o talento laudatório da nação estava nessa única frase.
Franz e Albert desceram. A caleche aproximou-se do palácio. Suas Excelências esticaram as pernas sobre as banquetas, o cicerone pulou no assento de trás.
— Aonde Suas Excelências querem que eu as conduza?
— Ora, a São Pedro primeiro e ao Coliseu depois — disse Albert, como autêntico parisiense.
Mas Albert não sabia de uma coisa: é que é preciso um dia para ver São Pedro e um mês para estudá-la. O dia se resumiu portanto na visita a São Pedro.
De repente os dois amigos perceberam que o dia estava acabando.
Franz sacou seu relógio, eram quatro e meia.
Rumaram de volta para o hotel. Na porta, Franz deu ordens para o cocheiro estar pronto às oito horas. Queria mostrar a Albert o Coliseu ao luar, como mostrara São Pedro à luz do dia. Quando mostramos uma cidade que já visitamos a um amigo, exibimos a mesma vaidade que ao mostrar uma mulher de quem fomos amantes.
Por isso Franz traçou o itinerário para o cocheiro; ele devia sair pela porta del Popolo, acompanhar a muralha exterior e entrar pela porta San Giovanni. Assim, o Coliseu lhes apareceria sem nenhum preparativo, e sem que o Capitólio, o Fórum, o arco de Sétimo Severo, o templo de Antonino e Faustina e a Via Sacra tivessem servido de degraus espalhados em seu caminho para lhe diminuir o impacto.
Puseram-se à mesa: mestre Pastrini prometera um festim esplêndido para seus hóspedes; serviu-lhes um jantar medíocre: melhor nem comentá-lo.
No fim do jantar, o hoteleiro veio em pessoa; Franz imaginou que era para receber seus cumprimentos e se preparava para apresentá-los quando, às suas primeiras palavras, foi interrompido:
— Excelência, estou lisonjeado com sua aprovação; mas não foi por isso que subi até o quarto dos senhores…
— Foi para nos dizer que arranjou um coche? — perguntou Albert acendendo um charuto.
— Nada disso, e inclusive, Excelência, o senhor faria bem em não pensar mais nisso e se dar por satisfeito. Em Roma, as coisas ou são possíveis ou não. Quando lhes disserem que não são possíveis, desistam.
— Em Paris, é bem mais cômodo: quando não é possível, paga-se o dobro e tem-se na mesma hora o que se pede.
— Ouço todos os franceses dizerem isso — disse mestre Pastrini, um pouco atingido —, o que me faz não compreender como podem viajar.
— A verdade — começou Albert, soltando fleugmaticamente sua fumaça para o teto, inclinando-se para trás e equilibrando sua poltrona em apenas dois pés — é que são os loucos e simplórios como nós que viajam; as pessoas sensatas não deixam seu palacete na rua du Helder, o bulevar de Gand e o Café de Paris.
Desnecessário dizer que Albert morava na rua mencionada, dava todos os dias o passeio da moda e jantava diariamente no único café possível de se jantar, desde que se esteja em bons termos com os garçons.
Mestre Pastrini ficou em silêncio por um instante; era evidente que pensava numa resposta, a qual sem dúvida não lhe parecia perfeitamente clara.
— Mas, enfim — disse Franz por sua vez, interrompendo as reflexões geográficas de seu hospedeiro —, o senhor veio com um propósito; quer nos expor o objeto de sua visita?
— Ah, é verdade; ei-lo: os senhores encomendaram a caleche para as oito horas?
— Precisamente.
— Pretendem visitar il Colosseo?
— Quer dizer o Coliseu?
— É exatamente a mesma coisa.
— Que seja.
— O senhor disse ao seu cocheiro para sair pela porta del Popolo, dar a volta nos muros e entrar pela porta San Giovanni?
— Foram minhas próprias palavras.
— Muito bem! Esse itinerário é impossível.
— Impossível!
— Ou no mínimo muito perigoso.
— Perigoso! Por quê?
— Por causa do famoso Luigi Vampa.
— Para começar, meu caro anfitrião, quem é o famoso Luigi Vampa? — perguntou Albert. — Ele pode até ser muito famoso em Roma, mas previno-o de que é desconhecido em Paris.
— Como! Não o conhecem?
— Não tenho essa honra.
— Nunca ouviram ninguém pronunciar seu nome?
— Nunca.
— Pois bem! É um bandido ao lado do qual os Deseraris e os Gasparone não passam de coroinhas.
— Atenção, Albert! — exclamou Franz. — Finalmente temos um bandido!
— Aviso-lhe, meu caro anfitrião, que não vou acreditar em uma palavra do que vai nos dizer. Acertado esse ponto entre nós, fale o quanto quiser, estou escutando. “Era uma vez…” Muito bem, adiante!
Mestre Pastrini voltou-se para o lado de Franz, que lhe parecia o mais razoável dos dois rapazes. Temos que fazer justiça ao bom homem: já hospedara muitos franceses na vida, mas nunca havia compreendido certa faceta de seu temperamento.
— Excelência — disse ele gravemente, dirigindo-se, como dissemos, a Franz —, se me acha um mentiroso, é inútil eu dizer o que desejava lhe dizer: posso entretanto afirmar que era no interesse de Vossas Senhorias.
— Albert não falou que o senhor é mentiroso, meu caro sr. Pastrini — replicou Franz —, ele disse que não acredita no senhor, só isso. Da minha parte, acredito no senhor, fique tranquilo: fale então.
— Por outro lado, Excelência, compreende muito bem que, se duvidam da minha veracidade…
— Meu caro — respondeu Franz —, o senhor é mais suscetível que Cassandra, que entretanto era profetisa e que ninguém escutava, enquanto o senhor dispõe de pelo menos metade do seu público. Vamos, sente-se e contenos quem é o sr. Vampa.
— Já disse, Excelência, é um bandido como não vemos desde o famoso Mastrilla.
— Ótimo! Que relação há entre esse bandido e a ordem que dei ao meu cocheiro de sair pela porta del Popolo e entrar pela porta San Giovanni?
— Há — respondeu mestre Pastrini — que o senhor poderá efetivamente sair por uma, mas duvido que volte pela outra.
— Por que isso? — perguntou Franz.
— Porque, quando anoitece, não há mais segurança a quinhentos metros das portas.
— Jura? — exclamou Albert.
— Sr. visconde — disse mestre Pastrini, ainda magoado no fundo do coração pela dúvida emitida por Albert sobre sua credibilidade —, o que digo não é para o senhor, é para o seu companheiro de viagem, que conhece Roma e sabe que não se brinca com essas coisas.
— Meu caro — disse Albert dirigindo-se a Franz —, eis uma aventura admirável à nossa disposição: enchemos nossa caleche com pistolas, trabucos e fuzis de cano duplo. Luigi Vampa aparece para nos deter, nós o detemos. Trazemos ele para Roma; assim prestamos uma homenagem à Sua Santidade, que nos pergunta o que pode fazer para retribuir tão prestimoso favor. Então reivindicamos pura e simplesmente uma caleche e dois cavalos de suas estrebarias e assistimos ao Carnaval com um meio de transporte digno; sem contar que provavelmente o povo romano, grato, irá nos coroar no Capitólio e nos proclamar, como Cúrcio e Horácio Cocles, os salvadores da pátria.
Enquanto Albert desfiava tal proposta, mestre Pastrini fazia uma cara que tentaríamos em vão descrever.
— Em primeiro lugar — perguntou Franz a Albert —, onde arranjaria essas pistolas, esses trabucos, esses fuzis de cano duplo com que pretende abarrotar seu coche?
— O fato é que não será no meu arsenal — disse ele —, pois em Terracina levaram-me até o punhal; e quanto ao seu?
— Fizeram a mesma coisa comigo em Acquapendente.
— Vê! Meu caro hoteleiro — exclamou Albert, acendendo seu segundo charuto no que restava do primeiro —, o senhor sabia que essa precaução é muito conveniente para os ladrões e que me parece claramente tomada em conluio com eles?
Mestre Pastrini decerto achou a piada comprometedora, pois respondeu apenas pela metade e continuou a se dirigir a Franz como à única criatura razoável com quem podia se entender adequadamente:
— Sua Excelência sabe que não é costume alguém se defender quando é atacado por salteadores.
— Como! — admirou-se Albert, cuja coragem se revoltava à ideia de se deixar depenar sem nada dizer. — Como não é costume!?
— Exatamente, pois toda defesa seria inútil. Que pretende fazer contra uma dúzia de bandidos saindo de um fosso, de um casebre ou de um aqueduto e que lhe enfiam uma arma na cara todos ao mesmo tempo?
— Por Deus! Pretendo resistir até a morte! — exclamou Albert.
O hoteleiro voltou-se para Franz com uma expressão que queria dizer: “Decididamente, Excelência, seu colega é louco.”
— Meu caro Albert — disse Franz —, sua resposta é sublime e equivale ao “Que morra!” do velho Corneille: porém, quando Horácio respondia isso, tratava-se da salvação de Roma, e a coisa valia a pena. Porém, quanto a nós, observe que se trata de um mero capricho a satisfazer e que seria ridículo, por um capricho, arriscarmos a vida.
— Ah, per Bacco! — exclamou mestre Pastrini. — Já não era sem tempo, isso é que se chama falar.
Albert serviu-se de um copo de lacrima-christi, que bebeu em pequenos goles, resmungando palavras ininteligíveis.
— Muito bem, mestre Pastrini — disse Franz, — agora que meu companheiro está calmo e que o senhor pôde apreciar minhas disposições pacíficas, agora vejamos, quem é esse sr. Luigi Vampa? É um pastor de ovelhas ou um patrício? É jovem ou velho? Baixo ou alto? Descreva-o a fim de que, se porventura o encontrarmos pelo mundo, como Jean Sbogar ou Lara, possamos ao menos reconhecê-lo.
— Sou a melhor pessoa para informá-lo quanto a isso, Excelência, por saber detalhes exatos, uma vez que conheci Luigi Vampa ainda criança. Um dia, quando eu mesmo caí em suas garras, indo de Ferentino para Alatri, ele se lembrou, felizmente para mim, do nosso antigo relacionamento; deixou-me ir não apenas sem pagar resgate, como me deu de presente um belo relógio e me contou sua história.
— Vejamos o relógio — disse Albert.
Mestre Pastrini tirou do bolsinho um magnífico Breguet que estampava o nome de seu fabricante, o timbre de Paris e uma coroa de conde.
— Aqui está — disse ele.
— Caramba! — espantou-se Albert. — Apresento-lhe meus cumprimentos; tenho um bem parecido… — tirou seu relógio do bolso do colete — e me custou três mil francos.
— Passemos à história — disse Franz por sua vez, puxando uma poltrona e fazendo sinal para que mestre Patrini sentasse.
— Suas Excelências permitem? — perguntou o hoteleiro.
— Ora, ora — fez Albert —, o senhor não é um pregador para falar de pé, meu caro.
O hoteleiro sentou-se após ter dirigido a cada um de seus futuros ouvintes uma saudação respeitosa, que tinha como objetivo indicar que estava disposto a dar as informações que quisessem pedir sobre Luigi Vampa.
— Alto lá! — disse Franz, interrompendo mestre Pastrini no momento em que este abria a boca. — O senhor diz que conheceu Luigi Vampa ainda criança; então ele ainda é jovem?
— Como jovem? Claro que é; tem vinte e dois anos, se tanto! Oh, é um rapagão que irá longe, tenha certeza!
— Que me diz, Albert? É bonito isso, com vinte e dois anos já ter criado fama — disse Franz.
— É verdade, e, na idade dele, Alexandre, César e Napoleão, que depois fizeram um certo barulho pelo mundo, não estavam tão adiantados.
— Então — disse Franz, dirigindo-se ao hoteleiro —, o herói cuja história vamos ouvir tem apenas vinte e dois anos?
— Se tanto, como tive a honra de lhe dizer.
— É alto ou baixo?
— De estatura mediana; mais ou menos como Sua Excelência — disse o hoteleiro, apontando para Albert.
— Obrigado pela comparação — disse este, fazendo uma reverência.
— Continue, mestre Pastrini — disse Franz, sorrindo da suscetibilidade do amigo. — E a que classe da sociedade ele pertencia?
— Era um simples pastorzinho, empregado na fazenda do conde de San Felice, situada entre Palestrina e o lago de Gabii. Nascera em Pampinara e havia entrado aos cinco anos para o serviço do conde. Seu pai, igualmente pastor em Anagni, tinha um pequeno rebanho e vivia da lã de seus carneiros e com o que conseguia do leite de suas ovelhas, que vendia em Roma.
“Ainda criança, o pequeno Vampa tinha um caráter estranho. Um dia, aos sete anos de idade, foi procurar o pároco de Palestrina e lhe pediu para ensiná-lo a ler. Era coisa difícil, pois o jovem pastor não podia abandonar seu rebanho. Mas o bondoso pároco ia todos os dias dizer a missa num pequeno burgo pobre e irrelevante demais para pagar um padre, e que, não tendo sequer nome, era conhecido por dell’Borgo. Ele então propôs a Luigi que se encontrassem no meio do caminho, na hora do seu retorno, quando teria sua aula, prevenindo-o de que essa aula seria curta e de que ele, por conseguinte, deveria aproveitá-la.
“O menino aceitou com alegria.
“Todos os dias Luigi levava seu rebanho para pastar na estrada que ia de Paletrina a Borgo; todos os dias, às nove da manhã, o padre e a criança sentavam-se à beira de um fosso e o pequeno pastor aprendia no breviário do pároco.
“No fim de três meses, ele sabia ler.
“Não bastava, agora precisava aprender a escrever.
“O padre encomendou a um professor de caligrafia em Roma três alfabetos: um com letras grandes, um com letras médias e um com letras pequenas, e mostrou-lhe que, copiando esse alfabeto numa ardósia, com a ajuda de uma ponta de ferro, ele podia aprender a escrever.
“Na mesma noite, depois de reconduzir o rebanho para a fazenda, o pequeno Vampa correu até o ferreiro de Palestrina, arranjou um prego grande, forjou-o, martelou-o, arredondou-o e fez com ele uma espécie de estilete antigo.
“No dia seguinte, reuniu uma provisão de placas de ardósia e pôs mãos à obra.
“No fim de três meses, ele sabia escrever.
“O pároco, impressionado com aquela profunda inteligência e comovido com aquela aptidão, deu-lhe de presente diversos cadernos de papel, um pacote de penas e um canivete.
“Isso significou um novo estudo, mas tal estudo não era nada perto do outro. Uma semana depois, ele manejava a pena como manejava o estilete.
“O pároco contou esse episódio ao conde de San Felice, que desejou conhecer o pastorzinho, fez com que lesse e escrevesse à sua frente, ordenou a seu intendente que o fizesse comer com os criados e deu-lhe duas piastras por mês.
“Com esse dinheiro, Luigi comprou livros e lápis.
“Com efeito, aplicara a todos os objetos a facilidade de imitação que tinha e, como Giotto criança, desenhava sobre suas ardósias ovelhas, árvores e casas.
“Depois, com a ponta do canivete, começou a esculpir a madeira e a lhe dar todo tipo de formas. Foi assim que Pinelli, o escultor popular, começou.
“Uma garotinha de seis ou sete anos, isto é, um pouco mais jovem que Vampa, pastoreava por sua vez ovelhas numa fazenda perto de Palestrina; era órfã, nascida em Valmontone, e chamava-se Teresa.
“As duas crianças encontravam-se, sentavam-se perto uma da outra, deixavam seus rebanhos se misturar e pastar juntos, conversavam, riam e brincavam; em seguida, à noite, separavam os carneiros do conde de San Felice daqueles do barão de Cervetri, e as crianças se despediam para voltar às suas respectivas fazendas, prometendo encontrarem-se no dia seguinte pela manhã.
“Na manhã seguinte cumpriam a palavra, e cresciam assim, lado a lado.
“Vampa completou doze anos e a pequena Teresa, onze.
“Enquanto isso seus instintos naturais se desenvolviam.
“Além do gosto pelas artes, que levara tão longe quanto o podia fazer no isolamento, Luigi era triste por excentricidade, arrebatado por impulso, colérico por capricho, sempre sarcástico. Nenhum dos rapazes de Pampinara, de Palestrina ou de Valmontone conseguiu ascendência sobre ele, muito menos ser seu amigo. Seu temperamento voluntarioso, sempre disposto a exigir mas nunca a fazer qualquer concessão, repelia qualquer atitude amistosa, qualquer demonstração de simpatia. Apenas Teresa governava com uma palavra, um olhar, um gesto, aquele caráter inflexível, que vergava sob a mão de uma mulher mas que, sob a de qualquer homem, teria se enrijecido até quebrar.
“Teresa, ao contrário, era viva, esperta e alegre, mas excessivamente vaidosa: as duas piastras que o intendente do conde de San Felice dava a Luigi, e o que ele arrecadava com todas as pequenas esculturas que vendia aos comerciantes de brinquedos de Roma, transformavam-se em brincos de pérolas, colares de cristal e agulhas de cabelo de ouro. Assim, graças à prodigalidade de seu amiguinho, Teresa era a camponesa mais bonita e elegante das cercanias de Roma.
“As duas crianças continuaram a crescer, passando todos os seus dias juntas e se entregando sem resistência aos instintos de sua natureza primitiva. Assim, em suas conversas, em seus anseios, em seus sonhos, Vampa via-se sempre capitão de navio, general de exército ou governador de uma província; Teresa via-se rica, usando os mais belos vestidos e com um séquito de criados de libré; depois, quando haviam passado o dia inteiro bordando seu futuro com esses arabescos loucos e brilhantes, separavam-se para reconduzir seus carneiros aos estábulos e descer de novo, do topo de seus sonhos, à humildade de sua real posição.
“Um dia, o jovem pastor contou ao intendente do conde que vira um lobo sair das montanhas da Sabina e rondar seu rebanho. O intendente deu-lhe um fuzil: era o que Vampa queria.
“Esse fuzil verificou-se por acaso um excelente cano de Brescia, que era carregado como uma carabina inglesa; porém um dia, o conde, ao atacar uma raposa ferida, quebrara-lhe a coronha e ele fora deixado de lado.
“Isso não era uma dificuldade para um escultor como Vampa. Estudou a coronha original, calculou o que precisava mudar nela para deixá-la do seu agrado e fez outra coronha, cinzelada com ornamentos tão maravilhosos que, se vendida em separado na cidade, decerto teria valido quinze ou vinte piastras.
“Mas sua intenção não era essa: um fuzil fora por muito tempo o sonho do rapaz. Em todos os países em que a independência substitui a liberdade, a primeira necessidade sentida por todo coração forte, por toda organização poderosa, é a de uma arma que possibilite tanto o ataque quanto a defesa, e que, fazendo perigoso aquele que a empunha, muitas vezes o faça temido.
“A partir desse momento, Vampa dedicou suas horas de folga ao exercício do fuzil; comprou pólvora e balas, e tudo virou alvo para ele: o tronco da oliveira, triste, franzino e cinzento, que cresce na encosta das montanhas da Sabina; a raposa que, à noite, saía do seu território para dar início à caçada noturna, e a águia que planava no ar. Logo se tornou tão habilidoso que Teresa superou o medo que sentira inicialmente ao ouvir a detonação e divertiu-se vendo seu jovem companheiro colocar a bala de seu fuzil aonde queria, com tanta precisão quanto se a tivesse jogado com a mão.
“Uma noite, um lobo saiu efetivamente de um bosque de pinheiros próximo a um local que os dois jovens tinham o hábito de frequentar: o lobo não dera dez passos na planície e estava morto.
“Vampa, orgulhosíssimo de seu belo disparo, pôs o lobo nos ombros e o levou para a fazenda.
“Todos esses detalhes davam a Luigi uma certa reputação nos arredores; em qualquer lugar que se encontre, o homem superior cria uma clientela de admiradores. Falava-se daquele jovem pastor como o mais habilidoso, o mais forte e o mais corajoso camponês num perímetro de cinquenta quilômetros; e, embora Teresa, por sua vez, num círculo ainda maior, passasse por uma das mais belas raparigas da Sabina, ninguém se atrevia a lhe dizer uma palavra de amor, pois sabiam-na amada por Vampa.
“Apesar disso, os dois jovens nunca haviam trocado palavras de amor. Tinham crescido um ao lado do outro como duas árvores que entrelaçam suas raízes sob o solo, seus galhos no ar, seu perfume no céu; apenas o desejo de estarem juntos era o mesmo; esse desejo tornara-se uma necessidade, e eles se conformavam mais com a morte que com um único dia de separação.
“Teresa tinha dezesseis anos e Vampa, dezessete.
“Por volta dessa época, começou-se a falar muito de um bando de salteadores em vias de se organizar nos montes Lepini. A prática do assalto nunca foi seriamente extirpada nos arredores de Roma. Às vezes faltam chefes, mas, quando um chefe se apresenta, é raro que lhe falte um bando.
“O célebre Cucumello, encurralado nos Abrúzios, expulso do reino de Nápoles, onde travara uma verdadeira guerra, havia cruzado o Garigliano como Manfred e viera refugiar-se entre Sonnino e Piperno, às margens do Amaseno.
“Era ele que vinha organizando um bando e caminhava nos passos de Decesaris e Gasparone, a quem esperava superar em breve. Vários jovens de Palestrina, de Frascati e de Pampinara desapareceram. A princípio, todos se preocuparam, em seguida souberam que tinham ido se juntar ao bando de Cucumello.
“No fim de um certo tempo, Cucumello tornou-se objeto da atenção geral. Citavam-se desse chefe de bandoleiros traços de audácia extraordinária e brutalidade revoltante.
“Um dia ele raptou uma moça, Rita, filha do agrimensor de Frosinone. As leis dos bandoleiros são claras: uma moça pertence a quem a rapta primeiro, depois os outros a disputam num sorteio e a infeliz é objeto dos prazeres de todo o bando até ser abandonada ou morrer.
“Quando os pais são suficientemente ricos para regatá-la, um emissário é enviado para negociar o resgate; a cabeça da prisioneira responde pela segurança do emissário. Se o pagamento de um resgate é recusado, a prisioneira é irrevogavelmente condenada.
“A moça tinha um namorado no bando de Cucumello; chamava-se Carlini.
“Reconhecendo o rapaz, ela estendeu seu braço para ele e julgou-se salva. Mas o pobre Carlini, reconhecendo-a, por sua vez, sentiu o coração se despedaçar; pois não tinha dúvidas quanto ao destino que esperava sua amada.
“Entretanto, como ele era o favorito de Cucumello, como partilhara diversos perigos com ele ao longo de três anos, como lhe salvara a vida matando, com um tiro de pistola, um carabiniere que já tinha o sabre erguido sobre sua cabeça, teve a esperança de que Cucumello tivesse alguma pena dele.
“Chamou então o chefe à parte, enquanto a moça, sentada e recostada no tronco de um grande pinheiro que se erguia no meio de uma clareira da floresta, fizera um véu com o chapéu pitoresco das camponesas romanas e escondia o rosto dos olhares lascivos dos bandidos.
“Então contou-lhe tudo, seus amores com a prisioneira, seus juramentos de fidelidade e como, todas as noites, desde que estavam nos arredores, encontravam-se perto de umas ruínas.
“Justamente naquela noite Cucumello enviara Carlini até uma aldeia vizinha, e ele não pudera comparecer ao encontro; mas Cucumello ali estava por acaso, dizia ele, e tinha sido então que raptara a moça.
“Carlini suplicou ao chefe que abrisse uma exceção a seu favor, respeitando a Rita, e disse-lhe que seu pai era rico e pagaria um bom resgate.
“Cucumello pareceu render-se às súplicas do amigo, encarregando-o de encontrar um pastor que pudessem enviar ao pai de Rita em Frosinone.
“Carlini então se aproximou todo alegre da moça, disse-lhe que ela estava salva e pediu-lhe que escrevesse uma carta a seu pai, na qual contaria o que acontecera e anunciaria que seu resgate estava fixado em trezentas piastras.
“Os bandidos davam ao pai um prazo de apenas doze horas, isto é, até o dia seguinte às nove horas da manhã.
“Escrita a carta, Carlini apoderou-se dela e correu para a planície a fim de achar um mensageiro.
“Encontrou um jovem pastor acompanhando seu rebanho. Os mensageiros naturais dos bandoleiros são os pastores, que vivem entre a cidade e a montanha, entre a vida selvagem e a civilizada.
“O jovem pastor foi-se imediatamente, prometendo estar em Frosinone em menos de uma hora.
“Carlini voltou todo alegre para anunciar aquela boa notícia à sua amante.
“Encontrou o bando na clareira, onde ceavam alegremente as provisões confiscadas dos camponeses à guisa de tributo; em meio a esses alegres convivas, procurou em vão Cucumello e Rita.
“Perguntou onde estavam; os salteadores responderam com uma gargalhada. Um suor frio escorreu na testa de Carlini e ele sentiu a angústia invadir sua alma.
“Repetiu a pergunta. Um dos convidados encheu um copo de vinho de Orvietto e lhe ofereceu, dizendo:
“— À saúde do bravo Cucumello e da bela Rita!
“Nesse momento, Carlini julgou ouvir um grito de mulher. Adivinhou tudo. Pegou o copo, quebrou-o na face de quem o havia oferecido e projetouse na direção do grito.
“Cem passos adiante, perto de uma moita, encontrou Rita desmaiada nos braços de Cucumello.
“Ao perceber Carlini, Cucumello levantou-se, empunhando uma pistola em cada mão.
“Os dois bandoleiros olharam-se por um instante: um, com o sorriso da luxúria nos lábios, o outro, com a palidez da morte na fronte.
“Tudo levava a crer que alguma coisa de terrível ia acontecer entre os dois homens. Mas, pouco a pouco, os traços de Carlini relaxaram; sua mão, que levara a uma das pistolas que tinha no cinturão, caiu pendente ao seu lado.
“Rita estava deitada entre os dois.
“A lua iluminou a cena.
“— E então! — disse-lhe Cucumello. — Cumpriu a missão de que lhe encarreguei?
“— Sim, capitão — respondeu Carlini —, e amanhã, antes das nove horas, o pai de Rita estará aqui com o dinheiro.
“— Excelente. Enquanto isso, vamos passar uma noite alegre. Essa moça é encantadora, e você realmente tem bom gosto, mestre Carlini. Então, como não sou egoísta, vamos voltar para junto dos companheiros e tirar na sorte a quem ela pertencerá agora.
“— Então está decidido a entregá-la à lei comum? — perguntou Carlini.
“— E por que abriria uma exceção em seu benefício?
“— Pensei que, com a minha súplica…
“— E que é mais que os outros?
“— Está certo.
“— Mas, fique tranquilo — continuou Cucumello rindo —, cedo ou tarde, chegará a sua vez.
Os dentes de Carlini cerravam-se a ponto de quase quebrarem.
“— Vamos — disse Cucumello, dando um passo na direção dos comensais —, você vem?
“— Vou daqui a pouco…
“Cucumello afastou-se sem perder Carlini de vista, pois sem dúvida temia que este o golpeasse por trás. Mas nada no bandido denunciava uma intenção hostil.
“Ele estava de pé, de braços cruzados, perto de Rita ainda desmaiada.
“Por um instante, Cucumello achou que o rapaz ia pegá-la nos braços e fugir. Mas agora pouco lhe importava, tivera de Rita o que desejava; e, quanto ao dinheiro, trezentas piastras divididas pelo bando perfaziam tão parca soma que ele pouco estava ligando.
“Seguiu então em frente, em direção à clareira; porém, para seu grande espanto, Carlini chegou ali quase ao mesmo tempo que ele.
“— O sorteio! O sorteio! — gritaram todos os bandidos ao avistarem o chefe.
“E os olhos de todos aqueles homens brilharam de embriaguez e lascívia, enquanto as labaredas da fogueira lançavam sobre suas pessoas um fulgor rubro que os fazia semelhantes a demônios.
“Era justo o que eles pediam; o chefe fez um sinal com a cabeça anunciando que concordava com seu pedido. Todos os nomes foram postos dentro de um chapéu, o de Carlini junto com os outros, e o mais jovem do bando tirou uma cédula da urna improvisada.
“A cédula estampava o nome de Diavolaccio.
“Tinha sido aquele mesmo que lhe sugerira brindar ao chefe e a quem Carlini respondera quebrando-lhe o copo no rosto.
“De um grande corte, aberto das têmporas até a boca, saía sangue aos borbotões.
“Diavolaccio, vendo-se assim agraciado pelo destino, soltou uma gargalhada.
“— Capitão — disse ele —, ainda há pouco Carlini não quis beber à sua saúde, diga-lhe para beber à minha; talvez ele tenha mais condescendência com o senhor do que comigo.
“Todos esperavam uma explosão da parte de Carlini; mas, para grande espanto de todos, ele pegou um copo com uma das mãos, uma garrafa com a outra, e depois, enchendo o copo:
“— À sua saúde, Diavolaccio — brindou ele, com uma voz de plena calma.
“E engoliu o conteúdo do copo sem que a mão tremesse. Em seguida, sentando-se perto do fogo:
“— Minha parte da ceia! — reivindicou ele. — Essa corrida que fiz me abriu o apetite.
“— Viva Carlini! — gritaram os salteadores.
“— Já não era sem tempo, isso é que levar as coisas como bom companheiro.
“E todos voltaram a formar um círculo em volta da fogueira, enquanto Diavolaccio se afastava.
“Carlini comia e bebia como se nada tivesse acontecido.
“Os bandidos olhavam-no com espanto, sem nada compreender daquela impassibilidade, quando ouviram atrás deles o solo percutir um passo pesado.
“Voltaram-se e perceberam Diavolaccio segurando a moça nos braços.
“Ela estava com a cabeça jogada para trás, e seus longos cabelos pendiam até o chão.
“À medida que ambos entravam no perímetro da luz projetada pela fogueira, percebia-se a palidez da moça e a palidez do bandido.
“Aquela aparição tinha algo de tão estranho e solene que todos puseram-se de pé, exceto Carlini, que continuou sentado bebendo e comendo como se nada acontecesse à sua volta.
“Diavolaccio continuou a avançar em meio ao mais profundo silêncio e depositou Rita aos pés do capitão.
“Todos puderam então verificar a causa da palidez da moça e da palidez do bandido: Rita tinha uma faca enfiada até o cabo abaixo de seu mamilo esquerdo.
“Todos os olhos dirigiram-se para Carlini: a bainha do seu cinturão estava vazia.
“— Ah, ah! — disse o chefe. —Agora entendo por que Carlini ficou para trás.
“Toda natureza selvagem está apta a apreciar uma ação forte; embora talvez nenhum dos bandidos fosse capaz de fazer o que Carlini acabava de fazer, todos compreendiam o que ele fizera.
“— Muito bem! — disse Carlini, levantando-se por sua vez e se aproximando do cadáver com a mão na coronha de uma de suas pistolas. — Há mais alguém querendo disputar essa mulher comigo?
“— Não — disse o chefe —, ela é toda sua!
“Então Carlini a pegou por sua vez nos braços, e carregou-a para fora do círculo de luz projetado pelas chamas da fogueira.
“Cucumello dispôs as sentinelas como de costume, e os bandoleiros se deitaram, enrolados em seus casacos, em volta da fogueira.
À meia-noite a sentinela deu o toque de alvorada; num instante, o chefe e seus companheiros puseram-se de pé.
“Era o pai de Rita, que chegava em pessoa trazendo o resgate da filha.
“— Tome — disse ele a Cucumello, estendendo-lhe um saco de dinheiro —, aqui estão trezentas pistolas, entregue a minha filha.
“Mas o chefe, sem pegar o dinheiro, fez-lhe sinal para segui-lo. O velho obedeceu; ambos se afastaram sob as árvores, cujos galhos filtravam os raios do luar. Finalmente Cucumello parou, esticando o braço e apontando para o velho duas pessoas ao pé de uma árvore.
“— Veja — disse ele —, peça sua filha a Carlini, ele lhe prestará contas dela.
“E voltou na direção de seus companheiros.
“O velho permaneceu imóvel, com os olhos fixos. Percebia que alguma desgraça desconhecida, imensa, inaudita, pairava sobre sua cabeça.
“Finalmente deu alguns passos para o grupo informe que ele não conseguia distinguir.
“Com o barulho que fazia ao avançar em sua direção, Carlini levantou a cabeça e as formas dos dois personagens começaram a aparecer mais nítidas aos olhos do velho.
“Uma mulher estava deitada no solo, a cabeça nos joelhos de um homem sentado e debruçado sobre ela; foi ao se levantar que esse homem revelou o rosto da mulher que mantinha apertada contra seu peito.
“O velho reconheceu a filha, e Carlini reconheceu o velho.
“— Eu estava à sua espera — disse o bandido ao pai de Rita.
“— Miserável! — disse o velho. — O que você fez?
“E olhava aterrado para Rita, pálida, imóvel, ensanguentada, com uma faca no peito.
“Um raio do luar atingiu-a e iluminou-a com sua luz baça.
“— Cucumello estuprou sua filha — disse o bandido —, e eu, como a amava, matei-a, pois, em seguida, ela serviria de brinquedo para todo o bando.
“O velho não pronunciou uma única palavra, apenas ficou pálido como um espectro.
“— Agora — disse Carlini —, se errei, vingue-a.
“Ele arrancou a faca do seio da moça e, levantando-se, foi oferecê-la com uma das mãos ao velho, enquanto com a outra abria o casaco e lhe apresentava o peito nu.
“— Você agiu bem — disse o velho com uma voz abafada. — Abrace-me, meu filho.
“Carlini se atirou soluçando nos braços do pai de sua amada. Eram as primeiras lágrimas derramadas por aquele homem sanguíneo.
“Agora — disse o velho a Carlini —, ajude-me a enterrar minha filha.
“Carlini foi procurar duas pás, e o pai e o namorado começaram a cavar a terra ao pé de um carvalho, cujos galhos frondosos deviam cobrir o túmulo da jovem.
“Cavado o túmulo, o pai a beijou primeiro, o namorado, logo depois; então, um pegando-a pelos pés, o outro, pelos ombros, baixaram-na à cova.
“Eles em seguida se ajoelharam, um de cada lado, e disseram as preces dos mortos.
“Quando terminaram, cobriram o cadáver com terra até fechar o túmulo.
“Então, estendendo-lhe a mão:
“— Obrigado, meu filho! — disse o velho a Carlini. — Agora, deixe-me sozinho.
“— Mas… — protestou ele.
“— Deixe-me, é uma ordem.
“Carlini obedeceu, foi se juntar aos seus camaradas, enrolou-se em seu casaco e logo pareceu tão profundamente adormecido quanto os outros.
“Na véspera havia sido decidido que levantariam acampamento.
“Uma hora antes do amanhecer, Cucumello acordou seus homens e foi dada ordem de partida.
“Mas Carlini não quis deixar a floresta sem saber do paradeiro do pai de Rita.
“Dirigiu-se para o lugar onde o deixara.
“Encontrou o velho enforcado em um dos galhos do carvalho que fazia sombra ao túmulo da filha.
“Jurou então, sobre o cadáver de um e a cova da outra, vingá-los a ambos.
“Mas não pôde cumprir o juramento; dois dias depois, numa refrega com os carabinieri romanos, Carlini foi morto.
“Causou espanto a todos, porém, que, encarando o inimigo de frente, ele tivesse recebido uma bala entre os dois ombros.
“O espanto cessou quando um dos bandidos observou para seus colegas que Cucumello achava-se dez passos atrás de Carlini quando este caíra.
“Na manhã em que deixaram a floresta de Frosinone, ele seguira Carlini na escuridão, ouvira o juramento que este fizera e, como homem precavido, resolvera agia antes.
“Contavam-se sobre esse chefe de bando dez outras histórias não menos curiosas que esta.
“Assim, de Fondi a Peruggia, todo mundo tremia ao simples nome de Cucumello.
“Essas histórias haviam sido assunto frequente das conversas entre Luigi e Teresa.
“A moça estremecia diante de todos esses relatos; mas Vampa a tranquilizava com um sorriso, dando um tapinha no seu bom fuzil, no qual era tão fácil de colocar a munição; e, quando ela não sossegava, mostrava-lhe a cem passos um corvo qualquer empoleirado num galho morto, encostava o fuzil na face, apertava o gatilho e o animal, atingido, caía ao pé da árvore.
“Contudo, o tempo passava: os dois jovens haviam decidido se casar quando tivessem, Vampa, vinte anos, e Teresa, dezenove.
“Eram ambos órfãos; tinham que pedir o consentimento apenas de seu patrão; pediram e obtiveram-no.
“Um dia em que conversavam sobre seus planos para o futuro, ouviram dois ou três disparos; em seguida, de repente, um homem saiu do bosque nas cercanias do qual os dois jovens costumavam levar seus rebanhos para pastar e correu na direção deles.
“Ao chegar ao alcance da voz:
“— Estão atrás de mim! — gritou-lhes. — Podem me esconder?
“Os dois jovens logo perceberam que aquele fugitivo devia ser algum bandoleiro; mas entre o camponês e o bandoleiro romano existe uma simpatia inata que faz com que o primeiro esteja sempre disposto a ajudar o segundo.
“Vampa, sem nada dizer, correu então até a pedra que fechava a entrada da caverna, desobstruiu a entrada puxando a pedra, fez sinal ao fugitivo para se refugiar naquele asilo desconhecido de todos, empurrou a pedra e foi sentar-se perto de Teresa.
“Quase imediatamente, quatro carabinieri apareceram a cavalo na orla do bosque; três pareciam estar no encalço do fugitivo, o quarto arrastava pelo pescoço um bandido prisioneiro.
“Os três carabinieri exploraram a região num relance, avistaram os dois jovens, galoparam em sua direção e os interrogaram.
“Não tinham visto nada.
“— Que pena — lamentou o chefe da brigada —, pois o que procuramos é o chefe.
“— Cucumello!? — não puderam deixar de exclamar, juntos, Luigi e Teresa.
“— Sim — respondeu o policial —, e como sua cabeça está a prêmio, de mil escudos romanos, haveria quinhentos para vocês se nos ajudassem a agarrá-lo.
“Os dois jovens trocaram um olhar. O policial teve um instante de esperança. Quinhentos escudos romanos equivalem a três mil francos, e três mil francos são uma fortuna para dois pobres órfãos que vão se casar.
“— É, é uma pena — disse Vampa —, mas não o vimos.
Então os carabinieri vasculharam a região em diferentes direções, mas sem sucesso.
“Em seguida foram embora, um depois do outro.
“Então Vampa foi retirar a pedra, e Cucumello saiu.
“Ele vira, através das brechas da porta de granito, os dois jovens conversarem com os carabinieri; desconfiara do assunto daquela conversa, lera no rosto de Luigi e de Teresa a inabalável resolução de não entregá-lo, tirou das algibeiras uma bolsa cheia de ouro e ofereceu-a aos dois.
“Mas Vampa ergueu a cabeça com altivez; quanto a Teresa, seus olhos brilharam pensando em tudo que poderia comprar em ricas joias e belas roupas com aquela bolsa cheia de ouro.
“Cucumello era um demônio ardiloso: assumira a forma de um bandido em vez da de uma serpente; surpreendeu aquele olhar, reconheceu em Teresa uma digna filha de Eva e embrenhou-se na floresta, voltando diversas vezes a pretexto de saudar seus libertadores.
“Passaram-se vários dias sem que Cucumello fosse visto, sem que se ouvisse falar dele.
“A época do Carnaval aproximava-se. O conde de San Felice anunciou um grande baile de máscaras, para o qual os mais elegantes de Roma tinham sido convidados.
“Teresa tinha imensa vontade de ir a esse baile. Luigi pediu a seu protetor, o intendente, permissão para ele e ela se dissimularem entre a criadagem da casa. A permissão lhe foi concedida.
“O objetivo principal do baile promovido pelo conde era agradar sua filha Carmela, a quem ele adorava.
“Carmela era da mesma idade e tinha o mesmo corpo que Teresa, e Teresa era pelo menos tão bela quanto Carmela.
“Na noite do baile, Teresa pôs seu vestido mais bonito, seus prendedores de cabelo mais ricos, suas bijuterias mais reluzentes. Vestia o traje típico das mulheres de Frascati.
“Luigi vestia a roupa tão pitoresca do camponês romano nos dias de festa.
“Ambos se misturaram, como lhes haviam permitido, aos criados e aos camponeses.
“Era uma festa magnífica. Não apenas a villa resplandecia de luzes, como milhares de lanternas coloridas pendiam das árvores do jardim. Assim, o palácio não demorou a se expandir para os terraços e os terraços, para as aleias.
“Em cada encruzilhada havia uma orquestra, bufês e bebidas; alguns interrompiam seus passeios, outros formavam quadrilhas e dançavam onde quisessem dançar.
“Carmela estava fantasiada de mulher de Sonnino. Usava uma touca toda bordada de pérolas, as agulhas em seus cabelos eram de ouro e diamantes, a cinta, de seda turca com grandes flores estampadas, o casaco e a saia, de cashmere, o avental, de musselina das Índias; os botões do decote eram pedras preciosas.
“Duas colegas suas estavam fantasiadas, uma de mulher de Netuno, a outra, de mulher de Riccia.
“Quatro rapazes das mais ricas e nobres famílias de Roma acompanhavam-nas com aquela espontaneidade italiana que não tem igual em nenhum outro país do mundo: estavam fantasiados, por sua vez, de camponeses de Albano, Velletri, Civita Castellana e Sora.
“Não preciso dizer que essas fantasias de camponeses, assim como as das camponesas, resplandeciam de ouro e pedras preciosas.
“Ocorreu a Carmela organizar uma quadrilha de casais, só que faltava uma mulher.
“Carmela olhou à sua volta, mas nenhuma de suas convidadas tinha uma fantasia análoga à sua ou à de suas colegas.
“O conde de San Felice apontou-lhe, no meio das camponesas, Teresa, apoiada no braço de Luigi.
“O senhor nos permite, meu pai? — disse Carmela.
“Claro — respondeu o conde —, não estamos no Carnaval?
“Carmela debruçou-se para um rapaz que a acompanhava e disse-lhe algumas palavras, apontando com o dedo a rapariga.
“O jovem seguiu com os olhos a bonita mão que o guiava, fez um sinal de obediência e convidou Teresa a participar da quadrilha liderada pela filha do conde.
“Teresa sentiu como que uma labareda atravessar-lhe o rosto. Interrogou Luigi com o olhar: não havia jeito de recusar. Luigi deixou escorregar lentamente o braço de Teresa, que ele mantinha sob o seu, e Teresa, afastando-se conduzida pelo seu elegante par, foi ocupar, toda trêmula, seu lugar na quadrilha aristocrática.
“Claro, aos olhos de um artista, a precisa e severa fantasia de Teresa teria um caráter bem diferente das de Carmela e suas colegas; mas Teresa era uma moça frívola e vaidosa; os bordados da musselina, as folhagens estampadas na cinta, o brilho do cashmere deslumbrante, o reflexo das safiras e diamantes deixavam-na louca.
“Por sua vez, Luigi sentia nascer em seu íntimo um sentimento desconhecido: era como uma dor surda que apertava seu coração primeiro e dali, latejante, corria pelas suas veias e se lhe apoderava de todo o corpo; seguiu com os olhos os menores movimentos de Teresa e seu par; quando suas mãos se tocavam ele sentia vertigens, suas artérias pulsavam com violência, e parecia que um sino vibrava em seus ouvidos. Quando se falavam, embora Teresa escutasse, tímida e olhos no chão, os discursos de seu par, enquanto Luigi lia nos olhos ardentes do belo rapaz que aqueles discursos eram elogios, parecia-lhe que o chão se abria sob seus pés e que todas as vozes do inferno sopravam-lhe ideias de morte e assassinato. Então, temendo deixar-se arrastar por essa loucura, ele se agarrava com uma das mãos à sebe junto à qual estava de pé, enquanto com a outra apertava num gesto convulsivo o punhal de cabo esculpido que atravessava seu cinturão e que, sem se dar conta, ele puxava às vezes quase por inteiro da bainha.
“Luigi estava com ciúmes! Percebia que, arrebatada por sua natureza frívola e orgulhosa, Teresa poderia lhe escapar.
“Enquanto isso, a jovem camponesa, a princípio tímida e quase assustada, logo se recobrara. Dissemos que Teresa era bela. Isso não é tudo, Teresa era graciosa, de uma graça selvagem cuja força nada tem a ver com a nossa, artificial e afetada.
“Obteve praticamente todas as honras da quadrilha: e, se tinha inveja da filha do conde de San Felice, não ousaríamos dizer que Carmela não tivesse inveja dela.
“Assim, foi com não poucos elogios que seu belo par reconduziu-a ao lugar onde a convidara e onde Luigi a esperava.
“Por duas ou três vezes, durante a contradança, a moça lançara-lhe um olhar e, em todas elas, vira-o pálido e crispado. Numa dessas vezes, por sinal, a lâmina da faca, desembainhada pela metade, ofuscara seus olhos como um sinistro relâmpago.
“Logo, foi quase trêmula que deu o braço ao amante.
“A quadrilha fora um grande sucesso, e era evidente que convinha fazer uma segunda edição; apenas Carmela se opunha; mas o conde de San Felice pediu tão carinhosamente à moça que ela acabou por consentir.
“Imediatamente um dos cavalheiros adiantou-se para convidar Teresa, sem a qual era impossível a realização da contradança; mas a moça já sumira.
“Com efeito, Luigi não se julgara capaz de aguentar uma segunda provação; e, meio por convencimento, meio à força, arrastara Teresa para outro canto do jardim. Teresa cedera a contragosto; mas percebera a figura transtornada do rapaz; compreendera, pelo seu silêncio intercalado por tremores nervosos, que alguma coisa estranha lhe acontecia. Ela própria não estava imune a uma excitação interior, e, muito embora não tivesse feito nada de mal, compreendia que Luigi estivesse no direito de recriminá-la. Em relação a quê?, ignorava-o; mas nem por isso deixava de sentir que as censuras seriam merecidas.
“Entretanto, para grande espanto de Teresa, Luigi continuou calado, e nenhuma palavra entreabriu seus lábios durante todo o resto da noite. Quando o frio noturno expulsou os convidados dos jardins e as portas da villa fecharam-se atrás deles para uma festa íntima, ele se limitou a levar Teresa embora; então, quando ela se preparava para entrar em casa, ele disse:
“— Teresa, em que você estava pensando enquanto dançava na presença da jovem condessa de San Felice?
“— Eu estava pensando… — respondeu a moça, com toda a franqueza de sua alma — que daria a metade da minha vida para ter uma roupa como a dela.
“— E o que lhe dizia seu par?
“— Dizia-me que só dependia de mim ter aquela roupa e que, para tanto, bastava eu dizer uma palavra.
“— Ele tem razão — respondeu Luigi. — Deseja isso tão intensamente quanto diz?
“— Sim.
“— Muito bem, você o terá!
“A moça, perplexa, levantou a cabeça para interrogá-lo; mas o rosto dele estava tão taciturno e terrível que as palavras congelaram em seus lábios.
“Aliás, depois de dizer aquelas palavras, Luigi se afastara.
“Teresa, com os olhos dentro da noite, seguiu-o enquanto foi capaz de enxergar. Então, quando ele desapareceu, voltou para casa suspirando.
“Nessa mesma noite aconteceu um fato extraordinário, provavelmente por imprudência de algum criado que se esquecera de apagar as luminárias; o fogo se alastrou pela villa San Felice, inclusive pelas dependências do apartamento da bela Carmela. Despertada no meio da noite pela luz das chamas, ela pulou da cama, enfiou seu robe de chambre e tentou fugir pela porta; mas o corredor que precisava atravessar já era vítima do incêndio. Ela voltou então ao seu quarto, gritando por socorro quando, de repente, sua janela, situada a seis metros do chão, se abriu; um jovem camponês pulou dentro do apartamento, tomou-a nos braços e, com uma força e habilidade sobre-humanas, carregou-a para o gramado, onde ela desmaiou. Quando recuperou os sentidos, tinha o pai à sua frente. Todos os criados a cercavam, tentando ajudá-la. Uma ala inteira da villa estava reduzida a cinzas; mas isso não tinha importância, Carmela estava sã e salva.
“Procuraram seu salvador por toda parte, contudo, seu salvador não reapareceu; perguntaram a todo mundo, ninguém o vira. Quanto a Carmela, estava tão transtornada que não o havia identificado.
“Em todo caso, para o conde, que era podre de rico, afora o perigo corrido por Carmela, o qual lhe pareceu, pela maneira milagrosa como a filha escapara, antes uma nova graça da Providência que um infortúnio real, a perda provocada pelas chamas não significou grande coisa.
“No dia seguinte, à hora habitual, Luigi e Teresa se encontraram na orla da floresta. Ele chegara primeiro. Foi em direção à moça com uma grande alegria; parecia ter esquecido completamente a cena da véspera. Ela estava visivelmente pensativa; porém, ao ver Luigi assim bem-disposto, afetou por sua vez a indiferença risonha que era o fundo de seu caráter, quando alguma paixão não o vinha perturbar.
“Luigi pegou o braço de Teresa sob o seu, levou-a até a porta da caverna e ali se deteve. A moça, compreendendo que ali havia alguma coisa extraordinária, encarou-o fixamente.
“— Teresa — começou Luigi —, você não me disse ontem à noite que daria tudo no mundo para ter uma roupa igual à da filha do conde?
“— Sim — disse Teresa com espanto —, mas eu estava louca ao expressar esse desejo.
“— E eu lhe respondi: ‘Está bem, você a terá.’
“— Sim — repetiu a moça, cujo espanto aumentava a cada palavra de Luigi —, mas você respondeu assim para me agradar.
“— Nunca prometi nada que não lhe tivesse dado, Teresa — disse orgulhosamente Luigi. — Entre na caverna e vista-se.
“A essas palavras, ele puxou a pedra e mostrou a caverna iluminada por duas velas que ardiam de cada lado de um magnífico espelho; sobre a mesa rústica, feita por Luigi, esparramavam-se o colar de pérolas e as agulhas de diamantes; sobre uma cadeira ao lado estava depositado o restante do traje.
“Teresa soltou um grito de alegria, e, sem querer saber da procedência da roupa, sem se dar ao trabalho de agradecer a Luigi, precipitou-se para a gruta transformada em câmara de toalete.
“Atrás dela, Luigi empurrou a pedra de volta, pois acabava de avistar, na crista de uma pequena colina que obstruía, do lugar onde ele estava, a visão de Palestrina, um forasteiro a cavalo, que refugava um instante, como se hesitasse quanto ao caminho a tomar, desenhando-se no azul do céu com aquela nitidez de contorno peculiar aos distantes países meridionais.
“Ao avistar Luigi, o forasteiro imprimiu um galope ao cavalo e veio em sua direção.
“Luigi não se enganara; o forasteiro, que ia de Palestrina para Tívoli, não conhecia o caminho muito bem.
“O rapaz apontou-lhe a direção certa; mas, como a duzentos e cinquenta metros dali a estrada se dividia em três e como ao chegar àquele ponto o forasteiro poderia se perder de novo, este pediu a Luigi que lhe servisse de guia.
“Em dez minutos, Luigi e o forasteiro chegaram à espécie de encruzilhada indicada pelo jovem pastor.
“Lá, com um gesto majestoso como o de um imperador, ele apontou com a mão aquele dos três caminhos que o forasteiro devia seguir:
“— Eis o seu caminho, Excelência, não tem mais o que errar agora.
“— E eis a sua recompensa — disse o forasteiro oferecendo ao jovem pastor algumas moedas de pouco valor.
“— Obrigado — disse Luigi, recolhendo a mão. — Presto favores, não os vendo.
“— Mas — disse o forasteiro, que em todo caso parecia habituado à diferença entre o servilismo do homem das cidades e o orgulho do camponês —, se recusa uma paga, seria capaz de aceitar um presente?
“— Isso é diferente.
“— Ótimo — disse o forasteiro —, aceite esses dois sequins de Veneza e dê-os à sua noiva para ela fazer um par de brincos.
“— E o senhor, então, aceite esse punhal — ofereceu o jovem pastor —. De Albano a Civita Castellana, não encontraria um cujo cabo tivesse sido esculpido com tanto esmero.
“— Aceito — respondeu o forasteiro —, mas então agora sou eu que estou em dívida, pois esse punhal vale mais que dois sequins.
“— Para um comerciante talvez; mas para mim, que o esculpi pessoalmente, mal vale uma piastra.
“— Como se chama? — perguntou o forasteiro.
“— Luigi Vampa — respondeu o pastor, no mesmo tom com que teria respondido: Alexandre, rei da Macedônia. — E o senhor?
“— Meu nome — disse o forasteiro — é Simbad, o marujo.”
Franz d’Épinay deixou escapar um grito de surpresa.
— Simbad, o marujo! — exclamou.
— Sim — continuou o narrador —, foi o nome que o forasteiro deu a Vampa como se fosse o dele.
— Muito bem! Mas que os senhores têm contra esse nome? — interrompeu Albert. — É um belíssimo nome, e devo confessar que as aventuras do patrono desse cavalheiro me divertiram muito na mocidade.
Franz não insistiu mais. Aquele nome, Simbad, o marujo, como podemos depreender, despertara nele todo um mundo de recordações, como o fizera na véspera o nome Monte Cristo.
— Prossiga — disse ao hoteleiro.
— Vampa enfiou com desdém os dois sequins no bolso e voltou lentamente pelo caminho por onde viera. Ao chegar a duzentos ou trezentos passos da caverna, julgou ouvir um grito.
“Parou, tentando discernir de que lado vinha aquele grito.
“Ao cabo de um segundo, ouviu seu nome pronunciado distintamente.
“O grito vinha do lado da caverna.
“Pulou como um antílope, armando seu fuzil e correndo ao mesmo tempo; chegou em menos de um minuto ao topo da pequena colina oposta àquela de onde avistara o forasteiro.
“Lá os gritos: ‘Socorro!’ chegaram mais nítidos aos seus ouvidos.
“Lançou os olhos para o espaço que sua vista alcançava; um homem raptava Teresa, como o centauro Nesso a Djanira.
“O tal homem, que se dirigia para o bosque, já estava a três quartos do caminho que levava da caverna até a floresta.
“Vampa mediu o intervalo; aquele homem estava a pelo menos duzentos passos à sua frente, não havia meio de alcançá-lo antes que ele alcançasse o bosque.
“O jovem ficou paralisado como se os seus pés tivessem criado raízes. Apoiou a coronha do seu fuzil no ombro, ergueu lentamente o cano na direção do raptor, acompanhou-o durante um segundo em sua corrida e fez fogo.
“O raptor estacou; seus joelhos dobraram e ele caiu arrastando Teresa em sua queda.
“Ora, Teresa levantou-se prontamente; quanto ao fugitivo, permaneceu deitado, debatendo-se nas convulsões da agonia.
“Vampa precipitou-se para junto de Teresa, pois a dez passos do moribundo as pernas haviam lhe faltado e ela caíra de joelhos. O rapaz tinha medo de que a bala que acabava de abater seu inimigo houvesse simultaneamente ferido sua noiva.
“Felizmente, não era nada disso, era tão somente o terror que paralisara as forças de Teresa. Quando Luigi teve plena certeza de que ela estava sã e salva, voltou-se para o ferido.
“Este acabava de expirar com os punhos fechados, a boca contraída pela dor e os cabelos eriçados pelo suor da agonia.
“Seus olhos permaneciam abertos e ameaçadores.
“Vampa aproximou-se do cadáver e reconheceu Cucumello.
“Desde o dia em que fora salvo pelos dois jovens, o bandido se apaixonara por Teresa e havia jurado possuir a moça. Desde esse dia a espionara; e, aproveitando-se do momento em que seu noivo a deixara sozinha para apontar o caminho para o forasteiro, raptara-a e já a julgava sua quando a bala de Vampa, guiada pela infalível mira do jovem pastor, atravessara seu coração.
“Vampa observou-o por um instante, sem que a menor emoção transparecesse em seu rosto, ao passo que Teresa, ao contrário, ainda tremendo, não ousava se aproximar do bandido morto senão timidamente, lançando, por cima do ombro do noivo, um olhar hesitante para o cadáver.
“No fim de um momento, Vampa voltou-se para a noiva:
“— Ah, ah! — disse ele. — Muito bem, você está vestida; é a minha vez de fazer a toalete.
“Com efeito, Teresa estava coberta dos pés à cabeça com as roupas da filha do conde de San Felice.
“Vampa agarrou o corpo de Cucumello, arrastou-o para a caverna, enquanto Teresa permaneceu do lado de fora.
“Se outro forasteiro tivesse passado naquele momento, teria visto uma coisa estranha: uma pastora guardando suas ovelhas com um vestido de cashmere, brincos e um colar de pérolas, broches de diamantes e botões de safiras, esmeraldas e rubis.
“Provavelmente, teria acreditado estar na época de Florian e afirmado, ao voltar a Paris, que vira a pastora dos Alpes sentada ao sopé dos montes Sabinos.
“Quinze minutos depois Vampa saiu por sua vez da caverna. Sua roupa não era menos elegante, no seu gênero, que a de Teresa.
“Vestia um casaco de veludo grená com botões de ouro trabalhados, um colete de seda todo coberto de bordados, uma echarpe romana enrolada em volta do pescoço, uma bolsa pontilhada de ouro e de seda vermelha e verde; calça de veludo azul-celeste, presa na altura dos joelhos por argolas de diamantes, perneiras de pele de gamo coloridas com mil arabescos e um chapéu, sobre o qual flutuavam fitas de todas as cores; dois relógios pendiam de seu cinto e um magnífico punhal atravessava a cartucheira.
“Teresa soltou um grito de admiração. Vampa, naquela roupa, parecia uma pintura de Léopold Robert ou de Schnetz.
“Ele tinha vestido o traje completo de Cucumello.
“O rapaz percebeu o efeito que produzia em sua noiva, e um sorriso de orgulho desenhou-se-lhe na boca .
“— Agora — disse ele a Teresa —, está disposta a partilhar o meu destino, seja ele qual for?
“— Oh, sim! — exclamou a jovem com entusiasmo.
“— A me seguir aonde eu for?
“— Ao fim do mundo.
“— Então pegue meu braço e vamos, pois não temos tempo a perder.
“A jovem passou seu braço sob o do amante, sem lhe perguntar sequer para onde este a levava; naquele momento, ele lhe parecia belo, orgulhoso e poderoso como um deus.
“E ambos foram em direção à floresta, cujos limites atravessaram em poucos minutos.
“Não preciso dizer que Vampa conhecia as trilhas da montanha; logo, embrenhou-se na floresta sem hesitar um único instante, embora não houvesse nenhuma trilha aberta, identificando o percurso apenas pelas árvores e arbustos; caminharam assim cerca de uma hora e meia.
“Chegaram então ao lugar mais fechado da mata. Um curso d’água, cujo leito estava seco, levava até um desfiladeiro profundo. Vampa tomou aquele estranho caminho, que, encaixado entre duas margens e escurecido pela densa sombra dos pinheiros, parecia, exceto pela descida fácil, o atalho do Averno de que fala Virgílio.
“Teresa, agora amedrontada pelo aspecto do lugar selvagem e ermo, apertava-se contra o seu guia sem dizer uma palavra; mas, ao vê-lo prosseguir a marcha num passo uniforme, uma espécie de calma profunda irradiava-se sobre seu rosto e ela encontrava forças para dissimular sua emoção.
“De repente, a dez passos de distância, um homem pareceu sair de uma árvore atrás da qual estava escondido, e encarou Vampa:
“— Nenhum passo a mais — gritou — ou está morto!
“— Ora, ora — disse Vampa, levantando a mão num gesto de desprezo, enquanto Teresa, sem dissimular mais seu terror, apertou-se contra ele —, por acaso lobos se entredevoram?
“— Quem é você? — perguntou a sentinela.
“— Sou Luigi Vampa, pastor da fazenda de San Felice.
“— Que deseja?
“— Desejo falar com seus colegas, que estão na clareira de Rocca Bianca. “— Siga-me então — disse a sentinela —, ou melhor, já que sabe o caminho, ande na frente.
“Vampa sorriu com uma expressão de desprezo por aquela precaução do bandido, passou à frente com Teresa e foi adiante com o mesmo passo firme e tranquilo que o levara até ali.
“No fim de cinco minutos, o bandido fez-lhes sinal para que fizessem alto.
“Os dois jovens obedeceram.
“O bandido imitou três vezes o pio do corvo.
“Um coaxar respondeu a esse triplo chamado.
“— Muito bem — disse o bandido. — Agora pode continuar.
“Luigi e Teresa puseram-se novamente a caminho.
“Porém, à medida que avançavam, Teresa, tremendo, apertava-se contra seu amante; com efeito, por entre as árvores, era possível perceber armas e o brilho dos canos de fuzil.
“A clareira de Rocca Bianca situava-se no topo de uma pequena montanha, sem dúvida um vulcão em outras eras, vulcão extinto antes que Rômulo e Remo tivessem desertado Alma para virem construir Roma.
“Teresa e Luigi chegaram ao topo e instantaneamente se viram diante de vinte bandidos.
“— Este moço está atrás de vocês e deseja lhes falar — disse a sentinela.
“— E que deseja ele nos dizer? — perguntou o bandido que, na ausência do chefe, era o interino no comando.
“— Desejo dizer que estou cansado da profissão de pastor — disse Vampa.
“— Ah, compreendo — disse o lugar-tenente —, e vem nos pedir para ser admitido em nossas fileiras?
“— Seja bem-vindo! — gritaram vários bandidos de Ferentino, de Pampinara e de Anagni, que haviam reconhecido Luigi Vampa.
“— Pois é, só que não venho lhes pedir para ser apenas seu companheiro.
“— E que vem nos pedir? — perguntaram os bandidos com espanto.
“— Venho pedir para ser o capitão de vocês — disse o rapaz.
“Os bandidos caíram na gargalhada.
“ — E que fez para aspirar a essa honra? — perguntou o lugar-tenente.
“— Matei o seu chefe Cucumello, cujos despojos aqui estão — disse Luigi —, e ateei fogo na villa de San Felice para dar um vestido de núpcias à minha noiva.
“Uma hora depois, Luigi Vampa era eleito capitão em lugar de Cucumello.”
— Muito bem, meu caro Albert — disse Franz voltando-se para o amigo —, que acha agora do cidadão Luigi Vampa?
— Acho que é um mito — respondeu Albert — e que nunca existiu.
— O que é um mito? — perguntou Pastrini.
— Demoraria muito para explicar, meu caro hospedeiro — respondeu Franz. — Então está dizendo que “mestre” Vampa exerce nesse momento sua profissão nas cercanias de Roma?
— E com uma ousadia de que nunca bandoleiro algum deu exemplo.
— Quer dizer que a polícia não foi capaz de agarrá-lo?
— Que remédio! Ele tem ao seu lado ao mesmo tempo os pastores da planície, os pescadores do Tibre e os contrabandistas da costa. Procuram-no na montanha, está no rio; é perseguido no rio, vai para o mar alto; então, quando o julgam refugiado nas ilhas del Giglio, del Giannutri ou Monte Cristo, topam com ele em Albano, Tívoli ou La Riccia.
— E como ele age com os viajantes?
— Ah, meu Deus, é muito simples. De acordo com a distância a que se encontra da cidade, ele dá oito horas, doze horas, um dia, para pagarem seu resgate; passado esse tempo, concede uma hora de misericórdia. No sexagésimo minuto dessa hora, se não receber o dinheiro, explode os miolos do prisioneiro com um tiro de pistola ou enfia o punhal em seu coração, e ponto final.
— E então, Albert — perguntou Franz ao companheiro —, continua disposto a ir ao Coliseu pelas avenidas exteriores?
— Com certeza — disse Albert —, se for o caminho mais pitoresco. Nesse momento soaram nove horas, a porta se abriu e o cocheiro apareceu.
— Excelências — disse ele —, o coche está à sua espera.
— Ótimo — disse Franz —, nesse caso, ao Coliseu!
— Pela porta del Popolo, Excelências, ou pelas ruas?
— Pelas ruas, caramba! Pelas ruas! — exclamou Franz.
— Ah, meu caro — disse Albert, levantando-se por sua vez e acendendo seu terceiro charuto —, na verdade eu o julgava mais corajoso!
Com isso, os dois rapazes desceram a escada e embarcaram no coche.
3. Em italiano, diminutivo plural de moccolo, ou vela; vela consumida pela metade. O diminutivo singular, que aparecerá adiante no romance, é moccoletto. (N.T.)
4. Em italiano, intermediário, atravessador. (N.T.)