Trabalhando para viver
Quando meu pai tinha doze anos e cursara até onde pôde a escola rural, foi para a cidade fazer uma série de provas. O nome correto delas era Exames de Admissão, mas eram conhecidas no conjunto como Admissão. Ao pé da letra significava a admissão ao colegial, mas significava também, de um modo vago, a admissão ao mundo. O mundo das profissões como a medicina, o direito ou a engenharia ou o magistério. Os rapazes do campo ingressaram nesse mundo nos anos precedentes à Primeira Guerra Mundial, com mais facilidade do que teriam feito uma geração depois. Foi um tempo de prosperidade no condado de Huron e de expansão no país. Era 1913 e o país ainda não tinha cinquenta anos de idade.
Meu pai passou na Admissão com grande distinção e foi para a Continuation School [Escola de Continuação] na cidade de Blyth. As Continuation Schools ofereciam quatro anos de colegial, sem o ano final chamado Escola Superior [Upper School] ou quinta série — para isso era preciso ir a uma cidade maior. Parecia que ele estava no caminho certo.
Durante sua primeira semana na Continuation School meu pai ouviu o professor ler um poema.
Liza Grayman Ollie Minus.
We can make Eliza blind.
Andy Parting, Lee Beehinus.
Foo Prince in the Sansa Time.
Ele costumava recitar isso para nós de brincadeira, mas a verdade é que ele não o ouvia como uma brincadeira. Por volta da mesma época, ele entrou na papelaria e pediu Signs Snow Paper.
Signs Snow Paper.
Science notepaper [Papel de carta de ciências].
Em seguida se surpreendeu ao ver o poema escrito no quadro negro.
Lives of Great Men all remind us,
We can make our lives sublime.
And, departing, leave behind us
Footprints on the Sands of Time.[12]
Ele não esperava tamanho esclarecimento racional, não sonharia em pedi-lo. Havia se disposto inteiramente a dar às pessoas na escola o direito de ter uma linguagem ou lógica estranhas. Ele não lhes pedia para dar sentido em seus próprios termos. Ele tinha uma veia de orgulho que poderia parecer humildade, tornando-o assustado e suscetível, pronto a se retirar. Sei disso muito bem. Fazia um mistério disso, uma estrutura hostil de regras e segredos, muito além de tudo que realmente existia. Sentia próximo o hálito feroz do ridículo, superestimava a competição, e a prudência familiar, a sabedoria do campo, então lhe ocorria: fique fora disso.
Naquele tempo as pessoas na cidade geralmente olhavam de cima para as pessoas do campo, como se fossem mais propensas do que elas a serem obtusas, terem a língua presa, serem incivilizadas, e um tanto mais dóceis, a despeito de sua força. E os fazendeiros viam as pessoas que viviam nas cidades como tendo uma vida fácil e com dificuldade para sobreviver em situações que exigiam fortaleza, independência, trabalho árduo. Acreditavam nisso a despeito do fato de que as horas que os homens trabalhavam em empregos fabris ou em lojas eram longas e os salários baixos, apesar do fato de que muitas casas na cidade não tinham água corrente nem banheiros com descarga, nem eletricidade. Mas as pessoas na cidade tinham as tardes de sábado ou quarta-feira e a totalidade dos domingos de folga e isso era o bastante para torná-las maleáveis. Os fazendeiros não tinham nenhum feriado em suas vidas. Nem mesmo os escoceses presbiterianos; vacas não reconhecem o Sabá.
As pessoas do campo quando vinham para a cidade fazer compras ou ir à igreja, geralmente pareciam rígidas e tímidas, e as pessoas da cidade não percebiam que isso na verdade podia ser visto como um comportamento superior. Comportamento não-vou-deixar-ninguém-me-fazer-de-bobo. O dinheiro não faria muita diferença. Os fazendeiros podiam manter sua reserva orgulhosa e desconfiada na presença de cidadãos a quem eles poderiam vender e de quem poderiam comprar.
Meu pai diria mais tarde que ele tinha ido para a Continuation School jovem demais para saber o que estava fazendo e que deveria ter ficado lá, deveria ter se tornado alguém na vida. Mas ele dizia isso quase como uma formalidade, não como se desse muita importância. E não foi como se tivesse fugido para casa diante do primeiro indício de que havia coisas que ele não compreendia. Ele nunca foi muito claro sobre quanto tempo havia ficado. Três anos e uma parte do quarto? Dois anos e parte do terceiro? E ele não abandonou de súbito — não foi uma questão de ir para a escola um dia e faltar no seguinte e nunca aparecer novamente. Ele apenas começou a passar mais e mais tempo na mata e cada vez menos tempo na escola, de modo que seus pais concluíram que não havia muito sentido em mandá-lo para uma cidade maior para fazer a Quinta Série, sem muita esperança de universidade ou das profissões. Eles tinham condições para tanto — embora não com facilidade —, mas evidentemente não era o que ele queria. E isso não podia ser visto como uma grande decepção. Ele era seu único filho, o filho único. A fazenda seria dele.
Na época não havia no condado de Huron mais áreas inexploradas do que há hoje. Talvez houvesse menos. As fazendas tinham sido desbravadas no período entre 1830 e 1860, quando a Faixa do Huron estava sendo aberta e o desbravamento foi completo. Muitos riachos tinham sido dragados — a medida progressista a adotar era estreitá-los e fazê-los correr como canais dóceis entre os campos. Os primeiros fazendeiros detestavam a mera visão de uma árvore e admiravam a vista de terra aberta. E o acesso masculino a terra era gerencial, ditatorial. às mulheres se permitia apenas que cuidassem da paisagem e não pensar só em sua sujeição e produtividade. Minha avó, por exemplo, ficou famosa por ter salvo uma fileira de bordos prateados ao longo da estrada vicinal. Essas árvores cresciam ao lado de um campo de cultivo e estavam se tornando grandes e velhas — suas raízes interferiam na aragem e elas sombreavam uma parte muito grande da área plantada. Meu avô e meu pai saíram certa manhã e se prepararam para derrubar a primeira delas. Mas da janela da cozinha minha avó viu o que eles estavam fazendo e saiu correndo sem tirar o avental e passou-lhes um sermão censurando-os, de maneira que por fim tiveram de recolher os machados e o serrote traçador e abandonar o local. As árvores permaneceram e prejudicaram a colheita na margem do campo, até que o terrível inverno de 1935 acabou com elas.
Mas ao fundo das fazendas os fazendeiros eram obrigados por lei a deixar uma área de matas. Poderiam cortar árvores ali tanto para seu próprio uso como para vender. Claro que a madeira havia sido seu primeiro cultivo — o olmo para os cascos dos navios e o pinho branco para os mastros, até que quase nenhum desses olmos e pinhos brancos restou. Agora havia decreto de proteção para o álamo, o freixo, o bordo, o carvalho e a faia, o cedro e a cicuta que restaram.
Através da reserva arborizada — chamada de mata — nos fundos da fazenda de meu avô corria o riacho Blyth, dragado muito tempo antes quando a fazenda foi inicialmente desbravada. A terra dragada então produziu uma margem alta, com pequenos montículos, na qual cresceram matas densas de cedro. Foi onde meu pai começou a caçar com armadilhas. Ele se liberava da escola e entrava na vida de um caçador de peles. Seguia o riacho Blyth por vários quilômetros em uma das direções, até sua nascente no município de Grey ou até o local onde ele deságua no rio Maitland, que flui para lago Huron. Em alguns lugares — mais particularmente na aldeia de Blyth — o riacho se tornou público por algum tempo, mas durante grande parte de sua extensão ele corria pelos fundos das fazendas, com a mata de ambos os lados, de sorte que era possível segui-lo e quase não perceber as fazendas, a terra desbravada, as estradas e cercas estendidas em linha reta — era possível imaginar que se estava na floresta como ela era cem anos atrás e por séculos antes disso.
Meu pai tinha lido muitos livros a essa altura, livros que encontrava em casa e na biblioteca de Blyth, e na biblioteca da Sunday School. Tinha lido livros de Fenimore Cooper e absorvera os mitos ou semimitos sobre as áreas desabitadas que eram desconhecidos da maioria dos rapazes do campo de seu tempo, já que poucos deles eram leitores. A maioria dos rapazes, cuja imaginação era animada pelas mesmas noções que a dele, vivia em cidades. Se fossem ricos o bastante, viajavam para o norte todo verão com suas famílias, saíam em passeios de canoa e mais tarde em viagens de caça e pesca. Se suas famílias fossem muito ricas navegavam os rios do extremo norte com guias indígenas. As pessoas ávidas por essa experiência das áreas desabitadas passariam direto por nossa parte do campo sem notar que havia ali qualquer fração de vida selvagem.
Mas os rapazes da zona rural do condado de Huron, quase sem saber nada sobre essa imensidão rural do Escudo Pré-Cambriano e dos rios selvagens, mesmo assim eram atraídos — por algum tempo, alguns deles foram — para as faixas de mata ao longo dos riachos, onde pescavam e caçavam, montavam balsas e armavam arapucas. Mesmo se não tivessem lido uma palavra sobre esse tipo de vida podiam fazer suas incursões por ela. Mas logo desistiam para ingressar no trabalho concreto, pesado, de suas vidas, como fazendeiros.
E uma das diferenças entre os fazendeiros de então e os de agora é que naquele tempo ninguém esperava que a recreação desempenhasse algum papel regular na vida rural.
Meu pai, sendo um rapaz do campo com essa percepção adicional, inspirada ou romântica (ele não teria se interessado por essas palavras), com uma avidez alimentada por Fenimore Cooper, não se afastou desses passatempos juvenis com a idade de dezoito, dezenove ou vinte. Em lugar de desistir da mata, ele se apegou a ela com mais firmeza e seriedade. Começou a ser dito e considerado mais como um caçador armadilheiro que como um jovem fazendeiro. E como um jovem solitário e ligeiramente estranho, embora não alguém que fosse de algum modo temido ou malquisto. Ele estava se evadindo da vida de um fazendeiro, tal como antes se esquivara à ideia de ter uma formação e se profissionalizar. Estava se aproximando de uma vida que talvez não conseguisse visualizar com clareza, já que sabia muito melhor o que não queria do que o que queria.
Uma vida na mata, distante das cidades, à margem das fazendas — como poderia consegui-la?
Mesmo ali, onde homens e mulheres assumiam o que para eles era delineado, alguns homens a haviam conseguido. Mesmo nesse campo domesticado havia alguns ermitões, alguns homens que tinham herdado fazendas e não as mantinham, ou que eram apenas posseiros sabe Deus vindos de onde. Eles pescavam e caçavam e viajavam, desapareciam e voltavam, partiam e jamais voltavam — não como os fazendeiros que sempre que deixavam suas próprias localidades o faziam em charretes ou trenós ou agora mais frequentemente de carro, dedicados a incumbências definidas rumo a pontos certos de destino.
Ele estava ganhando dinheiro com sua linha de armadilhas. Algumas peles podiam lhe render tanto quanto o trabalho de uma quinzena em uma turma de debulha. Assim, em casa eles não podiam se queixar. Ele pagava a alimentação e ainda ajudava o pai quando era necessário. Ele e o pai nunca conversavam. Podiam trabalhar a manhã toda cortando lenha na mata e nunca dizer uma palavra, exceto quando tinham de falar sobre o trabalho. O pai não tinha interesse na mata a não ser como área de reserva. Para ele era apenas como um campo de aveia, com a diferença que a colheita era de lenha.
Sua mãe era mais curiosa. Ela voltava à mata nas tardes de domingo. Era uma mulher alta e aprumada com uma figura imponente, mas ainda tinha um passo varonil. Arregaçava as saias e destramente lançava as pernas sobre uma cerca. Era bem informada sobre flores e amoras silvestres e sabia dizer o nome de qualquer pássaro pelo seu canto.
Ele lhe mostrava as armadilhas onde apanhava peixes. Isso a deixava incomodada porque os peixes podiam ser presos nas armadilhas em um domingo, tal como em qualquer outro dia. Ela era muito rigorosa quanto a todas as regras e costumes presbiterianos e essa rigidez tinha uma história peculiar. Ela não fora criada como presbiteriana, mas levara uma infância e meninice despreocupada como membro da Igreja Anglicana, também conhecida como a Igreja da Inglaterra. Não haviam muitos anglicanos naquela parte do país e eles eram às vezes vistos como próximos dos católicos — mas também como vizinhos dos livres-pensadores. Sua religião geralmente parecia ser aos de fora apenas uma questão de reverências e respostas, com sermões curtos, interpretações fáceis, ministros terrenos, muita pompa e frivolidade. Uma religião ao gosto de seu pai, que tinha sido um irlandês jovial, contador de histórias, beberrão. Mas quando minha avó se casou, ela se deixou absorver inteiramente pelo presbiterianismo de seu marido, tornando-se mais veemente que muitos que foram criados na religião. Era uma anglicana de nascimento que assumira a retidão/competição presbiteriana tal como nascera mulher-macha que assumiu a competição dona de casa/ fazendeira com todo o seu ser. As pessoas poderiam ter se perguntado: ela fez isso por amor?
Meu pai e os que a conheceram bem não pensavam assim. Ela e meu avô não combinavam, embora não brigassem. Ele, ponderado, calado; ela, animada, sociável. Não, não era por amor, mas por orgulho que ela fazia o que fazia. Para não ser de modo algum superada ou criticada. E para que ninguém dissesse que ela lamentava uma decisão que havia tomado, ou que desejava algo que não podia ter.
Continuou em bons termos com seu filho a despeito dos peixes de domingo, que ela não iria preparar. Ela assumiu interesse pelas peles de animais que ele lhe mostrou e ouviu o quanto ele obtinha por elas. Lavava suas roupas fétidas, cujo cheiro vinha tanto das iscas de peixe que ele carregava quanto das peles e tripas. Era capaz de se exasperar, mas era tolerante com ele como se fosse um filho muito mais jovem. E talvez ele parecesse de fato mais jovem para ela, com suas arapucas e jornadas ao longo do riacho e sua insociabilidade. Ele nunca ia atrás de garotas e pouco a pouco perdeu contato com seus amigos de infância que assim faziam. Ela não se importava. Esse comportamento pode tê-la ajudado a suportar o desapontamento por ele não ter prosseguido nos estudos, por não ter se tornado um médico ou pastor. Talvez ela pudesse fingir que ele ainda poderia fazer isso, que os velhos planos — os planos dela para ele — não foram esquecidos mas apenas adiados. Pelo menos ele não estava se tornando apenas um fazendeiro calado, uma cópia de seu pai.
Quanto a meu avô, não dava opiniões, não dizia se aprovava ou discordava. Mantinha seu ar de disciplina e reserva. Era um homem nascido em Morris, decidido a ser um fazendeiro, um liberal e um presbiteriano. Nascido para ser contra a Igreja Inglesa e o Pacto Familiar e o Bispo Strachan e os salões de bar; para ser favorável ao sufrágio universal (mas não para as mulheres), escolas gratuitas, governo responsável, o Dia da Aliança do Senhor. Para viver por renúncias e rotinas rígidas.
Meu avô divergiu um pouco — aprendeu a tocar violino, casou-se com a alta e temperamental moça irlandesa com olhos de duas cores. Feito isso, retraiu-se, e pelo resto de sua vida foi diligente, ordeiro e calado. Ele também era leitor. No inverno conseguia fazer todo o seu trabalho — e benfeito — e então podia ler. Nunca falava sobre o que lia, mas a comunidade toda sabia. E o respeitava por isso. E tem algo estranho — havia também uma mulher que lia, ela retirava livros o tempo todo da biblioteca e ninguém lhe tinha o menor respeito. A conversa era sempre sobre como a poeira se acumulava sob as camas e seu marido comia um jantar frio. Talvez fosse porque ela lia romances e contos, e os livros que meu avô lia eram pesados. Livros pesados, como todos se lembravam, mas não se lembravam de seus títulos. Eles vinham da biblioteca, que na época continha Blackstone, Macauley, Carlyle, Locke, a História da Inglaterra de Hume. E quanto a Ensaio sobre o entendimento humano? E quanto a Voltaire? Karl Marx? É possível.
Ora, se a mulher com os flocos de poeira sob as camas tivesse lido os livros pesados, ela teria sido perdoada? Acho que não. Eram mulheres que a julgavam, e as mulheres julgavam as mulheres com mais severidade que os homens. Além disso, deve-se lembrar que meu avô primeiro terminava seu trabalho — suas pilhas de lenha eram metódicas e seu estábulo limpo e arrumado. Em nenhum aspecto de comportamento sua leitura afetava sua vida.
Outra coisa dita de meu avô era que ele prosperava. Mas a prosperidade naquele tempo não era buscada ou entendida do modo como é hoje. Lembro-me de minha avó dizendo:
— Quando precisávamos fazer algo, quando seu pai foi para Blyth para estudar e precisou de livros e novas roupas e assim por diante, eu dizia para seu avô, bem, é melhor criar mais um bezerro ou algo assim para conseguir um pequeno extra.
Assim, ao que parece, se eles sabiam o que fazer para conseguir esse pequeno extra, eles podiam consegui-lo logo de início.
Ou seja, em sua vida cotidiana nem sempre estavam ganhando tanto dinheiro quanto poderiam ter ganhado. Não estavam esticando o orçamento até o limite. Não viam a vida nesses termos. Tampouco a viam em termos de economizar pelo menos uma parte de suas energias para os bons tempos, como faziam alguns vizinhos irlandeses.
Como, então? Acredito que eles encaravam isso principalmente como um ritual. Sazonal e inflexível, quase como trabalho doméstico. Para tentar ganhar mais dinheiro, pois uma melhora de condição ou algo que pudesse deixar a vida mais fácil, poderia ter parecido impróprio.
Uma mudança de perspectiva em relação à do homem que foi para Illinois. Talvez uma influência persistente daquele revés, sobre seus descendentes mais tímidos ou ponderados.
Essa devia ter sido a vida que meu pai via a sua espera — uma vida que minha avó, a despeito de sua própria submissão a ela, não lamentava totalmente vê-lo evitar.
Há aqui uma contradição. Quando escrevemos sobre pessoas reais sempre nos opomos às contradições. Meu avô possuiu o primeiro carro na linha Eight de Morris. Era um Gray-Dorrit. E meu pai em sua adolescência tinha um receptor de cristal, objeto de desejo de todos os meninos. Claro que ele pode ter pagado de seu próprio bolso.
Ele pode tê-lo adquirido com o dinheiro de suas caçadas com armadilhas.
Os animais que meu pai apanhava eram castores, doninhas, raposas. Os castores ele apanhava na primavera porque sua pele ficava excelente até por volta do final de abril. As outras estavam em seu melhor estado do final de outubro até o inverno adentro. A doninha branca só alcança sua pureza por volta do dia dez de dezembro. Ele saía com seus sapatos de neve, montava alçapões, com um disparador em forma de quatro, ajustado para que as tábuas e os galhos caíssem sobre o castor ou vison. As armadilhas para doninhas ele pregava nas árvores. Pregava tábuas para fazer uma armadilha de caixa quadrada funcionando segundo o mesmo princípio que uma arapuca — algo menos visível a outros caçadores. As armadilhas de aço para castores eram estaqueadas de maneira que o animal se afogasse, geralmente ao fim de uma grade de cedro inclinada. Eram necessárias paciência, previsão e astúcia. Para os vegetarianos ele dispunha pedaços saborosos de maçã e nabo; para os carnívoros, como o vison, havia deliciosas iscas de peixe misturadas por ele mesmo e sazonadas em um pote no chão. Uma mistura de carne parecida para raposas era enterrada em junho ou julho e desenterrada no outono; elas tentavam tirar para rolar sobre ela, deleitando-se na acidez da decomposição.
As raposas o interessavam cada vez mais. Ele as seguia desde os riachos até os pequenos e enrugados outeiros arenosos que às vezes são encontrados entre a mata e a pastagem — elas adoram os outeiros arenosos à noite. Ele aprendeu a ferver suas armadilhas em água e casca macia de bordo para eliminar o cheiro de metal. Essas armadilhas eram instaladas ao aberto com areia peneirada sobre elas.
Como se mata uma raposa presa na armadilha? Não é desejável atirar nela, por causa da ferida deixada na pele e do cheiro de sangue que danifica a armadilha. Ela é atordoada com o golpe de um bastão comprido e sólido e depois se calca o pé sobre seu coração.
As raposas na mata são normalmente vermelhas. Mas de vez em quando ocorre entre elas uma raposa negra, como uma mutação espontânea. Ele nunca apanhou nenhuma. Mas sabia que algumas delas tinham sido apanhadas em outros lugares e cruzadas seletivamente para aumentar o aparecimento de pelos brancos ao longo do dorso e da cauda. Em seguida foram chamadas de raposas prateadas. O criatório de raposas prateadas estava apenas começando no Canadá.
Em 1925 meu pai comprou um casal, um macho e uma fêmea, de raposa prateada e construiu uma gaiola para elas atrás do celeiro. De início devem ter parecido apenas uma outra espécie de animal sendo criada na fazenda, algo mais bizarro que as galinhas ou porcos ou mesmo o galo de Bantam, algo raro e vistoso como pavões, curiosidades para visitantes. Quando meu pai as comprou e construiu um viveiro para elas, isso pode ter sido tomado como um sinal de que ele pretendia ficar, ser um fazendeiro ligeiramente diferente da maioria, mas ainda um fazendeiro.
A primeira ninhada nasceu e ele construiu mais viveiros. Ele tirou uma foto de sua mãe segurando os três filhotes. Ela parece apreensiva mas amável. Os filhotes eram dois machos e uma fêmea. Ele matou os machos no outono quando sua pele estava perfeita e a vendeu por um preço excelente. As armadilhas passaram a ser menos importantes que esses animais criados em cativeiro.
Uma jovem chegou em visita. Uma prima pelo lado irlandês — professora, animada, persistente e bonita, alguns anos mais velha que ele. Ela ficou imediatamente interessada nas raposas e não, como pensou a mãe dele, fingindo estar interessada a fim de seduzi-lo. (Entre sua mãe e a visitante houve uma antipatia quase instantânea, embora fossem primas.) Ela vinha de um lar muito mais pobre, uma fazenda mais pobre que essa, e se tornara professora por seus próprios esforços desesperados. O único motivo pelo qual ela havia parado aí era que o magistério era a melhor coisa para mulheres que ela havia até então encontrado. Ela era uma professora esforçada e benquista, mas alguns talentos que ela sabia possuir não estavam sendo usados. Esses talentos tinham algo a ver com correr riscos, ganhar dinheiro. Eram dotes tão deslocados na casa de meu pai quanto tinham sido na dela, olhados com desconfiança em ambos os lares, embora fossem os mesmos dotes (mencionados com menor frequência que o trabalho árduo, a perseverança) que haviam construído o país. Ela olhava para as raposas e não via nenhum elo romântico com a vida selvagem; ela via uma nova indústria, a possibilidade de riquezas. Ela tinha algum dinheiro poupado para comprar um lugar onde tudo isso poderia ser começado para valer. Ela se tornou minha mãe.
Quando penso em meus pais antes de se tornarem meus pais, após terem tomado sua decisão mas antes que seu casamento a tornasse — naquele tempo — irrevogável, eles parecem não só comoventes e desamparados, maravilhosamente iludidos, porém mais atraentes que em qualquer momento posterior. É como se nada fosse frustrante na época e a vida ainda se abrisse em possibilidades, como se eles desfrutassem de todos os tipos de poder antes de se renderem um ao outro. Claro que isso pode não ser verdade — eles já deviam estar ansiosos — certamente minha mãe devia estar apreensiva por ter chegado ao final dos seus vinte ainda solteira. Eles já deviam ter conhecido o fracasso, podem ter se voltado um para o outro mais com reservas que com o otimismo exuberante que imagino. Mas eu imagino assim, como todos devemos gostar de fazer, para que não pensemos que nascemos por afeição que sempre parece avara nem por um empreendimento que sempre parece pouco entusiasta. Acho que quando vieram e escolheram o lugar onde viveriam para o resto da vida, no rio Maitland logo a oeste de Wingham, no município de Turnberry, no condado de Huron, estavam viajando em um carro que corria bem em estradas secas em um claro dia de primavera e que eles próprios eram amáveis e bonitos e saudáveis e confiantes em sua sorte.
Não muito depois eu estava andando de carro com meu marido nas estradas vicinais do condado de Grey, que fica a noroeste do condado de Huron. Passamos por um armazém rural vazio em uma encruzilhada. Tinha vitrines antiquadas, com vidros estreitos e compridos. Do lado de fora havia na frente uma base para bombas de gasolina que já não estavam lá. Vizinho ao armazém havia um pequeno monte com sumagres e trepadeiras, nos quais todo tipo de sucata havia sido atirado. Os sumagres despertaram minha memória e olhei de volta para o armazém. Achei que havia estado ali outrora e que o cenário estava associado a alguma decepção ou receio. Eu sabia que nunca havia passado de carro por esse caminho antes em minha vida adulta e não acho que pudesse ter vindo aqui quando criança. Era longe demais de casa. A maioria de nossos passeios de carro fora da cidade era para a casa de meus avós em Blyth — eles haviam se retirado para lá depois que venderam a fazenda. E certa vez em um verão fomos até o lago em Goderich. Mas assim que estava dizendo isso a meu marido me lembrei da decepção. Sorvete. E aí me lembrei de tudo — a viagem que meu pai e eu fizemos até Muskoka em 1941, quando minha mãe já estava lá, vendendo peles no hotel Pine Tree, ao norte de Gravenhurst.
Meu pai havia parado para abastecer em um armazém rural e tinha me comprado uma casquinha de sorvete. Era um local isolado e o sorvete devia ter ficado em sua cuba por muito tempo. Provavelmente havia se derretido parcialmente em uma etapa, depois recongelado. Ele continha fragmentos de gelo, gelo puro, e seu sabor estava pessimamente alterado. Até a casquinha estava mole e rançosa.
— Mas por que ele tomaria este caminho para Muskoka? — disse meu marido. — Ele não iria pela Estrada 9 e depois tomaria a Rodovia 11?
Ele tinha razão. Perguntei-me se poderia ter me enganado. Poderia ter sido outro armazém em outra encruzilhada onde compramos a gasolina e o sorvete.
Enquanto seguíamos para oeste, dirigindo sobre as longas colinas para o condado de Bruce e a Rodovia 21, após o pôr do sol e antes de anoitecer, eu falava sobre o quanto era comprida qualquer viagem de carro — isto é, qualquer viagem de carro por mais de quinze quilômetros — para nossa família, o quanto era árdua e incerta. Eu descrevia para meu marido — cuja família, mais realista que a nossa, se considerava pobre demais para possuir um carro — como os ruídos e movimentos do carro, os sacolejos e chocalhadas, a tensão do motor e o rangido das marchas faziam a conquista das colinas e o percurso de quilômetros um esforço de que todos no carro pareciam participar. Um pneu ficava careca, o radiador fervia, haveria um colapso? O uso dessa palavra — colapso — fazia o carro parecer frágil e assustadiço, com uma vulnerabilidade misteriosa, quase humana.
— Claro que não seria assim se você tivesse um carro mais novo, ou se pudesse pagar para mantê-lo bem conservado — disse eu.
E ocorreu-me por que havíamos ido para Muskoka por estradas vicinais. No fim das contas, eu não havia me enganado. Meu pai devia ter ficado receoso de levar o carro passando por alguma cidade de maior porte ou em uma rodovia principal. Havia muita coisa errada com ele. Nem deveria estar na estrada. Havia épocas em que ele não podia se dar ao luxo de levá-lo para a oficina, e essa devia ser uma delas. Ele fazia o que podia para ele mesmo consertá-lo, para mantê-lo rodando. Às vezes um vizinho o ajudava. Lembro-me de meu pai dizendo: “O camarada é um gênio da mecânica”, o que me faz desconfiar que ele mesmo não era nenhum gênio da mecânica.
Agora eu sabia por que uma sensação de risco e receio estava misturada à minha lembrança das estradas sem pavimentação, às vezes nem cascalhadas — algumas eram tão estriadas que meu pai as chamava de “estradas reco-reco” — e as pontes de tábuas só para um carro. À medida que as lembranças me voltavam consegui evocar meu pai me dizendo que só tinha dinheiro o bastante para chegar até o hotel em que minha mãe estava e que se ela não tivesse ganhado dinheiro nenhum ele não sabia o que iria fazer. Claro que ele não me disse isso na época. Ele comprou o sorvete para mim, disse-me para empurrar o painel quando estávamos subindo as colinas e o fiz, embora isso agora fosse um ritual, uma brincadeira, minha fé havia muito se evaporara. Ele parecia estar se divertindo.
Anos depois ele me contou sobre as circunstâncias da viagem, após a morte de minha mãe, quando estava se lembrando de certos momentos que haviam vencido juntos.
As peles que minha mãe estava vendendo para turistas americanos (sempre falávamos de turistas americanos, como se reconhecendo que eles fossem o único tipo que poderia ser de algum uso para nós) não eram peles cruas, mas curtidas e preparadas. Algumas peles eram cortadas e costuradas em faixas, para fazer capotes; outras eram deixadas inteiras e eram confeccionadas no que se chamavam estolas. Uma estola de raposa era uma pele inteira, uma estola de vison era de duas ou três peles. A cabeça do animal era deixada e recebia olhos de vidro marrom-dourado brilhante, além de uma mandíbula artificial. Os prendedores eram costurados nas patas. Creio que no caso do vison as peles tinham a cauda presa à boca. A pele de raposa era presa pata a pata, e o capote de raposa às vezes tinha a cabeça costurada inteiramente fora do lugar, no meio das costas, como decoração.
Trinta anos depois essas peles se dirigiam para as lojas de roupa de segunda mão e podiam ser compradas e vestidas como brincadeira. De todas as modas podres e grotescas do passado, esse uso das peles de animais que eram indisfarçadamente peles de animais pareceria a mais espantosa e bárbara.
Minha mãe vendia as estolas de raposa por 25, 35, 40, 50 dólares, dependendo do número de pelos brancos, a “prata”, na pele. Casacos custavam 50, 75, talvez cem dólares. Meu pai tinha começado a criar visons além de raposas no final dos anos 1930, mas ela não tinha muitas estolas de vison para vender e não me lembro de quanto cobrava por elas. Talvez tenhamos conseguido vendê-las para os peleiros em Montreal sem arcar com prejuízo.
A colônia de viveiros de raposa ocupou uma grande parte do território em nossa fazenda. Ela se estendia dos fundos do celeiro até a margem elevada que dava para os charcos do rio. Os primeiros viveiros que meu pai havia feito tinham tetos e paredes de arame fino em uma armação de estacas de cedro. Os pisos eram de terra. Os viveiros construídos posteriormente tinham pisos de arame elevados. Todos os viveiros eram montados lado a lado em “ruas” que se cruzavam para compor uma cidade, e em volta da cidade havia uma cerca alta de proteção. Dentro de cada viveiro havia uma toca — uma grande caixa de madeira com furos de ventilação e um teto inclinado ou tampa que podia ser levantada. E havia uma rampa de madeira ao longo de uma lateral do viveiro, para o exercício das raposas. Como a construção tinha sido feita em momentos diferentes e nem todas planejadas no começo, havia todas as diferenças existentes em uma cidade real — havia ruas largas e ruas estreitas, alguns viveiros antiquados e espaçosos de chão de terra e alguns viveiros modernos e menores de piso de arame que pareciam ter proporções menos agradáveis, ainda que mais higiênicas. Havia dois compridos prédios de apartamentos chamados Abrigos. Os Novos Abrigos tinham passarela coberta entre duas fileiras opostas de viveiros com tetos de madeira inclinados e pisos de arame elevados. Os Velhos Abrigos eram apenas uma fileira curta de viveiros anexos emendados um no outro de modo um tanto primitivo. Os Novos Abrigos eram um local terrivelmente barulhento, cheio de adolescentes ótimos para serem esfolados — a maioria deles — antes de completarem um ano de idade. Os Velhos Abrigos eram um cortiço e continham reprodutores decepcionantes que não seriam mantidos por mais um ano, e os ocasionais aleijados, e até, por algum tempo, uma raposa fêmea vermelha que tinha boa disposição em relação aos seres humanos e que se destinava a ser um bicho de estimação. Fosse por isso ou por sua cor, todas as demais raposas a evitavam, e seu nome — pois todas tinham um — era Solteirona. Como aconteceu de ela ir parar ali eu não sei. Anomalia de uma ninhada? Uma raposa selvagem que abriu um túnel errado sob a guarda de proteção?
Quando o capim era cortado em nosso campo, parte dele era espalhada sobre o teto dos viveiros para proteger as raposas do sol e evitar que sua pele se tornasse marrom. De todo modo elas pareciam muito desgrenhadas no verão — a pelagem velha caindo e a nova acabando de sair. Por volta de novembro elas estavam resplandecentes, as pontas de suas caudas brancas como neve e a pelagem de seu dorso densa e negra, com sua cobertura de prata. Estavam prontas para serem abatidas — a menos que continuassem como matrizes. Suas peles seriam esticadas, limpas, levadas para o curtidor e depois para os leilões.
Até esse momento meu pai controlava tudo, prevenindo doenças ou a chance de reprodução. Tudo era feito por ele — os viveiros, as tocas onde as raposas podiam se esconder e ter seus filhotes, os pratos com água, feitos de latas, que ficavam com a ponta para o lado de fora e eram enchidos duas vezes por dia com água fresca, o tanque, que era empurrado pelas ruas, portando água da bomba, o cocho de alimentação no celeiro, onde farinha e água e carne de cavalo moída eram misturadas, a caixa de abate onde a cabeça presa do animal encontrava o jorro de clorofórmio. Em seguida, assim que as peles estavam secas e limpas e eram retiradas dos esticadores, nada mais estava sob seu controle. As peles eram estendidas em caixas de remessa e enviadas para Montreal e nada mais havia a fazer senão esperar para ver como eram classificadas e vendidas nos leilões de pele. A renda do ano inteiro, o dinheiro para pagar a conta da ração, o dinheiro para pagar o banco, o dinheiro que ele tinha de pagar sobre o empréstimo que obtivera de sua mãe depois que ela enviuvara, tinha de sair daí. Em alguns anos o preço das peles era muito bom, em outros, nem tão ruim, e, em outros ainda, terrível. Embora ninguém conseguisse perceber na época, a verdade era que ele tinha entrado no ramo um pouco tarde, e sem capital suficiente para mantê-lo em grande escala durante os primeiros anos, quando os lucros eram elevados. Antes que ele tivesse começado a contento, veio a Depressão. O efeito sobre seus negócios foi irregular, não definidamente ruim, como se poderia pensar. Em alguns anos ele ficou em condições ligeiramente melhores que as que seriam de esperar na fazenda, mas houve mais anos ruins que bons. As coisas não se recuperaram muito com o início da guerra — de fato, os preços em 1940 estiveram entre os piores já ocorridos. Durante a Depressão os preços ruins não foram tão difíceis de aceitar — ele podia olhar em volta e ver que praticamente todos estavam no mesmo barco — mas agora, com os empregos de guerra sendo criados e o país prosperando novamente, era muito difícil ter trabalhado como ele o fizera e não ver quase nenhum resultado.
Ele disse à minha mãe que estava pensando em alistar-se no Exército. Estava pensando em retirar todas as peles e vender todo o seu estoque e entrar para o Exército como prestador de serviços. Ele não era velho demais para isso e tinha qualificações que o tornariam útil. Podia ser carpinteiro — basta pensar em todas as construções que ele havia realizado em seu sítio. Ou poderia ser açougueiro — com todos os cavalos velhos que ele havia abatido e retalhado para as raposas.
Minha mãe tinha outra ideia. Ela sugeriu que guardassem todas as peles melhores, não as enviassem para os leilões mas as curtissem e as beneficiassem — ou seja, transformá-las em estolas e casacos, dotadas de olhos e patas — e depois carregá-las e vendê-las. As pessoas estavam ganhando algum dinheiro agora. Havia mulheres por perto que tinham dinheiro e a inclinação para se vestir com elegância. E havia turistas. Estávamos fora da trilha batida para turistas, mas ela tinha ouvido falar deles, de como os hotéis de veraneio estavam cheios deles. Eles vinham de Detroit e Chicago com dinheiro para gastar em porcelana chinesa da Inglaterra, suéteres das ilhas Shetland, cobertores da baía do Hudson. Então, por que não peles de raposa prateada?
Quando se trata de transformações, invasões e levantes, existem dois tipos de pessoa. Se uma rodovia é construída cortando seu jardim, algumas pessoas ficarão injuriadas, lamentarão a perda de privacidade, de arbustos de peônias e lilases e de uma dimensão de si mesmas. O outro tipo perceberá uma oportunidade — montarão uma banca de cachorro-quente, obterão uma franquia de fast-food, abrirão um motel. Minha mãe era do segundo tipo. A simples ideia de turistas com dinheiro americano afluindo para as matas do norte a encheram de vitalidade.
Naquele verão, o de 1941, ela partiu para Muskoka com sua mala cheia de peles. A mãe de meu pai chegou para tomar conta de nossa casa. Ela ainda era uma mulher altiva e graciosa e entrou no domínio de minha mãe cheia de maus presságios. Ela odiava o que minha mãe fazia. Mascateando. Ela disse que quando pensava em turistas americanos, tudo o que ela esperava era que nenhum deles se aproximasse dela. Por um dia ela e minha mãe estiveram juntas na casa e durante esse tempo minha avó recolheu-se para uma versão rude e inédita de si mesma. Minha mãe estava exaltada demais para notar. Mas após ter ficado durante um dia por sua própria conta, minha avó descongelou. Decidiu perdoar meu pai por seu casamento, por enquanto, e também seu exótico empreendimento fracassado, e meu pai decidiu perdoá-la pelo fato humilhante de que devia dinheiro a ela. Ela fazia pães e tortas, e fez bem pelas verduras da horta, os ovos recém-postos e o rico leite e nata da vaca Jersey. (Embora não tivéssemos dinheiro nunca ficamos mal alimentados.) Ela esfregou o interior dos armários e areou o negror do fundo das caçarolas, que acreditávamos ser permanente. Ela descobriu muitos objetos que precisavam de conserto. De noite ela carregava baldes de água para o canteiro de flores e os pés de tomate. Depois meu pai chegava de seu trabalho no celeiro e nas gaiolas das raposas e sentávamos todos nas cadeiras do quintal, sob as árvores copadas.
Nossa fazenda de pouco mais de três hectares — que não era nenhuma fazenda, do modo como minha avó via as coisas — tinha uma localização incomum. Para leste ficava a cidade, as torres da igreja e a torre da prefeitura visíveis quando as folhas caíam das árvores, e no quilômetro e meio de estrada entre nós e a rua principal havia um gradual adensamento de casas, as trilhas de terra se convertendo em calçadas, o surgimento de uma solitária luz de rua, de sorte que se podia dizer que estávamos nas margens distantes da cidade, embora além de seus limites municipais legais. Mas para o oeste havia apenas uma casa de fazenda visível, e esta bem distante, no topo de uma colina, quase na metade do horizonte ocidental. Sempre nos referíamos a ela como a casa de Roly Grain, mas quem podia ser Roly Grain ou qual estrada levava até sua casa, eu nunca perguntei nem imaginei. Era tudo longe demais, passando, primeiro, por um campo amplo semeado de milho ou aveia, depois os bosques e os charcos do rio inclinando-se até a grande curva oculta do rio, e o desenho de colinas nuas ou arborizadas se sobrepondo mais além. Era muito raro que se visse uma extensão de campo tão vazia, tão sedutora à imaginação, em nossas terras de lavoura densamente povoadas.
Quando nos sentávamos olhando para essa vista, meu pai enrolava e fumava um cigarro e ele e minha avó falavam sobre os velhos tempos na fazenda, seus velhos vizinhos e coisas engraçadas — isto é, coisas ao mesmo tempo estranhas e cômicas — que tinham acontecido. A ausência de minha mãe trouxe uma espécie de paz — não só entre eles, mas para todos nós. Algum toque de alerta e esforço foi removido. Uma aresta de ambição, amor-próprio, talvez descontentamento, estava ausente. Na época, eu não sabia exatamente o que estava faltando. Tampouco sabia que privação, em lugar de alívio, isto seria para mim se estivesse desaparecido para sempre.
Meu irmão e irmã mais novos importunavam minha avó para que os deixassem olhar para dentro de seus olhos. Os olhos de minha avó eram cor de avelã, mas em um deles ela tinha uma grande mancha, ocupando pelo menos um terço da íris, e a cor dessa mancha era azul. Por isso as pessoas diziam que seus olhos eram de duas cores diferentes, embora isso não fosse exatamente verdade. Chamávamos à mancha azul de sua janela. Ela fingia ficar irritada por lhe pedirem para mostrá-la, desviava a cabeça e rechaçava quem quer que estivesse tentando olhar, ou cerrava bem os olhos, e abria um pouco o de cor de avelã para ver se ela ainda estava sendo observada. Ela sempre era apanhada no final e aceitava sentar-se parada com os olhos arregalados para que olhassem lá dentro. O azul era claro, sem sequer uma pinta de qualquer outra cor, um azul tornado mais brilhante pelo amarelo castanho em suas bordas, como fica o sol de verão pelos tufos de nuvens.
Era noite no momento em que meu pai fez a conversão para a entrada do hotel. Dirigimos entre os portais de pedra e lá estava ele a nossa frente — um comprido edifício de pedra com empenas e uma varanda branca. Potes pendurados transbordando de flores. Passamos da virada para o terreno do estacionamento e seguimos o passeio semicircular, que nos trouxe até a frente da varanda, passando pelas pessoas que estavam sentadas em balanços e cadeiras de balanço, sem nada a fazer senão olhar para nós, como disse meu pai.
Nada a fazer além de embasbacar.
Localizamos a placa discreta e encontramos o caminho para um terreno de cascalho próximo à quadra de tênis. Saímos do carro. Ele estava coberto de poeira e parecia um intruso dissoluto entre os outros carros que lá estavam.
Tínhamos viajado o caminho todo com os vidros abaixados e um vento quente soprava em nós, emaranhando e ressecando meu cabelo. Meu pai viu que havia alguma coisa errada e me perguntou se eu tinha um pente. Voltei para o carro e procurei um, finalmente encontrando-o enfiado contra o fundo do assento. Estava sujo e alguns dentes estavam faltando. Tentei, tentei e finalmente ele disse: “Talvez você deva só prendê-lo para trás de suas orelhas”. Em seguida ele penteou seu próprio cabelo, franzindo o cenho quando se curvou para olhar no espelho do carro. Atravessamos o terreno, com meu pai se perguntando em voz alta se deveríamos entrar pela porta da frente ou dos fundos. Ele parecia achar que eu podia ter alguma opinião útil a respeito — algo que ele nunca havia pensado antes em nenhuma circunstância. Eu disse que devíamos tentar entrar pela frente, porque eu queria dar outra olhada no tanque de lírios no semicírculo de grama limitado pelo passeio. Havia uma estátua de uma garota de ombros nus numa túnica que lhe contornava os seios, com um cântaro sobre o ombro — uma das coisas mais elegantes que eu já tinha visto na vida.
— Aceite o desafio — disse meu pai suavemente, e subimos os degraus e atravessamos a varanda na frente de pessoas que fingiam não olhar para nós. Entramos no saguão, onde estava tão escuro que pequenas luzes foram acesas, em globos foscos, bem no alto da madeira escura reluzente das paredes. A um lado ficava a sala de jantar, visível pelas portas de vidro. Estava toda limpa após a ceia, todas as mesas cobertas com um pano branco. Do outro lado, com as portas abertas, ficava uma comprida sala rústica com uma enorme lareira de pedra ao final dela, e a pele de um urso esticada no chão.
— Olhe só aquilo — disse meu pai. — Ela deve estar aqui em algum lugar.
O que ele havia notado no canto do saguão era uma caixa-mostruário da altura da cintura, e atrás de seu vidro estava um casaco de raposa prateada maravilhosamente estendido sobre o que parecia uma peça de veludo branco. Uma placa no alto dizia, Raposa Prateada, o Luxo Canadense, em uma caligrafia fluente feita com tinta branca e prateada sobre um fundo preto.
— Aqui em algum lugar — repetiu meu pai. Espiamos dentro da sala com a lareira. Uma mulher escrevendo em uma escrivaninha ergueu a cabeça e disse, em uma voz agradável mas um pouco distante:
— Acho que se vocês tocarem a campainha virá alguém.
Pareceu-me estranho sermos abordados por uma pessoa que nunca havíamos visto antes.
Recuamos e atravessamos até as portas da sala de jantar. Do outro lado da extensão de mesas brancas com seus talheres de prata e taças de boca para baixo e buquês de flores e guardanapos armados como tendas indígenas, avistamos duas figuras, senhoras, sentadas a uma mesa próximo à porta da cozinha, acabando de tomar uma ceia tardia ou tomando o chá da noite. Meu pai girou a maçaneta e elas ergueram os olhos. Uma delas se levantou e caminhou em nossa direção, entre as mesas.
O momento em que não percebi que era minha mãe não foi longo, mas foi um momento. Vi uma mulher em traje desconhecido, um vestido bege com um padrão de pequenas flores vermelhas. A saia era plissada e sibilante, o material novo, reluzindo como as toalhas das mesas na sala de painéis escuros. A mulher que a usava tinha um ar ativo e elegante, o cabelo repartido ao meio e preso em um alinhado diadema de tranças. E mesmo quando eu soube que era minha mãe, quando ela me cingiu nos braços e me beijou, exalando uma fragrância inabitual sem me mostrar nada de sua pressa e lamentos de costume, nada de sua insatisfação de sempre com minha aparência, ou minha natureza, senti que ela ainda era de certo modo uma estranha. Ela havia atravessado, ao que parece sem esforço, para o mundo do hotel, onde meu pai e eu despontávamos como vagabundos ou espantalhos — foi como se ela tivesse sempre vivido ali. Primeiro me senti surpresa, depois traída, depois animada e esperançosa, meus pensamentos precipitando-se sobre as vantagens a serem obtidas para mim mesma, nessa nova situação.
Ficamos sabendo que a mulher com quem minha mãe estivera conversando era a anfitriã da sala de jantar — uma mulher bronzeada, de ar cansado, com batom vermelho escuro e unhas esmaltadas, que depois revelou ter muitos problemas que ela havia confidenciado a minha mãe. Ela foi imediatamente amistosa. Invadi a conversa adulta para contar sobre os fragmentos de gelo e o gosto ruim do sorvete e ela foi até a cozinha e me trouxe uma generosa porção de sorvete de baunilha com cobertura de chocolate e uma cereja no alto.
— Isto é um sundae? — disse eu. Parecia-se com os sundaes que eu tinha visto em anúncios, mas já que seria o primeiro que eu já havia provado eu queria ter certeza de seu nome.
— Acredito que sim — disse ela. — Um sundae.
Ninguém me reprovou, meus pais de fato riram e, depois, a mulher trouxe chá fresco e algum tipo de sanduíche para meu pai.
— Agora vou deixar vocês botarem a conversa em dia — disse ela, e saiu deixando-nos os três a sós naquele salão silencioso e magnífico. Meus pais conversaram, mas prestei pouca atenção a sua conversa. Eu interrompia de vez em quando para dizer a minha mãe alguma coisa sobre a viagem ou sobre o que tinha acontecido em casa. Mostrei a ela onde uma abelha havia me picado, na perna. Nenhum deles me mandou ficar quieta — respondiam-me com animação e paciência. Minha mãe disse que naquela noite dormiríamos todos em seu chalé. Era dela um dos pequenos chalés atrás do hotel. Disse que pela manhã tomaríamos ali o café da manhã.
Ela disse que quando eu tivesse terminado devia sair correndo e ir olhar o tanque de lírios.
Aquela deve ter sido uma conversa feliz. Aliviada, da parte de meu pai — triunfante, da parte de minha mãe. Ela tinha se saído muito bem, vendera quase tudo que havia trazido consigo, a iniciativa foi um sucesso. Justificação para ela, salvação para todos nós. Meu pai deve ter pensado sobre o que tinha de ser feito primeiro, consertar o carro em uma oficina aqui ou colocá-lo mais uma vez em risco nas estradas vicinais e levá-lo para a oficina em casa, onde ele conhecia as pessoas. Que contas deveriam ser pagas de uma vez e quais deveriam ser pagas em parte. E minha mãe devia estar olhando mais longe no futuro, pensando como poderia expandir, em que outros hotéis poderia tentar aquilo, quantos outros casacos e estolas deveria confeccionar para o próximo ano e se isso poderia se converter em um negócio para o ano inteiro.
Ela não poderia prever que em pouco tempo os americanos entrariam na guerra e como isso os manteria em casa, como o racionamento iria restringir o ramo hoteleiro. Ela não podia prever o ataque a seu próprio corpo, a destruição crescendo dentro dela.
Durante anos depois ela falaria sobre o que havia realizado naquele verão. Como ela aprendera o jeito certo de abordar, sem nunca pressionar demais, mostrando as peles como se isso fosse um grande prazer para ela e não uma questão de dinheiro. Parecia que a venda era a última coisa em sua cabeça. Era necessário mostrar aos que administravam o hotel que ela não degradaria a impressão que desejavam produzir, que ela era mais que uma vendedora ambulante. Uma dama, isto sim, cujas ofertas conferiam uma distinção singular. Ela tinha de tornar-se amiga da gerência e dos empregados, bem como dos hóspedes.
E isso para ela não era nenhuma tarefa rotineira. Ela tinha o verdadeiro tino para misturar amizade e considerações comerciais, a acuidade que todo bom vendedor tem. Ela nunca teve de calcular sua vantagem e friamente segui-la. Tudo o que ela fazia, ela fazia naturalmente e sentia um verdadeiro afeto cordial por onde residiam seus interesses. Ela que sempre tivera dificuldade com sua sogra e com a família de seu marido, que era considerada presunçosa por nossos vizinhos, e um tanto prepotente pelas mulheres da cidade na igreja, tinha encontrado um mundo de estrangeiros no qual ela imediatamente se sentia em casa.
Apesar de tudo isso, à medida que eu crescia, passei a sentir algo como uma reviravolta. Eu desprezava a ideia toda de alguém se colocar a serviço dessa maneira, tornando-se dependente da resposta dos outros, empregando a adulação com tanta destreza e naturalidade que nem sequer era reconhecida como adulação. E tudo por dinheiro. Eu achava vergonhoso tal comportamento, como minha avó achava, naturalmente. Eu tinha como certo que meu pai sentia o mesmo embora não o demonstrasse. Eu acreditava — ou pensava acreditar — em trabalhar duro e sentir orgulho, sem me importar quanto a ser pobre e até sentindo um sutil desdém por aqueles que levavam uma vida confortável.
Na época lamentei a perda das raposas. Não do negócio, mas dos animais em si, com suas belas caudas e raivosos olhos dourados. À medida que ficava mais velha, e cada vez mais distante dos modos do campo, das necessidades do campo, pela primeira vez passei a questionar seu cativeiro, a sentir remorso por seu abate, sua conversão em dinheiro. (Nunca cheguei ao ponto de sentir nada parecido pelo vison, que a mim parecia malvado e semelhante ao rato, merecedor de sua sorte.) Eu sabia que esse sentimento era um luxo, e quando o mencionei a meu pai, anos depois, falei dele de modo frívolo. No mesmo espírito ele disse que acreditava que havia uma religião na Índia que sustentava que todos os animais iam para o Céu. Imagine, disse ele, se isso for verdade — a quantidade de raposas mal-humoradas que ele encontraria lá, sem falar em todos os outros animais de pelagem quente e macia que ele havia capturado, e o vison e uma manada de cavalos em tropel que ele havia abatido por sua carne.
Em seguida ele disse, sem tanta frivolidade:
— A gente se mete nas coisas, sabe? A gente meio que não percebe no que está se metendo.
Foi nesses anos posteriores, após minha mãe ter morrido, que ele falou da capacidade de vendas de minha mãe e de como ela havia nos tirado do apuro. Falou de como ele não sabia o que iria fazer, ao final daquela viagem, se acontecesse de ela não ter ganhado dinheiro nenhum.
— Mas ela ganhou — disse ele. — Ela ganhou. — E o tom em que disse isso me convenceu de que ele nunca compartilhara daquelas reservas de minha avó e das minhas. Ou de que ele havia decididamente posto de lado aquela vergonha, se é que ele chegara a senti-la.
Uma vergonha que havia completado o círculo, finalmente sendo para mim vergonhosa em si mesma.
Em uma noite de primavera em 1949 — a última primavera, na verdade a última estação inteira, que iria passar em casa — eu pedalava minha bicicleta rumo à Fundição, para entregar um recado a meu pai. Eu raramente andei de novo em minha bicicleta. Por um tempo, talvez ao longo de todos os anos 1950, foi considerado excêntrico uma garota qualquer andar de bicicleta após ter idade suficiente, digamos, para usar sutiã. Mas para chegar à Fundição eu podia passar por estradas vicinais, não tinha de passar pela cidade.
Meu pai tinha começado a trabalhar na Fundição em 1947. Um ano antes se tornara evidente que não só nossa criação de raposas mas a totalidade da indústria de peles estava descendo ladeira abaixo bem depressa. Talvez o vison tivesse nos tirado das dificuldades se tivéssemos nos dedicado com mais peso a ele, ou se ainda não estivéssemos devendo tanto dinheiro para a companhia de rações, para minha avó, para o banco. Do jeito que estava, o vison não poderia nos salvar. Meu pai tinha cometido o erro que muitos criadores de raposa cometeram justamente naquela época. Acreditava-se que um tipo mais pálido de raposa, chamado platina, iria salvar a pátria, e com dinheiro emprestado meu pai comprara dois machos reprodutores, um deles um platina norueguês branco quase como neve e outro chamado platina pérola, de um adorável cinza azulado. As pessoas estavam enjoadas de raposas prateadas, mas com essas maravilhas o mercado certamente renasceria.
Claro que sempre há o imponderável, com um novo macho, de como será seu desempenho, e de quantos de sua prole terão a cor do pai. Penso que houve problema nas duas frentes, embora minha mãe não permitisse perguntas ou conversa em casa sobre esses assuntos. Acho que um dos machos tinha uma natureza retraída e o outro gerou ninhadas em sua maioria escuras. Isso não importava muito, porque a moda foi totalmente contrária a peles de pelos compridos.
Quando meu pai saiu procurando emprego era necessário encontrar um trabalho noturno, porque ele tinha de passar o dia todo desmontando o negócio. Ele tinha de esfolar todos os animais e vender as peles pelo preço que conseguisse e tinha de derrubar a cerca de proteção, os Velhos Abrigos e os Novos Abrigos e todos os viveiros. Imagino que ele não teve de fazer isso de imediato, mas devia ter desejado ver destruídos todos os traços do empreendimento.
Ele conseguiu um emprego como guarda-noturno na Fundição, cobrindo o turno das cinco da tarde até as dez da noite. Não dava para ganhar muito dinheiro como guarda-noturno, mas a boa sorte nisso foi que ele conseguia fazer outro trabalho naquele tempo também. Esse trabalho extra era chamado de vasculhar os pisos. Ele nunca o terminava quando se encerrava seu turno de vigia e às vezes chegava em casa depois da meia-noite.
O recado que eu estava levando a meu pai não era um recado importante, mas foi importante em nossa vida familiar. Era simplesmente um lembrete para que ele não se esquecesse de passar na casa de minha avó em seu caminho de volta do trabalho, mesmo que fosse tarde da noite. Minha avó tinha se mudado para nossa cidade, com a irmã dela, para que pudesse nos ser útil. Ela fazia tortas e bolos e remendava nossas roupas e cerzia as meias de meu pai e de meu irmão. Meu pai devia passar pela casa dela na cidade após o trabalho, para apanhar essas coisas e tomar um chá com ela, mas frequentemente ele se esquecia. Ela se sentava costurando, cochilando sob a luz, ouvindo o rádio até que as emissoras de rádio canadenses saíam do ar à meia-noite e ela ficava pegando noticiários distantes, jazz americano. Ela esperava e esperava e meu pai não aparecia. Isto havia acontecido na noite anterior, por isso nessa noite na hora do jantar ela havia telefonado e pedido com dolorosa cautela:
— Era hoje ou ontem à noite que seu pai ficou de passar aqui?
— Eu não sei — disse eu.
Eu sempre achava que alguma coisa não tinha sido feita direito ou nem tinha sido feita, quando ouvia a voz de minha avó. Sentia que nossa família tinha falhado com ela. Ela ainda era enérgica, cuidava de sua casa e de seu quintal, ainda conseguia subir a escada carregando poltronas e tinha a companhia de minha tia-avó, mas ela precisava de algo mais — mais gratidão, mais condescendência do que já havia recebido.
— Bem, eu fiquei sentada esperando por ele a noite passada, mas ele não veio.
— Ele deve ir hoje à noite então.
Eu não queria perder tempo conversando com ela porque estava me preparando para meus exames do Décimo Terceiro Período dos quais todo o meu futuro dependeria. (Ainda hoje, nas noites claras e frias de primavera, com as folhas acabando de brotar nas árvores, posso sentir a agitação da expectativa associada a esse antigo evento importante, minha ambição atiçada e palpitante como folha nova de capim para realizá-la.)
Disse a minha mãe sobre o que era a ligação e ela disse:
— Ah, acho melhor você pegar a bicicleta e ir lembrar seu pai ou vai me dar problema.
Sempre que tinha de lidar com o problema da suscetibilidade de minha avó, minha mãe se desanuviava, como se tivesse recuperado alguma competência ou importância em nossa família. Ela tinha Parkinson. A doença a vinha acometendo por algum tempo com sintomas erráticos, mas recentemente havia sido diagnosticada e declarada incurável. Seu avanço consumia mais e mais de sua atenção. Ela não conseguia mais caminhar ou comer ou conversar normalmente — seu corpo estava teimando em sair de seu controle. Mas ela ainda tinha muito tempo para viver.
Quando ela dizia algo assim sobre a situação com minha avó — quando dizia qualquer coisa que evidenciasse uma consciência de outras pessoas, ou mesmo do trabalho pela casa, eu sentia meu coração amolecer em relação a ela. Mas quando ela acabava com uma referência a si mesma, como fez dessa vez (ou vai me dar problema), eu endurecia novamente, com raiva dela por sua abdicação, cansada de seu ensimesmamento, que parecia tão escandaloso, tão impróprio em uma mãe.
Eu nunca estivera na Fundição nos dois anos em que meu pai tinha ali trabalhado e eu não sabia onde encontrá-lo. As meninas da minha idade não frequentavam locais de trabalho de homens. Se faziam isso, se saíam para longas caminhadas sozinhas ao longo da linha do trem ou do rio, ou se iam sozinhas de bicicleta pelas estradas do campo (eu fazia essas duas últimas coisas) às vezes se dizia que elas estavam caçando confusão.
Em todo caso, eu não tinha muito interesse pelo trabalho de meu pai na Fundição. Eu nunca tinha esperado que a criação de raposas fosse nos deixar ricos, mas pelo menos nos deixou singulares e independentes. Quando imaginava meu pai trabalhando na Fundição eu sentia que ele tinha sofrido uma grande derrota. Minha mãe sentia o mesmo. Seu pai é bom demais para isso, ela dizia. Mas em lugar de concordar com ela eu argumentava, insinuando que ela não gostava de ser a mulher de um trabalhador comum e que ela era esnobe.
A coisa que mais irritava minha mãe era receber a cesta de natal de frutas, castanhas e bombons da Fundição. Ela não suportava estar na ponta receptora, não na distribuidora, desse tipo de coisas, e a primeira vez que aconteceu tivemos de colocar a cesta no carro e sair pela estrada até uma família que ela tinha escolhido como destinatários adequados. No Natal seguinte sua autoridade havia se enfraquecido e assaltei a cesta, declarando que precisávamos de guloseimas como todo mundo. Ela enxugou as lágrimas diante de meu tom duro e eu comi o chocolate, que estava velho e quebradiço e ficando cinzento.
Não consegui ver nenhuma luz nos prédios da Fundição. As janelas eram pintadas de azul no lado de dentro — talvez a luz não passasse por elas. O escritório era uma casa velha de alvenaria ao final do comprido prédio principal, e ali vi uma luz através das venezianas, e achei que o gerente ou alguém do escritório podia estar trabalhando até tarde. Se eu batesse eles me diriam onde meu pai estava. Mas quando olhei através da janelinha na porta vi que era meu pai lá dentro. Ele estava sozinho e estava esfregando o assoalho.
Eu não sabia que esfregar o assoalho do escritório toda noite era uma das obrigações do vigia. (Isso não significa que meu pai tivesse deliberadamente mantido silêncio a respeito — eu podia não estar escutando.) Fiquei surpresa, porque eu nunca o havia visto fazer nenhum trabalho desse tipo antes. Trabalho doméstico. Agora que minha mãe estava doente, esse trabalho era de minha responsabilidade. Ele nunca deve ter tido tempo. Além disso, havia trabalho masculino e havia trabalho feminino. Eu acreditava nisso e assim faziam todos os demais que eu conhecia.
O aparato de limpeza de meu pai era diferente de todos os que alguém teria em casa. Ele tinha dois baldes em uma bancada, sobre rodas, com anexos de ambos os lados para carregar vários esfregões e vassouras. Sua limpeza era vigorosa e eficiente — não tinha nenhum tipo de ritmo resignado e ritualístico, feminino. Ele parecia estar de bom humor.
Teve de vir destrancar a porta para eu entrar.
Seu rosto mudou quando viu que era eu.
— Nenhum problema em casa, não é?
Eu disse que não e ele relaxou.
— Pensei que fosse Tom.
Tom era o gerente da fábrica. Todos os homens o chamavam por seu primeiro nome.
— Muito bem. Você veio ver se estou fazendo isso direito?
Dei o recado a ele e ele meneou a cabeça.
— Eu sei. Esqueci.
Sentei-me em um canto da escrivaninha, balançando as pernas para fora de seu caminho. Ele disse que já estava quase terminando ali e que se eu quisesse esperar ele me mostraria a Fundição. Eu disse que esperaria.
Quando digo que ele estava de bom humor ali, não quero dizer que seu humor em casa fosse ruim, que lá ele fosse carrancudo e irascível. Mas ele mostrava agora uma animação que em casa poderia ter parecido imprópria. De fato, era como se aqui lhe fosse retirado um peso das costas.
Quando ele terminou o chão, para sua satisfação pendurou o esfregão do lado e rolou o aparato por um corredor inclinado que ligava o escritório ao prédio principal. Ele abriu uma porta na qual havia uma placa.
encarregado.
— Meu domínio.
Ele despejou a água dos baldes em uma cuba de ferro, ensaboou-os e esvaziou-os novamente, limpou a cuba com água. Ali sobre uma prateleira acima da cuba, entre as ferramentas e a mangueira de borracha e fusíveis e vidraças sobressalentes, estava sua marmita, que eu abastecia todo dia quando voltava da escola. Eu enchia a garrafa térmica com chá preto forte e colocava um bolo de farelo com manteiga e geleia e um pedaço de torta quando tínhamos alguma e três sanduíches de carne frita e ketchup. A carne era acém, ou linguiça, a carne mais barata que se podia comprar.
Ele mostrou o caminho até o prédio principal. As luzes acesas ali eram como iluminação de rua — isto é, lançavam sua luz nos cruzamentos dos corredores, mas não iluminavam o interior inteiro do prédio, que era tão amplo e alto que tive a sensação de estar em uma floresta com densas árvores escuras, ou em uma cidade com prédios altos, uniformes. Meu pai acendeu mais algumas luzes e as coisas encolheram um pouco. Agora se podia ver as paredes de alvenaria, enegrecidas no lado de dentro, e as janelas não só repintadas mas cobertas com malha de arame preto. O que alinhava os corredores eram pilhas de latas, uma sobre a outra se elevando acima de minha cabeça, e bandejas de metal elaboradas e uniformes.
Chegamos a uma área livre com um grande monte de torrões de metal no chão, todo desfigurado com o que pareciam verrugas ou cracas.
— Moldes — disse meu pai. — Ainda não foram limpos. Eles os colocam em uma engenhoca chamada wheelabrator[13] e ela dá um jato neles, tira fora todos os caroços.
Em seguida uma pilha de pó preto, ou areia preta fina.
— Isso parece pó de carvão, mas sabe como chamam? Areia verde.
— Areia verde?
— Usam para moldagem. É areia com um agente aglutinante, como argila. Ou às vezes óleo de linhaça. Você tem algum interesse em tudo isso?
Eu disse que sim, em parte por uma questão de orgulho. Eu não queria parecer uma garota estúpida. E eu estava interessada, mas não tanto nas explicações específicas que meu pai começou a me dar, quanto nos efeitos gerais — a obscuridade, a poeira fina no ar, a ideia da existência de lugares como esse por todo o país, em cada distrito e cidade. Lugares com janelas repintadas. A gente passa por esses lugares e nem imagina o que se passa lá dentro. Uma coisa que ocupa a totalidade da vida das pessoas. Um processo interminável de consumir sem parar a atenção e a vida.
— Como uma tumba aqui dentro — disse meu pai, como se tivesse apanhado alguns de meus pensamentos.
Mas ele queria dizer algo diferente.
— Comparado com o dia. O estrondo então, você nem imagina. Tentam fazer eles usarem tapa-ouvido, mas eles não querem.
— Por que não?
— Não sei. Independentes demais. Também não vestem os aventais refratários. Veja aqui. É o que eles chamam de forno cúpula.
Era um imenso tubo negro que de fato tinha uma cúpula no alto. Ele me mostrou onde acendiam o fogo e as colheres de fundição usadas para transportar o metal fundido e despejá-lo nos moldes. Ele me mostrou nacos de metal que eram como grotescas pernas atarracadas e me disse que essas eram as formas dos buracos nos moldes. Quer dizer, o ar nos buracos tornado sólido. Ele me falava essas coisas com uma satisfação prolongada em sua voz, como se o que ele revelava lhe desse prazer duradouro.
Dobramos uma esquina e chegamos a dois homens que trabalhavam, apenas de calças e camiseta.
— Agora aqui está uma dupla de bons trabalhadores — disse meu pai. — Você conhece Ferg? Você conhece Geordie?
Eu os conhecia ou pelo menos sabia quem eram. Geordie Hall entregava pão, mas tinha de trabalhar à noite na Fundição para ganhar um dinheiro extra, porque ele tinha muitos filhos. Havia uma piada que dizia que sua mulher o fazia trabalhar para mantê-lo longe dela. Ferg era um homem mais jovem que era visto pela cidade. Ele não conseguia arranjar namoradas porque tinha um bócio em seu rosto.
— Ela está vendo como nós trabalhadores vivemos — disse meu pai, com um toque de desculpa bem humorada. Desculpando-se com eles por mim, por mim a eles; desculpas leves o tempo todo. Esse era seu estilo.
Trabalhando com cuidado juntos, usando ganchos longos, fortes, os dois homens içavam um pesado molde de uma caixa de areia.
— Isto está quentíssimo — disse meu pai. — Foi fundido hoje. Agora eles precisam jogar areia e prepará-lo para a próxima fundição. Depois fazer outra. É peça por peça, você sabe. Pago por moldagem.
Seguimos adiante.
— Dois deles ficam juntos por um tempo — disse ele. — Eles sempre trabalham juntos. Eu faço o mesmo trabalho sozinho. O trabalho mais pesado que eles têm por aqui. Levei um tempo para me acostumar, mas agora não me incomodo mais.
Muito do que vi naquela noite logo desapareceria. A cúpula, os colherões erguidos à mão, o pó matador. (Era realmente matador — pela cidade, nas varandas de pequenas casas simples, sempre havia alguns homens estoicos, o rosto amarelo, posicionados para inalar o ar. Todos sabiam e aceitavam que estavam morrendo da doença da fundição, a poeira em seus pulmões.) Muitas habilidades e perigos particulares iriam desaparecer. Muitos riscos cotidianos, juntamente a muito orgulho imprudente, e ocasional talento e improvisação. Os processos que vi provavelmente estavam mais próximos dos da Idade Média que dos de hoje.
E imagino que o caráter especial dos homens que trabalhavam na Fundição iria mudar, como mudaram os processos do trabalho. Iriam se tornar não muito diferentes dos homens que trabalhavam nas fábricas ou em outros empregos. Até o tempo de que estou falando eles pareciam mais fortes e mais rudes do que esses outros trabalhadores; tinham mais orgulho e talvez fossem mais dados a autodramatização do que os homens cujo trabalho não era tão sujo ou perigoso. Também eram orgulhosos demais para pedir qualquer proteção para os riscos que precisavam enfrentar e, de fato, como meu pai havia dito, desdenhavam a proteção que era oferecida. Dizia-se que eram orgulhosos demais para se importar com um sindicato.
Em vez disso, eles roubavam da Fundição.
— Vou lhe contar um história sobre Geordie — disse meu pai, enquanto caminhávamos. Ele estava “fazendo uma ronda” agora e tinha de bater relógios de ponto em várias partes do prédio. Depois ele passaria a limpar seus próprios assoalhos. — Geordie gosta de levar para casa alguns trecos e sei lá o que mais. Alguns engradados e outra coisa qualquer. Tudo o que ele achar que poderá ser útil para consertar a casa ou construir um abrigo nos fundos. Assim, na noite passada, ele tinha uma carga de coisas e saiu depois de escurecer e a colocou na traseira de seu carro para que ela estivesse lá quando ele deixasse o trabalho. E ele não sabia, mas Tom estava no escritório e por acaso estava na janela e o observava. Tom não tinha trazido o carro, sua mulher estava com ele, tinha ido a algum lugar e Tom tinha acabado de voltar para fazer um pequeno trabalho ou apanhar algo que esquecera. Bem, ele viu o que Geordie estava tramando e ficou esperando até que o viu saindo do trabalho e então ele saiu e disse: “Ei!” disse ele, “ei, estava pensando se você podia me dar uma carona para casa. Minha mulher levou o carro.” Assim, entraram no carro de Geordie com os outros companheiros em pé em volta falando atabalhoadamente e Geordie suando a cântaros, e Tom não disse uma palavra. Sentou-se ali assoviando enquanto Geordie tentava enfiar a chave na ignição. Ele deixou que Geordie o levasse para casa e não disse palavra. Não se voltou nem olhou para o banco traseiro. Nem teve a intenção de fazê-lo. Simplesmente deixou-o suar. E no dia seguinte contou a história para toda a fábrica.
Seria fácil exagerar a importância dessa história e supor que entre a administração e os trabalhadores havia uma tranquila familiaridade, tolerância e até um apreço recíproco pelos dilemas de ambas as partes. E havia um pouco disso, mas isso não queria dizer que não houvesse muito rancor e insensibilidade e, por certo, fraude. Mas as brincadeiras eram importantes. Os homens que trabalhavam à noite se juntavam na salinha de meu pai, a sala do encarregado, em ótimo clima — e do lado de fora da porta principal quando as noites eram quentes — e fumavam e conversavam enquanto faziam sua pausa não autorizada. Contavam sobre as peças que haviam pregado recentemente e em anos passados. Às vezes também falavam sério. Discutiam sobre a existência de fantasmas e falavam sobre quem afirmava ter visto um. Discutiam dinheiro — quem tinha, quem perdera, quem o esperava e não recebeu e onde as pessoas o guardavam. Meu pai me falou sobre essas conversas anos depois.
Uma noite alguém perguntou: qual o melhor momento na vida de um homem?
Alguns disseram: é quando se é menino e se pode ficar brincando o tempo todo e ir até o rio no verão e jogar hóquei na rua no inverno e isso é tudo o que se pensa: ficar brincando e se divertir.
Ou quando se é jovem e sai sem qualquer responsabilidade.
Ou quando você é recém-casado se você gostar de sua mulher e um pouco mais tarde também, quando os filhos são pequenos e ficam correndo em volta e ainda não mostraram nenhum traço ruim.
Meu pai tomou a palavra e disse:
— Agora. Eu acho que talvez agora.
Eles lhe perguntaram por quê.
Ele disse:
— Porque você ainda não é velho, com uma coisa ou outra se abatendo sobre você, mas velho o bastante para perceber que muita coisa que você pôde ter desejado da vida você jamais conseguirá.
Era difícil explicar como você podia ser feliz numa situação assim, mas às vezes ele achava que você era.
Quando estava me falando sobre isso, ele disse:
— Acho que era da companhia que eu gostava. Até então eu tinha estado muito por minha própria conta. Talvez eles não fossem os melhores dos melhores, mas foram alguns dos melhores companheiros que já encontrei.
Ele também me contou que uma noite não muito depois que ele tinha começado a trabalhar na Fundição saíra do trabalho por volta da meia-noite e descobriu que uma grande nevasca caía. As ruas estavam cheias e a neve soprando tão pesada e ligeira que os limpa-neve não sairiam até que amanhecesse. Ele teve de deixar o carro onde estava — mesmo que conseguisse tirá-lo da neve com uma pá não conseguiria avançar nas ruas. Começou a caminhar para casa. Era uma distância de cerca de três quilômetros. A caminhada era pesada na neve recém-caída e o vento soprava do oeste contra ele. Ele limpara vários assoalhos naquela noite e apenas começava a se familiarizar com o trabalho. Ele usava um pesado sobretudo, um capote do exército, que um de nossos vizinhos lhe dera sem nenhum uso para ele quando voltara da guerra. Meu pai tampouco o usava com frequência. Ele sempre usava uma jaqueta de caçador. Ele deve ter vestido o casaco naquela noite porque a temperatura havia caído ainda mais que o frio de inverno habitual e não havia aquecedor no carro.
Parecia-lhe estar se arrastando, empurrando contra a tempestade e a cerca de quatrocentos metros de casa descobriu que não estava se movendo. Estava parado no meio de um monte de neve e não conseguia mover as pernas. Ele mal podia se sustentar em pé contra o vento. Estava esgotado. Achou que talvez seu coração estivesse desistindo. Pensou em sua morte.
Ele morreria deixando uma mulher doente e estropiada que não conseguia sequer cuidar de si mesma, uma mãe velha cheia de desilusões, uma filha mais nova cuja saúde sempre fora delicada, uma garota mais velha que era bastante forte e brilhante mas que muitas vezes parecia ser egocêntrica e misteriosamente incompetente, um filho que prometia ser inteligente e confiável mas que ainda era apenas um rapazinho. Ele morreria em débito e antes de ter sequer acabado de desmontar os viveiros. Eles ainda estavam lá — o arame caindo das estacas de cedro que ele havia cortado no pântano de Austins no verão de 1927 — para mostrar a ruína de seu empreendimento.
— Isso foi tudo em que você pensou? — disse eu quando ele me contou.
— Não era bastante? — disse ele, e continuou dizendo-me como puxou uma perna para fora da neve e depois a outra: saiu daquele monte e depois não havia mais montes tão fundos e em pouco tempo ele estava no abrigo do quebra-vento dos pinheiros que ele próprio havia plantado no ano em que nasci. E conseguiu chegar em casa.
Mas o que eu queria dizer é se ele não pensara em si mesmo, no rapaz que montava armadilhas ao longo do riacho Blyth e que entrara no armazém e pedira Signs Snow Paper, ele não lutara por si mesmo? Quer dizer, sua vida agora não era algo que apenas tinha uso para outras pessoas?
Meu pai sempre dizia que não tinha crescido realmente até que foi trabalhar na Fundição. Ele nunca queria falar sobre a criação de raposas ou o negócio de peles, até que ficou velho e podia falar facilmente sobre quase tudo. Mas minha mãe, cerceada pela crescente paralisia, estava sempre ávida para recordar o hotel Pine Tree, os amigos e o dinheiro que ela havia ganhado lá.
E meu pai, conforme aconteceu, tinha outra ocupação a sua espera. Não estou falando de sua criação de perus, que surgiu após o trabalho na Fundição e durou até ele estar com setenta anos ou mais, e que pode ter prejudicado seu coração, já que ele se via engalfinhando com aves de cerca de vinte a a trinta quilos e carregando-as de um lado para o outro. Foi depois de desistir desse trabalho que ele se pôs a escrever. Começou a escrever reminiscências e a converter algumas delas em histórias, que eram publicadas em uma excelente, porém efêmera, revista local. E pouco antes de morrer ele concluiu um romance sobre a vida pioneira intitulado The Macgregors.
Ele me contou que escrevê-lo o havia surpreendido. Ficou surpreso por poder fazer tal coisa e de que fazer isso pudesse deixá-lo tão feliz. Como se simplesmente houvesse nisso um futuro para ele.
Aqui está uma parte de um trabalho chamado “Avós”, parte do que meu pai escreveu sobre seu próprio avô Thomas Laidlaw, o mesmo Thomas que viera para Morris com dezessete anos de idade e foi designado para cozinheiro na cabana.
Ele era um velho frágil de cabelos brancos, com cabelos longos e finos e uma pele pálida. Pálida demais, porque ele era anêmico. Ele tomava Vita-Ore, um remédio patenteado muito anunciado. Isso deve ter ajudado porque ele viveu até os oitenta… Quando soube dele pela primeira vez ele havia se retirado para a aldeia e alugado a fazenda para meu pai. Ele visitava a fazenda, ou, na minha cabeça, a mim, e eu o visitava. Saíamos para caminhadas. Havia uma sensação de segurança. Ele conversava muito mais facilmente com papai, mas não me lembro de termos conversado muito. Ele explicava as coisas quase como se as estivesse descobrindo na mesma hora. Talvez ele estivesse de certo modo olhando para o mundo do ponto de vista de uma criança.
Ele nunca falava de modo rude, nunca disse: “Saia já de cima dessa cerca”, “Cuidado com essa lama”. Ele preferia deixar a natureza seguir seu curso para que eu aprendesse desse jeito. A liberdade de ação inspirava certa cautela. Não havia nenhuma comiseração indevida quando alguém se machucava.
Fazíamos lentas e tranquilas caminhadas porque ele não conseguia ir muito depressa. Coletávamos pedras com fósseis de estranhas criaturas de outra Era, pois este era um campo com cascalho no qual essas pedras podiam ser encontradas. Cada um de nós tinha uma coleção. Herdei a dele quando ele morreu e mantive ambos os conjuntos por muitos anos. Eram um laço com ele do qual hesitei muito em me separar.
Andávamos ao longo dos trilhos ferroviários até o enorme aterro que levava os trilhos até outra ferrovia e um grande riacho. Sobre esses havia um gigantesco arco de pedra e cimento. Podia-se olhar para a ferrovia centenas de metros abaixo. Recentemente voltei lá. O aterro havia estranhamente encolhido; a ferrovia não passava mais sobre ele. A cpr[14] ainda está lá mas não tão perto e o córrego é muito menor…
Fomos para a oficina de aplainamento e observamos as serras rodando e gemendo. Foram os dias de todos os tipos de marcenaria de mau gosto usados para ornamentar os beirais das casas, as varandas ou qualquer lugar que podia ser decorado. Havia todo tipo de peças descartadas com desenhos interessantes que se podiam levar para casa.
À noite fomos para a estação, a velha Grand Trunk, ou a Manteiga e Ovos, como era conhecida em Londres. Podia-se colocar o ouvido no trilho e ouvir o rugido do trem, ao longe. Depois um apito distante e o ar se tornava tenso de expectativa. Os apitos ficavam cada vez mais próximos e mais altos e, por fim, o trem invadia a visão. A terra tremia, os céus quase abriam, e o monstro enorme deslizava silvando com freios torturados até uma parada…
Aqui conseguimos o diário vespertino. Havia dois jornais londrinos, o Free Press e o ’Tiser (Advertiser). O ’Tiser era liberal e o Free Press, conservador.
Não havia meio-termo quanto a isso. Ou você estava certo ou estava errado. Meu avô era um bom liberal da velha escola de George Brown e pegou o ’Tiser, por isso também me tornei um liberal e continuo sendo até hoje… E por isso, nesse melhor de todos os sistemas existem governos escolhidos de acordo com o número de pequenos liberais ou pequenos conservadores que ficam velhos o bastante para votar…
O condutor agarrou o segurador ao lado dos degraus. Ele gritou: “Bordo!” e acenou com a mão. O vapor jorrou para baixo em jatos, as rodas produziram um som metálico, gemeram e avançaram, cada vez mais depressa, passadas as balanças do caminho, passados os currais, acima os arcos da ponte e foi ficando cada vez menor como uma galáxia retrocedendo até que o trem desapareceu para dentro do mundo desconhecido ao norte…
Uma vez houve um visitante, meu xará de Toronto, um primo de meu avô. O grande homem tinha fama de milionário, mas era decepcionante, nem um pouco marcante, apenas uma versão ligeiramente mais calma e mais polida de meu avô. Os dois velhos se sentaram sob o bordo defronte nossa casa e conversaram. Provavelmente falaram do passado, como fazem os velhos. Mantive-me discretamente ao fundo. Vovô não dizia abertamente mas com delicadeza indicava que as crianças eram para ser vistas e não ouvidas.
Às vezes eles falavam no escocês rústico do distrito do qual procediam. Não era o escocês dos erres guturais que ouvimos nos cantores e comediantes mas sim suave e lamurioso, com uma cadência como a galesa ou a sueca.
Esse é o ponto em que acho melhor deixá-los — meu pai um pouco menino, sem se aventurar a chegar muito perto, e os velhos sentados em uma tarde de verão em cadeiras de madeira colocadas sob um dos grandes olmos benevolentes que protegiam a casa da fazenda de meus avós. Ali falavam o dialeto de sua infância — descartado à medida que se tornavam homens — que nenhum de seus descendentes conseguia entender.