O bilhete

Às vezes sonho com minha avó e sua irmã, minha tia Charlie — que, claro, não era minha tia, mas minha tia-avó. Sonho que elas ainda estão vivas na casa em que viveram por cerca de vinte anos, até a morte de minha avó e o recolhimento de tia Charlie para uma casa de saúde, o que aconteceu pouco depois. Fico chocada em descobrir que estão vivas e fico espantada, envergonhada, de pensar que não as visitei, não tendo me aproximado delas em todo esse tempo. Quarenta anos ou mais. Sua casa é exatamente a mesma, embora cheia de crepúsculo, e elas são praticamente as mesmas — usam o mesmo tipo de vestidos e aventais e cortes de cabelo que sempre usaram. Cabelos cacheados e soltos que não conhecem o cabeleireiro, vestidos de raiom ou algodão escuros estampados com pequenas flores ou formas geométricas — nenhum terno nem slogans concisos ou fazenda azul-turquesa ou estampada com botões-de-ouro ou peônias cor-de-rosa.

Mas elas parecem abatidas, mal se movem, usam suas vozes com dificuldade. Pergunto-lhes como estão indo. Como fazem a mercearia, por exemplo? Assistem à televisão? Mantêm-se informadas sobre o mundo? Elas dizem que estão bem. Não se preocupe. Mas todo dia elas ficam esperando, esperando para ver se eu viria.

Deus nos ajude. Todo dia. E mesmo hoje estou apressada, não posso ficar. Digo a elas que tenho muito o que fazer, mas volto logo. Elas dizem sim, sim, assim está ótimo. Logo.

Na época do Natal eu ia me casar e, depois disso, iria morar em Vancouver. O ano era 1951. Minha avó e minha tia Charlie — uma mais nova, a outra mais velha, do que eu sou agora — estavam enchendo os baús que levaria comigo. Um deles era um velho e robusto baú corcunda que estivera na família fazia muito tempo. Cogitei em voz alta se ele tinha atravessado com elas o Atlântico.

Quem sabe, disse minha avó. Fome por história, mesmo por história da família, não era muito apreciada por ela. Todo esse tipo de coisa era um mau hábito, uma perda de tempo — como ler a reportagem em série no jornal diário. O que ela mesma fazia, mas mesmo assim deplorava.

O outro baú era novo, com cantoneiras de metal, comprado para a ocasião. Foi presente de tia Charlie — sua renda era maior que a de minha avó, embora isso não significasse que era muito grande. Só o bastante para que pudesse se esticar para ocasionais compras imprevistas. Uma cadeira de braços para a sala de estar, estofado em brocado de cor salmão (protegido por uma capa de plástico, exceto quando estivesse chegando alguém). Uma luminária de leitura (seu quebra-luz também envolto em plástico). Meu baú de casamento.

— É o presente dela de casamento? — diria mais tarde meu marido. — Um baú? — Porque na família dele algo como um baú era o que se saía para comprar, quando se precisava de um. Não era para dar de presente.

As coisas no baú corcunda eram quebráveis, envolvidas em coisas não quebráveis. Pratos, copos, jarros, vasos, enrolados em jornal e com proteção adicional de panos de prato, toalhas de banho, toalhinhas e cobertas de crochê, esteiras de mesa bordadas. O grande baú chato em sua maior parte estava cheio de lençóis, toalhas de mesa (uma delas era também em crochê), mantas, fronhas, também alguns objetos grandes e chatos quebráveis como um quadro emoldurado pintado por Marian, a irmã de minha avó e de tia Charlie, que morrera jovem. Era o retrato de uma águia em um galho solitário, com um mar azul e árvores muito leves bem abaixo. Aos catorze anos Marian o havia copiado de um calendário, e no verão seguinte ela morrera de febre tifoide.

Alguns desses objetos eram presentes de casamento, de membros da família, que haviam chegado cedo, mas a maioria era de coisas que tinham sido feitas para meu começo como dona de casa. As mantas, as cobertas, os artigos em crochê, as fronhas com seu bordado áspero ao rosto. Eu não tinha preparado nada, mas minha avó e tia Charlie haviam ficado ocupadas, ainda que minhas possibilidades por um bom tempo parecessem frouxas. E minha mãe havia posto de lado alguns elegantes copos para água, colheres de chá, uma travessa de porcelana, do breve e impetuoso período em que ela havia lidado com antiguidades, antes que a rigidez e o tremor de seus membros tornassem qualquer comércio — e condução de carro, caminhada e por fim até conversas — difícil demais.

Os presentes da família de meu marido foram embalados nas lojas em que foram comprados, e despachados para Vancouver. Baixelas de prata, pesadas toalhas de mesa, meia dúzia de taças de cristal para vinho. O tipo de bens domésticos que meus sogros e seus amigos costumavam ter a sua volta.

Nada em meus baús, por acaso, estava pronto para entrar em jogo. Os cálices de minha mãe eram de vidro comprimido e a travessa de porcelana era porcelana pesada de cozinha. Essas coisas não entraram em voga senão anos mais tarde e, para certas pessoas, nunca. As seis colheres de chá datadas do século xix não eram de prata genuína. As mantas eram para uma cama antiquada, mais estreita que a cama que meu marido havia comprado para nós. As cobertas e as toalhinhas e as capas de colchão e — desnecessário dizer — o quadro copiado de um calendário eram quase uma piada.

Mas meu marido concordou que a embalagem tinha sido um bom trabalho, nada se quebrara. Ele estava constrangido mas tentando ser gentil. Depois, quando tentei colocar algumas dessas coisas onde pudessem ser vistas por alguém que entrasse em nossa casa, ele teve de falar com franqueza. E entendi o que ele queria dizer.

Eu tinha dezenove anos quando fiquei noiva, vinte no dia de meu casamento. Meu marido foi o primeiro namorado que tive. A perspectiva não era promissora. Durante aquele mesmo outono, meu pai e meu irmão estavam reparando a tampa do poço em nosso quintal lateral e meu irmão disse:

— É bom a gente fazer um bom trabalho aqui. Porque se esse camarada cair lá dentro ela nunca vai arrumar outro.

E essa se tornou uma piada favorita na família. Claro que eu também ria. Mas a preocupação dos que me rodeavam também tinha sido uma preocupação minha, pelo menos de modo intermitente. O que estava errado comigo? Não era uma questão de beleza. Alguma outra coisa. Outra coisa, clara como um sino de alarme, afastava de meu caminho os possíveis namorados e potenciais maridos. Porém, eu tinha fé de que o que quer que fosse desapareceria assim que eu saísse de casa e me afastasse dessa cidade.

E isso tinha acontecido. Subitamente, de modo irresistível. Michael se apaixonara por mim e estava decidido a se casar comigo. Um jovem alto, bonito, forte, cabelos negros, inteligente, ambicioso, havia depositado suas esperanças em mim. Ele me comprara um anel de diamante. Encontrara um emprego em Vancouver que certamente levaria a coisas melhores, e se comprometera a apoiar a mim e nossos filhos pelo resto de sua vida. Nada o faria mais feliz.

Ele assim dizia e acreditei que era verdade.

A maior parte do tempo eu mal podia acreditar em minha sorte. Ele escrevia que me amava e eu escrevia respondendo que eu o amava. Eu pensava em como ele era bonito, e inteligente e leal. Pouco antes dele sair, tínhamos dormido juntos; não, tínhamos feito sexo juntos, no terreno irregular sob um salgueiro à margem de um rio; e acreditamos que isso era tão sério quanto uma cerimônia de casamento, porque não tínhamos condições, agora, de fazer a mesma coisa com mais ninguém.

Este foi o primeiro outono depois de meus cinco anos de idade em que eu não estava passando os dias da semana na escola. Eu ficava em casa e fazia trabalho de casa. Eu era muito necessária lá. Minha mãe não era mais capaz de segurar o cabo de uma vassoura ou de puxar as cobertas sobre a cama. Seria preciso encontrar alguém para ajudar, depois que eu partisse, mas por ora eu assumia tudo sozinha.

A rotina me envolvia e logo era difícil acreditar que um ano antes eu tinha me sentado nas manhãs de domingo a uma mesa de biblioteca, em lugar de me levantar cedo para esquentar água no fogão para encher a máquina de lavar e mais tarde passar as roupas pelo espremedor e finalmente pendurá-las no varal. Ou que eu tivesse comido minha ceia nos balcões da farmácia, um sanduíche preparado por outra pessoa.

Eu encerava o desgastado linóleo. Passava os panos de prato e pijamas, bem como as camisas e blusas, areava as amassadas panelas e frigideiras e passava palha de aço nas enegrecidas prateleiras de metal atrás do fogão. Essas eram as coisas que importavam na época, nas casas dos pobres. Ninguém pensava em substituir o que estava lá, apenas em manter tudo decente, por tanto tempo quanto possível e muito mais. Tais esforços mantinham uma linha fixa, entre o respeitável empenho e a rude derrota. E eu me importava mais com isso quanto mais me aproximava de ser uma desertora.

Notícias do trabalho doméstico chegaram em cartas a Michael e ele ficou irritado. Durante a breve visita que ele havia feito a minha casa ele tinha visto muita coisa que o surpreendera de modo desagradável e que o tornaram ainda mais decidido quanto a me resgatar. E agora, como eu não tinha mais nada sobre o que escrever e queria explicar por que minhas cartas tinham de ser curtas, ele foi obrigado a ler sobre como eu estava imergindo em tarefas diárias no próprio local, na própria vida, que eu deveria estar me apressando em abandonar.

No seu modo de pensar, eu deveria estar ansiosa por raspar a lama caseira de meus sapatos. Concentrar-me na vida, na casa, que iríamos construir juntos.

Eu tirava duas horas de folga em algumas tardes, mas o que eu fazia então, se eu tivesse escrito sobre isso, não o teria deixado nem um pouco mais satisfeito. Eu aconchegava minha mãe na cama para seu segundo cochilo do dia e dava uma esfregada final nos balcões da cozinha e caminhava de nossa casa nos confins da cidade até a rua principal, onde fazia umas comprinhas e ia para a biblioteca para devolver um livro e retirar outro. Eu não tinha desistido de ler, embora parecesse que os livros que eu lia agora não eram tão chocantes ou exigentes quanto os livros que eu estivera lendo um ano antes. Li os contos de A. E. Coppard — um deles tinha um título que achei permanentemente sedutor, embora não consiga me lembrar de mais nada dele. “Dusky Ruth” [“Morena Ruth”]. E li um romance curto de John Galsworthy, que tinha uma frase na folha de rosto que me encantou: The apple tree, the singing and the gold[19]

Encerrado meu afazer na rua principal, eu ia visitar minha avó e tia Charlie. Às vezes, a maioria das vezes, eu preferia dar uma volta sozinha, mas sentia que não podia negligenciá-las quando estavam fazendo tanta coisa para me ajudar. Eu não podia passar por ali em um devaneio, atabalhoadamente, como eu podia fazer na cidade onde eu ia para a faculdade. Naquele tempo ninguém na cidade saía para caminhar, exceto por alguns velhos proprietários que andavam a passos largos observando e criticando projetos municipais. As pessoas certamente marcavam você se você fosse notado em uma parte da cidade onde não tinha nenhum motivo particular para estar. Depois alguém diria: vimos você outro dia — e esperavam que você se explicasse.

E mesmo assim a cidade me atraía, ela era maravilhosa nesses dias de outono. Era encantada, com uma luz melancólica sobre as paredes de tijolos cinzas ou amarelos, e uma quietude peculiar, agora que os pássaros tinham voado para o sul e as colheitadeiras no cinturão rural estavam mudas. Um dia, enquanto eu subia a ladeira na rua Christena, rumo à casa de minha avó, ouvi algumas frases em minha cabeça, o começo de uma história.

Por toda a cidade as folhas caíram. Suave, silenciosamente as folhas amarelas caíram — era outono.

E realmente escrevi uma história, naquela época ou algum tempo depois, começando com essas frases — não consigo me lembrar sobre o que era. Exceto que alguém salientava que era natural que fosse outono e que era tolice e afetação poética dizer isso. Por que mais as folhas estariam caindo, a menos que as árvores na cidade tivessem contraído algum tipo de praga nas folhas?

Minha avó teve seu nome dado a um cavalo, quando ela era jovem. A intenção era ser uma homenagem honrosa. O nome do cavalo, e de minha avó, era Selina. O equino — uma égua, naturalmente — era dita uma grande trotadora, o que significava que ela era animada, enérgica e inclinada a saltitar com estilo próprio. Assim, minha avó mesmo deve ter sido uma grande trotadora. Havia muitas danças na época em que essa tendência podia ser exibida — quadrilhas, polcas, scottisches. E minha avó de qualquer modo era uma jovem notável — era alta, peituda, cintura fina, com pernas compridas e fortes e cabelos ruivos escuros, cacheados e rebeldes. E aquela mancha audaciosa de azul celeste em uma das íris de seus olhos castanhos.

Todas essas coisas aumentavam, e eram aumentadas, por alguma coisa em sua personalidade, e certamente era isso que o homem estava tentando comentar, quando lhe prestou o elogio de dar o nome dela a sua égua.

Esse homem não era aquele a quem se creditava estar apaixonado por ela (e por quem se acreditava que ela estivesse apaixonada). Apenas um vizinho admirador.

O homem por quem ela estava apaixonada também não foi aquele com quem ela se casou. Ele não era meu avô. Mas era alguém que ela conheceu a vida inteira, e de fato eu o encontrei uma vez. Talvez mais de uma vez, quando eu era criança, mas uma vez que eu consigo me lembrar.

Foi quando eu estava morando com minha avó, em sua casa em Downey. E foi depois que ela ficou viúva, mas antes que tia Charlie também enviuvasse. Quando ambas ficaram viúvas mudaram-se para morar juntas na cidade em cuja periferia vivíamos.

Normalmente era verão quando eu ficava em Downey, mas isso foi em um dia invernal, com uma neve ligeira caindo. Início do inverno, porque quase não havia neve no chão. Eu deveria estar com cinco ou seis anos de idade. Meus pais devem ter me deixado lá para passar o dia. Talvez tivessem de ir a um funeral, ou levar minha irmãzinha, que era frágil e ligeiramente diabética, para consultar um médico da cidade.

De tarde atravessávamos a rua para entrar nos jardins da casa em que Henrietta Sharples morava. Era a maior casa em que eu já entrara e sua propriedade ia de uma rua até a outra. Eu ansiava por ir lá, porque eu tinha permissão para correr à vontade e olhar tudo que eu quisesse, e Henrietta sempre mantinha uma tigela cheia de caramelos embrulhados em papel vermelho, verde, dourado ou violeta. Se dependesse de Henrietta eu podia comer todos eles, mas minha avó me vigiava e fixava um limite.

Nesse dia fizemos um desvio. Em vez ir para a porta dos fundos de Henrietta, viramos rumo a um barracão em seus jardins, ao lado de sua casa. A mulher que abriu a porta tinha um tufo de cabelo branco, pele rosa brilhante e uma grande largueza de barriga, enfaixada no tipo de avental com peitilho que a maioria das mulheres usava na época, dentro de casa. Disseram-me que eu a chamasse de tia Mabel. Sentamo-nos em sua cozinha, que estava muito quente, mas não tiramos nossos casacos porque seria apenas uma rápida visita. Minha avó tinha trazido algo em uma tigela sob um guardanapo que ela entregou a tia Mabel — podiam ter sido bolinhos frescos ou biscoitos para chá ou um pouco de purê de maçã morno. E o fato de que a havíamos trazido não queria dizer que tia Mabel precisava de alguma caridade especial. Se uma mulher tivesse assado ou cozinhado, costumava levar uma oferenda quando ia até a casa de sua vizinha. Muito provavelmente tia Mabel protestou contra tal generosidade, como era o costume, e depois, aceitando, fez grande alarde sobre o quanto cheirava bem e como deveria estar saboroso, fosse o que fosse.

Depois era provável que ela se ocupasse oferecendo algo seu também, insistindo em preparar pelo menos uma xícara de chá, e parece que ouvi minha avó dizendo não, não, estávamos apenas de passagem. Ela poderia ter explicado ainda que estávamos a caminho da casa dos Sharples. Talvez ela não dissesse o nome, ou que estávamos a caminho de fazer uma visita propriamente dita. Ela poderia apenas dizer que não podíamos parar, íamos parar ao longo do caminho. Como se estivéssemos em uma série de incumbências. Ela sempre falava em ir visitar Henrietta como dar uma passada pelo caminho, para que ela nunca parecesse estar ostentando a amizade. Jamais se vangloriando.

Houve um barulho no depósito de lenha ao lado da cabana e em seguida um homem entrou, a face rosada pelo frio ou pelo exercício, e disse olá para minha avó e trocou um aperto de mão comigo. Eu odiava o jeito que os velhos podiam me saudar com um cutucão na barriga ou cócegas sob meus braços, mas esse aperto de mão pareceu cordial e correto.

Foi tudo o que realmente notei nele, exceto que era alto e não era largo em volta da barriga como tia Mabel, embora ele tivesse cabelo branco grosso como ela. Seu nome era tio Leo. Sua mão era fria, provavelmente de cortar lenha para as lareiras de Henrietta, ou de colocar sacos em volta dos seus arbustos para protegê-los da geada.

Foi mais tarde, porém, que fiquei sabendo sobre essas tarefas que ele fazia para Henrietta. Ele fazia o trabalho de inverno para ela — removendo neve e derrubando pingentes de gelo e mantendo o estoque de lenha. E aparava as sebes e cortava a grama no verão. Em troca, ele e tia Mabel não pagavam aluguel da cabana, e talvez ele também recebesse algo. Ele fez isso durante dois anos, até que morreu. Morreu de pneumonia, ou de uma falência cardíaca, o tipo de coisa de que se esperava que morressem pessoas da idade dele.

Disseram-me para chamá-lo de tio, tal como me haviam dito para chamar sua esposa de tia, e não questionei isso nem quis saber qual era sua relação de parentesco comigo. Não era a primeira vez que eu aceitava uma tia ou um tio que era misterioso e marginal.

Tio Leo e tia Mabel não podiam ter vivido lá por muito tempo, com tio Leo empregado dessa maneira, antes que minha avó e eu fizemos a visita. Nunca tínhamos tomado nenhum conhecimento da cabana, ou das pessoas que lá moravam, em visitas anteriores a Henrietta. Assim, parece provável que minha avó tivesse sugerido o arranjo a Henrietta. Intercedido, como as pessoas teriam dito. Interceder porque tio Leo estava na penúria?

Eu não sei. Nunca perguntei a ninguém. Logo a visita terminou e minha avó e eu atravessamos o passeio cascalhado e batemos na porta dos fundos e Henrietta gritava pelo buraco da fechadura:

— Vão embora, eu posso ver vocês, o que estão vendendo hoje? — Em seguida ela escancarou a porta e me apertou em seus braços ossudos e exclamou: — Sua pirralha, por que não disse que era você? Quem é esta velha cigana que você trouxe junto?

Minha avó não aprovava mulheres fumarem ou qualquer um beber.

Henrietta fumava e bebia.

Minha avó achava que calças eram abomináveis e óculos de sol uma afetação. Henrietta usava ambos.

Minha avó jogava euchre, mas achava que era presunção jogar bridge. Henrietta jogava bridge.

A lista poderia continuar. Henrietta não era uma mulher rara em seu tempo, mas era uma mulher rara naquela cidade.

Ela e minha avó sentavam-se diante do fogo na sala de estar dos fundos e conversavam e riam a tarde inteira enquanto eu ficava perambulando, livre para examinar o vaso sanitário de flores azuis no banheiro ou olhar pelo vidro de cor rubi da porta do armário das porcelanas. A voz de Henrietta estava alta e era principalmente a fala dela que eu ouvia. Era pontuada por alaridos de risadas, quase do mesmo tipo de risada que eu agora reconheceria como a que acompanha a confissão de uma mulher de uma tolice gigantesca ou algum relato de extrema deslealdade (masculina?).

Mais tarde eu ouviria histórias sobre Henrietta, sobre o homem que ela abandonou e o homem por quem estava apaixonada, um homem casado que ela continuou a ver durante toda a sua vida, e não duvido que ela conversasse sobre isso, e sobre outras coisas que eu não sei, e provavelmente minha avó falava sobre sua própria vida, não de forma tão livre, talvez, ou áspera, mas ainda no mesmo espírito, como uma história que a admirava, que ela mal acreditava que fosse sua. Pois parece-me que minha avó falava naquela casa de modo que não fazia, ou não fazia mais, em nenhum outro lugar. Mas eu nunca consegui perguntar a Henrietta o que era confidenciado, o que era dito, porque ela morreu em um acidente de carro — ela sempre foi uma motorista imprudente — um pouco antes de minha avó morrer. E é bem provável que ela não contaria mesmo.

Esta é a história, ou o máximo que sei dela.

Minha avó, o homem que ela amava — Leo — e o homem com quem se casou — meu avô — moravam todos a poucos quilômetros de distância entre si. Ela teria frequentado a escola com Leo, que era apenas três ou quatro anos mais velho que ela. Mas não com meu avô, que era dez anos mais velho. Os dois homens eram primos e tinham o mesmo sobrenome. Eles não se pareciam — embora ambos fossem bonitos, até onde eu sei. Meu avô em sua foto de casamento está em pé — ele é apenas um pouco mais alto que minha avó, que conseguiu reduzir sua cintura para sessenta e um centímetros para a ocasião, e em seu vestido branco de debruns parece purificada e composta. Ele tem os ombros largos, é robusto, não sorri, tem um ar de ser muito inteligente, orgulhoso, dedicado ao que quer que lhe fosse solicitado. E ele não mudou muito no flagrante ampliado que tenho dele, feito quando estava em seus cinquenta ou no começo de seus sessenta. Um homem que ainda tem sua força, competência, uma dose necessária de genialidade e uma grande reserva, um homem que é respeitado com razão e não mais desapontado do que se pode esperar de uma pessoa com essa idade.

Minhas lembranças dele vêm do ano que ele passou na cama, o ano antes de sua morte ou, como se poderia dizer, o ano em que ele estava morrendo. Estava com setenta e cinco anos e seu coração estava fracassando, pouco a pouco. Meu pai, com a mesma idade, e na mesma condição, optou por uma operação, e morreu alguns dias depois sem recuperar a consciência. Meu avô não teve essa opção.

Lembro-me de que sua cama ficava no piso de baixo, na sala de jantar, de que ele mantinha um saco de pastilhas de hortelã debaixo de seu travesseiro — supostamente para minha avó não saber — e as oferecia para mim quando ela estava ocupada em outro lugar. Ele tinha um cheiro agradável de creme de barbear e cigarro (eu atentava para o cheiro que tinham os velhos e me sentia aliviada quando esse cheiro era inofensivo), e sua conduta comigo era gentil mas não intrometida.

Depois ele morreu, e fui ao seu enterro com minha mãe e meu pai. Eu não queria olhar para ele e por isso não tive de fazê-lo. Os olhos de minha avó estavam vermelhos. Com a pele toda enrugada em volta. A atenção que ela me dedicava tinha sido reduzida, por isso fui para fora e rolei pelo declive gramado entre a casa e o passeio. Isso era algo que eu adorava fazer quando estava lá e ninguém nunca se opusera. Mas dessa vez minha mãe me chamou para dentro e espanou pedaços de capim de meu vestido. Ela estava no estado de exasperação, que significava que eu estava me comportando de um modo pelo qual ela levaria a culpa.

O que meu avô quando jovem achava do fato de que minha avó quando moça estava apaixonada por seu primo Leo? Ele tinha interesse nela na época? Ele tinha esperanças, mas suas esperanças foram desfeitas pelo ardente namoro que se desenrolava diante de seus olhos? Porque era ardente — um namoro notável mantido com briguinhas e reconciliações e do qual ele e praticamente todos na comunidade estavam fadados a saber. Como se poderia levar adiante um namoro naquele tempo senão publicamente, se a garota fosse de respeito? Passeios nos bosques estavam fora de questão, tal como dar uma escapada dos bailes. Visitas à casa da garota envolviam a família inteira, pelo menos até que o casal chegasse ao noivado. Passeios em uma charrete aberta eram vistos de cada janela de cozinha ao longo do caminho, e se um passeio após o entardecer chegasse a ser arquitetado, ficava dentro de um limite de tempo desanimador.

Apesar disso, as intimidades eram arranjadas. As irmãs mais novas de minha avó, Charlie e Marian, eram enviadas juntas como suas damas de companhia, mas eram às vezes enganadas e subornadas.

— Eram tão malucos um pelo outro quanto um casal pode ser — disse tia Charlie, quando me falou a respeito. — Eram demônios.

Essa conversa ocorreu durante aquele outono antes de meu casamento, a época do acondicionamento dos baús. Minha avó tinha sido forçada a parar um tempo com o trabalho, ela estava no andar de cima, na cama, sofrendo com sua flebite. Durante anos ela tinha usado faixas elásticas para suster suas protuberantes veias varicosas. Tão feias em sua opinião, tanto as faixas como as veias, que ela odiava qualquer um que as visse. Tia Charlie me contou em tom confidencial que as veias estavam enroladas em volta de suas pernas como grandes cobras negras. A cada doze anos mais ou menos uma veia se inflamava e então ela tinha de se deitar imóvel, para que um coágulo não se soltasse e fosse parar no seu coração.

Durante os três ou quatro dias que minha avó ficou na cama, tia Charlie não se saiu bem com o empacotamento. Ela estava habituada com minha avó tomando as decisões.

— Selina é a chefa — disse ela sem ressentimento. — Eu fico perdida sem Selina. — (E isso se mostrou verdadeiro; depois que minha avó morreu, o domínio de tia Charlie sobre a vida cotidiana imediatamente vacilou, e ela teve de ser levada para a casa de saúde, onde morreu aos noventa e oito anos de idade, após um longo silêncio.)

Em lugar de atacar a tarefa juntas, ela e eu nos sentávamos à mesa da cozinha, tomávamos café e conversávamos. Ou cochichávamos. Tia Charlie tinha uma estratégia de cochichar. Nesse caso pode ter havido um motivo — minha avó com sua audição intacta estava logo acima de nossas cabeças — mas muitas vezes não havia nenhum. Seu cochicho parecia meramente exercitar seu charme — quase todos a achavam charmosa — para puxar você para um tipo de conversa mais íntima, mais importante, mesmo que as palavras que ela estivesse dizendo fossem apenas algo sobre o tempo, não — como agora — sobre a jovem vida apaixonada de minha avó.

O que aconteceu? Eu meio que ansiava e também temia saber que minha avó, naquele tempo em que nem sonhava tornar-se minha avó, tinha descoberto que estava grávida.

Impetuosa como era e astuta como o amor nos deixa, ela não estava.

Mas outra garota estava. Outra mulher, pode-se dizer, já que ela era oito anos mais velha que o delatado pai.

Leo.

A mulher trabalhava numa loja de tecidos na cidade.

— E sua reputação não era o que se poderia chamar de ilibada — disse tia Charlie, como se isso fosse uma triste revelação relutante.

Tinha havido amiúde outras garotas, outras mulheres. A isso se deviam as altercações. Foi o que levou minha avó a dar um chute na canela de seu pretendente e empurrá-lo para fora de sua própria charrete e tocar para casa sozinha com o cavalo dele. Foi por isso que ela atirara uma caixa de chocolates na cara dele. E depois pisou em cima, para que não pudessem ser apanhados e desfrutados, se ele fosse tão indiferente e guloso a ponto de tentar.

Mas dessa vez ela estava calma como um iceberg.

O que ela disse foi:

— Bem, você terá de simplesmente se casar com ela, não é? — E ele disse que não estava tão certo que era dele.

E ela:

— Mas você não tem certeza de que não é.

Ele disse que tudo poderia ser reparado se ele concordasse em pagar pelo sustento. Disse que tinha quase certeza que isso era tudo o que ela estava buscando.

— Mas não é tudo o que eu estou buscando — disse Selina.

Em seguida disse que o que ela estava buscando era que ele fizesse o que era certo.

E ela venceu. Em pouquíssimo tempo ele e a mulher da loja de tecidos estavam casados. E não muito tempo depois disso, minha avó, Selina, também estava casada, com meu avô. Ela escolheu a mesma época que eu tinha escolhido, final do inverno, para o seu casamento.

O bebê de Leo, se era dele, e provavelmente era, nasceu no final da primavera e no momento em que foi parido estava morto. A mãe não durou mais que uma hora depois.

Logo chegaria uma carta, endereçada a Charlie. Mas não era absolutamente para ela. Dentro havia outra carta, que ela devia levar para Selina.

Selina leu-a e riu.

— Diga a ele que estou grande como um celeiro — disse ela. Embora mal estivesse aparentando, foi quando Charlie soube que estava grávida.

— E diga a ele que a última coisa que preciso é de outras cartas idiotas de alguém como ele.

O bebê que ela levava na barriga na época era meu pai, nascido dez meses após o casamento com considerável dificuldade para a mãe. Ele foi o único filho que ela e meu avô teriam. Perguntei a tia Charlie por quê. Houve algum dano a minha avó, ou algum problema congênito que tornava arriscado demais outro parto? Obviamente não era porque ela tivesse dificuldade de conceber, disse eu, já que meu pai devia ter sido gerado um mês após o casamento.

Um silêncio, e então tia Charlie disse:

— Eu não saberia dizer.

Ela não cochichou, mas falou em um tom de voz normal e ligeiramente distante, ligeiramente magoado ou reprovador.

Por que esse retraimento? O que a havia magoado? Acho que foi minha pergunta clínica, meu uso de uma palavra como conceber. Devia ser 1951 e em breve eu estaria casada e ela apenas vinha me contando uma história sobre paixão e concepção infeliz. Mas mesmo assim não ficaria bem, não ficava bem, uma mulher jovem, qualquer mulher, falar de modo tão frio, bem informado, desavergonhado, sobre essas coisas. Conceber, pois sim.

Pode ter havido outro motivo para a resposta de tia Charlie, que na época não me ocorreu. Tia Charlie e tio Cyril nunca tiveram filhos. Até onde eu sei jamais houve uma gravidez. Por isso, pode ser que eu tivesse tropeçado em terreno delicado.

Por um instante pareceu que tia Charlie não continuaria com sua história. Ela parecia ter concluído que eu não merecia. Mas após um instante ela não conseguiu se conter.

Leo então se afastou, foi para outros lugares. Trabalhou com uma turma de madeireiros no norte do Ontário. Entrou numa excursão de colhedores e se tornou um empregado doméstico no oeste. Quando voltou, anos depois, trazia consigo uma esposa e em algum lugar tinha aprendido marcenaria e forração de casas, e assim fazia isso. A mulher era uma ótima pessoa, tinha sido professora primária. Em algum momento ela tivera um bebê, mas este morreu, como o outro. Ela e Leo moravam na cidade e não frequentavam uma igreja local, ela pertencia a alguma religião esquisita do tipo que havia no oeste. Assim, ninguém chegou a conhecê-la muito bem. Ninguém sequer soube que ela tinha leucemia senão pouco antes de sua morte. Foi o primeiro caso de leucemia que as pessoas tinham ouvido falar nessa parte do país.

Leo continuou lá, conseguiu trabalho. Começou a visitar mais seus parentes. Comprou um carro e ia com ele em suas visitas. Correu a notícia de que ele estava pretendendo se casar uma terceira vez, e que ela era uma viúva de algum lugar perto de Stratford.

Mas antes disso ele apareceu na casa de minha avó na tarde de um dia útil. Era a época do ano, após a geada mas antes da neve pesada, em que meu avô e meu pai, que a essa altura tinha largado a escola, estavam tirando lenha na mata. Eles devem ter visto o carro mas prosseguiram com o que estavam fazendo. Meu avô não veio até a casa cumprimentar seu primo.

E seja como for, Leo e minha avó não ficaram na casa, onde estariam a sós. Minha avó achou adequado vestir o casaco e eles foram até o carro. E tampouco ficaram ali sentados, mas desceram o passeio e depois entraram na rua até a rodovia, onde deram meia-volta e retornaram. Fizeram isso várias vezes, à vista de todos que olhassem das janelas de qualquer casa ao longo da rua. E a essa altura todos ao longo da rua conheciam o carro de Leo.

Durante esse passeio Leo pediu a minha avó que fosse embora com ele. Disse a ela que ele ainda era uma pessoa livre, ainda não estava compromissado com a viúva. E pode-se presumir que mencionou que ainda estava apaixonado. Por ela. Minha avó. Selina.

Minha avó lembrou a ele que ela própria não estava livre, fosse o que fosse que ele pudesse estar, e por isso a situação dos sentimentos dela não vinha ao caso.

— E quanto mais severa ela falava — disse tia Charlie, com um ou dois pequenos acenos agitados de cabeça — ora, quanto mais severa ela falava com ele, mais o coração dela se abria. Claro que se abria.

Leo a levou de volta para casa. Ele se casou com a viúva. Aquela a quem me mandaram chamar de tia Mabel.

— Se Selina souber que lhe contei alguma coisa sobre isso, meu nome irá para lama — disse tia Charlie.

Tive três casamentos para estudar, bem de perto, nessa primeira parte de minha vida. O casamento de meus pais — imagino que se possa dizer que este foi o mais próximo, mas em certo sentido foi o mais misterioso e distante, por causa de minha dificuldade em imaginar meus pais tendo outra ligação além daquela que tinham por mim. Meus pais, como a maioria dos outros pais que conheci, chamavam-se entre si de mãe e pai. Faziam isso mesmo em conversas que nada tinham a ver com seus filhos. Parecia que um tinha esquecido o primeiro nome do outro. E como jamais se pensava em divórcio ou separação, não conheci nenhum pai ou nenhum casal que tivesse feito isso, eu não precisava avaliar seus sentimentos ou prestar ansiosa atenção ao clima entre eles, como hoje os filhos muitas vezes fazem. No que me dizia respeito eram principalmente cuidadores: da casa, da fazenda, dos animais e de nós, os filhos.

Quando minha mãe adoeceu — permanentemente, não apenas perturbada por sintomas estranhos — o equilíbrio se alterou. Isso aconteceu quando eu tinha doze ou treze anos. Daí em diante ela estava fazendo a família pender mais para um lado, e nós — meu pai, meu irmão, minha irmã e eu — estávamos mantendo-a numa espécie de normalidade no outro. Assim, meu pai parecia pertencer mais a nós que a ela. Em todo caso, ela era três anos mais velha que ele — tendo nascido no século xix enquanto ele nascera no século xx, e à medida que seu longo isolamento avançava ela começou a parecer mais mãe que esposa dele, e para nós mais como uma parenta mais velha sob nossos cuidados, do que uma mãe.

Eu sabia que o fato de ela ser mais velha era uma das coisas que minha avó havia julgado inconveniente em minha mãe desde o início. Outras coisas surgiram bem depressa — o fato de que minha mãe aprendera a dirigir o carro, que seu estilo de roupas beirava o original, que ela entrara para o secular Women’s Institute em vez de ir para a United Church Missionary Society, sendo o pior de tudo que ela passou a andar pelo meio rural vendendo estolas e casacos de pele feitas das raposas que meu pai criava e estava se transferindo para o ramo de antiguidades quando sua saúde começou a falhar. E por injusto que possa ser pensar assim, e ela própria sabendo que era injusto, minha avó ainda não conseguia deixar de ver essa doença que ficou tanto tempo sem diagnóstico, e era raro na idade de minha mãe, como sendo de algum modo outra mostra de teimosia, outra captura de atenção.

O casamento de meus avós não foi um casamento que cheguei a ver em ação, mas ouvi relatos. De minha mãe, que não se importava com minha avó nem um pouco mais que minha avó se importava com ela — e à medida que eu crescia, também de outras pessoas, que não tinham nenhum interesse envolvido. Vizinhos que quando crianças passaram por sua casa voltando da escola falavam dos marshmallows caseiros de minha avó e de suas troças e risadas, mas diziam que sentiam um ligeiro temor em relação a meu avô. Não que ele fosse mal-humorado ou malvado, apenas calado. As pessoas tinham grande respeito por ele — ele participara durante anos do conselho municipal e era conhecido como a pessoa a quem recorrer sempre que se precisava de ajuda para preencher um documento ou redigir uma carta comercial, ou explicação sobre alguma nova intenção do governo. Era um fazendeiro eficiente, um excelente administrador, mas o objeto de sua gestão não era ganhar mais dinheiro, era ter mais tempo de lazer para sua leitura. Seus silêncios incomodavam as pessoas, e elas achavam que ele não era muito companheiro para uma mulher como minha avó. Dizia-se que os dois eram tão diferentes que pareciam ter vindo das duas faces opostas da lua.

Meu pai, crescendo nessa casa de silêncio, nunca disse que a achava particularmente incômoda. Em uma fazenda sempre há muita coisa a fazer. Conseguir terminar o trabalho sazonal era o que compunha o conteúdo de uma vida — ou compunha na época — e nisso se resumia a maioria dos casamentos.

Ele notava, porém, como sua mãe se tornava uma pessoa diferente, como ela explodia de alegria quando chegava companhia.

Havia um violino na sala de visitas, e só quando era quase adulto soube por que estava ali: era de seu pai e seu pai costumava tocá-lo.

Minha mãe dizia que seu sogro tinha sido um refinado cavalheiro, digno e inteligente e que ela não se admirava de seu silêncio, porque minha avó estava sempre irritada com ele por causa de qualquer coisinha.

Se eu tivesse perguntado de supetão à tia Charlie se meus avós tinham sido infelizes juntos, ela teria se tornado mais uma vez recriminadora. O que perguntei a ela foi como era meu avô, além de calado. Eu disse que não conseguia me lembrar muito bem dele.

— Ele era muito inteligente. E muito justo. Embora ninguém se atrevesse a contrariá-lo.

— Mamãe disse que vovó estava sempre irritada com ele.

— Não sei de onde sua mãe tirou isso.

Se você examinasse a foto de família tirada quando eram jovens, e antes de sua irmã Marian morrer, diria que minha avó açambarcou a maior parte da beleza da família. Sua altura, sua postura altiva, seu cabelo magnífico. Ela não está apenas sorrindo para o fotógrafo, ela parece estar escancarando uma risada. Tamanha vitalidade, tamanha confiança! E ela nunca perdeu a postura, ou mais de um quarto de polegada da altura. Mas do tempo de que estou me lembrando (como eu disse, um tempo em que ambas tinham cerca da idade que tenho hoje), tia Charlie era a única de quem as pessoas falavam como uma velha dama bonita. Ela tinha aqueles olhos azuis claros, a cor das flores de chicória, e uma graça dominante em seus movimentos, uma bela inclinação da cabeça. Encantadora seria a palavra.

O casamento de tia Charlie foi o que tive melhores condições de observar, porque tio Cyril não havia morrido até eu completar doze anos.

Ele era um homem de compleição pesada com uma cabeça grande, tornada enorme pelo espesso cabelo encaracolado. Ele usava óculos, com uma lente de vidro âmbar escuro, escondendo o olho que tinha sido ferido quando ele era criança. Não sei se esse olho era inteiramente cego. Nunca o vi e me sentia mal quando pensava nele, imaginava um monte de geleia escura trêmula. Seja como for, ele tinha permissão para dirigir o carro e dirigia muito mal. Lembro-me de minha mãe chegando em casa e dizendo que o tinha visto com a tia Charlie na cidade e que ele havia feito uma conversão em U no meio da rua e ela não fazia a menor ideia de como ele tinha conseguido sair impune.

— Charlie coloca a vida dela em risco toda vez que entra naquele carro.

Ele tinha permissão de sair impune, imagino, porque era uma figura importante em nível local, bem conhecido e benquisto, sociável e confiante. Como meu avô, ele era fazendeiro, mas não passava muito tempo na fazenda. Era um escrivão público e funcionário do município em que vivia, e era uma influência de peso no Partido Liberal. Havia algum dinheiro que não provinha da atividade rural. Talvez de hipotecas, havia rumores de investimentos. Ele e tia Charlie mantinham algumas vacas, mas nenhuma outra criação. Lembro-me de tê-lo visto no estábulo, operando a desnatadeira, vestindo uma camisa e o colete do terno, com a caneta tinteiro e a lapiseira presas no bolso do colete. Não me lembro dele ordenhando as vacas. Era tia Charlie que fazia tudo ou eles tinham uma pessoa contratada?

Se tia Charlie ficava alarmada com seu modo de dirigir nunca o demonstrou. A afeição deles era proverbial. A palavra amor não era usada. Dizia-se que eram afetuosos um com o outro. Meu pai comentou comigo, algum tempo depois da morte de tio Cyril, que tio Cyril e tia Charlie tinham sido verdadeiramente afetuosos um com o outro. Eu não sei o que trouxe isso à tona, estávamos andando de carro na hora e talvez tenha sido algum comentário, alguma troça, sobre o modo de tio Cyril dirigir. Meu pai enfatizou verdadeiramente, como se para reconhecer que era assim que as pessoas casadas deviam sentir-se e que podiam até afirmar sentir-se assim mas que, de fato, essa condição era rara.

Por um lado, tio Cyril e tia Charlie se chamavam entre si por seus prenomes. Nada de mamãe e papai. Assim, o fato de não terem filhos os distinguia e os mantinha unidos não por função, mas como suas pessoas constantes. (Mesmo meu avô e minha avó se referiam mutuamente, pelo menos aos meus ouvidos, como vovó e vovô, elevando a função um degrau adiante.) Tio Cyril e tia Charlie nunca usavam termos carinhosos ou apelidos e eu nunca os vi se tocarem. Acredito agora que havia harmonia, um fluxo de satisfação entre eles, desanuviando o ar ao redor de tal sorte que mesmo uma criança autocentrada podia percebê-lo. Mas talvez o que penso que me lembro seja somente o que me contaram. Estou certa, porém, que os outros sentimentos de que me lembro — o senso de obrigação e exigência que crescia imensamente em torno de meu pai e minha mãe, e o ar rançoso de irritabilidade, de incômodo acomodado, que circundava meus avós — estavam ausentes desse único casamento, e que isso era visto como algo a se comentar, como um dia perfeito em uma estação incerta.

Nem minha avó nem tia Charlie faziam muita menção a seu marido morto. Minha avó agora chamava o seu por seu nome — Will. Ela falava sem rancor ou tristeza, como de um conhecido de escola. Tia Charlie podia ocasionalmente falar sobre “seu tio Cyril” só para mim, quando minha avó não estava presente. O que ela tinha a dizer podia ser o fato de que ele nunca usava meias de lã, ou que seus biscoitos favoritos eram de aveia com recheio de tâmaras, ou o que ele gostava de tomar primeiro pela manhã era uma xícara de chá. Normalmente ela empregava seu sussurro confidencial — havia uma insinuação de que se tratava de alguém eminente que ambas tínhamos conhecido, e que quando ela dizia tio, ela estava me dando a honra de ser parente dele.

Michael ligou para mim. Isso foi uma surpresa. Ele estava sendo cauteloso com seu dinheiro, cônscio das responsabilidades que lhe adviriam, e naquele tempo as pessoas que estavam sendo cuidadosas com seu dinheiro não faziam chamadas interurbanas a menos que houvesse alguma notícia especial, normalmente grave.

Nosso telefone ficava na cozinha. A chamada de Michael ocorreu por volta do meio-dia, em um sábado, quando minha família estava reunida a poucos metros de distância, fazendo a refeição do meio do dia. Claro que era apenas nove da manhã em Vancouver.

— Não consegui dormir a noite toda — disse Michael. — Eu estava muito preocupado por não ter notícias suas. Qual o problema?

— Nenhum — disse eu.

Tentei lembrar quando tinha sido a última vez que lhe havia escrito. Com certeza não mais de uma semana atrás.

— Eu tenho estado ocupada — disse eu. — Tem um bocado de coisas para fazer por aqui.

Alguns dias antes tínhamos enchido a tremonha com serragem. Era o que queimávamos em nosso forno, era o combustível mais barato que se podia comprar. Mas quando foi carregada pela primeira vez na tremonha criou nuvens de poeira muito fina que se assentava em toda parte, até nas roupas de cama. E por mais que se tentasse evitar, não se conseguia deixar de trazê-la nos sapatos para dentro da casa. Foi preciso muita varrição e espanada para nos livrar dela.

— Agora entendi — disse ele, embora eu ainda não lhe tivesse escrito nada sobre o problema da serragem. — Por que você está fazendo o trabalho todo? Por que eles não arranjam uma empregada? Não farão isso assim que você tiver partido?

— Ótimo — disse eu. — Espero que você goste de meu vestido. Eu lhe contei que tia Charlie estava fazendo meu vestido de noiva?

— Você não pode falar?

— Não mesmo.

— Bem, está certo. Apenas me escreva.

— Vou escrever. Hoje.

— Estou pintando a cozinha.

Ele estava morando em um sótão e usava um aquecedor portátil para preparar a comida, mas recentemente encontrara um apartamento de um quarto onde poderíamos começar nossa vida juntos.

— Você não está interessada nem em saber a cor? Vou lhe dizer assim mesmo. Amarelo com madeiramento branco. Armários brancos. Para conseguir o máximo de luz que pudermos.

— Isso parece realmente ótimo — disse eu.

Quando desliguei o telefone meu pai disse:

— Não é uma briguinha de namorados, espero? — ele falou de um modo afetado, provocador, só para quebrar o silêncio na sala. Mesmo assim, fiquei constrangida.

Meu irmão disfarçou uma risada.

Eu sabia o que eles pensavam de Michael. Eles achavam que ele tinha um sorriso brilhante demais, se barbeava bem demais e tinha os sapatos sempre brilhantes, era muito bem educado e cordialmente polido. Era improvável que tivesse alguma vez limpado um estábulo ou emendado uma cerca. Eles tinham um hábito de gente pobre, talvez em especial de gente pobre onerada com mais inteligência do que sua condição pode lhes creditar, um hábito ou necessidade de converter em tais caricaturas aqueles que estão em melhor situação, ou aqueles de quem desconfiam que se julgam melhores que eles.

Minha mãe não era assim. Ela aprovava Michael. E ele era educado com ela, embora ficasse inquieto perto dela por causa de sua terrível fala engrossada e membros trêmulos e do modo como os olhos dela podiam sair do controle e girar para cima. Ele não estava habituado a pessoas doentes. Ou pessoas pobres. Mas ele tinha feito o melhor que podia, durante uma visita que lhe deve ter sido aterradora, um cativeiro desolador.

Do qual ele ansiava me resgatar.

Essas pessoas à mesa, exceto minha mãe, julgavam-me até certo ponto uma traidora por não permanecer no lugar a que pertencia, nesta vida. Embora na verdade tampouco quisessem que eu ficasse. Sentiam-se aliviados por alguém me querer. Talvez tristes ou um pouco envergonhados porque não era um dos rapazes de perto de casa, mesmo compreendendo que aquilo não era possível e que isso seria melhor para mim, para todos. Eles queriam fazer muita troça comigo quanto a Michael (teriam dito que era apenas troça), mas no geral eram de opinião que eu devia me agarrar a ele.

Eu pretendia me agarrar a ele. Gostaria que eles pudessem entender que ele tinha senso de humor, não era tão pomposo quanto eles pensavam e que ele não tinha medo do trabalho. Tal como queria que ele entendesse que minha vida aqui não era tão triste ou miserável quanto ele achava.

Eu pretendia me agarrar a ele e também a minha família. Eu achava que estaria sempre ligada a eles, enquanto eu vivesse, e que ele não conseguiria me fazer sentir vergonha ou me convencer a me afastar deles.

E eu achava que o amava. Amor e casamento. Esse era um lugar iluminado e agradável no qual se entrava, onde se estaria a salvo. Os amantes que eu havia imaginado, os predadores de plumas exuberantes, não tinham aparecido, talvez não existissem e de qualquer modo eu mal podia imaginar-me páreo para eles.

Ele merecia coisa melhor que eu, Michael merecia. Ele merecia um coração inteiro.

Naquela tarde, fui até a cidade, como sempre. Os baús estavam quase cheios. Minha avó, agora livre da flebite, estava terminando o bordado na fronha de um travesseiro, um de um par que ela pretendia adicionar a minha coleção. Tia Charlie estava agora se dedicando a meu vestido de noiva. Ela havia montado a máquina de costura na metade da frente da sala de estar, que era separada por portas deslizantes de carvalho da metade de trás onde estavam os baús. Fazer vestidos era o que ela sabia — minha avó jamais poderia igualar-se a ela ou interferir nesse ponto.

Eu iria me casar em um vestido de veludo vinho que descia até os joelhos, com uma saia pregueada e cintura justa e o que se chamava de decote coração e mangas bufantes. Percebo agora que ele parecia feito em casa; não devido a algum defeito no corte e costura da tia Charlie, mas apenas por causa do padrão, que era a seu modo bastante lisonjeiro, mas tinha em si um despojamento, um suave abatimento, uma falta de estilo assertivo. Eu estava tão habituada a roupas feitas em casa que isso me passou despercebido.

Depois que eu havia provado o vestido e estava vestindo de novo minhas roupas comuns, minha avó nos chamou para tomar café na cozinha. Se ela e tia Charlie estivessem sozinhas estariam bebendo chá, mas por minha causa haviam passado a comprar Nescafé. Foi tia Charlie que havia começado com isso, quando minha avó estava de cama.

Tia Charlie me contou que ela se reuniria a nós em um instante, ela estava retirando alguns alinhavos.

Enquanto eu estava a sós com minha avó, perguntei a ela como se sentira antes de seu casamento.

— Isto é forte demais — disse ela, referindo-se ao Nescafé, e se levantou com o dedicado resmungo ligeiro que agora acompanhava qualquer movimento súbito. Acendeu o fogo da chaleira para ter mais água quente. Pensei que ela não fosse me responder, mas ela disse: — Não me lembro de ter sentido coisa alguma. Lembro-me de que não comia, porque tinha de reduzir minha cintura para caber naquele vestido. Por isso acho que estava me sentindo faminta.

— Você nunca sentiu medo de... — eu queria dizer de viver a sua vida só com aquela pessoa. Mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa mais, ela respondeu com vivacidade:

— Esse assunto irá se resolver com o tempo, não se preocupe.

Ela pensou que eu estava falando de sexo, a única matéria sobre a qual eu acreditava que não precisava de instrução ou coragem.

E seu tom me sugeria que talvez houvesse algo desagradável naquele assunto que eu trouxera e que ela não tinha intenção nenhuma de me dar uma resposta mais completa.

A chegada de tia Charlie naquele momento de qualquer modo teria tornado improvável um comentário adicional.

— Ainda estou preocupada com as mangas — disse tia Charlie. — Estou pensando: será que deveria encurtá-las um dedinho?

Depois de tomar seu café ela voltou para lá e o fez, alinhavando apenas uma manga para ver como ficaria. Ela me chamou para provar o vestido novamente, e quando o fiz ela me surpreendeu, olhando intencionalmente para meu rosto em vez de olhar para o meu braço. Ela tinha alguma coisa em seu punho que estava querendo me dar. Estendi a mão e ela cochichou:

— Aqui.

Quatro notas de cinquenta dólares.

— Se você mudar de ideia — disse ela, ainda em um vacilante cochicho urgente. — Se você não quiser se casar, precisará de algum dinheiro para fugir.

Quando ela disse mudar de ideia, pensei que ela estivesse troçando de mim, mas quando chegou ao você precisará de algum dinheiro, eu sabia que era sério. Fiquei em pé, petrificada em meu vestido de veludo, com uma dor nas têmporas, como se eu tivesse abocanhado uma coisa fria demais ou doce demais.

Os olhos de tia Charlie ficaram pálidos de alarme diante do que tinha acabado de dizer. E do que ela ainda tinha a dizer, com mais ênfase, embora seus lábios estivessem tremendo.

— Pode não ser exatamente o bilhete certo para você.

Eu nunca tinha ouvido ela empregar o termo bilhete naquele sentido antes, era como se estivesse tentando falar do jeito que faria uma mulher mais nova. O modo como achava que eu falaria, mas não com ela.

Podíamos ouvir os sapatos pesados de minha avó no corredor.

Meneei a cabeça e enfiei o dinheiro sob um pedaço do tecido do casamento estendido sobre a máquina de costura. Ele nem sequer parecia real para mim, eu não estava habituada à visão de notas de cinquenta dólares.

Eu não podia deixar ninguém examinar meu íntimo, muito menos uma pessoa simples como tia Charlie.

A dor e a claridade na sala e dentro de minhas têmporas recuaram. O instante de perigo passou como um acesso de soluços.

— Pois bem — disse tia Charlie em um tom de voz animador, agarrando apressadamente a manga. — Talvez fiquem melhor do jeito que estavam.

Isso era para os ouvidos de minha avó. Para os meus, um sussurro partido.

— Então você tem que ser, tem que prometer, que será uma boa esposa.

— Naturalmente — disse eu, como se não houvesse necessidade nenhuma de sussurrar. E minha avó, entrando na sala, pôs a mão em meu braço.

— Tire-a desse vestido antes que ela o estrague — disse ela. — Ela está toda banhada de suor.