14

Em 1988, exausta de correr atrás da seriedade artística e, mais importante ainda, aproximando-se dos trinta, Kennedy Sanders começaria a participar numa série de telenovelas da tarde e, um mês depois de fazer vinte e sete anos, conseguiria finalmente um contrato para três temporadas de Pacific Cove. Seria o seu contrato mais longo de sempre e, volvidas décadas, por vezes ainda a interpelariam no centro comercial, algum fã de olhos lamechas tratando-a por Charity Harris. Ela nascera para representar aquela personagem, disse-lhe o realizador, tinha uma cara perfeita para novelas. Kennedy deve ter franzido o sobrolho, porque ele se riu, tocando-lhe no braço demasiado perto das mamas.

«Não é uma crítica, querida», assegurou ele. «O que eu quero dizer é que… enfim, consigo ver que tens jeito para o género dramático.»

Não havia nada de mal no melodrama, explicou ela aos pais, quando lhes telefonou a partilhar a notícia. Aliás, algumas das maiores actrizes do cinema clássico — Bette Davis, Joan Crawford, Greta Garbo — fizeram um ou outro melodrama. O pai regozijou-se por ela regressar à Califórnia, e a mãe, por ela ter trabalho. Depois de desligar, Kennedy passeou por um centro comercial de Burbank, onde, daí a um ano, uma mulher de meia-idade lhe pediria um autógrafo diante de uma sapataria. Surpreendia-se sempre que alguém a abordava em público. Reconheciam-na? Assim como era, sem os figurinos, sem o cabelo arranjado e a maquilhagem? No começo, isso empolgava-a, mas, com o tempo, começou a sentir-se desestabilizada pela ideia de alguém reparar nela antes de ela reparar nos outros.

Uma lista incompleta de personagens que ela interpretou no mundo das novelas, antes de conseguir o contrato de Pacific Cove: uma intriguista que faz voluntariado num hospital e rapta um bebé; uma professora que seduz o pai de um aluno; uma hospedeira que derrama água para cima do protagonista, talvez sem querer, talvez de propósito, o guião era pouco claro; a filha do presidente da câmara que é seduzida pelo patife da novela; uma enfermeira que é estrangulada num automóvel; uma florista que dá uma rosa à estrela da novela; uma hospedeira que sobrevive a um acidente de avião e mais tarde é estrangulada num automóvel. Usou perucas pretas, castanhas, ruivas, até que, por fim, quando fez de Charity Harris, exibiu o seu cabelo louro ondulado. Só interpretava raparigas brancas, ou seja, nunca encarnava pessoas como ela própria.

No estúdio de Pacific Cove, o elenco e a equipa tratavam-na por Charity e nunca pelo seu nome verdadeiro e, mais tarde, numa entrevista para a Soap Digest, diria a um jornalista que isso a ajudava a manter-se dentro da sua personagem. Mais valia os leitores pensarem que, como actriz, era adepta do Método, do que saberem a verdade: que ninguém se dera ao trabalho de decorar o seu nome, porque ninguém esperava que ela durasse muito tempo. De qualquer maneira, três temporadas no mundo das novelas era o equivalente a três segundos e, quando a novela acabou em 1994, Charity Harris apareceria no final só por um milésimo de segundo, enquanto a câmara deslizava sobre umas fotografias na parede. Só os fãs mais fervorosos se lembrariam da sua curva de maior destaque, os nove meses em que fora raptada pela stalker do seu amante e estivera presa numa cave. Durante meses, contorcera-se na cadeira — gritando, suplicando, implorando — e só anos depois perceberia que a sua maior participação na novela consistira, na realidade, em não participar na novela.

Convidou a mãe, um dia, para assistir às filmagens. Avisara-a de antemão que, por vezes, fazia frio no estúdio, pelo que, ridiculamente, ela vestira uma camisola de lã azul-eléctrica, apesar dos trinta e dois graus de Burbank. Kennedy conduziu-a numa visita rápida, mostrando-lhe os décors do exterior da casa de Harris, a câmara municipal, a banca de surf em que Charity trabalhava. Até a levou à cave onde Charity estava nessa altura presa, tendo sido raptada três meses atrás.

«Espero que te soltem depressa», comentou a mãe, fundindo Kennedy e Charity, como o resto da equipa. Foi a primeira vez que a mãe a validou como actriz. Era estranho que o maior elogio que uma actriz pudesse receber fosse que desaparecera na pele de outra pessoa. Representar não é ser visto, disse-lhe um professor de Teatro. Representar verdadeiramente era tornar-se invisível, de modo que só a personagem brilhasse.

«Devias mudar o teu nome para Charity e ponto final», disse-lhe o realizador de Pacific Cove. «Não leves a mal, mas, sempre que ouço o teu nome, só me lembro de um tipo a levar um tiro na cabeça.»

Eis uma coisa em que não pensava há uma eternidade:

Uma vez, quando tinha mais ou menos sete anos, estava sentada na cozinha, num banco, a ver a mãe decorar um bolo. Estava entalada a um canto, a tentar aprender um novo truque de ioiô com tão pouco empenho, que se limitava a lançar o brinquedo, fazendo-o estatelar-se na tijoleira, à espera de que a mãe, aborrecida, a mandasse parar. Fazia amiúde coisas desse género, coisas desesperadas, demasiado insignificantes para se meter em sarilhos, mas suficientemente irritantes para conseguir atenção. Mas a mãe nem olhava para ela, não era do estilo de transformar uma tarefa maçadora numa oportunidade de criar laços com a filha. Querida, deixa-me mostrar-te como se faz a massa do pão. Ou: vem cá, amor, é assim que se faz cobertura de bolo. A mãe pareceu aliviada quando Kennedy cresceu e perdeu o interesse pela cozinha.

«Não é que eu não queira a tua ajuda», dizia sempre a mãe. «Mas despacho isto mais depressa sozinha.» Como se essa última parte contradissesse a primeira ao invés de a justificar.

Por que razão estava sequer a fazer um bolo, naquele dia? Stella não era do estilo de fazer bolos sem motivo. Levava bolachas compradas em loja para vendas de bolos na escola, transferindo-as para uma lata, de modo que ninguém desse por nada. Talvez fosse o aniversário do pai. Mas era Verão e não Primavera, senão Kennedy não estaria em casa a meio do dia, entediada, a ver a mãe alisar as ondinhas da cobertura.

«Como é que aprendeste isso?», perguntou.

A mãe, muito concentrada, como se restaurasse uma pintura a óleo danificada.

«Não sei», disse, por fim. «Aprendi com o tempo.»

«A tua mãe ensinou-te?» Pensou que talvez a mãe dissesse que sim, a chamasse e lhe desse uma faca. Mas ela nem levantou os olhos.

«Não tínhamos dinheiro para bolos», disse.

Mais tarde, Kennedy apercebeu-se de que a mãe usava amiúde o dinheiro como desculpa para não falar do passado, como se a pobreza fosse tão inconcebível para Kennedy, que pudesse explicar tudo: porque é que a mãe não tinha fotografias de família, porque é que nunca recebia telefonemas de amigos do liceu, porque é que nunca fora convidada para um único casamento, funeral ou festa. «Éramos pobres», irritava-se Stella, quando ela fazia demasiadas perguntas, a pobreza alargando-se a todos os aspectos da sua vida. O seu passado inteiro era uma prateleira de despensa vazia.

«Como é que ela era?», perguntou Kennedy. «A avó.»

A mãe continuou sem se virar, mas os seus ombros contraíram-se.

«É estranho pensar nela assim», disse.

«Assim como?»

«Uma avó.»

«Mas é. Mesmo depois de morrer, continua a ser avó.»

«Sim, acho que sim», respondeu a mãe.

Kennedy devia ter desistido do assunto nessa altura, mas estava irritada, a mãe tão concentrada na porcaria do bolo, como se fosse o mais importante, como se falar com a filha é que fosse a tarefa difícil que a aborrecia. Queria que a mãe parasse o que estava a fazer e lhe desse atenção.

«Onde é que ela morreu?», perguntou.

Agora, sim, a mãe virou-se. Usava um avental cor de pêssego, tinha as mãos manchadas de cobertura de baunilha e o sobrolho franzido. Não estava propriamente irritada, parecia confusa.

«Que pergunta é essa?»

«É só uma pergunta! Nunca me contas nada…»

«Em Opelousas, Kennedy!», respondera. «No mesmo sítio onde eu cresci. Ela nunca saiu de lá e nunca foi a lado nenhum. Não tens mais nada para fazer neste momento, senão estar aqui?»

Kennedy quase chorou. Chorava facilmente e com frequência, naquela altura, envergonhando a mãe, que só chorava de vez em quando, num filme triste, e depois se ria sempre de si própria, pedindo desculpa enquanto enxugava as lágrimas dos cantos dos olhos. Kennedy chorava no chão do supermercado, se queria uma bola cor-de-rosa que a mãe, arrastando-a pelo corredor fora, se recusava a comprar. No recreio, quando perdia ao jogo de espirobol. À noite, quando acordava com pesadelos de que não conseguia lembrar-se. E tentou conter as lágrimas naquele momento, ouvindo a mãe dizer uma coisa que ela sabia não ser verdade.

«Não foi aí que cresceste», disse.

«Que conversa é essa? É claro que foi.»

«Não, não foi. Disseste-me que vinhas de uma vila. Começa com M. M qualquer coisa. Disseste-me quando eu era pequenina.»

A mãe ficou calada durante tanto tempo, que Kennedy começou a sentir-se louca, como Dorothy no fim do Feiticeiro de Oz. E tu estavas lá, tu também estavas lá! Mas a história da vila era real, não conseguia lembrar-se de todos os pormenores, a não ser que estava na banheira, com a mãe debruçada sobre ela. Mas, agora, a mãe limitou-se a rir.

«E quando é que supostamente te contei isso?», retorquiu ela. «Ainda és pequenina.»

«Não sei…»

«Estás enganada. Ainda eras bebé.» A mãe deu um passo em frente, o bolo atrás dela liso no cimo e nos lados. «Anda, querida. Queres lamber a colher?»

Foi a primeira vez que Kennedy percebeu que a mãe era uma mentirosa.

A vila ficou-lhe na mente.

Não conseguia libertar-se dessa obsessão, apesar de não se lembrar do nome. Ou precisamente por não se lembrar do nome. Durante anos, não voltou a falar nisso à mãe. Mas, uma noite, na faculdade, ligeiramente pedrada, tirou uma enciclopédia da estante do namorado. «Que fazes?», perguntou ele só por perguntar, mais interessado no charro que enrolava, pelo que ela o ignorou e folheou o volume até encontrar a Luisiana. Desceu ao fundo da página, à lista de cidades e vilas por ordem alfabética. Mansfield, Marion, Marksville.

«Ei», disse ele, «pousa essa merda, não vais estudar agora, porra.»

Mer Rouge, Milton, Monroe.

«Então, minha, esse livro não pode ser mais interessante do que eu.»

Moonshine, Moss Bluff, Mount Lebanon. Tinha a certeza de que reconheceria o nome quando o visse. Mas leu a lista toda e nenhum deles lhe pareceu familiar. Arrumou o livro na prateleira.

«Desculpa», disse. «Não sei que ideia foi esta.»

Depois disso, nunca mais tentou procurar a vila. Era uma coisa acerca da qual sabia que tinha razão, mas nunca poderia provar, como aquelas pessoas que juravam ter visto o Elvis Presley no supermercado, a dar pancadinhas em melões para ver se eram bons. Ao contrário desses malucos, ela não diria nada a ninguém. Não se importava de ser uma louca privada. Até ao dia em que conheceu Jude Winston. Na noite da festa do elenco, Jude disse a palavra Mallard e foi como se tivesse cantado uma música que Kennedy não ouvia há anos: sim, era isso.

Em 1985, quase três anos depois d’Os Saqueadores da Meia-Noite, voltou a ver Jude, em Nova Iorque.

A cidade ainda era nova para ela, mal sobrevivia ao seu primeiro Inverno. Durante a sua vida toda, nunca imaginara viver fora de Los Angeles, mas a cidade começara a parecer-lhe cada vez mais pequena. Nunca mais vira Jude depois da festa, mas imaginava-se a esbarrar nela a cada esquina. Via-a pelas janelas dos restaurantes, sentada a uma mesa. Uma vez, enganou-se nas falas de Um Violino no Telhado, porque avistou Jude na primeira fila. A mulher era igualzinha — escura, pernas compridas, um nadinha insegura —, mas, quando percebeu que não era ela, já tinha estragado a cena toda. O encenador deu ordem aos funcionários do teatro para tirarem as coisas de Kennedy dos camarins antes mesmo de cair o pano. Ela culpou Jude. Culpava-a de tudo.

«Não entendo», disse a mãe, quando Kennedy anunciou que ia mudar-se para Nova Iorque. «Porque é que vais para tão longe? Podes ser actriz aqui mesmo.»

Mas ela precisava de distanciar-se também da mãe. No início, Stella recusou-se a ouvir as afirmações de Jude. Depois, tentou argumentar com ela. Pareço-te negra? E tu pareces negra? Faz algum sentido sermos parentes dela? Não, não fazia, mas poucas coisas na vida da mãe faziam sentido. De onde vinha? Como era a sua vida antes de se casar? Quem fora ela, quem amara, o que desejara na vida? As lacunas. Quando olhava para a mãe, agora, só via as lacunas. E Jude, pelo menos, oferecera-lhe uma ponte, uma forma de compreender. Era óbvio que não conseguia parar de pensar nela.

«Gostava mesmo que parasses de te preocupar com isso», disse-lhe a mãe. «Vais dar contigo em louca. Aliás, de certeza que foi por isso que ela te disse aquelas coisas. Tem inveja de ti e quer que fiques a pensar nela.»

Respondera às perguntas de Kennedy enervada, mas nunca com raiva. Mas a sua mãe era normalmente uma pessoa calma e racional. Se era para mentir à filha, fá-lo-ia de maneira tão calma e racional como fazia tudo o resto.

Em Nova Iorque, Kennedy vivia numa cave em Crown Heights com Frantz, o namorado, que dava aulas de Física na Universidade de Columbia. Ele era de Port-de-Paix, mas fora criado em Bed-Stuy, num daqueles prédios castanho-avermelhados de habitação social que ela via pela janela do autocarro. Ele gostava de lhe contar histórias de terror sobre a sua infância: ratazanas a mordiscarem-lhe os dedos dos pés, baratas reunidas num canto do armário, os rapazes da droga que se instalavam no átrio do edifício, à espera para lhe roubarem as sapatilhas. Ele queria que ela o compreendesse, pensara Kennedy a princípio, mas, mais tarde, percebeu que ele gostava simplesmente de ter uma história de vida dramática que contrastasse com o homem que se tornara: cuidadoso, estudioso, sempre a limpar os seus óculos com aros de tartaruga.

Ele não era fixe e ela gostava disso. Não era um daqueles rapazes negros que ela admirara de longe, rapazes cheios de lábia esparramados em carros com mossas ou congregados à porta do cinema, a assobiarem às miúdas que passavam. Ela e as amigas fingiam que isso as aborrecia, mas, em segredo, deleitavam-se com a atenção desses rapazes que elas nunca poderiam beijar, rapazes que nunca poderiam levar a casa dos pais. Ai, as paixonetas que tivera por eles. Paixonetas seguras, como a excitação que sentia pelo actor Jim Kelly. Empoleirava-se no braço da cadeira do pai, durante os jogos dos Lakers, só para ver Kareem Abdul-Jabbar com aqueles óculos. Paixonetas inofensivas, mas ela sabia que não devia partilhá-las com ninguém. Frantz era o seu primeiro amante negro. Ela era a sua quarta amante branca.

— Quarta? — disse ela. — A sério? Como eram as outras três?

Ele riu-se. Estavam de pé na cozinha do orientador dele, numa festa do departamento, a beber cerveja de gengibre. Tinham começado a namorar pouco tempo antes e ela estava demasiado bem vestida: escolhera uma saia comprida e saltos altos, imaginando-se num filme glamoroso dos anos 1960, dependurada do braço de um marido professor catedrático de oculinhos, numa sala pejada de fumo. Ao invés, dera por si no meio de um bando de trintões mal-amanhados, num terceiro andar sem elevador, a ouvir Fleetwood Mac.

— Eram diferentes — respondeu ele.

— Diferentes em que sentido?

— Diferentes de ti — disse ele. — As pessoas são todas diferentes, as raparigas brancas também.

Ele era diferente de todas as pessoas que ela conhecia. A sua língua materna era o crioulo, que lhe modulava o sotaque em inglês. Tinha uma memória quase fotográfica, pelo que, quando a ajudava a decorar falas, as memorizava sempre antes dela. Tinham-se conhecido no 8 Ball, o bar onde Kennedy trabalhava. Sem saberem muito bem como, tinham reparado um no outro, no meio dos motards corpulentos à volta das mesas altas, das raparigas tatuadas a porem moedas na jukebox para ouvirem Joan Jett, no meio das tentativas dela própria para não dar nas vistas. Nessa altura, Kennedy ainda não tinha arranjado trabalho como actriz e ninguém percebia por que razão deixara Los Angeles, se era esse o seu sonho. Mas ela gostava dos palcos. Em Los Angeles, todos os actores que ela conhecia estavam obcecados com Hollywood, porque qualquer pessoa com bom senso sabia que era em Hollywood que se ganhava dinheiro. Só que esse processo todo lhe parecia uma seca. Levantar-se de madrugada, estar à frente das câmaras durante horas, repetir as mesmas falas até um realizador qualquer idiota ficar satisfeito. O palco era uma coisa completamente diferente: era sempre uma novidade, o que a apavorava e excitava. Cada sessão era diferente, cada público era único, cada noite crepitava de potencial. O facto de não se ganhar dinheiro nenhum no que ela fazia era uma espécie de bónus. Ainda só tinha vinte e quatro anos, ainda achava romântica a ideia de sofrer.

— Eu sei — disse ela a Frantz. — Por isso é que perguntei como é que elas eram.

Rapidamente se arrependeu de ter perguntado, quando começaram a esbarrar nas ex-namoradas pela cidade. Sage, a poeta, que publicava longos artigos desconexos sobre o corpo feminino e ainda os enviava a Frantz para ele comentar. Hannah, a engenheira, que estudava como melhorar as condições de saneamento nos países pobres. Kennedy imaginara uma rapariga desmazelada com os pés dentro dos esgotos e não uma loura espevitada, em equilíbrio perfeito no metro, empoleirada nas suas botas com saltos de doze centímetros. Christina tocava clarinete na Brooklyn Phillarmonic. Ao jantar, Kennedy mexeu o seu creme de espinafres, enquanto Christina e Frantz discutiam Brahms. Ele tinha razão, elas eram todas diferentes. Sentiu-se estúpida por ter ficado surpreendida. Uma parte de si imaginara que as outras namoradas brancas eram versões alteradas de si própria: ela, se tivesse crescido em Jérsia, por exemplo, ou decidido, por capricho, pintar o cabelo de ruivo. Mas o gosto de Frantz por raparigas brancas era diversificado e ela não conseguia decidir o que era pior: ser a mais recente de uma série repetitiva de amantes similares, ou ser radicalmente diferente das que a tinham precedido. Pertencer a um padrão era seguro; ser única, um risco. De que é que Frantz gostava nela, ao certo? Como podia ela ter esperança de o manter interessado?

— E se eu te disser — começou Kennedy — que não sou branca?

Não planeara dizer isso, mas saiu-lhe. Frantz sorriu, levando a cerveja aos lábios.

— Nesse caso, és o quê?

— Não completamente branca — respondeu. — Também tenho sangue negro.

Nunca o dissera em voz alta. Perguntara-se se dizê-lo o tornaria mais real, como se uma coisa inata dentro de si despertasse ao ouvir aquelas palavras. Mas a sua declaração soou a falso, como se estivesse a recitar uma deixa. Não foi convincente sequer para si própria. Frantz perscrutou-a por um instante.

— Ah, sim — disse. — Já estou a ver.

— A sério?

— Claro. Conheço montes de negros com o cabelo encarapinhado como o teu.

Ele estava a gozar. Pensou que fosse brincadeira dela e, com o tempo, tornou-se uma piada entre ambos. Sempre que Kennedy se atrasava, Frantz dizia que ela se regulava pelo relógio das pessoas de cor. Se se irritava, ele respondia-lhe: «Calma, mana.» Rapidamente se tornou uma piada também para Kennedy. Jude, o segredo da sua mãe, a história toda. Concluiu que, se fosse verdade, ela saberia no seu íntimo. Não era possível viver uma vida inteira sem saber algo tão fundamental sobre si própria. De alguma maneira, senti-lo-ia. Vê-lo-ia nos rostos dos outros negros, uma espécie de ligação. Mas não, não sentia nada. Olhava para eles na carruagem de metro com o vago desinteresse de um estranho. Até Frantz lhe era, na essência, estrangeiro. Não por ser negro, embora talvez isso o sublinhasse. Mas a vida dele, a linguagem, até os interesses dele eram distintos dos seus. Por vezes, Kennedy entrava na despensa que ele transformara em escritório e via-o escrevinhar equações que ela nunca compreenderia. Havia muitas maneiras de nos sentirmos alienados de alguém e muito poucas de nos sentirmos próximos.

A sua mãe detestava Frantz. Achava-o pretensioso.

— E não pelo motivo que julgas — disse ela.

Estavam sentadas à janela de um café, a ver as pessoas passar na rua. A mãe viera visitá-la durante as férias do Dia de Acção de Graças. Kennedy frisara que não podia tirar folga do trabalho e das audições para ir a Los Angeles, mas a verdade é que queria simplesmente que a mãe visse a sua vida em Nova Iorque. Tirava um prazer perverso disso, como se fosse uma criança a chamá-la para ver o desenho que fizera na parede. Olha a asneira que fiz! A mãe esforçara-se por não reagir. Mantivera-se calada durante a visita guiada ao apartamento da cave. Fizera que sim com a cabeça, em silêncio, quando Kennedy a levara ao 8 Ball. Frantz foi a gota de água, a única parte da sua vida inaceitável que a mãe não conseguiu ignorar.

— E que motivo é esse? — perguntou Kennedy.

— Tu percebeste o que eu quero dizer. — Estavam duas mulheres negras ao lado delas a comer croissants. A mãe nunca o diria em voz alta. — Não é isso. É só que não gosto de ninguém que se comporte como ele…

— Como é que ele se comporta?

— Como se a hum-hum dele não cheirasse mal.

Stella devia ser a única mãe em Brooklyn inteira demasiado educada para dizer «merda» em público.

— Não entendo porque é que não gostas dele — disse Kennedy. — Foi absolutamente simpático contigo.

— Eu não disse que não foi. Mas age como se fosse a pessoa mais inteligente na sala.

— E é! Pelo amor de Deus, tem um doutoramento pela Universidade de Dartmouth. Eu sinto-me sempre burra na presença dele.

— Não entendo. Nunca gostaste de pessoas como ele.

No liceu, Kennedy namorara com rapazes de casaco de cabedal com tachas e cabelo comprido e oleoso, como os Ramones. O seu primeiro namorado mal conseguia ver sem afastar as longas madeixas que lhe caíam sobre os olhos. Ela achara querido, mas o pai ficava louco de irritação. Imaginava-a a namorar, como imaginam todos os pais, com rapazes que lhe lembrassem eles próprios quando eram jovens, de cabelo curto, fato elegante, focados numa carreira, e não aqueles rapazes molengões que ela levava para casa, sempre um bocado passados, nunca completamente irreverentes, mas perto disso. Kennedy namorava com rapazes de bandas que tocavam tão mal, que ela própria não teria aguentado ouvi-los, senão por amor. Andara com um lutador, na faculdade, e vira-o correr durante horas embrulhado em sacos do lixo, tentando perder peso. Nunca poderia amar um homem que se preocupasse tanto com uma coisa, fosse o que fosse, disse para si mesma, mais tarde, mas ei-la, a viver com um namorado que escrevia equações no espelho da casa de banho para não se esquecer.

— Bom, estava na hora de mudar — retorquiu.

A sua fase de gostar de rapazes beras acabara. A mãe devia ter-se sentido aliviada, mas parecia simplesmente preocupada.

— Não me digas que é por causa daquela rapariga, é? — perguntou.

Não falavam de Jude havia dois anos. Mas ela mantinha-se presente. Kennedy percebeu imediatamente a quem a mãe se referia.

— O que tem isso a ver com o caso? — disse.

— É que nunca gostaste de um rapaz assim. Depois, aquela rapariga tola meteu-se-te na cabeça. Só espero que não estejas a tentar provar nada.

Parecia tão agitada, mexendo na asa da chávena de café, que Kennedy desviou o rosto. Se namorar com Frantz fora uma espécie de experiência, então falhara terrivelmente. Amar um homem negro só a fazia sentir-se ainda mais branca.

— Não estou — respondeu. — Anda, vamos ao museu.

No Inverno em que viu Jude Winston novamente, Kennedy entrava num musical, chamado Rio Silencioso, em cena num pequeno teatro fora do circuito da Broadway. Interpretava o papel de Cora, a filha rebelde do xerife que anseia por fugir com um tosco trabalhador rural. Durante meses, sentiu um medo obsessivo, mais intenso do que era costume, de adoecer. Bebeu tanto chá quente com limão que, em Fevereiro, mal lhe suportava o cheiro e tapava o nariz para o engolir sem se engasgar. Tomava comprimidos de zinco a saberem a giz e dava três voltas ao cachecol antes de pôr o pé na rua. Esfregava as mãos freneticamente depois de sair do metro. Em circunstâncias normais, não tinha estrutura para o Inverno nova-iorquino; o facto de ter conseguido o seu maior papel desde que se mudara para a cidade tornava aquela fase ainda mais fora do normal. Na noite em que recebeu o telefonema, Frantz levou-a a jantar fora. Ela estava eufórica e ele, aliviado.

— Eu já começava a achar que… — disse ele, mas não rematou a frase. Era cinco anos mais velho do que ela e, mesmo sem ter em conta a idade, tratava-se de um homem sério que acreditava em objectivos sérios na vida. Tornava-se cada vez mais evidente que a carreira de actriz de Kennedy não ia a lado nenhum. A princípio, ele parecera encantado com a ideia. Chamava-lhe «a minha sonhadora californiana»[15]. Ajudava-a a decorar falas em casa e encontrava-se com ela à porta das audições, para ela lhe contar no metro como tinham corrido. Mas, agora, ao vê-lo sorrir queixosamente à mesa, Kennedy percebeu que ele estava mais surpreendido do que feliz, como um pai que descobre que, afinal, o Pai Natal existe mesmo. Respondera às cartas dos filhos, comera as bolachas e deixara prendas debaixo da árvore, mas nunca esperara que um homem gordo descesse pela chaminé.

Empenhou-se como nunca nesse musical. Colou panfletos coloridos a anunciar o espectáculo em todas as montras e lampiões que encontrou. Aguentou os olhares carrancudos dos vizinhos quando ensaiava as suas músicas nas escadas, onde a acústica era melhor. De manhã, deslizava pelos azulejos da casa de banho, ensaiando a coreografia enquanto lavava os dentes. Quando não estava a ensaiar, descansava a voz. Quem a conhecia nunca acreditaria em tal coisa, mas era verdade: durante semanas, ela praticamente não falou. Já deixara o 8 Ball por essa altura e começara a trabalhar num café chamado Gulp, perto do teatro. Os espectáculos ocupavam-lhe as noites e, além disso, ser empregada num bar era uma profissão muito conversadora. Servir café requeria menos conversa. Nas pausas, bebia chá e não falava com ninguém. Em casa, Frantz deu-lhe um pequeno quadro branco onde ela lhe escrevia mensagens. Jantar? Vou sair. A tua mãe ligou. Ele parecia achar graça àquilo tudo, como se o tivessem arrastado para fazer parte de uma performance artística.

Era espantoso como a cidade parecia ruidosa a partir do momento em que ela decidira calar-se. Tornou-se assustadiça, sobressaltava-se à mínima coisa, como um cavalo. Até o som súbito de uma máquina a moer café a fazia dar um pulo. Mas, quando Jude transpôs a porta do café, Kennedy não ouviu nada, nem a campainha a retinir, nem o ruído da rua a entrar com o frio. Durante três anos, imaginara o que diria a Jude, se a visse outra vez. Agora, Jude estava ao balcão, mas, quando Kennedy abriu a boca, não saiu nada. Nem conseguiu sussurrar.

— Bem me parecia que eras tu — disse Jude.

Continuava esguia e musculosa, enroscada num casacão branco que lhe tornava a pele ainda mais escura. E sorria. Fogo, sorria como se fossem velhas amigas.

— Vi um panfleto com o teu nome — disse ela. — Íamos a passar e vi o panfleto na montra e… uau, és mesmo tu.

Junto da porta, Kennedy reconheceu o namorado de Jude: o cabelo encaracolado mais comprido, a barba mais escura, mas era inequivocamente ele. Estava do lado de fora da janela, a soprar para aquecer as mãos, com os ombros salpicados de gelo. Foi mais forte do que ela: ficou surpreendida por ainda estarem juntos. Conhecia o género dele — lindo de morrer — e não era o género de amar uma rapariga como Jude. Era verdade que ela tinha uma figura impressionante, dentro do seu estilo, mas um rapaz como ele nunca cairia por uma rapariga que dificilmente se consideraria bonita. Mas ei-los, ainda juntos e em Nova Iorque. Que diabo fariam ali, tão longe de casa?

— Estás boa? — perguntou Jude.

Fingiu-se descontraída, mas nada na amizade delas fora pura coincidência. Já não acreditava na magia do fortuito, no que tocava a Jude Winston. Um homem branco de casaco cinzento entrou no café e Kennedy fez-lhe sinal para avançar. Se ainda estivesse em Los Angeles, provavelmente teria mandado Jude àquela parte. Mas ali, encasulada no seu silêncio auto-imposto, o máximo que conseguiu foi ignorá-la. Jude pareceu espantada, mas afastou-se para o lado.

O homem pagou o seu café e foi-se embora. Então, Jude pôs-lhe um papel em cima do balcão.

— É aqui que estamos alojados — disse. — Se quiseres conversar.

Ela telefonou. É claro que telefonou.

Sabia que o faria antes mesmo de guardar o papel no bolso do avental. Não o deitou no lixo: foi o primeiro sinal. O segundo foi o facto de não conseguir parar de pensar nisso. Um simples papelinho enfiado no bolso e mais parecia que era uma lâmina, a enterrar-se-lhe na barriga. Não fazia sentido um papel incomodá-la daquela maneira e, por duas vezes durante o seu turno, decidiu rasgá-lo aos bocados. Mas, sempre que o tirava, olhava para a letra pequena e certinha de Jude. Hotel Castor, quarto 403, e o número de telefone. À terceira vez, era demasiado tarde. Já decorara o número.

Depois do trabalho, meteu-se na cabina telefónica do outro lado da rua e ligou. Ninguém atendeu e, no comboio, pensou em telefonar assim que chegasse a casa, mas não queria que Frantz ouvisse. Como poderia explicar-lhe aquilo? Que uma rapariga negra que se dizia sua prima aparecera misteriosamente na cidade. Pensaria que era, uma vez mais, brincadeira. Telefonou na manhã seguinte, antes de começar o expediente, e dessa vez Jude atendeu.

— Eu não devia falar contigo — declarou Kennedy.

Jude ficou calada. Por um instante, Kennedy pensou que ela não lhe reconhecera a voz, mas, então, Jude disse:

— Porquê?

— Porque — explicou Kennedy — entro num musical.

— Desculpa — retorquiu Jude calmamente —, mas não estou a perceber.

— Não devo falar com ninguém. Estou a descansar a voz.

— Ah.

— Portanto, o que tiveres para me dizer, diz. Não tenciono perder tempo em conversas contigo.

— Não vim cá para discutir.

— Então, que diabo vieste cá fazer?

— O Reese vai ser operado.

Durante todo esse tempo, ela imaginara tudo o que Jude poderia querer. Vingança, depois da maldade que Kennedy lhe dissera na festa do elenco. Dinheiro, como a sua mãe sugerira. Pff, boa sorte com isso. Bastava olhar para a sua vida, para perceber que não tinha dinheiro nenhum. Mal conseguia pagar a renda. Imaginou-se a contar isso a Jude — com uma certa vergonha, um certo orgulho —, mas, afinal, ela não tinha aparecido em Nova Iorque por sua causa. O namorado estava doente — talvez até a morrer — e ali estava Kennedy, convencida de que Jude se importava consigo. «Sabes qual é o teu mal?», dissera-lhe um realizador, uma vez. «É que consideras o teu assunto mais fascinante.» Ela sempre pensara que toda a gente se sentia protagonista num palco, rodeada de personagens secundárias, vilões e paixões. Continuava sem perceber que papel Jude desempenhava na sua vida, mas, pelo visto, ela própria nem sequer entrava na de Jude.

— É grave? — perguntou. — Quer dizer, ele está bem?

— Ele não está a morrer, não — disse Jude. — Mas é sério. Sim, diria que é sério.

— Então, porque é que vieram para tão longe? Não há cirurgiões em Los Angeles?

Jude fez uma pausa.

— Já não estamos em Los Angeles — explicou. — E é uma operação especial. É preciso encontrar o tipo específico de médico para a fazer.

Estava a ser vaga, o que, obviamente, deixou Kennedy ainda mais curiosa, mas não podia perguntar à papo-seco. A vida de Reese, ou a de Jude, não era da sua conta. Ao que tudo indicava, desta vez o encontro fora mesmo fortuito.

— Onde é que vivem, então?

— Em Minneapolis.

— Que diabo estão a fazer em Minneapolis?

— Estou a tirar Medicina.

Apesar de tudo, Jude sentia um certo orgulho. Levava a vida que, anos atrás, dissera desejar. Era amada pelo mesmo homem, estava a caminho de se tornar médica. E que tinha Kennedy para mostrar, passado tanto tempo? Um apartamento numa cave, onde vivia com um homem que ela mal compreendia, nenhum curso superior, um emprego a servir cafés, para poder cantar todas as noites num teatro meio vazio.

— Ainda bem que ligaste — disse Jude. — Pensei que não o fizesses.

— Pois, e seria de espantar?

— Ouve, eu sei que as coisas acabaram de uma maneira estranha…

Kennedy riu-se.

— Fogo, grande eufemismo!

— Mas, se me deres dez minutos do teu tempo, tenho uma coisa para te mostrar.

A mãe chamara louca a Jude. Talvez fosse. Mas já estava a puxar Kennedy novamente para a sua teia. Kennedy podia ter desligado o telefone. Podia ter desligado naquele preciso instante e nunca mais falar com ela. Podia ter tentado esquecê-la. Mas Jude oferecia-lhe uma chave para compreender a sua mãe. Como podia dizer que não a isso, assim, do pé para a mão?

— Neste momento, não posso — disse. — Estou a trabalhar.

— Então, depois.

— Tenho um espectáculo depois.

— Onde? — perguntou Jude. — O Reese e eu vamos assistir. Não está esgotado, está?

A companhia ainda não esgotara uma única sessão, mas, ainda assim, Kennedy fez uma pausa, como se estivesse a pensar.

— Talvez não esteja — respondeu. — Geralmente sobram uns bilhetes.

— Óptimo — disse Jude. — Então, vemo-nos hoje à noite. De qualquer maneira, queríamos assistir a um espectáculo a sério enquanto estivéssemos em Nova Iorque.

Ela parecia insuportavelmente inocente, nada semelhante à rapariga dura e reservada que Kennedy conhecera. Quase se deixou encantar por isso, mas, acima de tudo, sentiu que recuperara a sua segurança. Indicou a Jude o nome do teatro e disse-lhe que tinha de desligar.

— Está bem — respondeu Jude. — Até logo. E… Kennedy?

— A sério, tenho mesmo de desligar…

— Está bem, desculpa. Eu só… olha, quero muito ver-te outra vez. Em palco, quero eu dizer. Adorei o teu último espectáculo.

Kennedy detestou o prazer que sentiu ao ouvir isso. Desligou sem se despedir.