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No Outono de 1978, uma rapariga escura foi parar a Los Angeles vinda de uma vila que não existia em nenhum mapa.

Apanhou uma camioneta da Greyhound e fez todo o trajecto desde esse lugar não cartografado, com duas malas a chocalharem na bagageira. Uma rapariga de nada e de nenhures e, se perguntassem a qualquer um dos outros passageiros, todos diriam que não repararam em nada de interessante nela, a não ser que era tão, enfim, negra. Tirando isso, sossegada. Passando as páginas de um velho policial que o namorado da mãe lhe oferecera pelos seus dezassete anos e que ela lia pela segunda vez, para encontrar todas as pistas que lhe tinham escapado. Nas paragens, entalava o livro debaixo do braço e descrevia círculos lentos para desentorpecer as pernas. Irrequieta. Lembrava ao motorista italiano uma chita a andar de um lado para o outro numa jaula. Não ficaria surpreendido se lhe dissessem que era corredora: aquele corpo seco, arrapazado, de pernas compridas. Ele fumou um cigarro, observando-a a dar mais uma volta à camioneta. Que pena, aquelas pernas com aquela cara. E aquela pele. Meu Deus, nunca tinha visto uma mulher tão negra.

Ela não reparou que o motorista a observava. Já praticamente não reparava nas pessoas a olharem para si, ou se por acaso dava por isso, sabia perfeitamente por que motivo o faziam. Era impossível não perceber. Escura, sim, mas também alta e de pernas longas, tal como o pai, que não via e de quem não tinha notícias havia dez anos. Deu mais uma volta lenta, tentando encontrar a página onde ia no livro de lombada partida e com os cantos das páginas dobrados. Adorava policiais desde que era pequena; costumava sentar-se no alpendre enquanto o namorado da mãe limpava a arma e lhe falava dos homens que caçava.

Mais tarde, parecer-lhe-ia uma estranha actividade para um homem adulto partilhar com uma menina, mas ela já percebera que Early Jones era um homem estranho. Podia não ser seu pai, mas era o mais próximo disso que ela tivera na vida. Gostava de o ver desmontar lentamente a arma, enquanto o bombardeava com perguntas. Quem tivesse jeito para mentir, conseguia encontrar praticamente qualquer pessoa, explicou-lhe ele. Metade do trabalho de caçador passava por fingir que se era outra pessoa, um velho amigo à procura da morada do seu antigo colega, um sobrinho em busca do número de telefone do tio que não via há muito tempo, um pai a inquirir sobre o paradeiro do filho. Havia sempre alguém perto do alvo que se podia manipular. Havia sempre uma janela, quando não se encontrava uma porta.

«Não é empolgante?», disse ele, mordiscando um palito. «A maior parte do tempo é só dar corda a velhotas ao telefone.»

Ele falava como se encontrar os desaparecidos fosse uma tarefa tão fácil que, uma vez, ela lhe perguntou se poderia procurar o pai. Ele não levantou os olhos, escovando o interior do cano da arma.

«Tu não queres que eu o procure», respondeu.

«Porquê?»

«Porque não», disse ele. «Não é boa pessoa.»

Early tinha razão, claro, mas ela detestava que ele se mostrasse tão convicto. Como é que sabia se o pai dela era ou não boa pessoa? Nunca o conhecera!

Sempre imaginara o pai a aparecer no seu Buick reluzente para a salvar. Ela sairia da escola, um dia, e daria com ele à sua espera. O pai, alto e bonito, sorrindo-lhe, de braços abertos. Os outros miúdos ficariam de olhos arregalados. Depois, ele levá-la-ia de volta para Washington e ela iria à escola e faria amigos e namoraria com rapazes e correria e iria para a universidade numa terra tão diferente de Mallard, que mal conseguiria acreditar que Mallard existia sequer, que não fora fruto da sua imaginação.

Mas passaram-se dez anos, sem telefonemas nem cartas. No fim, ela salvou-se a si própria. Ganhou uma medalha de ouro nos 400 metros no campeonato do estado e, milagre dos milagres, houve uns caçadores de talentos das universidades que a viram. Correra o mais depressa que conseguira e, agora, estava a pôr-se na alheta. Na rodoviária, parara na base dos degraus de metal, enquanto Early punha as suas malas na bagageira. A avó enfiou-lhe o rosário ao pescoço e a mãe puxou-a para si num abraço.

«Ainda não percebi porque é que vais para a Califórnia, tão longe», disse. «Há óptimas escolas aqui mesmo.»

Desiree soltou uma risada, como se estivesse a brincar, como se não tivesse tentado convencer Jude a ficar em Mallard. Sabiam ambas que não era possível. Ela já aceitara a bolsa de atletismo da UCLA — como se pudesse pensar sequer em recusá-la — e agora estava parada à frente de uma camioneta, pronta para embarcar.

«Eu telefono», respondeu. «E escrevo.»

«Acho bom que o faças.»

«Vai correr tudo bem, mãe. Volto cá para vos visitar.»

Mas sabiam ambas que ela nunca regressaria a Mallard. Na camioneta, tacteou as contas do rosário, imaginando a mãe, em jovem, a afastar-se de Mallard numa camioneta como aquela. Só que a mãe não viajara sozinha, Stella estava ao seu lado, de olhos fixos na escuridão lá fora. Jude segurou o livro de capa mole no colo, encostando-se à janela gordurosa. Nunca tinha visto um deserto; parecia estender-se eternamente. Os quilómetros sucediam-se, levando-a cada vez para mais longe da sua vida.

Chamavam-lhe Bebé de Alcatrão.

Meia-noite. Escurinha. Torrão. Diziam: Sorri, não te conseguimos ver. Diziam: És tão escura, que te confundes com o quadro de ardósia. Diziam: Aposto que podias aparecer nua num funeral. Aposto que os pirilampos te seguem durante o dia. Aposto que, quando nadas, pareces óleo. Faziam montes de piadas e, uma vez, já com quarenta e tantos anos, ela recitaria uma litania delas num jantar festivo em São Francisco. Aposto que as baratas te chamam prima. Aposto que não consegues encontrar a tua própria sombra. Ficava espantada por se lembrar tão bem. Nessa festa, obrigara-se a rir, apesar de não ter achado graça nenhuma na altura. As piadas eram verdadeiras. Ela era preta. Preto-azulada. Não, tão preta que parecia roxa. Preta como café, alcatrão, o espaço sideral. Negra como o início e o fim do mundo.

A princípio, a avó tentou mantê-la longe do sol. Deu-lhe um grande chapéu de jardinagem, amarrou-lhe as fitas com firmeza no queixo, apesar de ela dizer que a asfixiavam. Não conseguia correr com o chapéu posto e adorava correr, era mais forte do que ela, embora Adele lhe implorasse para, pelo menos, esperar que o Sol se pusesse. Passava os Verões a ler dentro de casa e, quando se sentia enlouquecer por estar encafuada, corria atrás das sombras no quintal, com aquele chapelão asfixiante e mangas compridas coladas ao suor dos braços. Não ficaria mais escura do que já era, embora tivesse a impressão de que sim, por viver em Mallard. Uma pinta preta nas fotografias da escola, uma mancha escura nos bancos da missa dominical, uma sombra demorando-se na margem do rio enquanto as outras crianças nadavam. Tão negra que só se via ela. Uma mosca no leite, a contaminar tudo.

Na sala de aulas, sentava-se à frente de Lonnie Goudeau, o lançador da equipa de basebol, que passava o ano lectivo a atirar-lhe bolas de papel às costas. Ele tinha olhos cinzentos e cabelo castanho-arruivado a cair-lhe sobre a nuca, as faces salpicadas de sardas. Um rapaz lindo. Portanto, ela arrepiava-se quando o imaginava de olhos fixos nela, a arregaçar as mangas, os antebraços tão claros que se lhe viam os pêlos castanhos, e a flectir os músculos, o papel preso entre os dedos. Depois, sentia a pancadinha suave no pescoço, os rapazes atrás a rirem à socapa. Ela nunca se virava. Uma vez, o Sr. Yancy apanhou Lonnie em flagrante e mandou-o para a sala de castigo. À hora de saída, Jude passou por ele a apagar o quadro e ele sorriu-lhe, escarninho, deslizando o apagador pelo pó de giz. Ela reviveu esse momento durante todo o caminho até casa. Os lábios dele, apanhados entre uma careta e um sorriso.

Lonnie Goudeau foi a primeira pessoa a chamar-lhe Bebé de Alcatrão. Um mês depois de ela se ter mudado para Mallard, ele encontrou um exemplar do Compadre Coelho[7] no caixote da turma e, todo contente, apontou para a reluzente mancha preta na capa.

«Olhem, é a Jude», disse, e ela ficou tão surpreendida por ele saber o seu nome, que só percebeu que era alvo de troça quando a turma inteira se desatou a rir. Ele levou uma repreensão por perturbar o silêncio da hora da leitura e o livro foi rapidamente confiscado pelo professor de faces coradas, mas, nessa noite, a seguir ao jantar, Jude perguntou à mãe o que era um bebé de alcatrão. A mãe ficou calada, a mergulhar a louça suja na água da pia.

«É uma história antiga», disse ela. «Porquê?»

«Hoje, um rapaz chamou-me bebé de alcatrão.»

A mãe secou lentamente as mãos na toalha e, depois, ajoelhou-se à sua frente.

«Ele só te quer irritar», explicou. «Ignora-o. Ele vai acabar por se fartar e parar com isso.»

Mas não parou. Lonnie manchava-lhe as meias de lama e atirava os livros dela para o lixo. Abanava-lhe a perna da cadeira durante os exames, puxava-lhe as fitas do cabelo, cantava «Tutti-frutti, dark Judy»[8] assim que a via. No último dia do quinto ano, fê-la tropeçar nas escadas da escola e ela esfolou o joelho. À mesa da cozinha, a avó puxou-lhe a perna para o colo e limpou cuidadosamente o sangue com uma bola de algodão.

«Talvez ele goste de ti», sugeriu a avó. «Os rapazes são sempre muito maus com as meninas de que gostam.»

Jude tentou imaginar Lonnie a dar-lhe a mão, a carregar os livros dela no trajecto entre a escola e a casa, até a beijá-la, as suas compridas pestanas fazendo-lhe cócegas nas bochechas. Sentado ao seu lado no cinema, ou no cimo da roda-gigante na feira popular, envolvendo-a com o braço. Mas a única coisa que conseguia ver era Lonnie a empurrá-la para uma poça de lama ou a enfiar-lhe pastilha elástica no cabelo ou a chamar-lhe cabra burra, Lonnie a esmurrá-la até lhe romper o lábio e ela ficar com um olho todo inchado. Depois, lembrava-se do pai a bater com a porta, enquanto a sua mãe soluçava no chão, com o rosto enterrado na almofada do sofá. Uma vez, ele não se foi logo embora; puxou, ao invés, a cara de Desiree para a barriga e acariciou-lhe o cabelo. A mãe gemia, mas não se afastou, como se o toque dele a consolasse.

Era melhor imaginar Lonnie a bater-lhe. O resto, aquela parte de doçura, apavorava-a ainda mais.

Antes dos insultos e das piadas, antes das provocações, das meias enlameadas, das pancadas nas cadeiras, do banco onde ela almoçava sozinha, antes de tudo isso, houve a fase das perguntas. Como é que se chamava? De onde vinha e porque é que ali estava? No primeiro dia de aulas de Jude, Louisa Rubidoux debruçou-se sobre a carteira que partilhavam e perguntou-lhe quem era a senhora que a acompanhara.

«É a minha mãe», disse Jude. Não era óbvio? Levou-a à escola, de mão dada. Quem é que havia de ser?

«Mas não é mesmo tua mãe, pois não?», insistiu Louisa. «Vocês não são nada parecidas.»

Jude ficou calada e, depois, disse: «Sou parecida com o meu pai.»

«E onde é que ele está?»

Ela encolheu os ombros, apesar de saber. Em Washington, onde o tinham deixado. Sentia saudades dele, apesar de ainda ver a nódoa negra no pescoço da mãe, apesar de ainda se lembrar de todas as nódoas negras que vira no corpo da mãe ao longo do tempo, manchas escuras naquela estranha topografia. Uma vez, na piscina, ficara especada a olhar, quando a mãe, que trocava de roupa na cabina, se detivera a meio, ao ver uma nódoa negra esbatida na coxa. Desiree voltara a vestir-se e dissera-lhe que, afinal, preferia sentar-se à beira da piscina a vê-la nadar. Quando chegaram a casa, o pai cumprimentou a mãe com um beijo e Jude percebeu que, se tentasse, conseguia fingir que as nódoas negras tinham outra origem qualquer. A sua relação com um progenitor era, como que por magia, totalmente independente da sua relação com o outro. Portanto, quando pensava no pai, ele estava estendido ao seu lado no tapete, a folhear uma banda desenhada. Não estava a arrastar a mãe pelos cabelos até ao quarto. Não, isso era outro homem qualquer. E, depois de varrerem os cacos, limparem o sangue dos ladrilhos, depois de a mãe se fechar na casa de banho, com um saco de gelo na cara, o seu verdadeiro pai voltava, sorridente, e acariciava-lhe a bochecha.

«Porque é que não sou parecida contigo?», perguntou à mãe, nessa noite. Estava sentada no tapete puído à frente do sofá, enquanto a mãe lhe entrançava os cabelos, pelo que não lhe conseguia ver a cara, mas sentia-lhe as mãos.

«Não sei», respondeu a mãe, por fim.

«Tu és parecida com a avó.»

«Às vezes, calha assim, querida.»

«Quando é que voltamos para casa?», perguntou.

«O que é que te disse?», retorquiu a mãe. «Temos de cá ficar durante uns tempos. Agora, fica quieta e deixa-me acabar.»

Começava a perceber o que, em breve, confirmaria: não havia plano nenhum para regressar a Washington, nem sequer para sair dali, e a mãe mentia sempre que dava a entender o contrário. No dia seguinte, estava a almoçar sozinha quando Louisa a encurralou, ladeada por três raparigas beges.

«A gente não acredita em ti», anunciou Louisa. «Que ela é tua mãe. É bonita demais para ser tua mãe.»

«E não é», respondeu Jude. «A minha mãe verdadeira está noutro sítio.»

«Onde?»

«Não sei. Noutro sítio qualquer. Ainda não a encontrei.»

Estava a pensar em Stella: uma mulher igualmente muito pouco parecida com ela, mas que seria uma versão melhor da sua mãe. Stella não deixaria o seu pai furioso ao ponto de ele lhe bater. Não acordaria Jude a meio da noite, para a obrigar a apanhar um comboio rumo a uma terriola onde as outras crianças a atazanavam. Manteria a sua palavra. Stella não prometeria vezes sem conta, em vão, que iriam embora de Mallard.

«Tens de vigiar a tua mãe», avisou-a o pai, uma vez. «Ela ainda é como aquela gente.»

«Que gente?» Jude estava deitada no tapete ao lado dele, a vê-lo lançar uma bola para o tecto e apanhar umas peças do chão antes de a bola cair, as suas mãos grandes desfocando-se diante dos seus olhos.

«A família dela», redarguiu ele. «A tua mãe ainda tem um bocado daquela maneira de pensar. Ainda acha que é melhor do que nós.»

Jude não percebeu o que ele queria dizer ao certo, mas gostava de fazer parte de um «nós». As pessoas achavam que serem únicas as tornava especiais. Não, condenava-as à solidão. Especial era pertencer a um todo com outra pessoa.

Quando chegou ao secundário, os nomes feios já não a chocavam, mas a solidão sim. Uma pessoa nunca se habituava realmente à solidão; sempre que achava que já se habituara, afundava-se ainda mais nela. Almoçava sozinha, folheando livros de bolso baratos. Nunca recebia visitas ao fim-de-semana, nem convites para ir almoçar ao restaurante de Lou, nem telefonemas só para saber como estava. Depois das aulas, ia correr sozinha. Era a rapariga mais veloz da equipa de atletismo e, noutra equipa, noutra terra, poderia ter sido capitã. Mas, naquela equipa e naquela terra, ela fazia o aquecimento sozinha e sentava-se sozinha no autocarro da equipa e, depois de ganhar a medalha de ouro no campeonato do estado, ninguém lhe deu os parabéns a não ser o treinador Weaver.

Ainda assim, corria. Corria porque adorava, porque queria ser boa em alguma coisa, porque o seu pai também correra na Universidade do Ohio e, quando atava os sapatos de bicos, pensava nele. Por vezes, quando corria às voltas atrás do banco do basebol, sentia o olhar fixo de Lonnie Goudeau. Ela corria com um passo desengonçado, pouco elegante e irregular, um mau hábito que o treinador tentou em vão corrigir. Lonnie provavelmente achava que ela corria de maneira esquisita ou talvez gostasse simplesmente de se rir dela, da camisola e dos calções brancos em contraste com aquela pele negra. Ela nunca se sentia tão escura como quando corria e, ao mesmo tempo, nunca se sentia tão pouco negra, tão fosse o que fosse.

Corria com um par de sapatilhas douradas que implorara a Early num Natal. A mãe suspirara.

«Não preferias um vestido bonito?», perguntou. «Ou uns brincos novos?» Todos os anos, ela deslizava a caixa sobre o tapete como se nem lhe quisesse tocar. «Sapatilhas outra vez», dizia, aborrecida, enquanto Jude tirava o papel de seda. «Eu juro que não entendo como é que uma rapariga pode querer tantos pares de sapatilhas.»

Quando tinha onze anos, Early comprara-lhe o primeiro par de sapatilhas, umas brancas New Balance que encontrara em Chicago. No ano seguinte, ele foi fazer um trabalho ao Kansas, pelo que não voltou a casa no Natal, depois, no ano a seguir, regressou como se nunca se tivesse ausentado, trazendo um novo par e, por essa altura, já ela se habituara às idas e vindas dele, que pareciam tão regulares como as estações.

«Aquele homem andou aqui a farejar outra vez», dizia sempre a avó. Nunca tratava Early pelo nome, era sempre «aquele homem» ou, às vezes, só «ele». Não aprovava que a filha vivesse com um homem, embora Early nunca ficasse tempo suficiente para se dizer que viviam juntos, o que tanto podia ser bom como mau. Ainda assim, a cada «temporada Early», como Jude começara a rotulá-las, a mãe mudava. Primeiro, a casa transformava-se, com a mãe empoleirada em cadeiras, a tirar cortinas, a sacudir o pó de tapetes, a lavar janelas. Depois, as roupas: a mãe comprava um novo par de meias de nylon, terminava o vestido que começara a costurar meses antes, engraxava os sapatos até brilharem. A última parte e a mais embaraçosa: a mãe a arranjar-se ao espelho como uma rapariga vaidosa, puxando o cabelo comprido para cima de um ombro, depois para o outro, experimentando um novo champô com cheiro a morango. Early adorava o cabelo dela, por isso Desiree tratava-o com especial atenção. Uma vez, Jude vira-o aproximar-se da sua mãe pelas costas e enterrar a cara numa mão-cheia de cabelo. Jude não sabia quem queria ser naquele instante — se Early, se a sua mãe, a bela ou o observador — e sentiu um desejo tão grande, que se virou para não os ver.

A mãe nunca reconhecia o início de uma temporada Early, mas a avó Adele sabia. Também isso fazia parte da temporada Early: ela e a avó, aliadas relutantes, forjando uma aliança mais clara.

«Tantos homens», dizia a avó Adele, «tantos homens na vila e ela continua aqui atrás dele.»

No quarto da avó, Jude contornava a cama e ia buscar o frasco de gotas oftálmicas que o Dr. Brenner receitara, quando a avó se queixara de secura nos olhos. Todas as noites antes de se deitar, a avó pousava a cabeça no colo de Jude, com o cabelo grisalho espalhado como um leque, enquanto a neta depositava cuidadosamente uma gota em cada olho.

«Devias ter visto», dizia a avó. «A quantidade de rapazes que as adoravam.»

De vez em quando, ela ainda fazia isso, ainda falava sobre a mãe de Jude no plural, «elas». Jude nunca a corrigia. Deixava cair lentamente a gota, enquanto a avó a fitava, pestanejando.

Quando Desiree Vignes disse adeus à camioneta da filha, na rodoviária, esperou que a Greyhound desaparecesse ao dobrar da esquina para limpar as lágrimas. Não queria que a última coisa que a filha visse, se é que Jude olhara pela janela traseira, fosse a mãe tola, a chorar como se nunca mais voltasse a vê-la. Early deu-lhe um lenço e ela riu-se, enxugando os olhos.

«Eu estou bem, estou bem», disse ela, embora ninguém lhe tivesse perguntado nada e ela não estivesse bem. Depois de Early a deixar no restaurante de Lou, para o seu turno, Desiree percebeu, apertando o avental, que ia começar o dia da mesma maneira que começava todos os dias nos últimos dez anos, só que, dessa vez, não sabia quando voltaria a ver a filha.

Dez anos. Estava na sua terra natal há dez anos. Por vezes, olhava em redor da casa, abanando a cabeça, como se continuasse sem perceber como é que ali voltara. Como se estivesse no Feiticeiro de Oz, mas, em vez de lhe cair uma casa em cima, ela caíra pelo telhado e acordara, anos depois, espantada ao perceber que ainda lá estava. Quando decidira ficar, justificara-se com motivos práticos. No restaurante de Lou não ganhava o suficiente para viver noutro lugar qualquer. Não podia abandonar a mãe outra vez. Ainda tinha esperança de que Stella regressasse de moto próprio. E, mesmo que não o fizesse, Desiree sentia-se mais perto dela ali, vagueando entre as antigas coisas de Stella. A cadeira em que Stella se sentava à mesa, a boneca de palha de milho a que Stella chamara Jane. Em toda a casa, havia uma maçaneta ou um cobertor ou uma almofada do sofá que em tempos Stella tocara, deixando os vestígios invisíveis das suas impressões digitais.

Construíra uma espécie de vida ali, não construíra? Com a mãe e a filha e Early Jones, que partia constantemente, mas também regressava constantemente. Quando ele vinha de visita, Desiree sentia-se outra vez uma menina, os anos desprendiam-se dela como carne do osso. As chegadas dele afiguravam-se-lhe sempre um nadinha miraculosas. Uma vez, levava um bife frito com ovos a uma mesa e deparara com Early sentado ao fundo do balcão, a mordiscar um palito. De outra vez, trancou o restaurante e, ao virar-se, viu Early encostado à cabina telefónica do outro lado da rua. Ela estava exausta, mas riu-se ao vê-lo, tão inesperado como a súbita vinda da Primavera. Um dia havia geada, no dia seguinte, árvores em flor.

«Estava a pensar em ti», dizia ele, como se tivesse parado ali a caminho de casa, ao invés de ter feito o trajecto todo desde Charleston, acelerando pela noite dentro, de olhos cansados, para chegar mais depressa a ela. «Que contas de novo?»

Ela nunca tinha nada de novo para contar, claro; os seus dias fundiam-se uns nos outros, todos iguais, o que mais tarde ela acharia reconfortante. Nada de surpresas, nada de raivas súbitas, nenhum homem a abraçá-la num instante e a bater-lhe no instante seguinte. Agora, a vida era estável. Ela sabia o que cada dia ia trazer, excepto quando Early aparecia. Ele era a única coisa na sua vida para a qual ela não estava preparada. Nunca se demorava mais do que um dia ou dois e, a seguir, voltava a partir. Uma vez, convencera-a a dizer a Lou que estava doente para ele poder levá-la a pescar. Não apanharam nada, mas, a meio da tarde, ele beijou-a e, enfiando os dedos por baixo do vestido dela, acariciou-a enquanto flutuavam no lago espelhado. Foi a coisa mais excitante que lhe acontecera em meses.

Quando Early vinha de visita, a mãe dela ficava taciturna e não abria a boca, lançando olhares carrancudos à porta, quando Desiree saía para ir ter com ele à estalagem.

«Não sei porque é que andas metida com aquele homem», dizia. «Não consegue ficar quieto num sítio, arranjar um trabalho decente.»

«Ele trabalha», retorquia Desiree.

«Um trabalho honesto!», contrapunha a mãe. «Provavelmente tem todo o tipo de mulheres a correr atrás dele…»

«Isso é lá com ele, não me diz respeito.»

Ela não perguntava a Early com quem passava as noites fora de Mallard. Ele também não lhe perguntava nada. Sempre que ele se ia embora, Desiree tinha saudades, mas perguntava-se se a sua relação funcionaria precisamente por ele partir. Early não era homem de assentar e talvez ela também não fosse mulher de assentar. Sempre que pensava em casamento, sentia-se encurralada com Sam num apartamento asfixiante, preparando-se, durante cada momento de acalmia, para os inevitáveis ataques de fúria. Estar com Early, ao invés, era fácil. Ele não tinha uma faceta obscura. Não discutiam e, se por acaso ela se aborrecia com ele, servia-lhe de consolo saber que, daí a pouco, Early voltaria a fazer-se à estrada. Não podia encurralá-la, porque ele próprio se recusava a deixar-se encurralar. Ela tivera de o convencer a ficar em sua casa quando vinha de visita.

«Hum, não sei, Desiree», dissera ele, esfregando o queixo devagar.

«Não te estou a pedir um anel de casamento», explicara ela. «Na verdade, não te estou a pedir nada. É só que não faz sentido eu estar sempre a caminhar para a estalagem. E acho que, para a Jude, seria melhor se…» Mas fizera uma pausa. Não queria que Early alguma vez pensasse que esperava que ele fosse um pai para a sua filha. Ele não devia nada a nenhuma das duas. Dever não fazia parte do seu acordo tácito.

«E a tua mãe?», perguntara ele.

«Não te preocupes com ela. Eu trato disso. Só acho que… olha, não faz sentido, é só isso. Somos adultos. Estou farta de fazer as coisas às escondidas.»

«Então, está bem.»

Quando ele voltou à vila, foi ter com ela a casa de Adele. Deteve-se no alpendre, desapertando cuidadosamente as botas sujas, e andou pela casa como se fosse uma loja luxuosa e tivesse medo de partir alguma coisa. Levara, gesto absurdo, flores para a mesa e ela enchera uma jarra com água, sentindo que estavam a brincar aos casais, Early comportando-se como um daqueles maridos que se viam na televisão, anunciando da entrada «querida, cheguei». Também trouxera prendas das suas viagens: uma nova carteira para ela, um frasco de perfume para a mãe, que se recusou a agradecer-lhe, e um livro para Jude. Ela explicara à filha que Early ficaria em casa delas.

«O tempo todo?», perguntou Jude.

«Não, o tempo todo não», disse Desiree. «Só de vez em quando. Quando estiver em Mallard.»

A filha fez uma pausa e disse:

«Talvez ele não devesse vir cá. Talvez nós é que devêssemos ir com ele.»

«Não podemos, querida. Ele nem sequer tem uma casa a sério. É por isso que tem de cá ficar. Mas pode vir visitar-nos e trazer-te coisas bonitas, não queres?»

Ela sabia o que se passava na cabeça da filha. A única coisa que Jude queria era ir-se embora dali. Queria abandonar Mallard desde o primeiro dia em que ali chegara e Desiree, envergonhada, não parara de lhe prometer que assim fariam. Não podia prometer a Jude que as outras crianças seriam simpáticas ou que almoçariam com ela, ou que a convidariam para brincar, por isso, quando chegava mais uma festa de aniversário sem que Jude recebesse um convite, Desiree dizia à filha que nada disso teria importância quando se fossem embora da vila. Partir era a única coisa que podia oferecer. Mas, vendo Early e Jude a lerem juntos no tapete, pensou que talvez ficar não fosse a pior coisa para Jude. Pelo menos ali tinha família. Era amada. À noite, Desiree abraçava a filha e contava-lhe histórias da sua própria infância. A princípio, dizia: Tenho uma irmã chamada Stella, depois, tens uma tia e, a seguir, era uma vez uma menina chamada Stella que vivia aqui.

Durante anos, Early procurou Stella Vignes até ela deixar de ser Stella Vignes.

Fora Stella Vignes em Nova Orleães e Boston, depois o rasto esfriava; ele deduziu que ela se casara, mas não conseguiu encontrar uma certidão de casamento em nome de Stella Vignes em nenhum dos sítios onde sabia que ela estivera. Portanto, casara-se noutro lugar qualquer. Depreendeu que ainda se chamaria Stella. Era demasiado difícil uma pessoa habituar-se a um nome novo. Só um trapaceiro profissional conseguia assumir uma identidade totalmente nova e Stella era tudo, menos uma profissional. Para quê ter tanto cuidado, se não estava à espera que alguém a procurasse? Fora tão descuidada, que ele encontrara o apartamento dela em Boston.

«Oh, ela era amorosa», disse a senhoria, quando ele telefonou. «Sossegada. Trabalhava num sítio qualquer na baixa. Acho que era numa loja. Depois, pegou nas suas coisas e foi-se embora. Mas era amorosa. Nunca me deu problemas.»

Ele imaginava Stella atrás de um balcão de perfumaria, a pulverizar as senhoras que passavam com um aspersor rosa, ou a embrulhar bonecas no Natal. Sonhara uma ou duas vezes que a perseguia nuns armazéns Sears and Roebuck, Stella escondendo-se atrás de expositores de vestidos e prateleiras de sapatos.

«Tinha namorado?», perguntou ele.

A senhoria ficou calada depois disso e respondeu que tinha de desligar. Um homem de cor a fazer perguntas sobre uma mulher branca… ela já falara demais. Mas não o suficiente para Early, que nem sequer desencantara uma morada para reenvio de correspondência. Stella deixava migalhas, o que era quase pior do que nada. Quase, porque ele não tinha vontade nenhuma de encontrar Stella.

Houvera uma altura, no princípio — pelo menos, era isso que dizia para si próprio —, em que quisera mesmo encontrá-la. Agora, olhando para trás, já não tinha tanta certeza. Talvez tivesse sido sempre a vontade de Desiree a puxá-lo. Ele quisera agradar-lhe, foi por isso que se oferecera à partida para caçar Stella. Queria encontrar Stella, porque Desiree queria encontrá-la; esses desejos sobrepuseram-se num só, que o manteve no encalce dela durante anos. Mas Stella não queria ser encontrada e esse desejo parecia ainda mais forte. Desiree puxava e Stella puxava com mais força ainda. Early vira-se apanhado entre elas.

O tempo, entretanto, escapara-se-lhe dos bolsos enquanto ele estava distraído. Numa manhã, saiu da cama de Desiree Vignes e encontrou um pêlo grisalho na barba. Passou dez minutos à frente do espelho da casa de banho, em busca de outros, espantado, pela primeira vez, com o seu próprio rosto. Desconfiava de que estava cada vez mais parecido com o pai, o que o desestabilizava tanto como se estivesse a transformar-se num desconhecido. Depois, sentiu uns braços à volta da cintura, Desiree de encontro às suas costas.

— Já chega de te admirares no espelho? — disse ela.

— Encontrei um pêlo grisalho — explicou ele. — Olha. Aqui.

Ela riu-se de repente. Passados tantos anos, ele ainda se deliciava com aquele riso, a sua explosão aturdia-o.

— Bom, não me digas que estavas convencido que ias ser jovem e giro para sempre — ripostou ela, afastando-o para poder lavar os dentes.

Ele encostou-se à ombreira da porta, a observá-la. A maior parte das manhãs, ela abria o restaurante de Lou às quatro, por isso já não estava em casa quando ele acordava. Mas, verdade fosse dita, a maior parte das manhãs ele acordava noutro lugar qualquer que não naquela cama. Deitava-se no banco de trás do seu carro ou estendia-se no colchão manchado de um motel decadente, pensando no quarto de Desiree. As paredes de madeira escura, a cómoda cheia de fotografias, a colcha de calicó azul. O quarto da infância dela, a cama que em tempos partilhara com Stella. Early aprendera a dormir no lado de Stella e, por vezes, quando faziam amor, sentia-se envergonhado, como se Stella estivesse empoleirada na cómoda, a ver.

Desiree molhou o rosto. Ele queria puxá-la de volta para a cama. Nunca se saciava dela. Nunca podia amá-la como queria. Plenamente. Um amor pleno assustá-la-ia. Sempre que regressava a Mallard, pensava em trazer um anel. A mãe dela, pelo menos, respeitá-lo-ia finalmente; talvez até começasse a considerá-lo como um filho. Mas Desiree não queria voltar a casar-se.

«Já passei por isso tudo», dizia ela, com o mesmo cansaço de um soldado a falar sobre a guerra.

De certa forma, tratara-se de uma guerra, uma guerra que ela nunca poderia ganhar e à qual só esperava conseguir sobreviver. Contara-lhe as maneiras como Sam a magoara: enfiara-lhe a cara contra a porta, arrastara-a pelos cabelos no chão da casa de banho, batera-lhe na boca com as costas da mão, ficando manchado de batom e sangue. Ela tocara na boca de Early ao de leve e ele beijara-lhe as pontas dos dedos, tentando reconciliar aquela voz suave que ele ouvira ao telefone, dez anos atrás, com o homem que ela descrevia. Desiree não sabia onde Sam vivia agora, mas Early, claro está, seguira-lhe o rasto. Morava em Norfolk, com a sua nova mulher e três rapazes. Exactamente aquilo de que o mundo não precisava, três rapazes que se tornariam homens rancorosos. Mas ele nunca contara isso a Desiree. De que serviria?

— A Jude ligou ontem à noite — disse Desiree.

— Sim? Está-se a dar bem?

— Sabes como ela é. Nunca me diz grande coisa. Mas acho que está bem. Gosta de lá estar. Manda-te um olá.

Ele resmungou. Duvidava de que, a quilómetros de distância, ela pensasse sequer nele. Ele só lhe lembrava o pai ausente.

Desiree deu uma palmada na barriga dele.

— Dás uma vista de olhos ao lava-louças, que está a pingar, amor?

Pelo menos, ela pedia com jeitinho. Não era como Adele, que mal olhava para ele à mesa. Dizia «a cadeira está desconjuntada» quando passava por ele antes de ir para o trabalho. Tratava-o como o epítome de um faz-tudo. E talvez Early o fosse. Era o homem de uma casa onde praticamente não vivia. Era pai de uma filha que nem sequer gostava dele.

Na cozinha, encolheu-se todo debaixo do lava-louças, com as costas a doer. Estava a pagar todas as asneiras que fizera, as noites maldormidas no carro, as horas que passara escondido num espaço qualquer mínimo. Já não era novo, não era o jovem que sentia uma descarga de energia sempre que se fazia à estrada para um novo trabalho. Agora, era só cansaço, inclusive tédio. Caçara todo o tipo de homem que existia. E continuava sem encontrar as pessoas que procurara durante mais tempo.

Nas melhores noites, instalava-se na cama de Desiree Vignes, massajando-lhe os pés. Via-a escovar o cabelo, ouvia-a cantarolar baixinho. Despia as calças e ela enfiava-se na cama de camisa de noite e, mesmo assim, ele tinha a sensação de que eram demasiadas camadas — na verdade, deitarem-se vestidos era uma mentira que contavam a si próprios —, porque, assim que ela apagava a luz, os boxers já lhe estavam pelos tornozelos e a camisa de noite dela puxada para a cintura. Tentavam não fazer barulho, mas, passado um instante, já não queriam saber se alguém os ouvia, sendo tão raras aquelas noites. Na estrada, ele tentava recordar-se de como se adormecia sozinho.

— Torna-se cada vez mais difícil — disse ele a Desiree, uma noite. — Com o passar do tempo. Às vezes as pessoas põem o pé em falso, mas…

— Eu sei — interrompeu ela. A sua pele parecia prateada ao luar. Ele virou-se para ela, tocando-lhe na anca. Era tão esguia, por vezes ele esquecia-se desse pormenor, quanto mais longa era a ausência.

— Pode ser que ela volte um dia — disse ele. — Com saudades de casa. Talvez com a idade perceba que nada disto vale a pena.

Esticou a mão e tocou nos caracóis sedosos de Desiree. Sentia-se tão ávido dela e, ao mesmo tempo, tão preenchido, que era uma sensação quase insuportável. Mas ela virou-se para o outro lado.

— É tarde demais — disse. — Mesmo que ela volte. Já ficou para trás.

Em Los Angeles, nunca ninguém ouvira falar de Mallard.

Durante todo o seu primeiro ano na universidade, Jude deleitara-se dizendo às pessoas que a sua terra natal não vinha em mapa nenhum, embora poucas acreditassem nela a princípio, sobretudo Reese Carter, que insistia que todas as povoações tinham de existir num mapa qualquer. Ele era mais céptico do que os californianos, que facilmente acreditavam que uma terriola na Luisiana pudesse ser irrelevante ao ponto de não merecer a atenção de um cartógrafo. Mas Reese também era sulista. Crescera em El Dorado, no Arkansas, um lugar que parecia ainda mais fantasioso do que a terra dela e, no entanto, constava dos mapas. Por isso, numa tarde de Abril, ela arrastou-o para a biblioteca e folheou um atlas gigante. Tinham acabado de apanhar uma chuvada, o cabelo molhado de Reese caía-lhe para a testa em caracóis soltos. Ela teve vontade de lhe afastar o cabelo, mas, em vez disso, apontou para um mapa da Luisiana, abaixo do ponto onde os rios Atchafalaya e Red se encontravam.

— Vês? — disse ela. — Mallard não existe.

— Fogo. Tens razão.

Debruçou-se sobre o ombro dela, semicerrando os olhos. Tinham-se conhecido numa festa do atletismo para a qual Erika, a colega de quarto dela, a arrastara na Noite das Bruxas. Erika, uma sprinter corpulenta de Brooklyn, não parava de se queixar de Los Angeles, do ar poluído, do trânsito, da falta de comboios. As queixas dela faziam com que Jude tivesse noção de que se sentia profundamente grata. Mas, como a gratidão enfatizava a profundidade da carência dos outros, tentava disfarçá-la. No dia em que Jude se mudara para a universidade, Erika olhara para as duas malas e perguntara: «E o resto das tuas coisas?» A sua mesa estava atulhada de discos, havia fotografias de amigos coladas nas paredes, o armário transbordava de blusas brilhantes. Jude, arrumando silenciosamente tudo o que possuía, respondeu que deixara o resto das suas coisas numa arrecadação. Ficou a gostar de Erika quando se deu conta de que ela nunca mais trouxe o assunto à baila.

Na Noite das Bruxas, Erika envergou um vestido roxo-cintilante e uma tiara, enquanto Jude, preguiçosa, se contentou com um par de orelhas de gato. Na casa de banho, sentou-se na tampa da sanita enquanto Erika se debruçava sobre ela, aplicando-lhe pó azul-eléctrico nas pálpebras.

«Olha que podias ficar bem gira, se fizesses um esforço de nada», comentou Erika.

Mas o azul-eléctrico fazia-a parecer mais escura, por isso Jude tocou nas pálpebras durante o trajecto todo. Mais tarde, Reese dir-lhe-ia que a primeira coisa em que reparara fora na sombra azul dos olhos. Ela entrara no apartamento apinhado atrás de Erika, encolhendo-se para passar entre bruxas, múmias e fantasmas. Enquanto Erika pescava umas cervejas na banheira de gelo, Jude escondeu-se na entrada de uma divisão, avassalada. Nunca tinha sido convidada para uma festa de desconhecidos e estava tão nervosa que, a princípio, nem reparou num cowboy sentado no sofá. Era castanho-dourado e bonito, com a barba por fazer no queixo. Usava um colete de couro cru por cima de uma camisa de xadrez azul e calças de ganga desbotadas, um lenço vermelho atado ao pescoço. Ela sentiu-o a observá-la e, como não sabia o que fazer, apresentou-se: «Olá, sou a Jude.»

Deu um puxão à orla da saia, constrangida, mas o cowboy sorriu.

«Olá, Jude. Sou o Reese. Toma uma cerveja.»

Ela gostou da maneira como ele se exprimiu, mais pareceu uma ordem do que uma oferta, mas abanou a cabeça.

«Não bebo cerveja», disse ela. «Quero dizer, não gosto do sabor. E faz-me sentir lenta. Sou corredora.»

Estava a falar demais, mas ele inclinou um pouco a cabeça.

«De onde és?», perguntou Reese.

«Luisiana.»

«De onde ao certo?»

«De uma vila, nenhum lugar que conheças.»

«Como é que sabes o que eu conheço ou deixo de conhecer?»

«Vai por mim», retorquiu ela. «Tenho a certeza.»

Ele riu-se e inclinou a cerveja na direcção dela.

«De certeza que não queres um gole?»

Talvez fosse o sotaque dele, sulista como o dela. Talvez a sua beleza física. Talvez porque, numa sala cheia de gente, ele escolhera falar com ela. Jude deu um passo para ele, depois outro e outro, até ficar parada entre as pernas de Reese. Então, um grupo ruidoso de rapazes entrou aos empurrões na sala, com um barril de cerveja, e Reese esticou o braço e puxou-a, para ela não ser abalroada. A mão dele tocou-lhe na parte de trás do joelho e, durante semanas, sempre que ela pensava naquela festa, só se lembrava dos dedos dele demorando-se na orla da sua saia.

Na biblioteca húmida, ela folheou o atlas, passando da Luisiana para os Estados Unidos e para o mundo.

— Quando eu era miúda — disse ela —, com uns quatro ou cinco anos, achava que este mapa era só o do nosso lado do mundo. Como se houvesse outro lado do mundo num mapa diferente. O meu pai achou uma estupidez.

Ele levara-a a uma biblioteca municipal e, quando girara o globo, ela percebera que o pai tinha razão. Mas, observando Reese a deslizar o dedo ao longo do mapa, uma parte dela ainda esperava que o pai estivesse, de alguma forma, enganado, que ainda houvesse mais mundo à espera de ser descoberto.