8

Os novos vizinhos eram Reginald e Loretta Walker e, quando se espalhou a notícia de que o sargento Tommy Taylor em pessoa se ia mudar para Sycamore Way, até os mais beligerantes vacilaram nos seus protestos. O sargento Taylor era, claro está, uma amada personagem de Frisk, a série policial mais concorrida da televisão. Ele fazia de austero parceiro do herói espalha-brasas, sempre a chagá-lo com burocracia e protocolo. «Preenche o formulário!» era a sua frase predilecta e, durante meses, quando Blake o avistava do outro lado da rua, gritava-lha em jeito de saudação. Reg Walker, cortando a relva ou apanhando o jornal da entrada, sobressaltava-se sempre antes de exibir o seu sorriso de marca, encolhendo um nadinha os ombros, como se achasse que era a coisa menos ofensiva que um homem branco lhe podia berrar do outro lado da estrada.

Blake adorava aquela brincadeira, como se fosse uma piada só deles. Não conseguia ver a paciência com que Reg Walker a tolerava. Mas Stella ficava sempre constrangida e apressava-o a entrar em casa. Praticamente não via televisão, tirando o noticiário, e não se interessava minimamente por séries policiais, pelo que, quando soubera dos Walkers, se borrifara totalmente para o facto de Reg entrar numa série qualquer de que Blake gostava. Talvez os maridos se deixassem conquistar por isso; já que tinham de viver ao lado de um negro, ao menos que fosse famoso. E ainda por cima de confiança, uma personagem que nunca viam no ecrã sem a farda. Imagine-se a surpresa deles quando viram Reg pela primeira vez: alto, musculoso, com o cabelo curto encarapinhado. Usava calças verdes de tecido escocês com camisas de seda justas no peito amplo. Um relógio de ouro reluzia-lhe no pulso, reflectindo o sol quando ele entrava no seu cintilante Cadillac preto.

«Espalhafatoso», chamava-lhe Marge Hawthorne, no mesmo tom dramático com que diria «perigoso».

Na sexta-feira à noite, Stella viu os Walkers enfiarem-se no carro, Reg de fato preto, Loretta envolta num vestido azul-real. A caminho de uma festa, possivelmente. Convivendo com estrelas de cinema numa mansão de Hollywood Hills, acotovelando-se com jogadores da bola numa discoteca em Sunset Boulevard. Por um instante, Stella sentiu-se estúpida por desconfiar deles. Bob Hawthorne era dentista. Tom Pearson tinha um stand de automóveis Lincoln. Talvez, aos olhos dos Walkers, eles é que parecessem os vizinhos pouco dignos de ali viverem. Olhando para si própria, já de pijama, só podia concordar com eles.

— E então? — perguntou Cath, ofegante, postando-se ao seu lado na reunião seguinte dos encarregados de educação. — Como é que eles são?

Stella encolheu os ombros.

— Não sei. Só os vi uma ou duas vezes.

— Ouvi dizer que o marido é simpático. Mas a mulher dele é outra história.

— Como assim?

— Olha, é arrogante como sei lá o quê. A Barb disse-me que ela quer inscrever a filha no nosso colégio, no próximo ano. É de loucos, se queres que te diga. Há escolas perfeitamente boas em toda a cidade, com muitas crianças de cor. Têm serviço de carrinhas e tudo.

Loretta Walker não parecia o tipo de pessoa capaz de armar confusão, mas que sabia Stella sobre ela? Mantinha-se à distância, limitava-se a espreitar por entre os estores. Reg Walker saía de manhã cedo, no seu Cadillac, para as filmagens, e Loretta, envolta num robe verde sedoso, dizia-lhe adeus do alpendre. Loretta regressava do supermercado à segunda-feira, sempre à segunda-feira, e descarregava sozinha a bagageira. Uma vez, parou um Buick castanho-claro na entrada e dele saíram três senhoras de cor, com garrafas de vinho e bolos. Loretta desceu a rampa de acesso à casa para as cumprimentar, rindo-se, lançando a cabeça para trás. Um sorriso grande que fez Stella sorrir também. Quando fora a última vez que vira alguém sorrir assim?

Por entre os estores, observava os Walkers como se as suas vidas fossem um programa de televisão. Mas nunca vira nada de alarmante, até ao dia em que apanhou a filha a brincar às bonecas na rua com a menina dos Walkers. Nem teve tempo de pensar. Movida por impulso, atravessou a rua intempestivamente e agarrou no braço da filha, deixando as duas meninas boquiabertas ao arrastar Kennedy para dentro de casa. Tremia, enquanto fechava a porta atrás de si com gestos atabalhoados e a filha choramingava por ter deixado a boneca na rua. Tinha noção de que exagerara, não brincara ela própria com meninas brancas quando tinha a idade de Kennedy? Ninguém se importava quando se era criança. As gémeas costumavam ir com a mãe para o trabalho e brincavam com a menina branca que lá vivia, até que, uma tarde, a mãe da menina a arrancara, de repente, do grupo. Stella disse à filha a mesma coisa que ouvira essa mãe dizer:

— Porque não brincamos com pretos — lançou, e talvez tenha sido o seu tom áspero, ou o facto de nunca ter usado essa palavra com a filha, mas o assunto ficou encerrado.

Ou, pelo menos, assim pensou, até ouvir a campainha, depois do jantar, e ver Loretta Walker no seu tapete da entrada, com a boneca de Kennedy na mão. Por um instante, sob a luz suave do alpendre, com a boneca encostada à barriga, Loretta quase parecia, ela própria, uma menina. Enfiou a boneca nas mãos de Stella, virou costas e atravessou a rua.

*

Durante três semanas, Stella evitou Loretta Walker.

Já não era por curiosidade que a espiava; agora, espreitava por entre os estores antes de ir buscar o correio, só para ter a certeza de que não se cruzava com Loretta. Ia ao supermercado à terça-feira, nunca à segunda, com pavor de dar de caras com ela no corredor do leite. Até ver, houvera só uma colisão acidental, no domingo de manhã, quando os dois casais saíram para a igreja ao mesmo tempo. Os maridos tinham sido cordiais, mas as mulheres nem se falaram, ocupadas ambas a ajudar as filhas a entrar nos carros.

— Ela não é nada simpática — resmungou Blake, fazendo marcha-atrás para sair da entrada, e Stella não disse nada, puxando as luvas.

Na verdade, não tinha motivos para ficar embaraçada. Comportara-se exactamente como Cath Johansen ou Marge Hawthorne teriam feito. Apesar disso, não contou nada a Blake. E se ele se interrogasse sobre o porquê da sua reacção exacerbada? Ou pensasse que Stella se comportara como a ralé dos pântanos da Luisiana, tal qual a imagem que a mãe dele retivera da nora? Blake acreditava num país moderado. Sempre dissera que o que mais queria, vendo nos noticiários os polícias a baterem em manifestantes, era que toda a gente se desse bem. Portanto, ele ficaria embaraçado, como se ela já não o estivesse. É que, apesar de saber que não fizera nada de mal, Stella ficava maldisposta de cada vez que se lembrava de Loretta no seu alpendre, com a boneca nas mãos. Teria preferido que Loretta a insultasse. Que lhe chamasse retrógrada, preconceituosa tacanha. Mas ela não o faria. Era decente, porque tinha de o ser, o que deixava Stella ainda mais envergonhada.

— Sabias que a tal da Loretta mandou uma carta ao colégio? — perguntou-lhe Cath, num domingo, encaixando-se ao seu lado no banco da igreja.

— Uma carta? — repetiu Stella. Estava demasiado cansada para acompanhar as insinuações ofegantes de Cath. Nem ali na igreja conseguia evitar Loretta Walker.

— Uma carta legal. Escrita por um advogado importante, a dizer que, se não aceitarem a filha em Setembro, ela move um processo contra o colégio. Já imaginaste uma coisa dessas? Um processo na justiça só por causa de uma criança? A sério, há pessoas que adoram dar nas vistas…

— Não é essa a ideia que tenho dela — contrapôs Stella.

— Como é que sabes? — perguntou Cath. Cruzou os braços no peito. Stella ergueu as mãos, rendendo-se.

— Tens razão. Não sei.

Em Junho, canalizou a sua culpa para um bolo de limão com cobertura de baunilha. A ideia veio-lhe de repente; antes que pudesse pensar melhor, já estava a tirar um pacote de farinha do armário e a abrir o frigorífico em busca de ovos. Enlouqueceria, se continuasse a esconder-se na sua própria casa, espreitando pela janela para então sair à rua. Estava cansada de sentir o estômago a contrair-se, sempre que imaginava a filha dos Walkers abandonada no passeio junto das bonecas caídas, fitando-a com aqueles seus olhos grandes. Tinha de pedir desculpa. Só se sentiria melhor depois de o fazer. Prepararia um bolo para lhes levar como prenda de boa vizinhança. Pelo menos, então, poderia ser cordial para a fulana. Correcta. Hospitalidade não era o mesmo que amizade e, se alguém perguntasse, diria que tinha sido educada para ser hospitaleira. Nem mais, nem menos. Um bolo de limão pela sua paz de espírito pareceu-lhe um bom negócio.

À tarde, soltou uma grande exalação antes de atravessar a rua, com o bolo equilibrado numa base de vidro. O Buick castanho-claro estava estacionado na entrada dos Walkers. Óptimo, Loretta tinha visitas. Assim, era mais fácil entregar o bolo, pedir desculpa e ir-se embora.

Loretta abriu a porta de vestido verde-brilhante e um lenço dourado ao pescoço. Stella sentiu-se imediatamente constrangida, com o seu banal vestido azul, segurando no bolo que desmoronava.

— Olá, senhora Sanders — cumprimentou Loretta. Encostou-se à ombreira da porta com um copo de vinho branco na mão.

— Olá — disse Stella. — Vinha só…

— Não quer entrar?

Stella imobilizou-se, apanhada de surpresa. Da sala, chegou-lhe uma gargalhada e ela sentiu uma pontada intensa. Quando fora a última vez que convivera e se rira com amigas?

— Oh, não, é melhor não — respondeu. — Já vi que tem visitas…

— Que disparate — atalhou Loretta. — Não faz sentido conversarmos aqui no alpendre.

Stella deteve-se na entrada, surpreendida pela decoração palaciana: o chão da sala adornado com um tapete de pêlo branco, um candeeiro de pé encimado por um abajur dourado, o jarrão de mosaicos na cornija da lareira. A sua casa era simples, um sinal de bom gosto. Só a classe baixa vivia assim, com os móveis cobertos de dourado, bugigangas em todos os cantos. No comprido sofá de pele, três mulheres de cor bebiam vinho ao som de Aretha Franklin.

— Minhas queridas, apresento-vos a senhora Sanders — anunciou Loretta. — Vive na casa em frente.

— Senhora Sanders — disse uma das mulheres. — Já ouvimos falar muito de si.

Stella corou, sabendo, pelos sorrisos das mulheres, exactamente o que tinham ouvido. Porque é que aceitara entrar? Não, porque é que decidira sequer levar o bolo? Por que motivo não era como o resto dos vizinhos, que mantinham a distância? Mas agora era demasiado tarde. Loretta conduziu-a para a cozinha, em cuja bancada Stella pousou o bolo.

— Quer beber alguma coisa, senhora Sanders? — perguntou Loretta.

— Trate-me por Stella — disse. — E é melhor não, vim só… enfim, vim só dar-vos as boas-vindas ao bairro. E em relação ao que aconteceu…

Esperava que Loretta desse um passo também, poupando-lhe a vergonha de repetir o que acontecera. Mas a mulher arqueou uma sobrancelha, esticando o braço para pegar num copo vazio.

— De certeza que não quer beber nada?

— Queria só pedir desculpa — disse Stella. — Não sei o que é que me passou pela cabeça. Não costumo ser assim.

— Assim como?

Loretta percebeu exactamente o que ela queria dizer, mas estava a divertir-se, metendo-se com ela. Stella corou outra vez.

— O que eu quero dizer é que não costumo… — Fez uma pausa. — É que isto tudo é novidade para mim.

Loretta fitou-a por um segundo e, depois, bebeu um gole de vinho.

— Acha que eu queria mudar-me para cá? — disse ela. — O Reg é que meteu na cabeça a ideia e depois não…

Deixou a frase em suspenso, mas Stella conseguiu adivinhar o resto. Quando se fizera passar por branca pela primeira vez, parecera-lhe tão fácil que nem percebia porque é que nunca o havia feito antes. Quase sentiu raiva dos pais por lhe terem negado essa oportunidade. Se eles se tivessem feito passar por brancos, se a tivessem criado como branca, tudo teria sido diferente. Nenhum homem branco teria arrastado o pai para fora do alpendre. Não teria havido cestos de roupa suja espalhados pela sala. Ela podia ter estudado, terminado o liceu com as melhores notas da turma. Talvez tivesse ido para uma universidade como Yale e conhecido Blake como devia ser. Talvez pudesse ter sido o tipo de rapariga que a mãe dele queria para nora. Podia ter tido tudo na vida e ainda o pai, a mãe e Desiree.

No início, a transição parecera tão simples que Stella não entendia por que razão os pais não a tinham feito. Mas era jovem, na altura. Não percebia que era necessário muito tempo para nos tornarmos outra pessoa, nem que era muito solitário vivermos num mundo que não nos foi destinado.

— Talvez as meninas possam brincar juntas, um dia destes — disse Stella. — Há um jardinzinho simpático a uma rua daqui.

— Sim, talvez. — O sorriso de Loretta demorou-se um segundo a mais, como se quisesse acrescentar alguma coisa. E, durante esse segundo, Stella perguntou-se se ela teria desvendado o seu segredo. Quase desejou que sim. Assustava-a, aquela sua necessidade tão forte de pertencer a alguém.

— Tem graça — disse Loretta, por fim.

— O quê?

— Não sabia o que esperar quando nos mudámos para cá — explicou. — Mas nunca imaginei que uma mulher branca me aparecesse na cozinha com o bolo mais torto que já vi.

Loretta Walker não sabia como fora parar a Los Angeles. E foi assim que o disse, com um suspiro exausto, puxando mais uma fumaça do cigarro. Sentou-se no banco do jardim, a ver as meninas andarem de baloiço. O Verão ainda ia no começo, mas a manhã já estava tão quente, que Stella enxugou a testa húmida com um lenço. Empurrava Kennedy no baloiço, quando a menina de cor aparecera a correr no jardim, com Loretta atrás. A menina olhou, desconfiada, para Stella, dando a mão à mãe, e por um instante, Stella pensou em ir-se embora. Em vez disso, inspirou fundo e ficou.

Loretta contemplava, taciturna, o céu sem nuvens.

— Tanto sol — disse. — Não é natural. É como estar num filme a tempo inteiro.

Ela nascera em St. Louis, mas conhecera Reg em Howard. Ele era aluno de Teatro, obcecado por August Wilson e Tennessee Williams; ela estudava História, esperava ser professora, um dia. Nenhum deles imaginara que Reg se tornaria famoso por interpretar um polícia chato. Quando ensaiava longos solilóquios, impressionando Loretta com a sua elocução, nunca pensara que, anos depois, a sua deixa mais conhecida seria «Preenche o formulário!».

— Gostou? — perguntou Stella. — De Howard? É uma escola para pessoas de cor, não é? — Como se não tivesse guardado todos os panfletos da universidade que a Sr.ª Belton lhe dera, abrindo tantas vezes o de Howard que se rasgara no vinco. Aqueles alunos de cor sentados no relvado, a folhearem livros. Parecera-lhe um sonho.

— É — respondeu Loretta. — Gostei muito.

— Sempre quis ir para a universidade — comentou Stella.

— Ainda pode ir.

Stella riu-se, apontando para o bairro.

— Porque é que haveria de ir?

— Não sei. Porque lhe apetece?

Loretta falava como se fosse tão simples, mas Blake rir-se-ia dela. Diria que era um desperdício de tempo e dinheiro. Além disso, Stella nem sequer terminara o secundário.

— É demasiado tarde para isso — disse, por fim.

— O que é que gosta de estudar?

— Costumava gostar de matemática.

Foi a vez de Loretta se rir.

— Bem, deve ser um crânio — disse ela. — Ninguém gosta de matemática só por diversão.

Mas ela adorava a simplicidade da matemática, um número que aumentava ou diminuía dependendo da operação realizada. Nada de surpresas, só uma sucessão de passos lógicos. Loretta inclinou-se para a frente, observando as meninas a brincar. Não parecia nada a mulher arrogante que inspirava tantos mexericos, a que se dizia querer entrar à força na Academia Brentwood. Nem sequer aparentava ter vontade de viver em Los Angeles. No fim do curso, planeara regressar ao Missouri, eventualmente fazer o mestrado. Depois, apaixonara-se por Reg e deixara-se arrebatar pelos sonhos dele.

— Então, porque é que se mudaram para cá? — perguntou Stella. — Para o condomínio, quero eu dizer.

Loretta arqueou uma sobrancelha.

— Porque é que a Stella o fez?

— As escolas são boas. É um bairro agradável, não acha? Limpo. Seguro.

Deu as respostas que devia dar, embora não tivesse a certeza delas. Mudara-se para Los Angeles por causa do emprego de Blake e, por vezes, sentia que não tivera voto na matéria. Outras vezes, lembrava-se de que a ideia de Los Angeles lhe parecera empolgante, quilómetros a distanciá-la da sua vida de antes. Era uma tolice fingir que não escolhera aquela cidade. Ela não era um rebocadorzinho ao sabor da corrente. Criara-se a si própria. Desde a manhã em que saíra do edifício da Maison Blanche como branca, tinha decidido tudo.

— Então, porque é que eu não haveria de querer as mesmas coisas? — perguntou Loretta.

— Sim, mas não preferia… quero dizer, deve ser mais fácil, não?, se…

— Vivesse entre pessoas como eu? — Loretta acendeu mais um cigarro, o seu rosto brilhando como bronze.

— Sim, isso mesmo — disse Stella. — Não entendo porque é que alguém quereria fazer isto. Há muitos bairros óptimos para gente de cor e as pessoas podem ser tão cruéis.

— As pessoas vão detestar-me de qualquer maneira — respondeu Loretta. — Portanto, mais vale ser detestada numa casa grande, cheia de coisas bonitas.

Sorriu, puxando mais uma fumaça do cigarro, e aquele sorriso matreiro lembrou-lhe Desiree. Stella sentiu-se uma adolescente outra vez, a fumar às escondidas no alpendre enquanto a mãe dormia. Estendeu a mão para o cigarro de Loretta, debruçando-se sobre a ponta incandescente.

Havia os Johansens, claro, em Magnolia Way: Dale trabalhava na baixa, no sector financeiro, Cath era secretária da associação de pais da Academia Brentwood, apesar de quase nunca tirar apontamentos para a acta durante as reuniões, era inacreditável a quantidade de vezes que Stella olhara para o bloco de notas e o vira em branco. Depois, os Whites, em Juniper: Percy trabalhava como contabilista num dos estúdios de cinema, ela não se lembrava qual, Blake sabia de certeza. Também era presidente da associação, mas só se candidatara, porque a mulher não parava de o incitar a ser mais ambicioso. Lynn era de Oklahoma, uma família do petróleo, e só Deus sabia como é que ela se casara com Percy White. Percebia-se quando se olhava para ele, mas digamos que Percy não era o tipo de homem que ela tinha em mente quando sonhara unir-se a um homem que trabalhasse em Hollywood. Depois, os Hawthornes, em Maple: Bob tinha os dentes mais brancos que ela já vira na vida.

— Acho que sei quem é — disse Loretta. — E são grandes, não são? Como os dentes do Mister Edwhite2[11]?

Stella riu-se, quase deixando cair o novelo de lã azul. Na outra ponta do sofá de pele, Loretta sorriu dengosa, como fazia sempre que sabia ter dito uma coisa engraçada. O que acontecia com frequência, agora que já iam no segundo copo de vinho.

— Vai conhecê-los a todos em breve — disse Stella. — Até são pessoas simpáticas.

— Para si — contrapôs Loretta. — Sabe que é a única vizinha que pôs o pé dentro de minha casa.

Stella sabia, mas tentava não pensar muito nisso. Observou o novelo diante de si, a agulha de croché de Loretta descrevendo círculos no ar. Quando telefonara a Loretta, antes, e lhe perguntara se as meninas podiam brincar juntas outra vez, pensara que se encontrariam no jardim. Não esperava que Loretta a convidasse para sua casa, muito menos que ela própria aceitasse. Agora, as meninas brincavam no jardim dos Walkers — chegavam-lhes os gritinhos delas pela porta de rede — e Stella estava tocada pelo vinho, a ouvir Loretta falar sobre a sensação de ver a carreira de Reg finalmente ganhar asas. Embora ele achasse Frisk estupidificante, estava grato por fazer de polícia, em vez dos habituais papéis de rufia que rouba a carteira a uma senhora qualquer durante o genérico. Loretta assistia por vezes às gravações, mas achava tudo tão incrivelmente entediante, que acabava por se sentar a um canto, a fazer croché. Stella ficava espantada por Loretta parecer tão profundamente indiferente a todos os aspectos fabulosos da sua vida. Sempre que Loretta lhe fazia uma pergunta, Stella ficava constrangida, ciente do pouco que tinha para lhe contar.

— Já lhe disse — respondia — que não tenho nada de interessante.

— Oh, não acredito — dizia Loretta. — Aposto que há todo o tipo de coisas fascinantes a rodopiarem dentro dessa sua cabeça.

— Garanto-lhe que não há. Sou do mais banal que existe.

Fizera uma coisa interessante na sua vida inteira, mas passaria o resto dos seus dias a escondê-la. Quando Loretta a interrogava sobre a infância, ela esquivava-se sempre. Não podia partilhar nenhuma recordação da sua juventude sem, ao mesmo tempo, conjurar Desiree; todas as suas recordações estavam rachadas ao meio, a sua irmã extirpada de todas elas, o que se lhe afigurava agora tão solitário, Stella a nadar sozinha no rio, a passear pelos canaviais, a fugir, ofegante, de um ganso que a perseguia pela estrada fora. Um passado solitário, um presente solitário. Até agora. Inesperadamente, Loretta Walker tornara-se a única pessoa com quem ela conseguia falar.

Durante todo o Verão, esperou pelos telefonemas de Loretta. Podia estar entretida a ver a filha pintar aguarelas no jardim quando o telefone tocava e, num abrir e fechar de olhos, arrumava as tintas e perscrutava cuidadosamente a rua, antes de se aventurar com Kennedy. Ou podia ir a caminho da biblioteca municipal para a hora do conto, quando Loretta ligava, e, de repente, os livros que já devia ter devolvido tornavam-se menos importantes do que atravessar a estrada para a moradia em frente. Quando regressavam a casa, pedia à filha para não dizer ao pai que tinha brincado com a vizinha.

— Porquê? — perguntou Kennedy. Stella ajoelhou-se à sua frente, desapertando-lhe os sapatos.

— Porque o papá prefere que fiquemos em casa. Mas, se não lhe disseres nada, podemos continuar a visitar as vizinhas. Gostavas disso, não gostavas?

A filha pôs-lhe as mãos nos ombros, como se a repreendesse severamente, mas estava só a apoiar-se nela enquanto descalçava as sapatilhas.

— Está bem — disse ela, com tanta simplicidade que até doeu.

Como tudo na vida, mentir à filha tornou-se mais fácil com o tempo. E estava a educar Kennedy para mentir também, embora a menina nunca tomasse consciência disso. Era branca; nunca se consideraria outra coisa, senão branca. Se algum dia descobrisse a verdade, odiaria a mãe por a ter enganado. A ideia perpassava-lhe o espírito sempre que Loretta telefonava. Mas, de todas as vezes, ganhava coragem, dava a mão à filha e atravessava a rua.

À quarta-feira, o Buick castanho-claro parava na entrada dos Walkers logo a seguir ao almoço e Cath Johansen ligava a Stella para coscuvilhar.

«Eu sabia que atrás deles viriam outros», dizia. Estava convencida de que as mulheres de cor vinham inspeccionar o bairro, para planearem a sua mudança mais dia, menos dia. Stella colava o telefone à bochecha, espreitando por entre os estores da cozinha, enquanto as amigas de Loretta saíam do carro. A mais alta era Belinda Cooper, o marido dela compunha bandas sonoras para a Warner Bros. Mary Butler, de óculos de gato, era casada com um pediatra. Na faculdade, tinha sido colega de casa de Eunice Woods, cujo marido acabara de vender um guião à MGM. Stella sabia os pormenores básicos que Loretta lhe contara sobre as três mulheres, mas nunca pensara conhecê-las, até uma quarta-feira à tarde em que Loretta lhe telefonou a dizer que Mary estava doente. Gostaria ela de ser a quarta jogadora?

— Não sou lá grande jogadora de sueca — disse Stella. Era péssima às cartas ou a qualquer outro jogo que dependesse de sorte.

— Oh, querida, não tem mal — respondeu Loretta. — Às vezes, nem sequer chegamos a pegar no baralho.

Stella ficou a saber que jogar sueca era praticamente só um pretexto para as mulheres fazerem o que lhes apetecia, ou seja, beber vinho e trocar mexericos. Belinda Cooper, a meio do seu segundo copo de riesling, não parava de falar sobre um actor de cinema que tinha um caso muito pouco discreto com uma das secretárias da Warner, uma rapariguinha bonita, mas atrevida como tudo, que anotava as mensagens da mulher dele e, depois, se esgueirava para a rulote para lhe levar muito mais do que o recado de uma chamada.

— Estas raparigas estão cada vez mais atrevidas — comentou Loretta. Puxou mais uma fumaça do seu cigarro, sem sequer tocar nas cartas. — Sabem que, no outro dia, o Reg e eu fomos ao Carl’s e vimos a Mary-Anne…

— Como é que ela está?

— Grávida. Outra vez.

— Credo!

— E sabem o que ela tinha a dizer? Euny, é a tua vez, querida.

— A Mary-Anne nunca gostou de mim — disse Eunice. — Lembram-se daquela vez no casamento da Thelma?

Todas as conversas eram assim, descreviam voltas e voltas que Stella não conseguia acompanhar. Não se esperava que ela compreendesse os comentários descontextualizados, nem que captasse as histórias de fundo da lista de personagens que elas introduziam no diálogo. No fundo, nem sequer que estivesse presente. Mas ficou contente só por ali estar, sossegada, a mexer nas suas cartas, escutando-as. Se Belinda e Eunice se importaram com a sua presença, não o disseram, mas falavam contornando-a, sem nunca se dirigirem directamente a ela, como que dizendo a Loretta que a responsabilidade de a incluir na conversa era dela. Ainda assim, a tarde foi agradável, até as meninas entrarem a correr, cheias de fome. Stella admirava-se sempre com a naturalidade de Loretta na presença de Cindy. A menina colava-se a ela, roçando-se como um gato, e Loretta, sem sequer interromper a conversa, pegava-lhe ao colo. Parecia saber o que Cindy queria antes mesmo de ela lho pedir. Quando as meninas correram para o andar de cima, Eunice deu uma passa no cigarro e disse:

— Não entendo por que razão estás tão empenhada em fazê-lo.

— Em fazer o quê? — perguntou Loretta.

— Tu sabes o quê. Eu sei que a tua vida agora é esta…

— Oh, por favor…

— Mas a tua filha vai ser infeliz e todas temos consciência disso. Não vale a pena, só para marcares posição.

— Não é para marcar posição — corrigiu Loretta. — O colégio fica ao fundo da rua e a Cindy é tão inteligente como as outras crianças todas…

— Nós sabemos, querida — atalhou Belinda. — Não é uma questão de ter razão. Podes ter razão até todos morrermos de tédio, mas trata-se da tua única filha e ela só tem direito a uma vida.

— Acham que eu não sei? — ripostou Loretta. Os seus olhos faiscaram e, então, caindo em si, soltou uma gargalhada pouco convicta, apagando o cigarro. — Ainda bem que nem toda a gente pensa como vocês as duas.

— Perguntemos à tua nova amiga — sugeriu Eunice. — Que pensa disto tudo, senhora Sanders?

Stella cravou os olhos na mesa, sentindo o pescoço a arder.

— Oh, não sei — respondeu.

— De certeza que tem uma opinião.

Eunice sorriu para Stella, como um cão de caça com um coelho nos dentes. Quanto mais a presa tentasse libertar-se, mais aquelas mandíbulas se ferrariam nela.

— Eu não o faria — disse, por fim. — Os outros pais vão infernizar-lhe a vida, vão querer fazer dela um exemplo. Nem imaginam como eles falam nas vossas costas…

— E aposto que a senhora fala logo em defesa dela — disse Eunice.

— Chega — atalhou Loretta baixinho, mas não era preciso. O ambiente já azedara. Belinda e Eunice foram-se embora antes de terminarem sequer o jogo. Stella lavou os copos de vinho, enquanto as meninas arrumavam os brinquedos no andar de cima. Já era tarde, quase quatro horas. Blake chegaria daí a pouco. Ao seu lado, Loretta secava os copos, em silêncio, com um pano axadrezado.

— Desculpa — disse Stella. Porquê exactamente, não sabia. Desculpa por ter ido lá a casa, por ter estragado o jogo, por ser tal qual a pessoa que Eunice Woods a acusava de ser. Não defendia Loretta, nem sequer perante a tola da Cath Johansen. Forçava a sua própria filha a mentir, com medo de que o marido descobrisse que convivia com a vizinha.

Loretta fitou-a com um sorriso estranho.

— Achas que quero a tua culpa? — disse. — A tua culpa não me ajuda nada, querida. Se pedir desculpa te faz sentir melhor com a tua consciência, podes voltar para casa.

Stella pousou o copo molhado na bancada, secou as mãos na toalha. Então, era isso que Loretta realmente pensava dela: uma mulher branca que se aproximava dela para aliviar o sentimento de culpa. E não era verdade? Sentia-se efectivamente culpada, mas conviver com Loretta só agravava esse sentimento. A sua vida real parecia-lhe ainda mais falsa, por comparação com a dela. E, no entanto, não queria afastar-se, nem sequer naquele instante, estando Loretta irritada consigo. Loretta esticou a mão para o copo molhado e deixou-o cair da bancada, o vidro estilhaçou-se-lhe aos pés. Virou os olhos para o tecto, subitamente exausta. Era demasiado jovem para parecer tão cansada, mas era natural que o estivesse, de tanto lutar. Stella nunca lutava. Cedia sempre. Nesse sentido, era uma cobarde.

Loretta baixou-se para apanhar os cacos, mas, sem pensar, Stella espetou o braço e disse:

— Não te mexas, querida, ainda te cortas. — E ajoelhou-se na tijoleira, limpando a porcaria que ela fizera.

Primeiro, Martin Luther King Jr., em Memphis, depois Bobby Kennedy, na baixa de Los Angeles. De repente, parecia que não se podia abrir um jornal sem ver o corpo ensanguentado de um homem importante. Stella começou a desligar as notícias quando a filha entrava aos pulos na cozinha, para tomar o pequeno-almoço. Loretta disse que, uns meses atrás, Cindy lhe perguntara o que significava assassínio político. Contou-lhe a verdade, claro, que um assassínio político é quando alguém mata uma pessoa para marcar uma posição.

O que, de certo modo, era verdade, pensou Stella, mas só se aplicava aos homens importantes. Os homens importantes tornavam-se mártires, os que não o eram não passavam de vítimas. Os homens importantes tinham direito a funerais transmitidos pela televisão e a dias de luto nacional. As suas mortes inspiravam a criação de arte e a destruição de cidades. Mas os homens sem importância eram assassinados precisamente para deixar bem claro essa sua falta de importância — nem sequer eram homens — e o mundo seguia em frente.

Ela ainda sonhava, às vezes, que alguém lhe invadia a casa. Em mais do que uma ocasião, acordara Blake para que ele fosse verificar as portas e janelas. «Já te disse que vivemos num bairro seguro», resmungava ele, voltando para debaixo das cobertas. Mas não se sentira ela segura, anos atrás, escondida numa casinha branca rodeada de árvores? Agora dormia com um taco de basebol atrás da cabeceira. «Que tencionas fazer com isso, Miss Músculos?», perguntava Blake, beliscando-lhe o bíceps pequenino. Mas, quando ele viajava em trabalho, ela nunca conseguia adormecer sem tocar no cabo gasto, só para ter a certeza de que ali estava.

*

— Nunca falas da tua família — comentou Loretta.

No jardim das traseiras, estendeu-se numa espreguiçadeira, com o rosto meio escondido pelos óculos escuros. Vestia um fato-de-banho roxo e tinha as pernas salpicadas de água da piscina. Stella espetou o pescoço, vendo as meninas a chapinharem. Daí a duas semanas, começava a escola, Kennedy voltaria para a Academia Brentwood, Cindy iria para o Colégio São Francisco, em Santa Monica. Uma boa escola, a meia hora dali, disse Loretta, e Stella ficou aliviada. Teve vontade de responder a Loretta que era melhor assim — não havia nada de mal em ser discreto e tentar sobreviver —, mas faria com que Loretta sentisse ainda mais que cedera. Então, Loretta queixou-se de que os sogros vinham visitá-los de Chicago: tencionavam ficar dez dias, dez, e Reg, claro está, dissera que sim, porque era incapaz de lhes dizer que não, e é óbvio que ela teria de os entreter enquanto ele estava em filmagens.

— E tu? — perguntou Loretta. — O teu marido dá-se com os teus pais?

A pergunta directa apanhou Stella de surpresa; estava distraída, já a pensar no que faria nos dez dias em que não veria Loretta.

— Os meus pais morreram há muito tempo — disse. — Eles…

Deixou a voz esmorecer, incapaz de terminar a frase. Loretta ficou aflita.

— Oh, querida, desculpa. Estou para aqui a fazer-te lembrar de coisas tristes…

— Não tem mal — disse Stella. — Já foi há muitos anos.

— Eras novinha?

— O suficiente. Foi um acidente. Ninguém teve culpa. Às vezes, acontecem coisas más na vida, é só isso.

— E não tens irmãos? — perguntou Loretta.

— Irmãos, não. — Stella fez uma pausa e, então, disse: — Tive uma irmã gémea. Fazes-me lembrar um bocadinho ela.

Não planeara dizer nada disso e, assim que o fez, arrependeu-se. Mas Loretta riu-se.

— Como assim? — perguntou.

— Oh, não sei. Em pequenas coisas. Ela era divertida. Arrojada. O oposto de mim, na verdade. — Sentiu lágrimas nos olhos, apressou-se a enxugá-las. — Desculpa, não sei que bicho me mordeu…

— Não peças desculpa — disse Loretta. — Ficaste sem a família toda! Se há motivo válido para chorar, é esse. E uma irmã, ainda por cima. Deus do céu.

— Ainda penso nela — contou Stella. — Não sabia que ainda pensaria nela assim…

— É claro que pensas. Perder uma irmã gémea. Deve ser como perder metade de nós próprios.

Por vezes, imaginava-se a pegar no telefone e a ligar a Desiree, só para lhe ouvir a voz. Mas não sabia como contactá-la e, além disso, que lhe diria? Tinham passado demasiados anos. De que servia olhar para trás? Estava cansada de justificar uma escolha que fizera. Não queria ser arrastada de volta para uma vida que já não era sua.

— Gémeas — disse Loretta, como se a palavra fosse mágica. — Sabes o que a minha mãe costumava dizer? Conseguia sempre adivinhar se uma mulher ia ter gémeos, lendo-lhe a palma da mão.

Foi a vez de Stella se rir.

— O quê?

— Sim, nunca te leram a sina? Olha, eu mostro-te como se faz. — De repente, Loretta pegou na mão de Stella. — Vês esta linha? É a linha dos filhos. Se se dividir, significa que vais ter gémeos. Mas tu só tens um. E esta aqui é a linha do amor. Vês como a tua é funda e a direito? Significa que vais ficar casada durante muito tempo. E esta é a linha da vida. Vê como se bifurca?

— O que é que isso significa?

— Significa que a tua vida foi interrompida.

Loretta sorriu e, uma vez mais, Stella perguntou-se se ela saberia. Talvez, durante aquele tempo todo, Loretta estivesse só a alinhar no seu jogo. A ideia era humilhante, mas estranhamente libertadora. Talvez Stella pudesse contar-lhe a história toda e talvez Loretta compreendesse. Que não quisera trair ninguém, mas precisara de ser uma nova pessoa. A vida era sua, porque é que não podia decidir se queria outra diferente? Mas Loretta riu-se. Estava a brincar. Não era possível ler a vida de uma pessoa na palma da mão, muito menos uma vida tão complicada como a de Stella. Ainda assim, Stella gostava de ali estar, com Loretta deslizando uma unha ao longo da palma da sua mão.

— Está certo — disse Stella. — E que mais te dizem as minhas linhas?