SETE DE ABRIL DE 1928

Através da cerca, por entre os intervalos das pétalas encaracoladas, eu via-os a dar tacadas. Foram até onde estava a bandeira e eu segui-os pela cerca fora. O Luster andava à cata na relva, perto da árvore das flores. Tiraram a bandeira e deram uma tacada. Depois voltaram a pôr a bandeira no lugar e dirigiram-se para o planalto; um dava tacadas e o outro dava tacadas. Depois continuaram e eu segui-os pela cerca fora. O Luster afastou-se da árvore das flores e continuámos pela cerca fora e eles pararam e nós parámos e eu espreitei pelos intervalos da cerca enquanto o Luster andava à cata na relva.

– Aqui, caddie. – E davam tacadas. Foram-se embora pelo prado. Eu fiquei agarrado à cerca a vê-los irem-se embora.

– Vejam só – disse o Luster. – É mesmo muito engraçado; trinta e três anos e a portá-se dessa maneira. E eu que me dei ao trabalho de ir à cidade pa lhe comprá o bolo. Vamos lá pará ca choradeira. Então, não me ajuda a procurá os vinte e cinco cêntimos para eu podê ir ao espetáculo logo à noite.

Eles agora iam a dar poucas tacadas pelo prado fora. Voltei para trás ao longo da cerca até onde estava a bandeira, a adejar sobre a relva cintilante e as árvores.

– Venha – disse o Luster. – Aí já procurámos. Tão depressa não aparecem mais. Vamos té lá abaixo ò riacho a vê s’achamos os vinte e cinco cêntimos antes qu’as negras os encontrem.

Era vermelha e adejava sobre o prado. Nisto, um pássaro desceu em diagonal e empoleirou-se nela. O Luster atirou. A bandeira adejava sobre a relva cintilante e as árvores. Eu estava agarrado à cerca.

– Vamos lá pará ca choradeira – disse o Luster. – Não os posso obrigá a vir, s’eles não querem vir, ou posso. Se não se cala, a ’nha avó não lhe faz a festa de anos. Se não se cala, já sabe o qu’é qu’eu lhe faço. Como-lhe o bolo todo. E as velas tamém. As trinta e três velas todas duma vez. Vá, vamos té lá baixo ò riacho. Tenho d’encontrá os meus vinte e cinco cêntimos. Pode sê qu’a gente encontre alguma bola. Lá tão. Lá tão eles. Ali a diante. Tá a vê. – Abeirou-se da cerca e estendeu o braço. – Tá a vê-los. Já não voltam mais pr’aqui. Vá, venha daí.

Fomos pela cerca fora até ao muro do jardim, onde as nossas sombras se encontraram. A minha sombra chegava mais alto que a do Luster. Fomos até ao sítio onde a cerca estava partida e passámos para o outro lado.

– ’Pere aí – disse o Luster. – Lá ficou outra vez preso no prego. Será que não é capaz de passá por aqui sem ficá preso nesse prego.

A Caddy soltou-me e passámos de gatas para o outro lado. O Tio Maury disse para não deixarmos que ninguém nos visse e por isso é melhor irmos agachados, disse a Caddy. Agacha-te, Benjy. Assim, estás a ver. Agachámo-nos e atravessámos o jardim, com as flores a roçarem e a restolharem contra nós. O chão era duro. Saltámos a cerca no sítio onde os porcos grunhiam e fossavam. Se calhar estão tristes porque um deles foi hoje para a matança, disse a Caddy. O chão era duro, todo revolto e aos altos e baixos.

Mete as mãos nos bolsos, disse a Caddy. Senão, ficas com elas congeladas. E tu não queres ficar com as mãos congeladas no Natal, pois não.

– Tá muito frio lá fora – disse o Versh. – Nem apetece saí de casa.

– Que se passa – disse a Mãe.

– Ele qué ir lá pa fora – disse o Versh.

– Deixa-o ir – disse o Tio Maury.

– Está muito frio – disse a Mãe. – É melhor ficar em casa. Vá, Benjamin, vamos lá parar com isso.

O frio não lhe faz mal nenhum – disse o Tio Maury.

– Olha, Benjamin – disse a Mãe –, se não te portas bem, vais para a cozinha.

– Mas a ’nha mãe diz pa não o deixarmos ir hoje pá cozinha – disse o Versh. – Diz que tem as comidas todas pa fazê.

– Deixa-o ir, Caroline – disse o Tio Maury. – Ainda ficas doente de tanto te preocupares com ele.

– Eu sei – disse a Mãe. – Às vezes penso que é castigo.

– Eu sei, eu sei – disse o Tio Maury. – Mas não te podes deixar ir abaixo. Olha, vou fazer-te um toddy1.

– Isso ainda me vai pôr mais nervosa – disse a Mãe. – Sabes bem que vai.

– Vai é dar-te forças – disse o Tio Maury. – Agasalha-o bem, rapaz, e leva-o a dar uma volta.

O Tio Maury continuou a falar. O Versh continuou a falar.

– Cala-te, por favor – disse a Mãe. – Não podemos andar mais depressa. Não quero que depois fiques doente.

O Versh calçou-me as galochas e vestiu-me o casacão. Pegámos no meu boné e saímos. O Tio Maury estava na casa de jantar a arrumar a garrafa no aparador.

– Deixa-o andar lá por fora uma meia hora, rapaz – disse o Tio Maury. – Mas não o deixes sair do quintal.

– Si, sinhô. – disse o Versh. – Nós não o deixamos sair daqui.

Fomos lá para fora. O sol estava frio e brilhante.

– Pa onde vai – disse o Versh. – Não tá a pensá ir té à cidade, poi não. – Passámos por cima de um monte de folhas secas, restolhantes. O portão estava frio. – É melhor deixá-se tá cas mãos nos bolsos – disse o Versh. – Fica co elas enregeladas se mexê nesse portão, veja lá o que faz. Porque não espera por elas dentro de casa. – Meteu-me as mãos nos bolsos. Ouvia-o pisar as folhas. Até sentia o cheiro do frio. O portão estava frio.

– Olhe, são nozes. Iuupi. Trepe lá à árvore. Olhe um esquilo, Benjy.

Eu não sentia o portão, mas sentia o cheiro cristalino do frio.

– É melhor voltá a metê as mãos nos bolsos.

Primeiro a Caddy vinha a andar. Depois começou a correr, com a mochila às costas, a dar a dar.

– Olá, Benjy – disse a Caddy. Abriu o portão, entrou e agachou-se. A Caddy cheirava como as folhas. – Vieste ter comigo – disse ela. – Vieste esperar a Caddy. Porque o deixaste ficar com as mãos tão geladas, Versh.

– Eu bem lhe disse qu’as metesse nos bolsos – disse o Versh. – Mas ele quis ficá agarrado ao raio do portão.

– Vieste esperar a Caddy – disse ela, esfregando-me as mãos. – O que foi. O que é que estás a tentar dizer à Caddy. – A Caddy cheirava como as árvores e como quando ela diz que estivemos a dormir.

Não sei porque tá p’aí a chorá, disse o Luster. Pode vê-las outra vez quando chegarmos ao riacho. Olhe. Pegue. É uma erva-do-diabo. Deu-me a flor. Saltámos a cerca para o lado de dentro.

– O que foi – disse a Caddy. – Julgaste que era Natal quando eu chegasse da escola. Foi isso que julgaste. O dia de Natal é só depois de amanhã. O Pai Natal, Benjy. O Pai Natal. Vá, toca a dar uma corrida até casa, para nos irmos aquecer. – Deu-me a mão e desatámos a correr por cima das folhas secas, restolhantes. Galgámos os degraus e fugimos ao frio brilhante lá de fora, para entrarmos no frio sombrio cá de dentro. O Tio Maury estava a arrumar a garrafa no aparador. Chamou a Caddy. A Caddy disse,

– Leva-o para o lume, Versh. Vá, vai com o Versh – disse ela. – Eu já lá vou ter.

Fomos para junto do fogão. A Mãe disse,

– Ele tem frio, Versh.

– Nã sinhô – disse o Versh.

– Tira-lhe o casacão e as galochas – disse a Mãe. – Quantas vezes tenho de te dizer para não o trazeres cá para dentro com as galochas calçadas.

– Sissiô – disse o Versh. – Agora fique queto. – Tirou-me as galochas e desabotoou-me o casacão. A Caddy disse,

– Espera aí, Versh. Podemos sair outra vez, Mãe. Queria que ele viesse comigo.

– É melhor deixá-lo ficar – disse o Tio Maury. – Hoje já andou muito tempo lá fora.

– Acho que é melhor ficarem os dois em casa – disse a Mãe. – A Dilsey diz que ainda vai arrefecer mais.

– Oh, Mãe – disse a Caddy.

– Tolices – disse o Tio Maury. – Ela passou o dia todo na escola. Precisa de apanhar ar. Vá, põe-te a andar, Candace.

– Deixe-o vir, Mãe – disse a Caddy. – Por favor. Ele vai ficar a chorar.

– Então para que falaste nisso à frente dele – disse a Mãe. – Porque vieste para aqui. Para lhe dares um pretexto para me arreliar outra vez. Hoje já andaste lá por fora tempo suficiente. Acho que o melhor é sentares-te aqui a brincar com ele.

– Deixa-os ir, Caroline – disse o Tio Maury. – Um bocadinho de frio não lhes faz mal nenhum. Lembra-te de que não te podes cansar.

– Eu sei – disse a Mãe. – Ninguém sabe como eu detesto o Natal. Ninguém. Não sou uma dessas mulheres que aguentam tudo. Bem gostava de ser mais forte. Pelo Jason e pelas crianças.

– Deves fazer o melhor que podes e não deixares que eles te preocupem tanto – disse o Tio Maury. – Vá, toca a andar, vocês dois. Mas não se demorem. Se não, a vossa mãe fica preocupada.

– Sim, senhor – disse a Caddy. – Anda, Benjy. Vamos sair outra vez. – Abotoou-me o casaco e dirigimo-nos para a porta.

– Vais levar esse menino lá para fora sem as galochas – disse a Mãe. – Queres que ele fique doente, com a casa cheia de gente.

– Esqueci-me – disse a Caddy. – Julguei que ainda as tinha calçadas.

Voltámos para trás. – Tens de tomar tento no que fazes – disse a Mãe. Deixe-se estar queto     disse o Versh. E calçou-me as galochas. – Qualquer dia desapareço e vais ter tu de pensar por ele.     Agora, ponha-se a andá     disse o Versh. – Vem dar um beijo à tua mãe, Benjamin.

A Caddy levou-me até à cadeira da Mãe e a Mãe agarrou-me a cara com as mãos e apertou-me contra o peito.

– Meu pobre menino – disse ela. Largou-me. – Tu e o Versh tomem cuidado com ele, estás a ouvir, querida.

– Sim, senhora – disse a Caddy. Saímos. A Caddy disse,

– Tu não precisas de vir, Versh. Eu tomo conta dele.

– Ainda bem – disse o Versh. – Com este frio tamém não m’apetecia nada ir lá para fora. – Fomos até à porta e parámos na entrada e a Caddy ajoelhou-se e abraçou-me e encostou a cara dela à minha. Tinha-a brilhante e fria. Cheirava como as árvores.

– Tu não és um pobre menino. Não és, pois não. Tu tens a tua Caddy. Tens a tua Caddy, não tens.

Veja lá se para com tanta caramunha e choradeira, disse o Luster. Não tem vergonha de fazê todo esse chinfrim. Passámos pela cocheira, onde estava a caleche. Tinha uma roda nova.

– Vá, suba e fique queto té a sua mãe chegá – disse a Dilsey. Ela gostava de me levar na caleche. O T. P. estava a segurar nas rédeas. – Juro que não percebo porqu’é qu’o Jason não compra uma sege nova – disse a Dilsey. – Esta geringonça ainda um dia se desfaz com vocês cá dentro. Olha-me pa estas rodas.

A Mãe saiu e puxou o véu para o rosto. Trazia um ramo de flores na mão.

– Onde está o Roskus – disse ela.

– Hoje o Roskus não pode mexê os braços – disse a Dilsey. – Mas o T. P. dá conta do recado.

– Tenho medo – disse a Mãe. – Parece-me que não é nada do outro mundo pedir que um de vocês me sirva de cocheiro uma vez por semana. Deus sabe que não é pedir muito.

– Sabe tão bem como eu, Miss Ca’line, que o Roskus está com uma crise de reumatismo muito má e não pode fazê mais qu’o necessário – disse a Dilsey. – Vá, entre lá. O T. P. conduz tão bem como o Roskus.

– Tenho medo – disse a Mãe. – E com este menino.

A Dilsey subiu os degraus. – Chamá a isto um menino... – disse ela e agarrou no braço da Mãe. – Um homem tão grande como o T. P. Vá lá, se é que qué vir.

– Tenho medo – disse a Mãe. Desceram os degraus e a Dilsey ajudou a Mãe a entrar. – Talvez assim fosse melhor para todos – disse a Mãe.

– Não tem vergonha de dizê uma coisa dessas – disse a Dilsey. – Não sabe qu’é preciso mais qu’um negro de dezoito anos pa pô a Queenie à desfilada. Ela é mais velha do qu’ele e o Benjy juntos. E não te ponhas a atazaná a Queenie, ’tás a ouvi, T. P. Se não conduzes a contento de Miss Ca’line, mando o Roskus dar-te uma surra. Pa isso ele tem força.

– Sissiô – disse o T. P.

– Vai acontecer alguma coisa, eu sei – disse a Mãe. – Pronto, Benjamin.

– Dê-lhe uma flor – disse a Dilsey. – É isso qu’ele qué. – E estendeu a mão para as flores.

– Não, não – disse a Mãe. – Vais espalhá-las todas.

– Deixe-se tá a segurá-las – disse a Dilsey. – Eu tiro uma pa ele. – Deu-me a flor e a mão dela foi-se embora.

– É melhor partirem já, antes qu’a Quentin vos veja e queira ir tamém – disse a Dilsey.

– Onde está ela – disse a Mãe.

– Está em casa a brincá co Luster – disse a Dilsey. – Vá, T. P. Agora guia essa sege como o Roskus t’ensinou.

– Sissiô – disse T. P. – Toc’andá, Queenie.

– A Quentin – disse a Mãe. – Não a deixes

– Claro que não – disse a Dilsey.

A caleche ia aos solavancos pelo caminho empedrado abaixo.

– Tenho medo de ir e deixar a Quentin – disse a Mãe. – O melhor é não ir, T. P. – Passámos o portão e a sege deixou de dar saltos. O T. P. chicoteou a Queenie.

– Calma, T. P. – disse a Mãe.

– Tenho d’a espevitá – disse o T. P. – É pà mantê acordada té voltá pò estábulo.

– Volta para trás – disse a Mãe. – Tenho medo de ir e deixar a Quentin.

– Aqui não posso – disse o T. P. Mas mais adiante a estrada alargou.

– E aqui, também não podes – disse a Mãe.

– Tá bem – disse o T. P. Começámos a dar a volta.

– Devagar, T. P. – disse a Mãe, agarrando-me com força.

– Então. Eu tenho de dá a volta – disse o T. P. – Aí, Queenie. – Parámos.

– Assim, ainda nos voltamos – disse a Mãe.

– Então o que qué qu’eu faça – disse o T. P.

– Tenho medo que dês a volta – disse a Mãe.

– Toc’andá, Queenie – disse o T. P. – E lá continuámos.

– Tenho a certeza de que a Dilsey vai deixar acontecer alguma coisa à Quentin enquanto eu estiver fora – disse a Mãe. – Temos de voltar depressa para casa.

– Vamos, Queenie – disse o T. P. E chicoteou a Queenie.

– Calma, T. P. – disse a Mãe, agarrando-me com toda a força. Eu ouvia os cascos da Queenie e, dum lado e doutro da estrada, via coisas luminosas a deslizarem e as sombras delas a ondularem de través sobre o lombo da Queenie. Continuavam a passar, brilhantes como o aro das rodas. Nisto, de um dos lados, as coisas pararam junto do grande poste branco onde estava o soldado. Mas do outro lado continuaram a deslizar sem parar, só que um pouco mais devagar.

– O que é que quer – disse o Jason. Tinha as mãos nos bolsos e um lápis na orelha.

– Vamos ao cemitério – disse a Mãe.

– Está bem – disse o Jason. – Não se atrase por minha causa. É só isso que me quer. Só dizer-me isso.

– Eu já sei que não queres vir – disse a Mãe. – Mas ficava mais tranquila se viesses.

– Mais tranquila porquê – disse o Jason. – Nem o Pai nem o Quentin lhe podem fazer mal nenhum.

A Mãe meteu o lenço por baixo do véu. – Pare com isso, Mãe – disse o Jason. – Quer que esse imbecil se ponha a berrar no meio da praça. Põe-te a andar, T. P.

– Toc’andá, Queenie – disse o T. P.

– Isto é castigo – disse a Mãe. – Mas já não falta muito para eu ir também.

– Espere – disse o Jason.

– Aíí – disse o T. P. E o Jason disse:

– O Tio Maury passou um cheque de cinquenta dólares. O que é que pensa fazer, hem.

– Para que perguntas – disse a Mãe. – Ninguém se importa com o que eu digo. Só não te quero apoquentar, nem a ti nem à Dilsey. E, depois, qualquer dia desapareço, e então tu

– Põe-te a andar, T. P. – disse o Jason.

– Toc’andá, Queenie – disse o T. P. As coisas passavam ondulantes. As do outro lado apareceram outra vez, brilhantes, velozes e suaves, como quando a Caddy diz que vamos adormecer.

Seu chorão, disse o Luster. Não tem vergonha. Atravessámos o estábulo. As baias estavam todas abertas. Agora já não tem nenhum pónei malhado pa montá, disse o Luster. O chão estava seco e poeirento. O telhado estava a cair. Os buracos inclinados estavam cheios de remoinhos amarelos. Pa que qué ir pr’aí. Qué apanhá com uma dessas bolas na cabeça.

– Deixa-te estar com as mãos nos bolsos – disse a Caddy. – Se não, ficas com elas congeladas. E tu não queres ficar com as mãos congeladas no Natal, pois não.

Contornámos os estábulos. A vaca grande estava à porta com a pequena e ouvimos lá dentro o Prince, a Queenie e a Fancy a baterem com os cascos. – Se não estivesse tanto frio, íamos dar uma volta na Fancy – disse a Caddy. – Mas hoje está muito frio para andar a cavalo. – Depois, vimos o riacho donde saía fumo. – É ali que estão a matar o porco – disse a Caddy. – Podemos passar por lá no regresso, para ver. – Começámos a descer a colina.

– Queres levar a carta – disse a Caddy. – Então leva-a. – Tirou a carta do bolso dela e meteu-a no meu. – É um presente de Natal – disse a Caddy. – O Tio Maury vai mandá-la a Mrs. Patterson para lhe fazer uma surpresa. Temos de lha entregar sem que ninguém veja. Vê lá se agora deixas estar as mãos nos bolsos. – Chegámos ao riacho.

– Está gelado – disse a Caddy. – Olha. – Quebrou a superfície da água e encostou-me um bocado à cara. – Gelo. Vês como está frio. – Ajudou-me a passar para o outro lado e começámos a subir a encosta. – Olha que não podemos dizer nada, nem à Mãe nem ao Pai. Sabes o que eu acho que é. Acho que é uma surpresa para a Mãe e para o Pai e também para Mr. Patterson, por Mr. Patterson te ter mandado rebuçados. Lembras-te quando Mr. Patterson te mandou rebuçados no verão passado.

Havia uma cerca. A vinha estava seca e o vento restolhava por entre as vides.

– Só não percebo porque é que o Tio Maury não mandou o Versh – disse a Caddy. – O Versh não ia contar nada. – Mrs. Patterson estava à janela. – Espera – disse a Caddy. – Agora não saias daqui. Eu não me demoro. Dá cá a carta. – Tirou-me a carta do bolso. – Deixa-te estar com as mãos nos bolsos. – Saltou a cerca com a carta na mão e atravessou o canteiro de flores castanhas, ressequidas e restolhantes. Mrs. Patterson veio abrir a porta e ficou à espera.

Mr. Patterson andava a cortar as flores verdes. Parou de cortar e olhou para mim. Mrs. Patterson atravessou o jardim a correr. Quando vi os olhos dela comecei a chorar. Idiota, disse Mrs. Patterson, já lhe disse para não te voltar a mandar cá sozinho. Dá-ma cá. Depressa. Mr. Patterson veio a correr, com a enxada. Mrs. Patterson debruçou-se sobre a cerca, com a mão estendida. Estava a tentar passar para o outro lado. Dá-ma cá, já disse, dá-ma cá. Mr. Patterson saltou a cerca. Apanhou a carta. O vestido de Mrs. Patterson ficou preso na cerca. Vi-lhe novamente os olhos e fugi pela encosta abaixo.

– Pr’àquele lado não há mais nada a não sê casas – disse o Luster. – Vamos té lá baixo ò riacho.

Estavam a lavar no riacho. Uma delas estava a cantar. Eu sentia o cheiro da roupa a adejar ao vento e do fumo que pairava por cima do riacho.

– Deixe-se ficá aqui em baixo – disse o Luster. – Não tem nada que fazê lá em cima. Eles inda lh’acertam, vai ver.

– O qu’é qu’ele qué.

– Ele não sabe o que qué – disse o Luster. – Pensa que qué ir lá pa cima onde andam a jogá à bola. Sente-se aqui a brincá ca sua erva-do-diabo. Se qué vê alguma coisa, veja os miúdos a brincarem no riacho. Por qu’é que não se há de portá como toda a gente. – Sentei-me na margem, onde elas estavam a lavá e de onde subia um fumo azulado.

– Alguém viu uma moeda de vinte e cinco cêntimos por aqui – disse o Luster.

– Que moeda.

– A que eu tinha esta manhã – disse o Luster. – Perdi-a por aqui. Caiu-me por este buraco do bolso. Se não a encontrá, não posso ir logo à noite ò espetáculo.

– Onde é qu’arranjaste vinte e cinco cêntimos, rapaz. Nos bolsos d’algum branco quando ele não tava a vê.

– Arranjei onde arranjei – disse o Luster. – E há muito mais donde estes vieram. Mas tenho d’os encontrá. Alguém os encontrou.

– Eu cá não ando atrás de moedas. Tenho o meu trabalho pa fazê.

– Venha cá – disse o Luster. – Ajude-me a procurá-los.

– Ele, s’os visse, nem sabia qu’eram vinte e cinco cêntimos, poi não.

– Mas mesmo assim qué procurá – disse o Luster. – Então, vão todas ò espetáculo logo à noite.

– Nem me fales em espetáculos. Quando sair deste lavadouro vou tão derreada que nem me posso mexê, quanto mais ir a algum lado.

– Aposto que vais – disse o Luster. – Aposto qu’inda ontem lá estiveste. Aposto que vão tá lá todas quando a tenda abrir.

– Já lá há negros que cheguem. Ontem à noite havia.

– O dinheiro dos negros é tão bom como o dos brancos, acho eu.

– Os brancos dão dinheiro aos negros porque sabem qu’o apanham de volta outra vez mal aparece um branco a tocá c’uma banda, e depois os negros têm de ir trabalhá mais p’arranjarem mais dinheiro.

– Então não há quem te convença a ires ao espetáculo.

– Pa já, não. Mas vou pensá.

– Que tens tu contra os brancos.

– Não tenho nada contra eles. Eu sigo o meu caminho e os brancos que sigam o deles. Esse espetáculo não me interessa.

– Há lá um homem que toca música com uma serra. Té parece que tá a tocá banjo.

– Tu foste lá ontem – disse o Luster. – E eu vou lá hoje. Se descobrir onde perdi a minha moeda.

– Vais levá-lo contigo, não.

– Quem, eu – disse o Luster. – Achas que tou pa sê visto por aí co ele, quand’ele se pusé a berrá.

– Qu’é que fazes quand’ele começa a berrá.

– Bato-lhe – disse o Luster. Sentou-se e enrolou as calças de ganga. Elas brincavam na água.

– Então, têm visto algumas bolas por aqui – disse o Luster.

– Não digas palavrões. É melhor não dizeres isso ò pé da tua avó.

O Luster entrou no riacho onde elas estavam a brincar. Começou a procurar dentro de água, ao longo da margem.

– Tinh’a comigo quando viemos pr’aqui esta manhã – disse o Luster.

– Onde é qu’a perdeste.

– Foi aqui por este buraco do bolso – disse o Luster. Andavam todos à procura. Depois, levantavam-se todos de repente e paravam e depois punham-se a chapinhar e a lutar dentro de água. O Luster encontrou-a e sentaram-se dentro de água a olhar para o alto da colina por entre os arbustos.

– Onde tão eles – disse o Luster.

– Inda não os vejo.

O Luster meteu-a no bolso. Eles vinham pela encosta abaixo.

– Viram cair aqui uma bola.

– Deve estar na água. Nenhum de vocês a viu ou ouviu cair.

– Eu cá não ouvi cair nada – disse o Luster. – Ouvi foi qualqué coisa batê além naquela árvore. Mas não sei onde foi pará.

Eles começaram a procurar no riacho.

– Cos diabos. Procurem bem no riacho. Ela veio para aqui, que eu vi.

Procuraram no riacho. Depois voltaram pela encosta acima.

– És tu que tens a bola – disse o rapaz.

– Pa qu’é qu’eu a queria – disse o Luster. – Eu cá não vi bola nenhuma.

O rapaz meteu-se na água. Continuou a procurar. Voltou-se e olhou outra vez para o Luster. Continuou a procurar pelo riacho abaixo.

O homem gritou caddie do alto da colina. O rapaz saiu da água e subiu a encosta.

– Olhe só pa essa choradeira – disse o Luster. – Cale-se.

– Porqu’é qu’ele se pôs a chorá agora.

– Só Deus sabe – disse o Luster. – Dá-lhe p’ali e pronto. Tem tado assim toda a manhã. É porque faz anos, acho eu.

– Quantos anos.

– Trinta e três – disse o Luster. – Fez trinta e três esta manhã.

– Então qué dizê qu’ há trinta anos qu’ele tem três anos.

– Eu guio-me pelo que diz a ’nha avó – disse o Luster. – Eu cá não sei. Vamos pô trinta e três velas no bolo, isso é qu’eu sei. O bolo té é pequeno. Se calhá nem vai chegá pa tantas velas. Veja se se cala. Vá, venha cá. – Veio ter comigo e puxou-me pelo braço. – Ah, seu pateta – disse ele. – Qué qu’eu lhe bata.

– Aposto que lhe vais bater.

– Já tenho batido. Vá, agora cale-se – disse o Luster. – Já lhe disse que não pode ir lá pa cima. Eles arrancam-lhe a cabeça com uma daquelas bolas. Venha p’aqui. – Puxou-me para trás. – Sente-se. – Sentei-me e ele tirou-me os sapatos e enrolou-me as calças. – Agora, trate de brincá e veja s’acaba com esse berreiro.

Eu calei-me e entrei na água e o Roskus veio e disse para irmos cear e a Caddy disse,

Ainda não são horas da ceia. Eu cá não vou.

Estava toda molhada. Estávamos a brincar no riacho e a Caddy baixou-se e molhou o vestido e o Versh disse,

– A sua mãe vai batê-lhe por tê molhado o vestido.

– Não vai nada – disse a Caddy.

– Como é que sabes – disse o Quentin.

– Não interessa como é que sei – disse a Caddy. – E tu, como é que sabes.

– Ela disse que te batia – disse o Quentin. – Além disso eu sou mais velho do que tu.

– Eu tenho sete anos – disse a Caddy. – Sei muito bem.

– Mas eu sou mais velho – disse o Quentin. – Eu já vou à escola. Não vou, Versh.

– Sabe bem qu’ela lhe bate quando molha o vestido – disse o Versh.

– Não está molhado – disse a Caddy. Pôs-se em pé dentro de água a olhar para o vestido. – Vou tirá-lo e pô-lo a secar.

– Aposto que não és capaz – disse o Quentin.

– Aposto que sou – disse a Caddy.

– Acho melhor não – disse o Quentin.

A Caddy aproximou-se do Versh e de mim e virou as costas.

– Desabotoa-mo, Versh – disse ela.

– Não faças isso, Versh – disse o Quentin.

– Não tenho nada a vê co isso – disse o Versh.

– Desabotoa-me o vestido, Versh – disse a Caddy. – Se não, conto à Dilsey o que fizeste ontem. – E o Versh desabotoou-lho.

– Tira o vestido – disse o Quentin. A Caddy tirou o vestido e atirou-o para a margem. Não tinha mais nada vestido além do corpete e dos culotes, e o Quentin deu-lhe uma bofetada e ela escorregou e caiu dentro de água. Quando se levantou começou a atirar chapadas de água ao Quentin e o Quentin começou a atirar chapadas de água à Caddy. O Versh e eu ainda apanhámos uns salpicos e o Versh pegou em mim e levou-me para a margem. Disse que ia fazer queixa da Caddy e do Quentin, e aí o Quentin e a Caddy começaram a atirar água ao Versh e ele escondeu-se atrás dum arbusto.

– Vou fazê queixa à ’nha mãe de vocês todos – disse o Versh.

O Quentin trepou pela margem acima para ver se apanhava o Versh, mas o Versh fugiu e o Quentin não conseguiu apanhá-lo. Quando o Quentin voltou para baixo, o Versh parou e disse aos gritos que ia contar tudo. A Caddy disse-lhe que, se ele não contasse, o deixavam voltar lá para baixo. Então o Versh disse que não ia contar e eles deixaram-no voltar.

– Agora estás satisfeita, não estás – disse o Quentin. – Agora vamos apanhar os dois.

– Quero lá saber – disse a Caddy. – Eu fujo.

– Isso é que era bom – disse o Quentin.

– Isso é que fujo. E nunca mais volto – disse a Caddy. Comecei a chorar. A Caddy virou-se e disse «Cala-te», e eu calei-me. Depois eles puseram-se a brincar no riacho. O Jason também. Mas brincava sozinho um pouco mais afastado. O Versh veio por detrás do arbusto, pegou em mim e levou-me outra vez para a água. A Caddy tinha a parte de trás do vestido toda suja de lama, e eu comecei a chorar e ela veio ter comigo e sentou-se na água.

– Vamos, cala-te – disse ela. – Eu não vou fugir. – E eu calei-me. A Caddy cheirava como as árvores quando apanham chuva.

O qu’é que foi, disse o Luster. Não é capaz d’acabá com essa choradeira e brincá dentro d’água como toda a gente.

Porqu’é que não o levas pa casa. Não te disseram pa não o deixares sair de lá.

Ele pensa qu’este prado inda lhes pertence, disse o Luster. E depois lá de casa ninguém o pode vê.

Mas podemos nós. E ninguém gosta d’olhá para um pateta. Dá azar.

O Roskus veio chamar-nos para a ceia e a Caddy disse que ainda não eram horas.

– São pois – disse o Roskus. – E a Dilsey diz pa irem todos pa casa. Trá-los todos, Versh. – E subiu a encosta pelo sítio onde a vaca estava a mugir.

– Talvez a gente consiga secar até chegar a casa – disse o Quentin.

– A culpa foi toda tua – disse a Caddy. – Oxalá nos apanhem. – Vestiu o vestido e o Versh abotoou-lho.

– Eles não vão percebê que se molhou – disse o Versh. – Não se nota nada. Só s’eu ou o Jason formos contar.

– Vais contar, Jason – disse a Caddy.

– Contar o quê – disse o Jason.

– Ele não vai contar nada – disse o Quentin. – Não vais, pois não, Jason.

– Aposto que vai – disse a Caddy. – Ele vai contar à Vovó.

– Ele não vai fazer isso – disse o Quentin. – Ela está doente. Se formos devagar, quando chegarmos já vai estar escuro de mais para eles notarem.

– Tanto se me dá que notem como não – disse a Caddy. – Eu mesma vou contar. Trá-lo pa cima, Versh.

– O Jason não vai dizer nada – disse o Quentin. – Lembras-te daquele arco com flecha que eu te fiz, Jason.

– Já está partido – disse o Jason.

– Deixa-o contar – disse a Caddy. – Estou-me nas tintas. Traz o Maury para cima, Versh. – O Versh agachou-se e eu trepei-lhe para as costas.

A gente encontr’òs logo no espetáculo, disse o Luster. Vá lá, temos d’encontrá a moeda.

– Se formos devagarinho, já vai ser noite quando lá chegarmos – disse o Quentin.

– Eu cá não vou devagar – disse a Caddy. Começámos a subir a encosta, mas o Quentin não veio connosco. Ainda estava lá em baixo no riacho quando chegámos ao sítio onde podíamos sentir o cheiro dos porcos. Estavam a grunhir e a fossar na gamela a um canto da pocilga. O Jason vinha atrás de nós com as mãos nos bolsos. O Roskus estava a ordenhar a vaca à porta do estábulo.

As vacas saíram aos pinotes do estábulo.

– Vamos – disse o T. P. – O quê, já tá a chorá outra vez. Olhe qu’eu tamém choro. Uáá Uáá. – O Quentin deu um pontapé ao T. P. e atirou o T. P. para dentro da gamela onde os porcos estavam a comer e o T. P. ficou lá metido. – Caramba – disse o T. P. – Desta vez é que foi. Viu o qu’esse branco me fez. Iuuupi.

Eu não estava a chorar, mas não podia parar. Eu não estava a chorar, mas o chão não estava quieto, e eu comecei a chorar. O chão continuou a subir e as vacas a correr pela encosta acima. O T. P. tentou levantar-se. Mas caiu outra vez e as vacas desataram a correr pela encosta abaixo. O Quentin agarrou-me por um braço e fomos para o estábulo. Mas o estábulo não estava lá e tivemos de esperar que ele voltasse. Não o vi chegar. Veio por detrás de nós e o Quentin sentou-me na manjedoura das vacas. Agarrei-me a ela. Mas ela também ia a fugir e eu agarrado a ela. Desta vez as vacas correram outra vez pela encosta abaixo, e pela porta adentro. Eu não era capaz de parar. O Quentin e o T. P. vinham a lutar pela encosta acima. O T. P. caía pela encosta abaixo e o Quentin puxava-o pela encosta acima. O Quentin batia no T. P. E eu não era capaz de parar.

– Levanta-te – disse o Quentin. – Não saias daqui. Não te vás embora enquanto eu não voltar.

– Eu e o Benjy vamos voltá para a boda – disse o T. P. – Iuupi.

O Quentin bateu outra vez no T. P. Depois começou a atirar o T. P. de encontro à parede. O T. P. ria-se. De cada vez que o Quentin o atirava de encontro à parede, ele tentava dizer Iuupi, mas o riso não o deixava. Eu deixei de chorar, mas não conseguia parar. O T. P. caiu em cima de mim e a porta do estábulo desapareceu. Rolou pela encosta abaixo e o T. P. começou a lutar sozinho e caiu outra vez. Ele continuava a rir e eu não conseguia parar, e tentei levantar-me, mas caí e não conseguia parar. O Versh disse,

– Agora é qu’à arranjou bonita. Está a ver. Veja lá s’acaba com essa gritaria.

O T. P. não conseguia parar de rir. Caiu por cima da porta, e sempre a rir. – Iuupi – disse ele. – Eu e o Benjy vamos voltá pà boda. Salsaparrilha – disse o T. P.

– Cala-te – disse o Versh. – Onde é qu’àrranjaste.

– Na adega – disse o T. P. – Iuupi.

– Cala-te, já disse – disse o Versh. – N’adega, aonde.

– Por lá – disse o T. P. Pôs-se a rir outra vez. – Inda há lá mais de cem garrafas. Mais de mil. Cuidado, negro. Olha qu’eu grito.

E o Quentin disse, – Ajuda-o a levantar-se.

E o Versh ajudou-me a levantar.

– Bebe isto, Benjy – disse o Quentin. O copo estava quente. – Agora, cala-te – disse o Quentin. – Vá, bebe.

– Salsaparrilha – disse o T. P. – Deixe-me bebê, Mr. Quentin.

– Cala a boca – disse o Versh. – Olha que Mr. Quentin dá-te uma surra.

– Agarra-o, Versh – disse o Quentin.

Eles agarraram-me. O meu queixo e a camisa estavam quentes. – Bebe – disse o Quentin. Seguraram-me na cabeça. Sentia-me quente por dentro e comecei outra vez a chorar. Chorava e passava-se qualquer coisa dentro de mim e eu ainda chorava mais, e eles seguraram-me até a tal coisa parar. Depois calei-me. Ainda estava a andar à roda e foi então que comecei a ver as coisas outra vez a passar. Abre a manjedoura, Versh. Agora passavam devagar. Estende esses sacos vazios no chão. Mas depois passavam mais depressa, depressa de mais. Agora. Pega-lhe nos pés. As coisas continuavam a passar, suaves e brilhantes. Ouvia o T. P. a rir-se. Fui com eles pela encosta luminosa acima.

Ao chegarmos ao cimo, o Versh pousou-me no chão. – Venha, Quentin – chamou ele, olhando para trás. Mas o Quentin ainda estava lá em baixo ao pé da água. Ia a entrar nas sombras, junto ao riacho.

– Esse casmurro que fique lá em baixo – disse a Caddy. Pegou-me na mão e depois de passarmos pelo estábulo entrámos pelo portão. Estava uma rã no caminho empedrado, mesmo no meio. A Caddy passou-lhe por cima e levou-me atrás.

– Anda, Maury – disse ela. Ela ainda lá estava quando o Jason lhe deu um pontapé.

– Isto faz verrugas – disse o Versh. A rã foi-se embora aos saltos.

– Anda, Maury – disse a Caddy.

– Esta noite têm visitas – disse o Versh.

– Como é que sabes – disse a Caddy.

– As luzes estão todas acesas – disse o Versh. – Em todas as janelas.

– Eu cá acho que se podem acender as luzes todas mesmo sem ter visitas – disse a Caddy.

– Aposto que são visitas – disse o Versh. – O melhor é entrarem todos pelas traseiras e irem logo pa cima.

– Quero lá saber – disse a Caddy. – Eu cá entro pela sala onde eles estão.

– Aposto qu’o seu pai lhe bate se fizé isso – disse o Versh.

– Quero lá saber – disse a Caddy. – Eu cá entro pela sala. E vou comer a ceia para a casa de jantar.

– E onde é que se senta – disse o Versh.

– Sento-me na cadeira da Vovó – disse a Caddy. – Ela come na cama.

– Tenho fome – disse o Jason. Passou por nós a correr pelo carreiro acima. Ia com as mãos nos bolsos e caiu. O Versh foi levantá-lo.

– Se fosse com as mãos fora dos bolsos, não caía – disse o Versh. – Gordo como é, nem teve tempo pa tirá-las pa fora pa s’agarrar.

O Pai estava cá fora perto dos degraus da cozinha.

– Onde está o Quentin – disse ele.

– Vem aí – disse o Versh. O Quentin vinha muito devagar. A camisa dele era uma mancha branca esborratada.

– Oh – disse o Pai. A luz que vinha pelos degraus abaixo bateu-lhe em cheio.

– A Caddy e o Quentin andaram a atirar água um ao outro – disse o Jason.

Ficámos à espera.

– Ai andaram – disse o Pai. O Quentin chegou e o Pai disse, – Hoje têm de cear na cozinha. – Baixou-se e pegou-me ao colo, e a luz que vinha pelos degraus abaixo bateu-me também em cheio e eu olhei para baixo e vi a Caddy e o Jason e o Quentin e o Versh. O Pai aproximou-se dos degraus. – Têm de ficar calados, ouviram – disse ele.

– Temos de ficar calados porquê, Pai – disse a Caddy. – Temos visitas.

– Temos – disse o Pai.

– Eu bem disse qu’eram visitas – disse o Versh.

– Não disseste nada – disse a Caddy. – Eu é que disse que eram. Até disse que

– Calem-se – disse o Pai. Calaram-se. O Pai abriu a porta, atravessámos a varanda e entrámos na cozinha. A Dilsey estava lá dentro e o Pai sentou-me na cadeira e baixou o tabuleiro e empurrou-me até à mesa onde já estava a ceia. Deitava muito fumo.

– Agora, façam o que a Dilsey mandar – disse o Pai. – Não os deixes fazer muito barulho, Dilsey.

– Si, sinhô – disse a Dilsey. O Pai foi-se embora.

– Não se esqueçam de que têm de fazer o que a Dilsey mandar – disse o Pai por detrás de nós. Debrucei-me sobre a mesa. O fumo bateu-me na cara.

– Esta noite diga-lhes para fazerem o que eu mandar, Pai – disse a Caddy.

– Eu cá não – disse o Jason. – Eu cá só faço o que a Dilsey mandar.

– Vais ter de fazer, se o Pai disser – disse a Caddy. – Diga-lhes para fazerem o que eu mandar, Pai.

– Eu cá não – disse o Jason. – Eu cá não faço o que tu mandares.

– Calem-se – disse o Pai. – Pronto, façam todos o que a Caddy mandar. Quando acabarem, leva-os para cima pela escada das traseiras, Dilsey.

– Si, sinhô – disse a Dilsey.

– Pronto – disse a Caddy. – Agora têm de fazer todos o que eu mandar.

– Calem-se – disse a Dilsey. – Esta noite têm de tá sossegados.

– Porque é que temos de estar sossegados esta noite – bichanou a Caddy.

– Isso não é da vossa conta – disse a Dilsey. – Hão de sabê quando for da vontade do Sinhô. – Pôs-me a tigela à frente. O vapor que dela saía fazia-me cócegas na cara. – Vem cá, Versh – disse a Dilsey.

– Quando for da vontade do Senhor, Dilsey – disse a Caddy.

– Então isso é no domingo – disse o Quentin. – Não percebes mesmo nada.

– Calem-se – disse a Dilsey. – Não ouviram Mr. Jason dizê-lhes pa tarem calados. Vá, toc’à comê. Vem cá, Versh. Pega na colhé dele. – A mão do Versh avançou para a tigela com a colher e meteu-a lá dentro. A colher subiu até à minha boca. O vapor fazia-me cócegas dentro da boca. Depois parámos de comer e ficámos calados a olhar uns para os outros e então ouvimos aquilo outra vez e eu comecei a chorar.

– O que era aquilo – disse a Caddy. E pôs a mão dela em cima da minha.

– Era a Mãe – disse o Quentin. A colher voltou a subir e eu abri a boca e depois pus-me a chorar outra vez.

– Cala-te – disse a Caddy. Mas eu não me calei e ela veio e abraçou-me. A Dilsey foi fechar ambas as portas e assim nós já não ouvíamos nada.

– Agora cala-te – disse a Caddy. Calei-me e comi. O Quentin é que não estava a comer. Mas o Jason estava.

– Era a Mãe – disse o Quentin. Levantou-se.

– Sente-se imediatamente – disse a Dilsey. – Eles lá dentro com visitas e o menino co essa roupa toda enlameada. Sente-se também, Caddy, e acabe de comer.

– Ela estava a chorar – disse o Quentin.

– Era mas era alguém a cantar – disse a Caddy. – Era, não era, Dilsey.

– Vá, toc’à comê, como Mr. Jason mandou – disse a Dilsey. – Vão sabê o qu’é quando for da vontade do Sinhô. – A Caddy voltou para o lugar dela.

– Já disse que é uma festa – disse ela.

E o Versh disse, – Ele já comeu tudo.

– Traz-me a tigela dele – disse a Dilsey. A tigela desapareceu.

– Dilsey – disse a Caddy. – O Quentin não está a comer a ceia. Então ele não tem de fazer o que eu mandar.

– Coma a ceia, Quentin – disse a Dilsey. – Têm todos de comê tudo pa depois saírem da cozinha.

– Eu não quero mais – disse o Quentin.

– Tens de comer tudo, se eu mandar – disse a Caddy. – Tem, não tem, Dilsey.

A tigela deitava-me vapor para a cara e a mão do Versh metia a colher lá dentro e o vapor fazia-me cócegas na boca.

– Não quero mais – disse o Quentin. – Como é que eles podem dar uma festa com a Vovó doente.

– A festa é cá em baixo – disse a Caddy. – Ela pode vir para o patamar e ficar a assistir. É o que eu vou fazer depois de vestir a camisa de dormir.

– A Mãe estava a chorar – disse o Quentin. – Estava a chorar, não estava, Dilsey.

– Não me venh’atentá – disse a Dilsey. – Tenho de fazê a ceia p’àquela gente toda assim que vocês acabarem de comê.

Daí a pouco, até o Jason já tinha acabado de comer, e começou a chorar.

– Pronto, agora tinha de sê este – disse a Dilsey.

– Ele faz sempre isto desde que a Vovó adoeceu e ele deixou de poder dormir com ela – disse a Caddy. – Bebé chorão.

– Vou fazer queixa de ti – disse o Jason.

Continuou a chorar. – Já fizeste – disse a Caddy. – Agora, já não tens mais nada para contar.

– O qu’os meninos precisam é de ir pá cama – disse a Dilsey. Aproximou-se de mim, tirou-me da cadeira, pôs-me no chão e limpou-me a cara e as mãos com um pano quente. – Versh, és capaz de os levar lá pa cima pela escada das traseiras, sem fazê barulho. Vá, Jason, pare lá co essa choradeira.

– Ainda é muito cedo para irmos para a cama – disse a Caddy. – Nunca temos de ir para a cama tão cedo.

– Mas hoje têm – disse a Dilsey – O vosso pai disse pa irem direitinhos lá pa cima quando acabassem de comê. Bem ouviram.

– Ele disse para fazerem o que eu mandasse – disse a Caddy.

– Eu não faço o que tu mandares – disse o Jason.

– Tens de fazer – disse a Caddy. – Vá, têm de fazer todos o que eu disser.

– Fá-los calá, Versh – disse a Dilsey. – Vocês vão ficá todos calados, não vão.

– Porque é que temos de estar tão calados esta noite – disse a Caddy.

– A sua mãe não se sente bem – disse a Dilsey. – Vá, agora vão todos co Versh.

– Eu bem vos disse que a Mãe estava a chorar – disse o Quentin. O Versh pegou-me ao colo e abriu a porta das traseiras. Saímos e o Versh voltou a fechar a porta. Eu sentia o cheiro do Versh e podia tocar-lhe. Agora, fiquem todos calados. Nós não vamos ainda lá para cima. Mr. Jason disse pa irem direitinhos lá pa cima. O que ele disse foi para fazerem o que eu mandasse. Eu cá não vou fazer o que tu mandares. Mas ele disse para fazermos todos. Disse, não disse, Quentin. Eu sentia a cabeça do Versh. E ouvia as nossas vozes. Dis-se, não disse, Versh. Tá bem, disse. Por isso eu digo para irmos lá para fora um bocadinho. Vamos. O Versh abriu a porta e saímos todos.

Descemos os degraus.

– Acho que o melhor é irmos para casa do Versh, para não fazermos barulho – disse a Caddy. O Versh pôs-me no chão e a Caddy deu-me a mão e fomos todos por ali fora encostados ao muro de tijolo.

– Anda – disse a Caddy. – A rã já se foi embora. A estas horas já fugiu para o jardim. Pode ser que a gente veja outra. – O Roskus passou com os baldes do leite e seguiu o seu caminho. O Quentin não veio connosco. Ficou sentado nos degraus da cozinha. Nós fomos até à casa do Versh. Gosto do cheiro da casa do Versh. A lareira estava acesa e o T. P. estava de cócoras diante do lume, em fralda de camisa, a atiçar as brasas.

Então eu levantei-me e o T. P. vestiu-me e fomos comer para a cozinha. A Dilsey estava a cantar e eu comecei a chorar e ela parou.

– Não o deixes vir cá pa casa agora – disse a Dilsey.

– Mas não podemos ir p’ali – disse o T. P.

Fomos brincar para o riacho.

– Por ali não podemos ir – disse o T. P. – Não sabem que a ’nha mãe disse que não podemos.

A Dilsey estava a cantar na cozinha e eu comecei a chorar.

– Cale-se – disse o T. P. – Vá, vamos té ao estábulo.

O Roskus estava no estábulo a ordenhar as vacas. Estava a ordenhar só com uma mão e a resmungar. Estavam uns pássaros empoleirados na porta do estábulo a olhar para ele. Um deles voou para o chão e veio comer com as vacas. Fiquei a ver o Roskus a ordenhar as vacas enquanto o T. P. foi dar de comer à Queenie e ao Prince. A vitela estava na pocilga. Dava focinhadas na rede e berrava.

– T. P. – disse o Roskus. O T. P. disse Estou aqui no estábulo. A Fancy esticava a cabeça por cima da porta porque o T. P. ainda não lhe tinha dado de comer. – Despacha-te – disse o Roskus. – Tens de vir tirá o leite. Já não consigo mexê a mão direita.

O T. P. foi acabar de tirar o leite.

– Porque não chama o médico – disse o T. P.

– O médico não adianta nada – disse o Roskus. – Não aqui, neste lugá.

– O qu’é que tem este lugá – disse o T. P.

– Este lugá traz má sorte – disse o Roskus. – Traz a vitela pa dentro quando acabares.

Este lugá traz má sorte, disse o Roskus. A fogueira subia e descia por trás dele e do Versh, deslizando pela cara dele e pela do Versh. A Dilsey meteu-me na cama. A cama cheirava como o T. P. Eu gostava daquele cheiro.

– Que sabes tu disso – disse a Dilsey. – Tiveste alguma visão.

– Não preciso de tê visões – disse o Roskus. – Pois então não está ali uma prova deitada naquela cama. Pois então não tem havido provas de há quinze anos pa cá, pa que todos vejam.

– Talvez – disse a Dilsey. – Mas não te aconteceu mal nenhum, nem a ti nem òs teus, pois não. O Versh arranjou trabalho, a Frony casou-se e já não te pesa e o T. P. já tá capaz d’ocupá o teu lugá quando o reumático tomá conta de ti.

– Té agora aconteceram duas coisas – disse o Roskus. – E vem outra por aí. Eu vi o sinal. E tu também.

– Esta noite ouvi piá o mocho – disse o T. P. – E o Dan não queria vir comer. Não passava do estábulo. E desatou a uivá assim que anoiteceu. O Versh ouviu-o.

– E não vai ficá por aqui – disse a Dilsey. – Mostra-me um homem que não vá morrer, Deus seja louvado.

– Morrê não é o pior – disse o Roskus.

– Eu sei no que tu tás a pensá – disse a Dilsey. – E não traz boa sorte dizeres esse nome, a menos que te queiras havê com ele quando desatá a chorar.

– Este lugá traz má sorte – disse o Roskus. – Soube disso logo no princípio, mas quando lhe mudaram o nome, então é qu’eu acreditei mesmo.

– Cala essa boca – disse a Dilsey. Puxou-me os cobertores para cima. Cheiravam como o T. P. – Agora, fiquem calados té ele adormecer.

– Eu vi o sinal – disse o Roskus.

– Só se for sinal qu’o T. P. tem de fazê todo o trabalho por ti – disse a Dilsey. Lev’ò pa casa, a ele e à Quentin, T. P., e deix’òs brincá co Luster onde a Frony os possa vigiá, e tu vai ajudá o teu pai.

Acabámos de comer. O T. P. pegou na Quentin e fomos para casa do T. P. O Luster estava a brincar na terra. O T. P. pôs a Quentin no chão e ela pôs-se também a brincar na terra. O Luster tinha umas bobinas e ele e a Quentin começaram a lutar e a Quentin ficou com as bobinas. O Luster pôs-se a gritar e a Frony veio e deu uma lata ao Luster para ele brincar, e então eu peguei nas bobinas e a Quentin começou a lutar comigo e eu desatei a gritar.

– Cale-se – disse a Frony. – Não tem vergonha de tirá os brinquedos a um bebé. – Tirou-me as bobinas da mão e deu-as de novo à Quentin.

– Cale-se – disse a Frony. – Tá mesmo a pedi-las. Ai isso é que tá. – Pegou no Luster e na Quentin. – Venha daí – disse ela. Fomos até ao estábulo. O T. P. estava a ordenhar a vaca. O Roskus estava sentado num caixote.

– O qu’é qu’ele tem agora – disse o Roskus.

– Não o pode deixá sair daqui – disse a Frony. – Anda outra vez à bulha cas crianças. Tira-lhes as coisas. Fique aqui co T. P. e veja se se cala um bocadinho.

– Limpa-me bem esse úbere – disse o Roskus. – O inverno passado tanto ordenhaste a novilha qu’a secaste. Se secas esta, adeus leite.

A Dilsey estava a cantar.

– Por ali não – disse o T. P. – Não sabe qu’a ’nha mãe disse pa não passarmos por ali.

Eles estavam a cantar.

– Venha – disse o T. P. – Vamos brincá ca Quentin e co Luster. Venha daí.

A Quentin e o Luster estavam a brincar no chão em frente à casa do T. P. Lá dentro estava uma fogueira acesa, a subir e a descer, e a figura do Roskus, toda preta, desenhava-se em frente do lume.

– E vão três, o Sinhô seja louvado – disse o Roskus. – Disse-to há dois anos. Esta casa traz má sorte.

– Então porqu’é que não te vais embora – disse a Dilsey. Despiu-me. – Foram essas tuas histórias sobre a má sorte que meteram na cabeça do Versh a ideia de ir pa Memphis. Deves tá satisfeito.

– Se tudo o que acontecê de mal ao Versh for isso – disse o Roskus.

A Frony entrou.

– Já acabaram – disse a Dilsey.

– O T. P. está quase despachado – disse a Frony. – Miss Ca’line qué que vossemecê vá deitá a Quentin.

– Vou assim que pudé – disse a Dilsey. – Ela já devia sabê qu’eu não tenh’asas.

– É o qu’eu te digo – disse o Roskus. – Não dá sorte fica num lugá onde o nome dum dos filhos nunca é pronunciado.

– Cala-te – disse a Dilsey. – Queres qu’ele comece outra vez.

– Criá uma criança sem lhe dizê o nome da própria mãe – disse o Roskus.

– Não te preocupes com ela – disse a Dilsey. – Eu criei-os a todos e acho que posso criá mais esta. E agora cala-te. Vamos vê s’ele consegue adormecer.

– Dizê o nome – disse a Frony. – Ele não conhece o nome de ninguém.

– Experimenta dizê-lo e verás se não conhece – disse a Dilsey. – Experimenta dizê-lho quando ele tivé a dormi e aposto que te ouve.

– Ele sabe muito mais do qu’a gente pensa – disse o Roskus. – Ele sabia qu’a hora deles tinha chegado, como esse cão também sabia. E, se pudesse falar, era capaz de dizê quando vai chegá a hora dele. Ou a tua. Ou a minha.

– Tire o Luster dessa cama, mãe – disse a Frony. – Esse aí é capaz de lhe deitá mau olhado.

– Cal’à boca – disse a Dilsey. – É só essa a tua esperteza. Pa que dás ouvidos ao Roskus. Meta-se na cama, Benjy.

A Dilsey empurrou-me e eu meti-me na cama, onde já estava o Luster. Estava a dormir. A Dilsey pegou numa tábua comprida e meteu-a entre mim e o Luster. – Agora, deixe-se tá do seu lado – disse a Dilsey. – O Luster é pequenino e não o qué magoá, poi não.

Ainda não pode ir, disse o T. P. Pere aí.

Olhámos para lá da esquina da casa e vimos as caleches a afastarem-se.

– Agora – disse o T. P. Pegou na Quentin e corremos até à esquina da cerca e ficámos a vê-las passar. – Lá vai ele – disse o T. P. – Veem aquela envidraçada. Olhem pa ele. Lá vai ele deitado. Veem.

Vamos, disse o Luster, vou levá esta bola pa casa, pa onde não a perca. Não sinhô, não pode ficá co ela. S’aqueles homens o veem co ela, vão dizê qu’a roubou. Agora, cale-se. Não pode ficá co ela. E pa qu’é que a quer. Não pode jogá à bola.

A Frony e o T. P. estavam a brincar na terra do lado de fora da porta. O T. P. tinha metido pirilampos numa garrafa.

– Como é que vocês já estão aqui outra vez – disse Frony.

– Temos visitas – disse a Caddy. – O Pai disse para todos fazerem o que eu mandasse. Acho que tu e o T. P. também.

– Eu cá não faço – disse o Jason. – E a Frony e o T. P. também não têm de fazer.

– Se eu quiser, têm – disse a Caddy. – Mas sou capaz de não os obrigar.

– O T. P. não faz o que ninguém manda – disse a Frony. – Sabem se o funeral já começou.

– O que é um funeral – disse o Jason.

– A nossa mãe não te disse pa não lhes dizês nada – disse o Versh.

– Onde vai sê o pranto – disse a Frony. – Quando foi da Irmã Beulah Clay, o pranto durou dois dias.

O pranto foi em casa da Dilsey. A Dilsey estava a chorar. Quando ela estava a chorar o Luster disse Calem-se e nós calámo-nos, e então eu comecei a chorar e o Blue pôs-se a uivar no vão da escada da cozinha. Então a Dilsey parou e nós parámos.

– Oh – disse a Caddy. – Isso é os negros. Os brancos não fazem prantos.

– A nossa mãe disse-nos pa não lhes dizermos nada, Frony – disse o Versh.

– Dizer o quê – disse a Caddy.

A Dilsey estava a chorar e quando o choro se ouviu lá em casa eu comecei também a chorar e o Blue pôs-se a uivar debaixo das escadas. Luster, disse a Frony da janela. Lev’òs pò estábulo. Não posso fazê a comida com toda esta barulheira. E esse cão tamém. Lev’òs daqui pa fora.

Eu não quer’ir, disse o Luster. Posso encontrá o vô. Vi-o ontem à noite no estábulo, a esbracejar.

– Sempre gostava de sabê porquê – disse a Frony. – Os brancos tamém morrem. A sua avó tá tão morta como qualqué negra pode tá, acho eu.

– Os cães é que estão mortos – disse a Caddy. – E a Nancy, quando caiu na vala e o Roskus lhe deu um tiro e os abutres vieram e a despiram toda.

Os ossos saíam da vala a toda a volta, onde os galhos tisnados estavam metidos na cova preta a brilharem ao luar como se algumas das tais coisas tivessem parado. Depois, as coisas pararam todas e ficou tudo escuro e, quando eu parei para começar outra vez, ouvi a Mãe e passos a afastarem-se depressa, e eu sentia-lhe o cheiro. Depois o quarto chegou, mas os meus olhos fecharam-se. Eu não parei. Sentia-lhe o cheiro. O T. P. tirou os alfinetes que prendiam os lençóis.

– Cale-se – disse ele. – Chhhhh.

Mas eu sentia-lhe o cheiro. O T. P. pegou-me ao colo e vestiu-me num instante.

– Cale-se, Benjy – disse ele. – Vamos pa minha casa. Qué ir pa nossa casa, onde tá a Frony. Vá, cale-se. Chhhhh.

Atou-me os sapatos, pôs-me o boné na cabeça e saímos. Havia uma luz acesa no vestíbulo. Ouvimos a Mãe lá dentro.

– Chhhhh, Benjy – disse o T. P. – Vamos já sair.

Uma porta abriu-se e eu senti-lhe o cheiro mais do que nunca. Apareceu uma cabeça. Não era o Pai. O Pai estava doente lá dentro.

– Porque não o levas lá para fora.

– É lá pa fora que vamos – disse o T. P. A Dilsey vinha a subir as escadas.

– Cale-se – disse ela. – Cale-se. Leva-o lá pa casa, T. P. A Frony tá a fazê-lhe a cama. Agora, tomem vocês conta dele. Cale-se, Benjy. Vá co T. P.

Ela entrou para o sítio donde vinha a voz da Mãe.

– É melhor deixá-lo lá ficar. – Não era a voz do Pai. Ele fechou a porta, mas eu mesmo assim sentia-lhe o cheiro.

Descemos as escadas. As escadas desciam em direção às trevas e o T. P. deu-me a mão, e saímos pela porta, deixando as trevas para trás. O Dan estava sentado no quintal, a uivar.

– Ele sentiu-lhe o cheiro – disse o T. P. – É assim que se descobre.

Descemos os degraus onde estavam as nossas sombras.

– Esqueci-me do seu casacão – disse o T. P. – Era melhor trazê-lo. Mas agora não volto pa trás.

O Dan uivava.

– Agora, cale-se – disse o T. P. As nossas sombras moviam-se, mas a sombra do Dan não se movia senão quando ele uivava.

– Não o posso levá lá pa casa a berrá dessa maneira – disse o T. P. – Já berrava que chegasse mesmo antes de tê arranjado esse vozeirão. Vá, vamos lá.

Seguimos rentes à parede de tijolo seguidos pelas nossas sombras. A pocilga cheirava a porcos. A vaca estava no estábulo a ruminar e a olhar para nós. O Dan uivava.

– Vai acordá a cidade inteira – disse o T. P. – Veja se se cala.

Vimos a Fancy a pastar junto ao riacho. A lua brilhava na água quando lá chegámos.

– Não, sinhô – disse o T. P. – Ainda estamos muito perto. Não podemos pará aqui. Vamos. Olhe só pò que fez. Molhou a perna toda. Venha por aqui. – O Dan estava a uivar.

A vala surgiu de repente no meio da erva sussurrante. Os ossos saíam a toda a volta entre os galhos negros.

– Agora – disse o T. P. – grite p’aí quanto quiser. Tem a noite toda à sua frente e este pasto todo pa gritá à vontade.

O T. P. deitou-se na vala e eu sentei-me a olhar para os ossos no sítio onde os abutres comeram a Nancy, saindo depois a esvoaçar, negros e pesados, batendo as asas devagar.

Eu tinha-a comigo quando aqui tivemos antes, disse o Luster. Té lha mostrei. Não a viu. Tirei-a do bolso aqui mesmo e mostrei-lha.

– Se julgas que os abutres vão despir a Vovó – disse a Caddy. – Deves ser maluco.

– E tu és uma grande burra – disse o Jason. E começou a chorar.

– E tu és um bucha – disse a Caddy. O Jason chorava. Tinha as mãos nos bolsos.

– O Jason há de sê um homem muito rico – disse o Versh. – Tá sempre a agarrá o dinheiro.

O Jason chorava.

– Agora puseste-o a chorar – disse a Caddy. – Cala-te, Jason. Como é que os abutres podem entrar no sítio onde a Vovó está. O Pai não ia deixar. Tu não deixavas que um abutre te despisse, pois não. Agora cala-te.

O Jason calou-se. – A Frony disse que era um funeral – disse ele.

– Mas não é – disse a Caddy. – É uma festa. A Frony não sabe nada de nada. Ele quer os teus pirilampos, T. P. Deixa-o pegar neles um bocadinho.

O T. P. deu-me a garrafa com os pirilampos.

– Aposto que se formos até à janela da sala conseguimos ver alguma coisa – disse a Caddy. – E então já acreditam em mim.

– Eu já sei o qu’e – disse a Frony. – Eu cá não preciso d’ir vê.

– É melhor calares a boca, Frony – disse o Versh. – Olha qu’a mãe vai-te batê.

– O que é que foi – disse a Caddy.

– Eu sei aquilo que sei – disse a Frony.

– Vamos – disse a Caddy. – Vamos para a parte da frente.

E lá fomos.

– O T. P. qué os pirilampos de volta – disse a Frony.

– Deixa-o ficar com eles mais um bocadinho, T. P. – disse a Caddy. – Nós já tos trazemos de volta.

– Não foram vocês qu’os apanharam – disse a Frony.

– Se eu disser que tu e o T. P. também podem vir, deixa-lo ficar com a garrafa mais um bocadinho – disse a Caddy.

– Ninguém disse que eu e o T. P. tínhamos de lh’obedecê – disse a Frony.

– E, se eu disser que não têm, deixam-no ficar com ela – disse a Caddy.

– Tá bem – disse a Frony. – Deix’ò ficá com ela, T. P. Anda vê-los chorar.

– Eles não estão a chorar – disse a Caddy. – Já vos disse que é uma festa. Eles não estão a chorar, pois não, Versh.

– Se aqui ficarmos, não vamos descobrir o qu’é qu’eles tão a fazê – disse o Versh.

– Vamos – disse a Caddy. – A Frony e o T. P. não têm de fazer o que eu mando. Mas vocês têm. É melhor seres tu a levá-lo, Versh. Está a ficar escuro.

O Versh pegou em mim e contornámos a cozinha pelo lado de fora.

Quando chegámos à esquina e olhámos, vimos as luzes a vir pelo caminho acima. O T. P. voltou para trás para a porta da adega e abriu-a.

Sabem o qu’é qu’ há lá em baixo, disse o T. P. Gasosa. Vi Mr. Jason sair de lá cas mãos cheias de garrafas. Esperem aí um bocadinho.

O T. P. foi espreitar à porta da cozinha. A Dilsey disse, Pa qu’é que tás a espreitá. Onde tá o Benjy.

Nós tamos aqui, disse o T. P.

Vai tomá conta dele, disse a Dilsey. Não o deixes vir pa dentro de casa.

Sissiô, disse o T. P. Eles já começaram.

Vai-te embora e não me deixes esse rapaz vir p’aqui, disse a Dilsey. Já tenho trabalho que chegue.

Uma cobra saiu a rastejar de debaixo da casa. O Jason disse que não tinha medo das cobras e a Caddy disse que ele tinha, mas que ela não, e o Versh disse que tinham os dois e a Caddy disse-lhe que se calasse, como o Pai tinha mandado.

Agora não comece a berrá, disse o T. P. Qué salsaparrilha.

A salsaparrilha fez-me cócegas no nariz e nos olhos.

Se não vai bebê-la, dê cá, disse o T. P. Pronto, tome lá. O melhor é irmos buscá outra garrafa enquanto não aparece ninguém. Agora fique calado.

Parámos debaixo da árvore junto à janela da sala. O Versh sentou-me na relva molhada. Estava fria. As janelas estavam todas iluminadas.

– É ali que está a Vovó – disse a Caddy. – Ela agora está doente todos os dias. Quando ficar boa vamos fazer um piquenique.

– Eu sei aquilo que sei – disse a Frony.

As árvores sussurravam. E a relva também.

– O outro quarto ao lado é para onde vamos quando temos sarampo – disse a Caddy. – Para onde é que tu e o T. P. vão quando têm sarampo, Frony.

– Ficamos no sítio onde tamos, acho eu – disse a Frony.

– Eles ainda não começaram – disse a Caddy.

Tão a prepará-se pa começá, disse o T. P. Agora fiquem aqui enquanto eu vou buscá aquele caixote pa podermos chegá à janela. Tomem, toc’à bebê a salsaparrilha toda. A mim faz-me sentir como se tivesse um mocho na barriga.

Bebemos a salsaparrilha toda e o T. P. enfiou a garrafa pela persiana, empurrou-a para debaixo da casa e foi-se embora. Eu ouvia-os na sala e agarrei-me à parede. O T. P. trazia o caixote de rastos. Caiu e pôs-se a rir. Estava deitado na relva a rir. Levantou-se e puxou o caixote para debaixo da janela, fazendo esforços para não se rir.

– Acho que vou desatá a rir às gargalhadas – disse o T. P. – Ponha-s’em cima do caixote pa vê se já começaram.

– Ainda não começaram porque a música ainda não chegou – disse a Caddy.

– Não vai havê música nenhuma – disse a Frony.

– Como é que sabes – disse a Caddy.

– Sei porque sei – disse a Frony.

– Tu não sabes nada de nada – disse a Caddy. E foi para junto da árvore. – Ajuda-me a subir, Versh.

– O seu pai disse pa não trepá a essa árvore – disse o Versh.

– Isso foi há muito tempo – disse a Caddy. – Já se deve ter esquecido. E depois ele disse que esta noite tinham de fazer o que eu mandasse. Disse ou não disse.

– Eu não vou fazer – disse o Jason. – E a Frony e o T. P. também não.

– Ajuda-me a subir, Versh – disse a Caddy.

– Tá bem – disse o Versh. – Não sou eu que vou apanhá. – Pegou na Caddy e levantou-a até ela chegar ao ramo mais baixo. Víamos-lhe a traseira dos culotes toda suja de lama. Depois deixámos de a ver. Só ouvíamos os ramos a abanar.

– Mr. Jason disse que lhe bate se partir a árvore – disse o Versh.

– Eu cá também vou fazer queixa – disse o Jason.

A árvore deixou de abanar. Olhámos todos para cima para os ramos imóveis.

– O qu’é que tá a vê – bichanou a Frony.

Eu via-os. E então vi a Caddy com flores no cabelo e um véu longo e brilhante como o vento. Caddy Caddy

– Chhhh – disse o T. P. – São capazes de a ouvir. Desça daí. – Puxou-me. Caddy. Agarrei-me à parede com unhas e dentes. Caddy. O T. P. puxou-me. – Chhhh – disse ele. – Cale-se, Benjy. Qué qu’o oiçam. Venha daí. Vamos bebê mais salsaparrilha, e depois voltamos p’aqui se prometê ficá calado. É melhor irmos buscá mais uma garrafa, senão ’inda acabamos os dois à bulha. Podemos dizê que foi o Dan qu’a bebeu. Mr. Quentin está sempre a dizê qu’ele é tão esperto que nós podemos dizê qu’ele tamém gosta de salsaparrilha.

O luar descia pelas escadas da adega. Bebemos mais salsaparrilha.

– Sabe o qu’é qu’eu queria – disse o T. P. – Queria q’um urso entrasse naquela adega. Sabe o qu’é qu’eu lhe fazia. Chegava-me a ele e cuspia-lhe num olho. Dê cá essa garrafa pa vê s’eu lhe meto alguma coisa na boca antes de começá a gritar.

O T. P. caiu. Desatou a rir e a porta da adega e o luar desapareceram de repente e eu senti qualquer coisa bater-me.

– Cale-se – disse o T. P., fazendo esforços para não se rir. – Santo Deus, assim toda a gente nos vai ouvir. Levante-se – disse o T. P. – Depressa, Benjy, levante-se. – Ele rebolava-se no chão a rir às gargalhadas e eu tentei levantar-me. Os degraus da adega subiam até ao luar, e o T. P. correu aos tropeções por ali acima até sair para a luz e eu corri até chocar com a cerca e o T. P. atrás de mim a dizer «Cale-se. Cale-se». Depois caiu por cima das flores a rir e eu corri para o caixote. Mas quando tentei trepar-lhe para cima ele deu um salto e fugiu-me e bateu-me na nuca e da minha garganta saiu um som. Depois voltou a fazer o mesmo e eu desisti de me levantar e o som saiu outra vez e eu comecei a chorar. Mas a minha garganta não parava de fazer barulho enquanto o T. P. me arrastava. O barulho não parava e eu já não sabia se estava a chorar ou não, e o T. P. caiu por cima de mim às gargalhadas, e a garganta sempre a fazer o mesmo barulho, e o Quentin deu um pontapé no T. P. e a Caddy pôs-me os braços à volta do pescoço, e o seu véu luminoso, e eu já não sentia o cheiro das árvores e comecei a chorar.

Benjy, disse a Caddy, Benjy. Pôs-me outra vez os braços à volta do pescoço, mas eu esquivei-me. – O que foi, Benjy – disse ela. – Foi este chapéu. – Tirou o chapéu e aproximou-se outra vez, e eu afastei-me. – Benjy – disse ela. – O que foi, Benjy, o que foi que a Caddy fez.

– Ele não gosta desse vestido todo triques – disse o Jason. – Julgas-te muito crescida, não julgas. Julgas que és melhor que os outros todos, não julgas.

– Cala-te, Benjy – disse a Caddy. – Olha que incomodas a Mãe. Cala-te.

Mas eu não me calei e quando ela se foi embora fui atrás dela e ela parou nas escadas e ficou à espera e eu também parei.

– O que queres, Benjy – disse a Caddy. – Pede à Caddy. Ela faz. Experimenta.

– Candace – disse a Mãe.

– Sim – disse a Caddy.

– Porque estás a arreliá-lo – disse a Mãe. – Trá-lo para aqui.

Fomos para o quarto da Mãe, onde ela estava deitada com a doença metida num pano que tinha na cabeça.

– O que é que foi desta vez, Benjamin – disse a Mãe.

– Benjy – disse a Caddy. Veio ter comigo outra vez, mas eu virei-lhe as costas.

– Alguma tu lhe fizeste – disse a Mãe. – Porque não o deixas em paz, para eu poder ter um pouco de sossego. Dá-lhe a caixa e por favor vai-te embora e deixa-o em paz.

A Caddy foi buscar a caixa, pousou-a no chão e abriu-a. Estava cheia de estrelas. Quando eu estava quieto, elas estavam quietas. Quando eu me mexia, elas brilhavam e cintilavam. Calei-me.

Nisto, ouvi os passos da Caddy e comecei outra vez.

– Benjamin – disse a Mãe. – Vem cá. – Fui até à entrada da porta. – Ai, ai, Benjamin – disse a Mãe.

– O que foi agora – disse o Pai. – Onde vais.

– Leva-o lá para baixo e arranja alguém para tomar conta dele, Jason – disse a Mãe. – Sabes que estou doente, mas mesmo assim

Saímos do quarto e o Pai fechou a porta.

– T. P. – disse ele.

– Siô – disse o T. P. lá de baixo.

– O Benjy vai descer – disse o Pai. – Vai ter com o T. P., Benjy.

Fui até à porta da casa de banho. Ouvia a água lá dentro.

– Benjy – disse o T. P. de lá de baixo.

Eu ouvia a água. Pus-me à escuta.

– Benjy – disse o T. P. de lá de baixo.

Eu estava a ouvir a água.

Deixei de ouvir a água e a Caddy abriu a porta.

– Oh, Benjy – disse ela. Pôs-se a olhar para mim e eu fui ter com ela e ela abraçou-me. – Encontraste a Caddy outra vez – disse ela. – Julgavas que a Caddy tinha fugido. – A Caddy cheirava como as árvores.

Fomos para o quarto da Caddy. Ela sentou-se ao espelho. Parou de mexer com as mãos e olhou para mim.

– Que tens, Benjy – disse ela. – Não chores. A Caddy não se vai embora. Queres ver – disse ela. Pegou no frasco, tirou a rolha e aproximou-mo do nariz. – É bom. Cheira. Que bom.

Eu fui-me embora, mas não me calei, e ela ficou com o frasco na mão a olhar para mim.

– Oh – disse ela. Pousou o frasco, veio ter comigo e abraçou-me. – Então era isso que tu querias dizer à Caddy e não eras capaz. Querias, mas não eras capaz, pois não. Claro que a Caddy não vai fazer uma coisa dessas. Claro que não. Espera só até eu me vestir.

A Caddy vestiu-se, pegou outra vez no frasco e fomos para a cozinha.

– Dilsey – disse a Caddy –, o Benjy tem um presente para ti. – Baixou-se e pôs-me o frasco na mão. – Agora dá-o à Dilsey. – A Caddy pegou-me na mão, estendeu-a e a Dilsey pegou no frasco.

– Si, sinhô – disse a Dilsey. – Não é que o meu menino deu à Dilsey um frasco de perfume. Olha só pa isto, Roskus.

A Caddy cheirava como as árvores. – Nós não gostamos de perfume – disse a Caddy.

Ela cheirava como as árvores.

– Então, então – disse a Dilsey. – Já tá muito crescido pa dormir acompanhado. Já tá um homenzinho. Treze anos. Já tem idade pa dormir sozinho no quarto do Tio Maury – disse a Dilsey.

O Tio Maury estava doente. Tinha um olho doente e a boca também. O Versh levou-lhe a ceia ao quarto num tabuleiro.

– O Maury diz que dá um tiro naquele patife que o mata – disse o Pai. – Disse-lhe que por enquanto o melhor era não falar nisso ao Patterson. – Bebeu um gole.

– Jason – disse a Mãe.

– Ele vai matar quem, Pai – disse o Quentin. – Porque é que o Tio Maury lhe quer dar um tiro.

– Porque não foi capaz de encaixar uma piada – disse o Pai.

– Jason – disse a Mãe. – Como podes dizer uma coisa dessas. Eras bem capaz de ficar a ver o Maury cair numa emboscada, e ainda te rias por cima.

– Então é melhor que o Maury não caia numa emboscada – disse o Pai.

– Dar um tiro em quem, Pai – disse o Quentin. – Em quem é que o Tio Maury vai dar um tiro.

– Em ninguém – disse o Pai. – Eu nem pistola tenho.

A Mãe começou a chorar. – Se é de má vontade que o sustentas, porque não tens a coragem de lho dizer na cara. Agora, francamente, rires-te dele em frente das crianças, sem ele estar presente.

– Mas eu não faço isso – disse o Pai. – Eu até admiro o Maury. É inestimável para o meu sentido de superioridade racial. Não trocava o Maury por uma parelha de puros-sangues. E sabes porquê, Quentin.

– Não, senhor – disse o Quentin.

Et ego in arcadia esqueci-me de como se diz feno em latim – disse o Pai. – Pronto. Pronto – disse ele. – Estava só a brincar. – Acabou de beber, pousou o copo e pôs a mão no ombro da Mãe.

– Isto não é brincadeira nenhuma – disse a Mãe. – A minha família é tão bem-nascida quanto a tua. Lá por o Maury ter pouca saúde.

– Claro – disse o Pai. – A pouca saúde é a razão principal da vida. Criado pela doença, na putrefação, até à decomposição. Versh.

– Siô – disse o Versh por detrás da minha cadeira.

– Vai encher a garrafa outra vez.

– E diz à Dilsey que venha buscar o Benjamin para o levar para a cama – disse a Mãe.

– Já tá um rapagão – disse a Dilsey. – A Caddy tá cansada de dormir consigo. Vá, agora cale-se, senão não adormece. – O quarto desapareceu, mas eu não me calei, e o quarto voltou e a Dilsey veio sentar-se na cama a olhar para mim.

– Vá lá, seja um menino bonito e fique caladinho – disse a Dilsey. – Já vi que não vai sê, pois não. Então espere um bocadinho.

Foi-se embora. Não havia nada na porta. Depois apareceu a Caddy.

– Chhhh – disse a Caddy. – Já aqui estou.

Calei-me e a Dilsey puxou a colcha para baixo e a Caddy meteu-se entre a colcha e o cobertor, sem tirar o roupão de banho.

– Pronto – disse ela. – Já aqui estou. – A Dilsey trouxe um cobertor e deitou-o por cima dela, aconchegando-a.

– Ele adormece num instante – disse a Dilsey. – Vou deixá a luz do seu quarto acesa.

– Está bem – disse a Caddy. Deitou a cabeça na almofada, encostada à minha. – Boa noite, Dilsey.

– Boa noite, meu amô – disse a Dilsey. O quarto ficou às escuras. A Caddy cheirava a árvores.

Ficámos a olhar para a árvore onde ela estava empoleirada.

– Que tá ela a vê, Versh – bichanou a Frony.

– Chhhhhhh – disse a Caddy da árvore. E a Dilsey disse:

– Venham já p’aqui. – Vinha a dobrar a esquina da casa. – Porqu’é que não vão todos lá pa cima como o vosso pai mandou, em vez de m’apanharem de costas e fugirem p’aqui. Onde tá a Caddy, e o Quentin.

– Eu bem lhe disse para não trepar à árvore – disse o Jason. – Vou fazer queixa dela.

– Quem tá em que árvore – disse a Dilsey. Aproximou-se e olhou para cima. – Caddy – disse ela. Os ramos começaram a abanar outra vez.

– Sua atrevida – disse a Dilsey. – Desça já daí.

– Fala baixo – disse a Caddy. – Não sabes que o Pai disse para não fazermos barulho. – As pernas dela apareceram e a Dilsey esticou-se e tirou-a da árvore.

– O que tens tu na cabeça pr’òs deixares vir p’aqui – disse a Dilsey.

– Não consegui fazê nada dela – disse o Versh.

– O que tão vocês todos a fazê aqui – disse a Dilsey. – Quem vos mandou vir p’aqui rondá a casa.

– Foi ela – disse a Frony. – Foi ela que disse pa virmos.

– E quem vos disse pa fazerem o que ela diz – disse a Dilsey. – Toca a ir pa casa. E já. – A Frony e o T. P. foram à frente. Já não os víamos apesar de ainda irem perto.

– Aqui fora no meio da noite – disse a Dilsey. Agarrou em mim e fomos para a cozinha.

– A fugir pela calada – disse a Dilsey. – Quando sabia que já tinha passado a hora de se deitá.

– Chhhhh, Dilsey – disse a Caddy. – Não fales tão alto. Não podemos fazer barulho.

– Então veja se cala a boca e fica quieta – disse a Dilsey. – Onde tá o Quentin.

– O Quentin está furioso porque esta noite quem mandava era eu – disse a Caddy. – Ele ainda tem o frasco dos pirilampos do T. P.

– O T. P. passa bem sem ele – disse a Dilsey. – Vai procurá o Quentin, Versh. O Roskus diz que o viu ir pò estábulo. – O Versh foi-se embora. Já não o víamos.

– Eles não estão a fazer nada lá dentro – disse a Caddy. – Estão só sentados a olhar.

– E não precisam da vossa ajuda pa nada – disse a Dilsey. Fomos de volta até à cozinha.

Onde é que qué ir agora, disse o Luster. Vai voltá pa trás pòs vê a jogá à bola outra vez. Fartámo-nos de a procurá por lá. Deixe-se ficá aqui. Pere um bocadinho. Fique aqui à espera qu’eu vou lá e trago a bola. Tive uma ideia.

A cozinha estava escura. As árvores projetavam-se negras no céu. O Dan saiu do vão da escada todo lampeiro e mordiscou-me o tornozelo. Fui de volta pela cozinha até onde estava a lua. O Dan veio atrás de mim rasteiro, para o meio do luar.

– Benjy – disse o T. P. de dentro de casa.

A árvore das flores junto à janela da sala não estava escura, mas as árvores grandes estavam. A relva zumbia ao luar quando a minha sombra caminhava sobre ela.

– Eh, Benjy – disse o T. P. de dentro de casa. – Onde é que se meteu. Tá a rabiá, eu sei.

O Luster voltou. Pere, disse ele. Aqui. Não vá p’ali. Miss Quentin tá acolá co noivo na rede. Venha por aqui. Volte já p’aqui, Benjy.

Estava escuro debaixo das árvores. O Dan não quis ir para lá. Deixou-se ficar ao luar. Nisto vi a rede e comecei a chorar.

Saia daí, Benjy, disse o Luster. Sabe que Miss Quentin se vai zangá consigo.

Primeiro eram dois e depois era só um na rede. A Caddy veio a correr, toda branca na escuridão.

– Benjy – disse ela. – Como é que te escapaste. Onde está o Versh.

Abraçou-me e eu calei-me e agarrei-me ao vestido dela e tentei puxá-la dali para fora.

– Porquê, Benjy – disse ela. – O que foi. T. P. – chamou ela.

O que estava na rede saiu de lá e veio ter connosco, e eu comecei a chorar e a puxar pelo vestido da Caddy.

– Benjy – disse a Caddy. – É só o Charlie. Tu conheces o Charlie.

– Onde está o negro dele – disse o Charlie. – Porque é que o deixam andar cá fora.

– Está caladinho, Benjy – disse a Caddy. – Vai-te embora, Charlie. Ele não gosta de ti. – O Charlie afastou-se e eu calei-me. Puxei pelo vestido da Caddy.

– Porquê, Benjy – disse a Caddy. – Então não me deixas ficar aqui a conversar um bocadinho com o Charlie.

– Chama lá esse negro – disse o Charlie. Voltou para ao pé de nós. E eu desatei a chorar ainda com mais força e a puxar pelo vestido da Caddy.

– Vai-te embora, Charlie – disse a Caddy. O Charlie aproximou-se e pôs as mãos em cima da Caddy e eu gritei ainda mais. Gritava que me fartava.

– Não, não – disse a Caddy. – Não, não.

– Ele não fala – disse o Charlie. – Caddy.

– Estás louco ou quê – disse a Caddy. E começou a respirar muito depressa. – Mas ele não é cego. Não. Não faças isso. – A Caddy lutava. Respiravam os dois muito depressa. – Por favor. Por favor – sussurrava a Caddy.

– Manda-o embora – disse o Charlie.

– Vou mandar – disse a Caddy. – Larga-me.

– Então, vais mandá-lo embora ou não – disse o Charlie.

– Vou – disse a Caddy. – Larga-me. – O Charlie foi-se embora. – Cala-te – disse a Caddy. – Ele já se foi embora. – Calei-me. Ouvia-lhe a respiração e sentia-lhe o peito a arfar.

– Tenho de o levar para casa – disse ela. Pegou-me na mão. – Não demoro – sussurrou ela.

– Espera – disse o Charlie. – Chama o negro.

– Não – disse a Caddy. – Eu volto já. Anda, Benjy.

– Caddy – disse o Charlie, num murmúrio bastante audível. Mas nós continuámos. – É melhor que voltes. Vais voltar, não vais. – A Caddy e eu desatámos a correr. – Caddy – disse o Charlie. Corremos até à cozinha iluminados pelo luar.

– Caddy – disse o Charlie.

A Caddy e eu continuámos a correr. Galgámos os degraus da cozinha e, quando chegámos ao alpendre, a Caddy ajoelhou-se no escuro e abraçou-me. Podia ouvi-la respirar e sentir o seu peito a arfar. – Não volto a fazer isto – disse ela. – Nunca mais, Benjy. Benjy. – Nisto, começou a chorar e eu pus-me a chorar também e abraçámo-nos um ao outro. – Cala-te – disse ela. – Cala-te. Eu prometo. – Calei-me e a Caddy levantou-se e fomos para a cozinha e acendemos a luz e a Caddy pegou no sabão da cozinha e foi para o lava-loiça lavar a boca com toda a força. A Caddy cheirava como as árvores.

Já estou farto de lhe dizê pa não ir p’ali, disse o Luster. Eles foram pà rede, depressa. A Quentin segurava o cabelo com as mãos. Ele tinha uma gravata vermelha.

Sabes que mais, meu parvalhão, disse a Quentin, vou dizer à Dilsey que tu o deixas vir atrás de mim para todo o lado. Vou dizer-lhe que te dê uma boa surra.

– Não pude fazê nada – disse o Luster. – Venha cá, Benjy.

– Podias sim – disse a Quentin. – Mas nem tentaste. Estavam os dois a espiar-me. Foi a Avó que vos mandou a todos para aqui para me espiarem. – Saltou da rede. – Se não o levares já daqui para fora ou se o deixares voltar para aqui, digo ao Jason que te dê uma surra.

– Eu não consigo fazê nada dele – disse o Luster. – Tente a Miss Quentin s’acha qu’é capaz.

– Cala a boca – disse a Quentin. – Vais ou não vais tirá-lo daqui.

– Ora, deixa-o ficar – disse ele. Tinha uma gravata vermelha. O sol enchia-a de reflexos vermelhos. – Ouve lá, Jack.– Nisto ele acendeu um fósforo e meteu-o na boca. Depois tirou o fósforo da boca. Ainda estava a arder. – Queres experimentar – disse ele. Fui até lá. – Abre a boca – disse ele. Abri a boca. A Quentin deu uma sapatada no fósforo e o fósforo foi-se embora.

– Vai para o diabo – disse a Quentin. – Queres que ele comece. Não sabes que depois nunca mais se cala. Vou fazer queixa de ti à Dilsey. – E foi-se embora a correr.

– Anda cá, miúda – disse ele. – Eh. Volta para aqui. Eu não me meto mais com ele.

A Quentin correu para casa. Deu a volta e entrou pela porta da cozinha.

– Agora é que a fizeste bonita, Jack – disse ele. – Olá se fizeste.

– Ele não ouve o que vossemecê tá a dizê – disse o Luster. – É surdo-mudo.

– Ah, é – disse ele. – Há quanto tempo tá ele assim.

– Tá assim faz hoje trinta e três anos – disse o Luster. – Nasceu pateta. Vossemecê faz parte dessa gente do espetáculo.

– Porquê – disse ele.

– Não m’alembra d’o vê por cá antes – disse o Luster.

– Sim, e depois – disse ele.

– Nada – disse o Luster. – Vou lá esta noite.

Ele olhou para mim.

– Vossemecê não será aquele que toca música c’uma serra – disse o Luster.

– Se quiseres saber tens de gastar vinte e cinco cêntimos – disse ele. Olhou para mim. – Porque é que eles não o fecham dentro de casa – disse ele. – Para que é que o trazes cá para fora.

– Não me pergunte a mim – disse o Luster. – Eu não posso fazê nada. Só vim té aqui pa vê s’acho a moeda que perdi pa podê ir logo ò espetáculo. E parece que não vou podê ir. – O Luster procurava no chão. – Por acaso vossemecê não tem uma moedita a mais, poi não – disse o Luster.

– Não – disse ele. – Não tenho.

– Tá visto que tenho d’encontrá a outra – disse o Luster. Meteu a mão no bolso. – Por acaso tamém não qué comprá uma bola de golfe, poi não – disse o Luster.

– Que espécie de bola – disse ele.

– Uma bola de golfe – disse o Luster. – Só peço vinte e cinco cêntimos por ela.

– Para quê – disse ele. – Para que é que eu quero isso.

– Também não me pareceu que quisesse – disse o Luster. – Venha p’aqui, seu cabeça de burro. Venha p’aqui vê-los batê na bola. Aqui. Tome lá isto, é pa juntá à sua erva-do-diabo. – E o Luster apanhou uma coisa e deu-ma. Era brilhante.

– Onde é que arranjaste isso – disse ele. Quando ele andava, a gravata ficava toda vermelha ao sol.

– Encontrei isto aqui debaixo do arbusto – disse o Luster. – Primeiro té pensei qu’era a moeda.

Ele aproximou-se e tirou-me a tal coisa da mão.

– Cale-se – disse o Luster. – Ele já lhe dá isso outra vez assim que vir o que é.

– Olha um Agnes Mabel Becky2 – disse ele, olhando para a fachada da casa.

– Cale-se – disse o Luster. – Ele já lhe dá isso outra vez.

Ele deu-mo e eu calei-me.

– Quem é que veio ter com ela ontem à noite – disse ele.

– Não sei – disse o Luster. – Eles vêm sempre qu’ela consegue descê pela árvore pò lado de lá. Não lhes peço pa deixarem a assinatura.

– Pois raios me partam se um deles não deixou a assinatura – disse ele. Olhou para a casa. Depois foi deitar-se na rede. – Vai-te embora – disse ele. – Não me incomodes.

– Venha cá – disse o Luster. – Agora é qu’a fez bonita. Miss Quentin já deve tê ido fazê queixa de si.

Fomos até à cerca e pusemo-nos a espreitar pelos intervalos entre as pétalas encaracoladas das flores. O Luster continuava à cata na relva.

– Eu tinha-a quando aqui tava – disse ele. Eu via a bandeira a adejar e o sol a inclinar-se sobre o prado.

– Daqui a nada elas aparecem – disse o Luster. – Já se veem algumas, mas vão-se logo embora. Venha ajudar-me a procurá-la.

Fomos pela cerca fora.

– Cale-se – disse o Luster. – Como é qu’as hei de obrigá a vir p’aqui s’elas não querem vir. Pere um bocadinho. Não tarda tão a aparecê por aí. Olhe p’ali. Lá vêm elas.

Fui pela cerca fora até ao portão, por onde passavam as raparigas com as sacolas. – Oh, Benjy – disse o Luster.

– Volte p’aqui.

Não lhe serve de nada ir espreitá ao portão, disse o T. P. Miss Caddy já se foi pa muito longe. Casou-se e deixou-o ficar. Não lhe serve de nada ficá agarrado ao portão a chorá. Ela não o ouve.

O que é que ele quer, T. P, disse a Mãe. Não és capaz de brincares com ele para ver se ele fica calado.

Ele qué ir lá pa baixo pò portão, disse o T. P.

Está bem, mas isso não pode ser, disse a Mãe. Está a chover. Tens de ficar a brincar com ele para ele estar calado. Oh, Benjamin.

Não há nada qu’o faça calá, disse o T. P. Ele julga que se for pò portão, Miss Caddy vai voltá.

Tolices, disse a Mãe.

Não conseguia ouvir o que diziam. Saí lá para fora e não os conseguia ouvir, e fui até ao portão, por onde passavam as raparigas com as sacolas. Elas voltavam a cabeça e ficavam a olhar para mim quando passavam apressadas. Eu tentava falar-lhes, mas elas iam-se embora, e eu ia pela cerca fora a tentar falar-lhes, e elas punham-se a andar mais depressa. Depois punham-se a correr e eu ia até à esquina da cerca e já não podia avançar mais, e ficava agarrado à cerca a olhar para elas e a tentar falar-lhes.

– Oh, Benjy – disse o T. P. – O que tá a fazê, a fugir dessa maneira. Não sabe qu’a Dilsey lhe vai batê. Não lhe serve de nada fica p’aí a gemê e a chorá agarrado à cerca – disse o T. P. – Assusta as miúdas. Olhe pa elas, atravessaram pò outro lado.

Como é que ele conseguiu sair, disse o Pai. Deixaste o portão aberto quando entraste, Jason.

Claro que não, disse o Jason. Não sou assim tão estúpido. Acha-me capaz de uma coisa dessas. Deus sabe que esta família já tem problemas que cheguem. Eu já o podia ter avisado. Acho que é desta que o vai mandar para Jackson. Se Mr. Burgess não lhe der um tiro primeiro.

Cala-te, disse o Pai.

Já o podia ter avisado há muito tempo, disse o Jason.

Estava aberto quando lhe toquei, e fiquei ali, agarrado a ele, à luz do entardecer. Eu não estava a chorar e tentei parar, para ver as raparigas aproximarem-se ao lusco-fusco. Eu não estava a chorar.

– Lá está ele.

Pararam.

– Ele não pode sair dali. E mesmo que saia também não faz mal a ninguém. Anda daí.

– Ele não pode sair.

Eu não estava a chorar.

– Não sejas medricas. Anda daí.

Elas aproximavam-se ao lusco-fusco. Eu não estava a chorar e estava agarrado ao portão. Elas aproximavam-se devagar.

– Tenho medo.

– Ele não te faz mal. Passo aqui todos os dias. Põe-se só a correr pela cerca fora.

Elas aproximaram-se. Abri o portão e elas pararam e deram meia volta. Eu tentava falar-lhe, e agarrei-a, e tentava falar-lhe, e ela gritava e eu tentava falar-lhe, eu tentava, e as formas brilhantes começaram a parar e eu tentei sair. Tentei tirá-las da minha cara, mas as formas brilhantes começaram outra vez a passar. Elas iam pela encosta acima, para onde ela caía para o outro lado, e eu tentei gritar. Mas quando metia ar, não conseguia fazê-lo sair para gritar, e tentava a todo o custo não cair da colina, mas caí da colina abaixo para o meio das formas brilhantes que não paravam de rodopiar.

Eh, idiota, disse o Luster. Lá vêm uns. Veja se para de chorá e de berrá.

Vieram até à bandeira. Ele tirou-a e eles bateram, e ele voltou a colocar a bandeira.

– Sinhô – disse o Luster.

Ele olhou em volta. – O que é – disse ele.

– Qué comprá uma bola de golfe – disse o Luster.

– Vamos ver – disse ele. Chegou-se à cerca e o Luster passou a bola para o outro lado.

– Onde a arranjaste – disse ele.

– Encontrei-a – disse o Luster.

– Isso sei eu – disse ele. – Mas onde. Talvez dentro de algum saco de equipamento.

– Encontrei-a aqui caída no chão – disse o Luster. – Só quero vinte e cinco cêntimos por ela.

– E porque dizes que é tua – disse ele.

– Porque a encontrei – disse o Luster.

– Pois então trata de ir procurar outra – disse ele. Meteu a bola no bolso e foi-se embora.

– Tenho de ir logo à noite ò espetáculo – disse o Luster.

– Ah, ele é isso – disse ele. Foi até à tabela. – Cá vai, caddie – disse ele. E deu uma tacada.

– Ora esta – disse o Luster. – Barafustam se não as encontram e barafustam s’as encontram. Veja se tá calado. Não percebe qu’as pessoas ficam cansadas de o ouvir. Olhe. Deixou cair a sua erva-do-diabo. – Apanhou-a e deu-ma outra vez. – Precisa duma nova. Essa já tá toda desfeita. – Ficámos a vê-los da cerca.

– Aquele branco não é pa graças – disse o Luster. – Viu como ele me tirou a bola. – Eles foram-se afastando e nós fomos andando pela cerca fora. Chegámos ao jardim e daí já não pudemos passar. Agarrei-me à cerca e espreitei pelos intervalos das flores. Eles foram-se embora.

– Agora não tem razão pa chorá – disse o Luster. – Cale-se. Quem tem razão de queixa sou eu, não é vossemecê. Olhe. Porqu’é que não s’entretém co esta flor. Daqui a nada tá a chorá por causa dela. – Deu-me a flor. – Pa onde vai agora.

As nossas sombras estavam na relva. E chegaram às árvores antes de nós. A minha foi a primeira a chegar. Depois chegámos nós, mas as sombras já se tinham ido embora. Havia uma flor dentro da garrafa. Meti lá a outra flor.

– Agora já é um homem crescido – disse o Luster. – A brincá com duas flores dentro duma garrafa. Sabe o qu’é que lhe vão fazê quando Miss Ca’line morrê. Vão mandá-lo pa Jackson, que lá é qu’é o seu lugá. É o que diz Mr. Jason. Lá pode passá os dias todos a chorá agarrado à grades cos outros maluquinhos. Que tal.

O Luster roubou-me as flores. – É isto que lhe fazem em Jackson quando começá a berrá.

Tentei apanhar as flores. O Luster apanhou-as primeiro e elas desapareceram. Comecei a chorar.

– Isso, berre – disse o Luster. – Berre à vontade. Qué que lhe dê uma razão pa berrá. Então tá bem. Caddy – disse ele baixinho. – Caddy. Agora já pode berrá. Caddy.

– Luster – disse a Dilsey da cozinha.

As flores voltaram a aparecer.

– Cale-se – disse o Luster. – Vamos pa dentro. Hoje pintou a manta. Vá, levante-se. – Puxou-me pelo braço e levantei-me. Saímos de debaixo das árvores. As nossas sombras tinham desaparecido.

– Cale-se – disse o Luster. – Olhe p’àquela gente toda a olhá pa si. Cale-se.

– Trá-lo p’aqui – disse a Dilsey. Desceu os degraus.

– O que é que lhe fizeste agora – disse ela.

– Não lhe fiz nada – disse o Luster. – Ele é que começou a berrá sem mais nem menos.

– Fizeste sim – disse Dilsey. – Fizeste-lhe alguma coisa. Onde é que estiveram.

– Além, debaixo dos cedros – disse o Luster.

– Só pa irritares a Quentin – disse a Dilsey. – Porque não o levas pa longe dela. Não sabes qu’ela não gosta qu’ele ande por ond’ela anda.

– Ela tem tanto tempo pa cuidá dele como eu – disse o Luster. – Ele não é meu tio.

– Não me provoques, negro atrevido – disse a Dilsey.

– Eu não lhe fiz nada – disse o Luster. – Ele estava ali a brincá e de repente começou a berrá.

– Foste-lhe bulir co cemitério – disse a Dilsey.

– Não lhe toquei no cemitério – disse o Luster.

– Não mintas, rapaz – disse a Dilsey. Subimos os degraus e entrámos na cozinha. A Dilsey abriu a porta do fogão, foi buscar uma cadeira, pô-la à frente da lareira e eu sentei-me. Calado.

Queres qu’ela comece, disse a Dilsey. Pa qu’o deixaste ir p’aí.

Ele estava só a olhar para a fogueira, disse a Caddy. A Mãe estava a ensinar-lhe o seu novo nome. Não a queríamos fazer chorar.

Sei que não, disse a Dilsey. Ele estava num extremo da casa e ela no outro. Deixa as minhas coisas em paz, ouviste. Não mexas em nada até eu voltar.

– Não tem vergonha – disse a Dilsey. – A arreliá-lo dessa maneira. – Pôs o bolo em cima da mesa.

– Eu não tava a arreliá-lo – disse o Luster. – Ele tava a brincá co aquela garrafa cheia de ervas e de repente começou a berrá. Vossemecê bem ouviu.

– Não lhe tocaste nas flores – disse a Dilsey.

– Não lhe toquei no cemitério não – disse o Luster. – Pa que quero eu as ervas dele. Andava só à procura dos meus vinte e cinco cêntimos.

– Perdeste-os, não foi – disse a Dilsey. Acendeu as velas. Umas eram pequenas. Outras eram grandes cortadas aos bocadinhos. – Disse-te pò guardares. Já sei, agora queres qu’eu vá pedir outra moeda à Frony.

– Tenho de ir ò espetáculo e o Benjy que s’arranje – disse o Luster. – Não vou passá a vida toda atrás dele, de dia e de noite.

– Tu vais fazê exatamente o que ele te mandá, tás a ouvir, negrinho duma figa – disse a Dilsey.

– Não foi o qu’eu fiz sempre – disse o Luster. – Faço sempre o qu’ele qué. Faço, não faço, Benjy.

– Pois tens de continuá a fazê – disse a Dilsey. – Trazê-lo p’aqui a chorá e pô-la a chorá também. Vá, agora vão todos comê o bolo antes que chegue o Jason. Não quero qu’ele se ponha a ralhá comigo por causa dum bolo qu’eu comprei co meu dinheiro. Havia de sê bonito, fazê o bolo aqui em casa, co ele a contá cada ovo qu’entra na cozinha. E agora vê s’o deixas em paz, a não sê que não queiras ir logo à noite ò espetáculo.

A Dilsey foi-se embora.

– Já que não é capaz d’apagá as velas – disse o Luster –, veja como eu as apago. – Baixou-se para o bolo e soprou com toda a força. As velas apagaram-se. Comecei a chorar. – Cale-se – disse o Luster. – Olhe. Fique aqui a olhá pò lume enquant’eu corto o bolo.

Ouvia o relógio e ouvia a Caddy de pé atrás de mim, e ouvia o telhado. Ainda está a chover, disse a Caddy. Detesto a chuva. Detesto tudo. E então a cabeça dela veio ter ao meu colo e ela estava a chorar abraçada a mim e eu comecei a chorar. Depois olhei para o lume outra vez e as formas brilhantes e suaves reapareceram. Ouvia o relógio e o telhado e a Caddy.

Comi um bocado de bolo. A mão do Luster apareceu e tirou outro bocado. Ouvia-o mastigar. Pus-me a olhar para o lume.

Um arame comprido passou-me por cima do ombro. Ia até à porta e o fogo desapareceu. Comecei a chorar.

– Porqu’é que tá a gritá agora – disse o Luster. – Olhe p’ali. – O lume estava lá outra vez. Calei-me. – Veja se fica sentado a olhá pò fogo como a ’nha mãe mandou – disse o Luster. – Devia tê vergonha. Tome. Coma mais um bocado de bolo.

– O que foi que lhe fizeste agora – disse a Dilsey. – Não serás capaz d’o deixares sossegado.

– Estava só a vê s’ele se calava, e não incomodava Miss Ca’line – disse o Luster. – Mas alguma coisa o irritou.

– E essa coisa tem nome – disse a Dilsey. – Vou mandá o Versh dar-te umas boas vergastadas quando chegá. Tás só a vê té onde podes ir. Passaste o dia todo nisso. Levaste-o té ao riacho.

– Nã sinhô – disse o Luster. – Passámos o dia todo aqui mesmo no quintal, como nos disse pa fazê.

A mão dele veio buscar mais uma fatia de bolo. A Dilsey deu-lhe uma palmada. – Mete lá a mão outra vez e corto-ta rente co esta faca. – disse a Dilsey. – Aposto que ele inda não comeu nada.

– Isso é que comeu – disse o Luster. – Já comeu o dobro de mim. Ora pergunte-lhe.

– Experimenta ires lá outra vez ca mão – disse a Dilsey. – Experimenta só.

É isso mesmo, disse a Dilsey. Acho que chegou a minha vez de chorá. Acho que o Maury também me vai fazê chorá por ele.

O nome dele agora é Benjy, disse a Caddy.

Essa agora, disse a Dilsey. Ele inda não gastou o nome com que nasceu, pois não.

Benjamin é um nome tirado da Bíblia, disse a Caddy. Assenta-lhe melhor do que lhe assentava Maury.

Essa agora. Porquê, disse a Dilsey.

Porque a Mãe diz que sim, disse a Caddy.

Ora, ora, disse a Dilsey. Não é o nome que o vai ajudá. Mas também não lhe vai fazê mal. Não dá sorte mudá de nome. O meu nome é Dilsey desde que me conheço e já era antes disso e há de continuá a sê Dilsey quando já ninguém se lembrá de mim.

Como é que vão saber que é Dilsey quando já não se lembrarem de ti, disse a Caddy.

Está no livro, meu amô, disse a Dilsey. Escrito com todas as letras.

E consegues lê-lo, disse a Caddy.

Não vai sê preciso, disse a Dilsey. Eles leem-no por mim. Tudo o qu’eu tenho a fazê é dizê que estou aqui.

O arame comprido passou-me pelo ombro e o lume desapareceu. Comecei a chorar.

A Dilsey e o Luster continuaram a discutir.

– Eu bem te vi – disse a Dilsey. – Olá se vi. – Puxou o Luster do canto para fora e abanou-o. – Com que então não estavas a arreliá-lo, pois não. Espera só té o teu pai chegá. Quem me dera sê nova como noutros tempos e ias vê como elas mordiam. Só me dá vontade de te fechá na adega e não te deixá ir ò espetáculo logo à noite. Podes crê.

– Oh, vó – disse o Luster. – Oh, vó.

Estendi a mão para o sítio onde tinha estado o fogo.

– Agarra-o – disse a Dilsey. – Não o deixes lá chegá.

A minha mão saltou para trás e meti-a na boca e a Dilsey agarrou-me. Ainda conseguia ouvir o relógio misturado com a minha voz. A Dilsey estendeu o braço e bateu na cabeça do Luster. A minha voz soava cada vez mais alto.

– Dá cá essa gasosa – disse a Dilsey. Tirou-me a mão da boca. Pus-me a chorar ainda mais alto e a minha mão tentava voltar para a boca, mas a Dilsey segurou-a. A minha voz ouvia-se ainda mais alto. Ela salpicou-me a mão com gasosa.

– Vai à despensa e rasga um bocado do pano que está pendurado no prego – disse ela. – Agora cale-se. Não qué qu’a sua mãe fique doente outra vez, pois não. Pronto. Olhe pò lume. A Dilsey vai já fazê a mão pará de doê. Olhe pò lume. – Ela abriu a porta da fornalha. Pus-me a olhar para o lume, mas a minha mão não parava de doer e eu não parava de chorar. A mão queria vir para a minha boca, mas a Dilsey estava a segurá-la.

Atou-lhe o pano à volta. A Mãe disse,

– O que foi desta vez. Será que nem quando estou doente posso ter paz. Será que tenho de sair da cama e ir ter com ele aí abaixo, com dois negros adultos para tomar conta dele.

– Ele já tá bem – disse a Dilsey. – Ele cala-se já. Foi só uma queimadela na mão.

– Dois negros desse tamanho e tinham de o trazer para dentro de casa a chorar – disse a Mãe. – Fizeram-no chorar de propósito porque sabem que estou doente. – Veio para junto de mim. – Está calado – disse ela. – Já calado. Vocês deram-lhe este bolo.

– Fui eu qu’o comprei – disse a Dilsey. – Não veio da despensa do Jason. Foi pò aniversário dele.

– Queres envenená-lo com esse bolo de terceira categoria – disse a Mãe. – É isso que queres, não é. Será que não consigo ter paz nem por um momento.

– Volte pa cima e vá-se deitá – disse a Dilsey. – Isto passa num instante e ele cala-se já. Vá, vá pa cima.

– E deixá-lo aqui para vocês lhe fazerem mais alguma – disse a Mãe. – Como posso eu estar lá em cima deitada, com ele a gritar cá em baixo desta maneira. Benjamin. Cala-te imediatamente.

– Não há outro sítio pa onde o levá – disse a Dilsey. – Já não temos o quarto que tínhamos antigamente. E ele não pode ficá lá fora a chorá onde todos os vizinhos o vejam.

– Eu sei, eu sei – disse a Mãe. – A culpa é toda minha. Mas qualquer dia desapareço, e tu e o Jason já se vão sentir mais à vontade. – E começou a chorar.

– Veja se para com isso – disse a Dilsey. – Assim vai piorá outra vez. Volte pa cima. O Luster vai levá-lo pà biblioteca e fica lá com ele té eu tê a ceia pronta.

A Dilsey e a Mãe saíram.

– Cale-se – disse o Luster. – Cale-se, já disse. Ou qué que lhe queime a outra mão. Isso já não lhe tá a doê. Cale-se.

– Pronto – disse a Dilsey. – Agora pare de chorá. – Deu-me o chinelo e eu calei-me. – Leva-o pà biblioteca – disse ela. – E s’o voltá a ouvir, sou eu mesma que te dou uma surra.

Fomos para a biblioteca. O Luster acendeu a luz. As janelas ficaram pretas e o sítio alto e escuro da parede veio direito a mim e eu avancei e toquei-lhe. Era como uma porta, mas não era uma porta.

O fogo veio por detrás de mim e eu avancei para o fogo, com o chinelo na mão. O fogo era mais alto. Chegava à almofada da cadeira da Mãe.

– Cale-se – disse o Luster. – Será que não é capaz de pará nem por um momento. Olhe, fiz-lhe uma fogueira, e nem sequé olha pa ela.

O teu nome é Benjy, disse a Caddy. Estás a ouvir. Benjy. Benjy.

Não lhe digas isso, disse a Mãe. Trá-lo cá.

A Caddy pegou-me por baixo dos braços e ajudou-me a levantar.

Levanta-te, Maur... quero dizer, Benjy, disse ela.

Não tentes pegar-lhe, disse a Mãe. Podes ajudá-lo a vir até aqui, não podes. Ou será pedir muito.

Eu posso levá-lo, disse a Caddy. – Deixe-me levá-lo para cima. Dilsey.

– Então vá lá. Um momento – disse a Dilsey. – Não pode nem com uma gata pelo rabo. Vá e fique queta como Mr. Jason mandou.

Estava uma luz acesa ao cimo das escadas. O Pai estava lá em cima em mangas de camisa. A cara dele era como se dissesse Cala-te. A Caddy murmurou,

– A Mãe está doente.

O Versh pousou-me no chão e fomos ao quarto da Mãe. Havia uma fogueira. Subia e descia pelas paredes. Havia outra fogueira no espelho. Eu sentia o cheiro da doença. Estava num pano que a Mãe tinha enrolado à cabeça. O cabelo dela estava na almofada. O fogo não chegava lá, mas brilhava na mão dela, cheia de anéis a saltarem dos dedos.

– Vem dar as boas-noites à Mãe – disse a Caddy. Aproximámo-nos da cama. O fogo desapareceu do espelho. O Pai levantou-se da cama e pegou-me ao colo e a Mãe pôs-me a mão na cabeça.

– Que horas são – disse a Mãe. Os olhos dela estavam fechados.

– Dez para as sete – disse o Pai.

– É muito cedo para ele ir para a cama – disse a Mãe. – Depois acorda ao nascer do Sol, e eu não vou aguentar um outro dia como o de hoje.

– Então, então – disse o Pai. E acariciou o rosto da Mãe.

– Sei bem que para ti não passo de um fardo – disse a Mãe. – Mas já falta pouco para desaparecer. E então ficarás livre das minhas lamentações.

– Está caladinha – disse o Pai. – Eu levo-o lá para baixo um bocadinho. – Pegou-me ao colo. – Vamos, meu velho. Vamos um bocadinho lá para baixo. Não podemos fazer barulho enquanto o Quentin está a estudar.

A Caddy aproximou-se da cama, inclinou-se e a mão da Mãe surgiu à luz da fogueira. Os anéis dela saltavam nas costas da Caddy.

A Mãe está doente, disse o Pai. A Dilsey vai deitar-te. Onde está o Quentin.

O Versh foi buscá-lo, disse a Dilsey.

O Pai ficou a olhar para nós quando passámos por ele. Ouvíamos a Mãe no quarto dela. A Caddy disse: – Cala-te. – O Jason vinha a subir as escadas. Vinha de mãos nos bolsos.

– Hoje têm de se portar todos muito bem – disse o Pai. – E não façam barulho, para não incomodarem a Mãe.

– Nós ficamos calados – disse a Caddy. – Cala-te, Jason – disse ela. Começámos a andar em bicos dos pés.

Ouvíamos o telhado. Eu via também o fogo no espelho. A Caddy pegou em mim outra vez.

– Vá, vamos embora – disse ela. – Depois, já podes voltar para o fogo. E agora cala-te.

– Candace – disse a Mãe.

– Cala-te, Benjy – disse a Caddy. – A Mãe quer ver-te só por um instante. Porta-te bem. Depois podes voltar para aqui, Benjy.

A Caddy pousou-me no chão, e eu calei-me.

– Deixe-o ficar aqui, Mãe. Quando ele se cansar de olhar para o fogo, então pode chamá-lo.

– Candace – disse a Mãe. A Caddy baixou-se e pegou em mim. Desequilibrámo-nos. – Candace – disse a Mãe.

– Cala-te – disse a Caddy. – Ainda o consegues ver. Vá, cala-te.

– Trá-lo cá – disse a Mãe. – Ele é muito grande para tu lhe pegares. Não estejas para aí a tentar. Ainda dás algum mau jeito às costas. Todas as nossas mulheres sempre se orgulharam do seu porte. Vê lá se queres parecer uma lavadeira.

– Ele não pesa assim tanto – disse a Caddy. – Eu consigo levá-lo.

– Bem, então sou eu que não quero que ele passe dum lado para o outro – disse a Mãe. – Uma criança de cinco anos. Não, não. No meu colo não. Deixa-o estar de pé.

– Se o abraçar, ele cala-se logo – disse a Caddy. – Chhhh – disse ela. – Vais voltar para lá agora. Então. Toma a tua almofada. Olha.

– Não faças isso, Candace – disse a Mãe.

– Deixe-o olhar para ela e ele cala-se logo – disse a Caddy. – Levanta-se um bocadinho, para eu a tirar. Pronto, Benjy, olha.

Olhei para a almofada e calei-me.

– Fazem-lhe vontades de mais – disse a Mãe. – Tu e o teu pai. E não percebem que depois quem sofre com isso sou eu. A Vovó estragou o Jason da maneira que se viu e foram precisos dois anos para ele recuperar, e eu não estou com forças para passar pelo mesmo com o Benjamin.

– Não se preocupe com ele – disse a Caddy. – Eu gosto de tomar conta dele. Não gosto, Benjy.

– Candace – disse a Mãe. – Já te disse para não o chamares assim. Já foi uma complicação quando o teu pai se lembrou de te tratar por aquele diminutivo idiota, e não quero ouvi-lo a mais ninguém. Os diminutivos são uma coisa grosseira. Só a gente do povo é que os usa. Benjamin é que é – disse ela.

– Olha para mim – disse a Mãe.

– Benjamin – disse ela. Agarrou-me a cara com as mãos e virou-a para ela.

– Benjamin – disse ela. – Leva daqui essa almofada, Candace.

– Ele vai chorar – disse a Caddy.

– Leva daqui a almofada, já disse – disse a Mãe. – Ele tem de aprender a obedecer.

A almofada foi-se embora.

– Cala-te, Benjy – disse a Caddy.

– Vai para ali e deixa-te estar sentada – disse a Mãe. – Benjamin. – Encostou a minha cara à dela.

– Para com isso – disse ela. – Para com isso.

Mas eu não parava e a Mãe apertou-me nos braços e começou a chorar, e eu ainda chorava mais. Nisto, a almofada voltou e a Caddy segurou-a por cima da cabeça da Mãe. Ela encostou a Mãe para trás na cadeira e a Mãe ficou a chorar com a cara na almofada vermelha e amarela.

– Pronto, Mãe – disse a Caddy. – Vá para cima deitar-se, senão fica pior. Eu vou chamar a Dilsey. – Ela levou-me para ao pé do fogo e eu fiquei a olhar para as formas suaves e brilhantes. Ouvia o fogo e o telhado.

O Pai pegou-me ao colo. Cheirava como a chuva.

– Então, Benjy – disse ele. – Portaste-te bem hoje.

A Caddy e o Jason estavam a lutar no espelho.

– Então, Caddy – disse o Pai.

Continuaram a lutar. O Jason começou a chorar.

– Caddy – disse o Pai. O Jason estava a chorar. Já não estava a lutar, mas víamos a Caddy a lutar no espelho e o Pai pousou-me no chão e entrou no espelho e começou a lutar também. Pegou na Caddy. Ela continuou a lutar. O Jason estava caído no chão a chorar. Tinha uma tesoura na mão. O Pai agarrou a Caddy.

– Ele cortou todos os bonecos de papel do Benjy – disse a Caddy. – Vou cortar-lhe as tripas.

– Candace – disse o Pai.

– Isso é que eu vou – disse a Caddy. – Vou e vou mesmo. – Continuava a lutar. O Pai estava a segurá-la. Ela deu um pontapé no Jason. Ele rebolou para o canto, para fora do espelho. O Pai trouxe a Caddy para junto do lume. Já tinham saído todos do espelho. Só lá ficou o lume. Tal como também estava na porta.

– Para com isso – disse o pai. – Queres que a Mãe oiça e fique pior.

A Caddy parou. – Ele cortou todos os bonecos que eu e o Maur..., digo, o Benjy fizemos – disse a Caddy. – Só por maldade.

– Não foi por maldade – disse o Jason. Estava sentado no chão, a chorar. – Não sabia que eram dele. Julguei que eram só papéis velhos.

– Tinhas de saber – disse a Caddy. – Fizeste isso só por

– Cala-te – disse o Pai. – Jason – disse ele.

– Amanhã faço-te mais – disse a Caddy. – Vamos fazer um monte deles. Toma, podes olhar para a almofada.

O Jason entrou.

Fartei-me de lhe dizê pa se calá, disse o Luster.

Que se passa agora, disse o Jason.

– Está insuportável – disse o Luster. – Tem estado assim todo o dia.

– Então porque não o deixas em paz – disse o Jason. – Se não o consegues calar, tens de o levar para a cozinha. Nós não nos podemos fechar num quarto como faz a Mãe.

– A ’nhã avó diz pa não o deixarmos ir pà cozinha ’té ela tê a ceia pronta – disse o Luster.

– Então brinca com ele e vê se ele fica calado – disse o Jason. – Será que tenho de trabalhar o dia inteiro para chegar a casa e encontrar este manicómio. – Abriu o jornal e começou a ler.

Podes olhar para o lume e para o espelho e para a almofada, disse a Caddy. Agora, já não tens de esperar até ao fim da ceia para olhares para a almofada. Ouvíamos o telhado. Ouvíamos também o Jason a chorar muito do outro lado da parede.

A Dilsey disse, – Venha, Jason. Não te tás a metê co ele, pois não.

– Nã sinhô – disse o Luster.

– Onde tá a Quentin – disse a Dilsey. – A ceia tá quase pronta.

– Eu cá não sei – disse o Luster. – Não a vi.

A Dilsey foi-se embora. – Quentin – chamou do meio do corredor. – Quentin. A ceia tá pronta.

Ouvíamos o telhado. O Quentin também cheirava como a chuva.

O que é que o Jason fez, disse ele.

Cortou todos os bonecos do Benjy, disse a Caddy.

A Mãe disse para não o chamares Benjy, disse o Quentin. Sentou-se no tapete ao pé de nós. Quem dera que a chuva parasse, disse ele. Assim não se pode fazer nada.

Andaste a lutar, não andaste, disse a Caddy.

Coisa sem importância, disse o Quentin.

Podes contar, disse a Caddy. O Pai vai perceber.

Quero lá saber, disse o Quentin. Quem dera que parasse de chover.

A Quentin disse, – Então a Dilsey não disse que a ceia estava pronta.

– Disse sissiô – disse o Luster. O Jason olhou para a Quentin. Depois continuou a ler o jornal. A Quentin entrou. – Diz que está quase pronta – disse o Luster. A Quentin saltou para a cadeira da Mãe. E o Luster disse,

– Mr. Jason.

– O que é – disse o Jason.

– Dê-me duas moedas – disse o Luster.

– Para quê – disse o Jason.

– Pa ir logo ò espetáculo – disse o Luster.

– Julguei que a Dilsey ia pedir vinte e cinco cêntimos à Frony para tos dar – disse o Jason.

– E pediu – disse o Luster. – Mas eu perdi-os. Eu e o Benjy passámos o dia à procura da moeda. Pode perguntar-lhe.

– Então pede-lhe outra emprestada – disse o Jason. – Eu tenho de trabalhar para conseguir ganhar o meu. – E continuou a ler o jornal. A Quentin estava a olhar para o fogo. O fogo estava nos seus olhos e na sua boca. A boca dela era vermelha.

– Tentei evitar que ele fosse para lá – disse o Luster.

– Cala a boca – disse a Quentin. O Jason olhou para ela.

– Lembras-te do que eu disse que te fazia se te tornasse a ver com esse tipo do espetáculo – disse ele. A Quentin continuou a olhar para o fogo. Estás a ouvir – disse o Jason.

– Ouvi, sim – disse a Quentin. – E então porque não faz.

– Não te preocupes, que faço – disse o Jason.

– Não estou preocupada – disse a Quentin. O Jason continuou a ler o jornal.

Eu ouvia o telhado. O Pai inclinou-se para a frente e olhou para o Quentin.

Olá, disse ele. Quem ganhou.

– Ninguém – disse o Quentin. – Vieram apartar-nos. Os professores.

– Quem era ele – disse o Pai. – Não me queres dizer.

– Não teve problema – disse o Quentin. – Ele era do meu tamanho.

– Ainda bem – disse o Pai. – E podes ao menos dizer porque começou.

– Por nada de especial – disse o Quentin. – Ele disse que punha uma rã na carteira dela e que ela não tinha coragem para lhe bater.

– Ah – disse o Pai. – Ela. E depois.

– Pois foi – disse o Quentin. – E eu então bati-lhe.

Ouvíamos o telhado e o lume, e umas fungadelas do lado de fora da porta.

– Onde ia ele arranjar uma rã em novembro – disse o Pai.

– Isso não sei – disse o Quentin.

Ouvíamos ruídos.

– Jason – disse o Pai. Ouvíamos o Jason.

– Jason – disse o Pai. – Vem para aqui e para com isso.

Ouvíamos o telhado e o lume e o Jason.

– Para com isso imediatamente – disse o Pai. – Vê lá se queres que te bata outra vez. – O Pai pegou no Jason e sentou-o na cadeira ao seu lado. O Jason continuou a fungar. Ouvíamos o lume e o telhado. O Jason começou a fungar com mais força.

– Vá, continua – disse o Pai. Ouvíamos o lume e o telhado.

A Dilsey disse, Pronto, já podem vir todos cear.

O Versh cheirava como a chuva. Cheirava como um cão, também. Ouvíamos o lume e o telhado.

Ouvimos a Caddy a andar muito depressa. O Pai e a Mãe olharam para a porta. A Caddy passou muito apressada. Nem olhou. Ia muito depressa.

– Candace – disse a Mãe. A Caddy parou.

– Sim, Mãe – disse ela.

– Cala-te, Caroline – disse o Pai.

– Vem cá – disse a Mãe.

– Cala-te, Caroline – disse o Pai. – Deixa-a em paz.

A Caddy veio até à porta e ficou parada a olhar para o Pai e para a Mãe. Os seus olhos pousaram em mim e foram-se embora. Comecei a chorar. Chorava com toda a força e levantei-me. A Caddy entrou e ficou de pé encostada à parede a olhar para mim. Fui ter com ela, a chorar, e ela encostou-se mais à parede e eu vi os olhos dela e comecei a chorar com mais força e a puxar-lhe pelo vestido. Ela estendeu as mãos, mas eu continuei a puxar-lhe pelo vestido. Os olhos dela fugiram.

O Versh disse, O seu nome agora é Benjamin. Sabe porqu’é qu’agora se chama Benjamin. Porqu’o querem transformá num gengivas azuis3. A ’nha mãe diz que há muito tempo o seu avô mudou o nome dum negro, e que depois se fez pastor, e que quando olharam pa ele, ele tinha também as gengivas azuis. E nunca as tinha tido assim. E quando uma mulher prenha olhava pòs olhos dele numa noite de lua cheia, a criança nacia cas gengivas azuis. E uma noite, quando já havia perto d’uma dúzia de crianças de gengivas azuis a correrem por ali, ele não voltou pa casa. Foram uns caçadores de opóssuns que o encontraram na floresta todo comido. E sabe quem o comeu. Foram as crianças de gengivas azuis.

Estávamos no vestíbulo. A Caddy continuava a olhar para mim. Tinha a mão a tapar a boca e eu olhei para os olhos dela e pus-me a chorar. Fomos para cima. Ela encostou-se outra vez à parede a olhar para mim, e eu sempre a chorar, e ela continuou a andar e eu fui atrás dela a chorar, e ela encolheu-se contra a parede a olhar para mim. Abriu a porta do quarto, mas eu puxei-lhe o vestido e fomos à casa de banho e ela ficou encostada à parede a olhar para mim. Depois tapou os olhos com o braço e eu encostei-me a ela a chorar.

Que estás tu a fazer-lhe, disse o Jason. Porque não o deixas em paz.

Não lhe tou a tocá, disse o Luster. Ele tem tado assim todo o dia. Precisa d’apanhá.

Precisa é que o mandem para Jackson, disse a Quentin. Como é que alguém pode viver numa casa como esta.

Olha, menina, se não te agrada, vai-te embora, disse o Jason.

E é que vou mesmo, disse a Quentin. Não te preocupes.

O Versh disse, – Chegue-se pa lá um bocadinho, pa eu secá as minhas pernas. – E empurrou-me. – Não comece a berrá outra vez. Daí inda consegue vê o lume. É tudo o que pode fazê. Não teve de andá lá por fora à chuva como eu. Nasceu cheio de sorte e nem se dá conta. – Deitou-se de costas diante do lume. – Sabe porqu’é qu’o seu nome agora é Benjamin – disse o Versh. – Porqu’a sua mãe tem vergonha de si. É o que a ’nha mãe diz.

– Fique aí queto e deixe-me secá as pernas – disse o Versh. – Se não, já sabe o qu’eu lhe faço. Pelo-lh’o olho do cu.

Ouvíamos o lume, o telhado e o Versh.

O Versh levantou-se de repente e esticou as pernas. O Pai disse, – Então, Versh.

– Hoje dou-lhe eu de comer – disse a Caddy. – Ele às vezes chora quando o Versh lhe dá de comer.

– Leva este tabuleiro lá ’cima – disse a Dilsey. – E volta depressa pa dares de comê ao Benjy.

– Queres que a Caddy te dê de comer, não queres – disse a Caddy.

Como ele nunca mais tirava o chinelo nojento de cima da mesa, a Quentin disse, Porque não lhe dás de comer na cozinha. É o mesmo que estar à mesa com um porco.

Se não gostas da maneira como nós comemos, o melhor é não vires para a mesa, disse o Jason.

O Roskus deitava fumo. Estava sentado em frente do fogão. A porta do forno estava aberta e o Roskus tinha lá metido os pés. Saía muito vapor da tigela. A Caddy meteu-me a colher na boca devagarinho. Havia uma marca preta no interior da tigela.

Pronto, pronto, disse a Dilsey. Ele já não o incomoda mais.

Passou para baixo da marca. Daí a pouco a tigela estava vazia. E foi-se embora. – Ele hoje está com fome – disse a Caddy. A tigela voltou. Já não conseguia ver a marca. Mas depois voltei a vê-la. – Ele hoje está esfomeado – disse a Caddy. – Vejam só o que ele comeu.

Pudera, disse a Quentin. Vocês mandam-no todos espiar-me. Odeio esta casa. Vou pôr-me a andar daqui para fora.

O Roskus disse, – Vai chover toda a noite.

Gostas muito de andar por aí, mas é só até chegar a hora das refeições, disse o Jason.

Espera e verás, disse a Quentin.

– Não sei com’isto vai sê – disse a Dilsey. – Apanhou-me a anca duma maneira que mal me posso mexê. É de passá a noite a subir as escadas.

Não me admirava nada, disse o Jason. A mim já não me espanta nada que tu faças.

A Quentin atirou o guardanapo para cima da mesa.

Cale a boca, Jason, disse a Dilsey. Aproximou-se da Quentin e pôs-lhe o braço por cima das costas. Senta-te, minha linda, disse a Dilsey. Ele devia tê vergonha. A atirar-lhe à cara com coisas de que não tem culpa.

– Tá outra vez amuada, não tá – disse o Roskus.

– Cala a boca – disse a Dilsey.

A Quentin empurrou a Dilsey. Olhou para o Jason. Tinha a boca toda vermelha. Pegou no copo de água e esticou o braço para trás sem tirar os olhos do Jason. A Dilsey segurou-lhe o braço. Lutaram. O copo partiu-se em cima da mesa e a água correu pela mesa fora. A Quentin desatou a correr.

– A Mãe está doente outra vez – disse a Caddy.

– Claro que tá – disse a Dilsey. – Cum tempo destes toda a gente fica doente. Veja s’acaba de comê.

Diabos te levem, disse a Quentin. Diabos te levem. Ouvíamo-la a correr pela escada acima. Fomos para a biblioteca.

A Caddy deu-me a almofada, e eu podia olhar para a almofada, para o espelho e para o lume.

– Não podemos fazer barulho enquanto o Quentin estiver a estudar – disse o Pai. – Que estás a fazer, Jason.

– Nada – disse o Jason.

– E se viesses fazer isso para aqui – disse o Pai.

O Jason saiu do canto.

– O que estás tu para aí a chupar – disse o Pai.

– Nada – disse o Jason.

– Ele anda outra vez a comer papel – disse a Caddy.

– Vem cá, Jason – disse o Pai.

O Jason cuspiu o papel para a lareira. O papel assobiou, desenrolou-se e pôs-se negro. Depois cinzento. Depois desapareceu. A Caddy, o Pai e o Jason estavam na poltrona da Mãe. Os olhos do Jason estavam fechados e a boca dele mexia-se como se estivesse a provar alguma coisa. A cabeça da Caddy estava encostada ao ombro do Pai. O cabelo dela era como o fogo, e dos seus olhos saíam pontas de fogo, e eu aproximei-me e o Pai puxou-me também para a cadeira, e a Caddy segurou-me. Cheirava como as árvores.

Ela cheirava como as árvores. No canto estava escuro, mas eu via a janela. Deixei-me lá ficar agachado, com o chinelo na mão. Não o conseguia ver, mas as minhas mãos viam-no, e ouvia a noite a aproximar-se, e as minhas mãos viam o chinelo, mas eu não me via, mas as minhas mãos viam o chinelo, e eu estava ali agachado a ouvir a noite chegar.

Com qu’então tá aqui, disse o Luster. Olhe o qu’eu arranjei. Sabe onde é qu’os arranjei. Foi Miss Quentin que mos deu. Eu bem sabia que não ia ficá sem ir. O que tá a fazê aqui. Já julgava que se tinha escapado lá pa fora. Inda não chorou hoje que chegue, sem tê de se vir escondê aqui nesta sala vazia, com as suas choradeiras. Venha pà cama, pa vê se consigo chegá lá antes daquilo começá. Hoje não posso ficá a aturá-lo toda a noite. Assim qu’ouvir o primeiro toque, vou-me embora.

Não fomos para o nosso quarto.

– Aqui é onde temos o sarampo – disse a Caddy. – Porque é que temos de dormir aqui esta noite.

– Qu’importância tem o sítio onde dormem – disse a Dilsey. Fechou a porta, sentou-se e começou a despir-me. O Jason começou a chorar. – Cale-se – disse a Dilsey.

– Quero dormir com a Vovó – disse o Jason.

– Ela está doente – disse a Caddy. – Podes dormir com ela quando melhorar. Pode, não pode, Dilsey.

– Agora teja caladinho – disse a Dilsey. O Jason calou-se.

– As nossas camisas estão aqui e tudo – disse a Caddy. – É como se mudássemos de casa.

– É melhor vestirem-nas – disse a Dilsey. – Desabotoe a roupa do Jason.

A Caddy desabotoou as roupas do Jason. Ele começou a chorar.

– Veja lá se qué apanhá – disse a Dilsey. O Jason calou-se.

Quentin, disse a Mãe do corredor.

O que é, disse o Quentin através da parede. Ouvimos a Mãe fechar a porta à chave. Abriu a nossa porta, entrou, debruçou-se sobre a cama e deu-me um beijo na testa.

Depois de o deitares vai dizer à Dilsey se não se importa de me arranjar o saco de água quente, disse a Mãe. Diz-lhe que se lhe der muita maçada, lá terei de passar sem ele. Diz-lhe que só pergunto por perguntar.

Sissiô, disse o Luster. Vamos. Toc’à tirá as calças.

O Quentin e o Versh entraram. O Quentin vinha a esconder a cara. – Estás a chorar porquê – disse a Caddy.

– Cale-se – disse a Dilsey. – Vá, dispam-se todos. Tu podes ir pa casa, Versh.

Despi-me, olhei para o meu corpo e comecei a chorar. Cale-se, disse o Luster. Não serve de nada andá à procura deles. Foram-se embora. Se continua a portar-se dessa maneira, nunca mais lhe fazemos festa de anos. Vestiu-me a camisa de dormir. Calei-me, e nisto o Luster parou a olhar para a janela. Depois foi até à janela e olhou lá para fora. Voltou para dentro e pegou-me no braço. Lá vai ela, disse ele. Agora fique calado. Fomos até à janela e olhámos lá para fora. O vulto saiu da janela do quarto da Quentin e empoleirou-se na árvore. Vimos a árvore a abanar. Ouvimos o vulto a descer pela árvore e depois vimo-lo saltar da árvore e ir-se embora pela relva fora. Depois deixámos de o ver. Venha, disse o Luster. Pronto. Tá a ouvir as cornetas. Meta-se na cama qu’eu vou dá ò pé.

Havia duas camas. O Quentin meteu-se na outra. Virou a cara para a parede. A Dilsey deitou o Jason ao lado do Quentin. A Caddy despiu o vestido.

– Olhe só para os seus culotes – disse a Dilsey. – Dê-se por muito contente de a sua mãe não a tê visto.

– Eu já fiz queixa dela – disse o Jason.

– Isso já era d’esperá – disse a Dilsey.

– E vê lá o que ganhaste com isso – disse a Caddy. – Queixinhas.

– O que é que eu ganhei com isso – disse o Jason.

– Porque não veste a camisa de dormir – disse a Dilsey. Ajudou a Caddy a despir o corpete e os culotes. – Olhe só pò estado em que tá. – disse Dilsey. Pegou nos culotes e esfregou com eles o rabo da Caddy. – Ficou toda suja – disse ela. – Mas esta noite não lhe vou dá banho. – Vestiu-lhe a camisa de dormir e a Caddy subiu para a cama e a Dilsey dirigiu-se para a porta e disse, com a mão na luz, – Agora fiquem todos caladinhos, estão a ouvir.

– Está bem – disse a Caddy. – Hoje a Mãe não vem cá – disse ela. – Por isso ainda têm de fazer o que eu mandar.

– Pois têm – disse a Dilsey. – Vá, toca a dormi.

– A Mãe está doente – disse a Caddy. – Ela e a Vovó estão ambas doentes.

– Calem-se – disse a Dilsey. – Toc’à dormi.

O quarto ficou todo preto menos a porta. Depois a porta também ficou preta. A Caddy disse, – Está caladinho, Maury – e pôs-me a mão em cima. E eu calei-me. Nós ouvíamos as nossas vozes, e ouvíamos a escuridão.

A escuridão foi-se embora e o Pai estava a olhar para nós. Olhou para o Quentin e para o Jason, depois veio dar um beijo à Caddy e fez-me uma festa na cabeça.

– A Mãe está muito doente – disse a Caddy.

– Não – disse o Pai. – És capaz de tomar conta do Maury.

– Sou – disse a Caddy.

O Pai foi até à porta e olhou para nós outra vez. Depois a escuridão voltou, e ele ficou todo preto à porta, e depois a porta ficou preta outra vez. A Caddy abraçou-me e eu ouvia-nos a todos nós e à escuridão, e uma coisa que eu podia cheirar. Depois já conseguia ver as janelas onde as árvores estavam a zumbir. Então a escuridão começou a girar com formas suaves e brilhantes, como sempre acontece, mesmo quando a Caddy diz que eu estive a dormir.


1 Bebida revigorante à base de uísque e água quente. (N. da T.)

2 Preservativo cuja marca era A. M. B. (N. da T.)

3 Os Bluegum negroes (negros de gengivas azuis) eram tradicionalmente famosos pela sua ferocidade. (N. da T.)