O dia amanheceu frio e tristonho, trazendo de nordeste uma muralha de parda luminosidade que, em vez de se dissolver em humidade, parecia desintegrar-se em minúsculas partículas venenosas, quase pó, que, quando Dilsey abriu a porta do casebre e se assomou ao relento, se lhe infiltraram lateralmente pela carne, deixando uma camada, não de gotículas de água, mas de uma substância semelhante na textura a um óleo muito fino e semissolidificado. Trazia um chapéu rígido de palha todo preto plantado em cima do turbante e uma capa de veludo castanho, com uma barra de pele indefinida e carcomida por cima de um vestido de seda de cor púrpura, e ficou parada à porta, erguendo para o ar o rosto milenário e encovado e uma mão descarnada de palma mole como a barriga de um peixe, a testar a atmosfera, afastando em seguida a capa para o lado e examinando a frente do vestido.
O vestido caía-lhe solto desde os ombros sobre os peitos descaídos, cintava ligeiramente sobre o ventre e alargava de novo para baixo, em balão, sobre os saiotes de tons esplêndidos, mas esvaídos, que ela ia tirando um a um à medida que a primavera avançava e os dias quentes se instalavam. Outrora de fartas carnes, o seu esqueleto erguia-se agora sob as pregas soltas da pele frouxa que o embrulhava e que ainda se esticava sobre um ventre quase hidrópico, como se tecidos e músculos tivessem sido a coragem ou a força de que os dias e os anos se tinham alimentado, até nada mais restar além do indomável esqueleto, ereto como ruína ou marco milenário sobre as sonolentas e imperscrutáveis entranhas, e encimado por um rosto descarnado, onde os próprios ossos pareciam sair da carne, um rosto que ela virava para o dia que nascia com uma expressão a um tempo fatalista e de pueril desilusão, após o que deu meia volta, entrou em casa e fechou a porta.
O terreno junto à porta era pelado, coberto de uma espécie de pátina do pisar de gerações de pés descalços, semelhante a prata velha ou às paredes das casas mexicanas caiadas à mão. Ao lado da casa, dando-lhe sombra no verão, havia três amoreiras de folhas cobertas de penugem que mais tarde se abririam plácidas e lisas como a palma de uma mão ondulando ao sabor das brisas. Um casal de gaios surgidos do vazio rodopiou com as rajadas como tiras de pano ou de papel de cores garridas e pousou num ramo de amoreira, onde ficou a baloiçar-se para baixo e para cima soltando pios guturais e lançando gritos ao vento, que o vento dilacerava e propagava como tiras de papel ou de pano. E logo mais três se lhes juntaram e todos se baloiçavam e saltitavam nos ramos retorcidos, sem pararem de gritar. A porta do casebre abriu-se e Dilsey apareceu mais uma vez, agora de chapéu de feltro, à homem, e capote militar de bainha esfiapada, por baixo do qual caía em tufos incertos um vestido azul de algodão, que ondulava em torno dela quando atravessou o pátio e subiu os degraus da entrada da cozinha.
Voltou a aparecer daí a nada com um chapéu de chuva aberto, que virava contra o vento, foi até à pilha de lenha e pousou o chapéu de chuva, mas sem o fechar. Deitou-lhe a mão imediatamente para não voar e ficou com ele na mão a olhar em volta. Depois fechou-o, deitou-o no chão e apanhou um braçado de lenha para acender o fogão, apertando-o contra o peito com o braço em ângulo reto, apanhando em seguida o chapéu de chuva e abrindo-o finalmente, encaminhando-se de novo para os degraus com a lenha em equilíbrio precário, enquanto se esforçava por fechar o chapéu de chuva que encostou a um canto mesmo por detrás da porta. Deitou a lenha para dentro de um caixote que estava atrás do fogão. Tirou o capote e o chapéu, pôs um avental imundo que estava pendurado na parede e acendeu o lume no fogão. Enquanto se entregava a esta tarefa, raspando as barras da grelha e batendo com as tampas da fornalha, Mrs. Compson começou a chamá-la do cimo das escadas.
Trazia um roupão de cetim preto acolchoado, que apertava com a mão por baixo do queixo. Na outra mão tinha um saco de borracha vermelho de água quente e estava ao cimo das escadas das traseiras a gritar «Dilsey», sem inflexão e a espaços cadenciados, gritando pela escada abaixo, a chamar para a escuridão, que clareava onde se projetava no chão o reflexo tíbio da janela. – Dilsey – chamava ela, sem ênfase, inflexão ou pressa, como se não esperasse uma resposta. – Dilsey.
Dilsey respondeu, parando de traquinar no fogão, mas, sem lhe dar tempo de atravessar a cozinha, Mrs. Compson chamou-a outra vez, e ainda outra, antes de ela sair pela casa de jantar e a sua cabeça se assomar na mancha de penumbra da janela.
– Pronto – disse Dilsey. – Pronto, já cá tou. Encho-o assim qu’houvé água quente. – Apanhou as saias e subiu a escada, tapando a luz. – Deixe-o aí e volte pà cama.
– Não estava a perceber o que se passava – disse Mrs. Compson. – Há pelo menos uma hora que estou acordada e não ouvia barulho nenhum na cozinha.
– Deixe-o ficá e volte pà cama – disse Dilsey. Arrastava-se pela escada acima, informe, respirando a custo. – O lume tá pronto num minuto e a água ferve em dois.
– Há pelo menos uma hora que estou acordada – disse Mrs. Compson. – Pensei que estivesses à espera de que eu descesse para acenderes o lume.
Dilsey chegou ao cimo das escadas e pegou no saco de água quente. – Tá pronto num minuto – disse ela. – O Luster deixou-se dormir esta manhã, esteve até às tantas no tal espetáculo. Eu mesma acendo o lume. Agora vá, pa não acordar os outros enquanto eu não tivé despachada.
– Se deixares o Luster fazer coisas que interferem com o trabalho dele, tu é que sofres as consequências – disse Mrs. Compson. – Se o Jason sabe disto não vai gostar nada. Sabes bem que não.
– Não foi co dinheiro do Jason qu’ele lá foi – disse Dilsey. – Disso pode tê a certeza. – Desceu a escada. Mrs. Compson voltou para o quarto. Quando se metia outra vez na cama ouviu Dilsey a descer a escada com uma lentidão dolorosa e aterradora, que seria de endoidecer se não tivesse cessado depois de ela passar as portas de batente da copa.
Entrou na cozinha, acendeu o lume e começou a preparar o pequeno-almoço. Deixou-o a meio, foi à janela e olhou na direção da casa dela. Depois foi até à porta, abriu-a e gritou para a intempérie:
– Luster! – chamou ela, pondo-se à escuta, desviando a cara do vento. – Então, Luster! – Escutou de novo, e, quando se preparava para gritar outra vez, apareceu Luster a dobrar a esquina da cozinha.
– Siôra? – disse inocentemente, tão inocentemente que Dilsey o olhou de alto a baixo por um momento, imóvel, com um olhar que era bem mais que mera surpresa.
– Onde tavas tu metido? – disse ela.
– Em parte nenhuma – disse ele. – Só n’adega.
– Que tavas tu a fazê n’adega? – disse ela. – Não fiques ai à chuva, meu palerma – disse ela.
– Não tava a fazê nada – disse ele, subindo os degraus.
– Não t’atrevas a entrá por esta porta sem um braçado de lenha – disse ela. – Já tive d’acartá a tua lenha e acendê o teu lume. Não te disse ontem à noite pa não saíres sem deixares aquele caixote cheio de lenha inté cima?
– E eu enchi-o – disse Luster.
– Então p’ond’é qu’ela foi?
– Não sei, eu cá não a levei pa lado nenhum.
– Tá bem, então agora enche-o outra vez – disse ela. – E vai lá cima ver o Benjy.
Fechou a porta. Luster dirigiu-se para a pilha de lenha. Os cinco gaios esvoaçaram à volta da casa, a gritarem, e voltaram para as amoreiras. Ele observou-os. Apanhou uma pedra e atirou-lha. – Chôô – disse ele. – Voltem pò inferno qu’é lá o vosso lugá. Hoje inda não é segunda-feira11.
Apanhou uma montanha de achas para o fogão. Mas como não via nada por cima delas, foi a cambalear até aos degraus e de encontro à porta da cozinha, espalhando algumas. Dilsey abriu-lhe a porta e ele entrou aos tropeções pela cozinha dentro. – Então, Luster! – exclamou ela, mas ele já tinha atirado a lenha para dentro do caixote com grande estrondo. – Safa! – disse ele.
– Queres acordar toda a gente? – disse Dilsey, dando-lhe uma palmada no pescoço. – E agora vai lá cima e trata de vestires o Benjy.
– Sissiô – disse ele, e dirigiu-se para a porta das traseiras.
– Onde vais? – disse Dilsey.
– Achei qu’era melhor ir de volta e entrá pela frente, pa não acordá Miss Ca’line e os outros.
– Vai pela escada das traseiras como eu te mandei e trata de vestires o Benjy – disse Dilsey. – Vá, toc’andar.
– Sissiô – disse Luster. Voltou para trás e saiu pela porta da casa de jantar. Passado algum tempo a porta deixou de bater. Dilsey preparava-se para fazer bolachas. Enquanto peneirava a farinha para cima da tábua com mão firme, ia cantarolando, primeiro só para si, uma cantilena sem música nem palavras, repetitiva, tristonha e chorosa, austera também, enquanto peneirava e a farinha caía fina e em monte em cima da tábua do pão. O calor do fogão já começara a aquecer a cozinha e a enchê-la com o crepitar da lenha, e ela cantava agora mais alto, como se também a sua voz tivesse descongelado com o calor, e nisto Mrs. Compson chamou-a outra vez lá de cima. Dilsey levantou a cabeça, como se os seus olhos pudessem de facto penetrar nas paredes e no teto e ver a velha senhora no alto das escadas com o seu roupão acolchoado, a chamá-la com maquinal regularidade.
– Valha-me Nosso Sinhô! – disse Dilsey. Pousou a peneira, sacudiu o avental, limpou as mãos, tirou o saco de água quente da cadeira onde o tinha deixado e, usando a ponta do avental, pegou na pega da chaleira que começava a fumegar. – Só um minuto – gritou ela. – A água só agora é qu’aqueceu.
Porém, não era do saco de água quente que Mrs. Compson precisava; mas Dilsey, pegando-lhe pelo gargalo como uma galinha morta, chegou-se ao fundo das escadas e olhou para cima.
– Então o Luster não tá lá em cima co ele? – disse ela.
– O Luster não esteve cá em cima. Tenho estado deitada a ver se o oiço. Já sabia que ele se ia atrasar, mas tinha esperança de que chegasse a tempo de evitar que o Benjamin incomodasse o Jason no único dia da semana em que o Jason pode dormir até tarde.
– Não sei com’é que qué cas pessoas consigam dormir consigo aí no corredô a gritá desde madrugada – disse Dilsey. Começou a subir as escadas, arrastando-se a custo. – Eu mandei o rapaz aí pa cima há meia hora.
Mrs. Compson olhava para ela, apertando o roupão rente ao queixo. – Que vais fazer? – disse ela.
– Vou vesti o Benjy e trazê-lo pà cozinha, ond’ele não acorde o Jason nem a Quentin – disse Dilsey.
– Já começaste a fazer o pequeno-almoço?
– Eu trato disso tamém – disse Dilsey. – É melhor ir metê-se na cama té o Luster lhe acendê o lume. Tá muito frio esta manhã.
– Sei bem que está – disse Mrs. Compson. – Tenho os pés que nem gelo. Estavam tão frios que até acordei. – Ficou a ver Dilsey subir as escadas, o que foi tarefa demorada. – Sabes como o Jason fica irritado quando o pequeno-almoço se atrasa – disse Mrs. Compson.
– Só posso fazê uma coisa de cada vez – disse Dilsey. – Volte pà cama, antes qu’inda me dê trabalho esta manhã.
– Se vais largar tudo para ires vestir o Benjamin, o melhor é eu ir para baixo e fazer o pequeno-almoço. Sabes tão bem como eu como o Jason fica quando o pequeno-almoço se atrasa.
– E quem é qu’o vai comê? – disse Dilsey. – Sim, diga-me lá. Vá-se deitar – disse ela, continuando a arrastar-se pela escada acima. Mrs. Compson estava parada a vê-la subir, apoiada à parede com uma mão e a segurar o roupão com a outra.
– Vais acordá-lo de propósito só para o vestires? – disse ela.
Dilsey parou. Ficou ali, com o pé no ar a caminho do degrau de cima, a mão na parede e o clarão cinzento da janela atrás das costas, imóvel e informe, perplexa.
– Então ele ’inda não tá acordado? – disse ela.
– Não estava quando espreitei – disse Mrs. Compson. – Mas já está na hora. Ele nunca acorda depois das sete e meia. Sabes bem que não.
Dilsey não disse nada. Não esboçou qualquer gesto, mas, embora não a pudesse ver a não ser como uma forma indistinta e sem dimensão, Mrs. Compson sabia que ela tinha baixado um pouco a cabeça, na postura caraterística das vacas quando chove, com o saco de água quente vazio pendurado pelo gargalo.
– Não és tu quem sofre as consequências – disse Mrs. Compson. – A responsabilidade não é tua. Tu podes ir-te embora. Não tens de carregar esta cruz dia após dia. Não lhes deves nada a eles, nem à memória de Mr. Compson. Sei que nunca gostaste do Jason. E também nunca fizeste nada para disfarçares.
Dilsey não respondeu. Virou-se muito devagar e desceu as escadas, levando o corpo atrás, degrau a degrau, como fazem as crianças pequenas, apoiando-se à parede com a mão. – Vá-se deitá e deixe-o em paz – disse ela. – Não volte lá. Eu mando o Luster assim qu’o encontrá.
Voltou para a cozinha. Espreitou para o fogão e depois pôs o avental pela cabeça, o capote pelas costas, abriu a porta do pátio e olhou para um lado e para o outro. A morrinha batia-lhe na cara, áspera e miudinha, mas não se via nada que mexesse. Desceu os degraus, cautelosamente, como se não quisesse fazer barulho, e contornou a cozinha. Nesta altura apareceu Luster todo lampeiro e inocente a sair da porta da adega.
Dilsey parou. – Qu’andas tu a fazê? – disse ela.
– Nada – disse Luster. – Mr. Jason mandou-me vê donde é que vem a água que pinga n’adega.
– E quando é qu’ele te mandou fazê isso? – disse Dilsey. – Foi no Dia d’Ano Novo que passou, não foi?
– Achei que podia ir lá vê enquanto eles dormiam – disse Luster. Dilsey dirigiu-se para a porta da adega. Ele afastou-se e ela espreitou para baixo, perscrutando a penumbra impregnada de um cheiro a terra molhada, bolor e borracha.
– Hum! – disse Dilsey. Olhou outra vez para Luster. Ele enfrentou o seu olhar com uns olhos transparentes, inocentes, francos. – Não sei o qu’andas a fazê, mas não tens nada de vi p’aqui. Andas a vê se m’atentas esta manhã, como os outros, não é? Vai já lá cima tratá do Benjy, ouviste?
– Sissiô – disse Luster. E dirigiu-se lesto para os degraus da cozinha.
– Vem cá – disse Dilsey. – Acarta-me outro braçado de lenha enquanto aqui estás.
– Sissiô – disse ele. Passou por ela nos degraus e foi até à pilha de lenha. Quando daí a pouco foi de encontro à porta novamente, outra vez invisível e sem ver nada, ajoujado sob o feixe de lenha, Dilsey abriu a porta e guiou-o pela cozinha fora com mão firme.
– Vá, agora vê lá s’atiras pò caixote outra vez – disse ela. – Vá.
– Tem de sê – disse Luster, ofegante. – Não pode sê doutra maneira.
– Então fica aí co ela e espera um instante – disse Dilsey. E começou a arrumar a lenha acha por acha. – Que te deu esta manhã? Té hoje, sempre que te mandei à lenha nunca trouxeste mais de seis cavacos de cada vez pa não te cansares. O qu’é que tu me qués pedi agora? Os músicos inda não se foram embora?
– Já, sissiô. Já foram.
Ela meteu no caixote o último cavaco. – Agora vai lá cima tratá do Benjy com’eu te disse – disse ela. – E não quero ouvi mais ninguém a chamá por mim do cimo das escadas té eu tocá a campainha. Tás a ouvir?
– Sissiô – disse Luster. E desapareceu pela porta de batente. Dilsey deitou mais lenha no fogão e voltou para a tábua do pão, retomando a cantoria.
A cozinha estava cada vez mais quente. Enquanto andava de um lado para o outro a juntar os ingredientes necessários para o pequeno-almoço, a pele de Dilsey depressa adquiriu uma tonalidade rica e lustrosa, comparada com a que a dela e a de Luster tinham antes, como se estivessem cobertas por uma fina camada de cinza. Na parede, por cima do aparador, invisível exceto à noite, quando a luz do candeeiro lhe incidia, e mesmo assim conservando uma certa profundidade enigmática por ter apenas um ponteiro, soava o tiquetaque de um relógio de caixa, que a certa altura, e depois de emitir um som preliminar como se a apurar a garganta, acabou por dar cinco badaladas.
– Oito horas – disse Dilsey. Parou e levantou a cabeça, para escutar. Mas só se ouvia o ruído do relógio e do lume. Abriu o forno e olhou para o tabuleiro, ficando ali curvada enquanto alguém descia a escada. Ouviu passos na casa de jantar, depois a porta abriu-se e Luster entrou, seguido de um homenzarrão que parecia ter sido talhado de um material cujas partículas não quiseram ou não puderam aderir umas às outras ou à forma que as moldou. A sua pele era mortiça e sem pelos; hidrópico também, movia-se com passo incerto e balançado, como um urso amestrado. O cabelo era claro e ralo. Tinha sido suavemente escovado sobre a testa como o dos meninos nos daguerreótipos. Os olhos eram límpidos, azul-pálido como as fidalguinhas-dos-jardins, e a boca de lábios grossos pendia aberta, deixando escapar um fio de baba.
– Ele terá frio? – disse Dilsey. Limpou as mãos ao avental e tocou-lhe na mão.
– S’ele não tem, tenho eu – disse Luster. – A Páscoa é sempre fria. Nunca falha. Miss Ca’line diz que se vomecê não tivé tempo de lhe prepará o saco d’água quente não faz mal.
– Valha-me Nosso Sinhô – disse Dilsey. Puxou uma cadeira para o canto, e meteu-a entre o caixote da lenha e o fogão. O homenzarrão sentou-se nela, obediente. – Vai à casa de jantá e vê ond’é qu’eu pus o saco – disse Dilsey. Luster foi buscar o saco de água quente à casa de jantar e Dilsey encheu-o e deu-lho. – Vá despacha-te – disse ela. – Vê s’o Jason já tá acordado. Diz-lhes que tá tudo pronto.
Luster saiu da cozinha. Ben ficou sentado ao lado do fogão. Deixara-se cair abandonado na cadeira, sem se mexer, exceto a cabeça, que balançava sem parar, enquanto fixava em Dilsey o olhar doce e ausente, seguindo-lhe os movimentos. Luster voltou.
– Ele já tá a pé – disse ele. – Miss Ca’line diz pa pô na mesa. – Chegou-se para o fogão e estendeu as mãos com as palmas para baixo por cima da fornalha. – Ele já tá a pé – disse ele. – E não tá pa graças.
– O qu’é qu’aconteceu? – disse Dilsey. – Sai daí. Como é qu’eu posso fazê alguma coisa contigo em cima do fogão?
– Tenho frio – disse Luster.
– Devias tê pensado nisso enquanto tavas lá em baixo n’adega – disse Dilsey. – O qu’é qu’o Jason tem?
– Diz qu’eu e o Benjy partimos o vidro da janela do quarto dele.
– E tá mesmo partido? – disse Dilsey.
– É o qu’ele diz – disse Luster. – Diz que fui eu.
– Como é qu’isso pode sê, s’ele tem o quarto fechado à chave de dia e de noite?
– Diz qu’o parti a atirá-lhe pedras – disse Luster.
– E partiste?
– Nassinhô – disse Luster.
– Não mintas, rapaz – disse Dilsey.
– Não fui eu – disse Luster. – Pergunte ò Benjy se fui eu. Nem pa lá olhei.
– Então quem pode tê sido? – disse Dilsey. – Ele tá co’isso qu’é só p’acordá a Quentin – disse ela, tirando o tabuleiro das bolachas do forno.
– Deve sê – disse Luster. – Gente maluca. Inda bem que não sou com’eles.
– Não és como quem? – disse Dilsey. – Pois sempre te digo uma coisa, negrinho duma figa, tens tanta ruindade dos Compson nesse corpo como qualquer deles. Tens mesmo a certeza que não partiste a janela?
– E pa qu’é qu’eu ia parti-la?
– E pa qu’é que tu fazes as outras maldades? – disse Dilsey. – Toma conta dele agora, pa ele não queimar a mão outra vez enquanto eu acabo de pô a mesa.
Foi para a casa de jantar, e eles ouviram-na andar de um lado para o outro, e depois voltou para a cozinha, pôs um prato em cima da mesa e encheu-o de comida. Ben observava-a, choramingando, emitindo sons leves e ansiosos.
– Pronto, meu amô – disse ela. – Aqui tá o seu pequen’almoço. Traz a cadeira dele p’aqui, Luster. – Luster trouxe a cadeira e Ben sentou-se, a gemer e a choramingar. Dilsey atou-lhe um pano ao pescoço e limpou-lhe a boca com a ponta. – E vê se desta vez não lhe sujas o fato todo – disse ela, dando uma colher a Luster.
Ben parou de gemer. Observava a colher enquanto ela subia até à sua boca. Era como se nele até a ansiedade fosse muscular e a fome inexpressiva, sem que ele soubesse que era fome. Luster dava-lhe de comer com perícia e indiferença. De vez em quando a atenção voltava por tempo suficiente para lhe permitir fazer uma finta com a colher e obrigar Ben a fechar a boca em falso, mas era evidente que Luster estava com a cabeça muito longe. Tinha a mão livre pousada nas costas da cadeira e os dedos tamborilavam tentativamente, suavemente, sobre a superfície inerte, como se do vazio se elevasse uma música inaudível, e uma vez chegou mesmo a esquecer-se de fazer negaças a Ben com a colher, enquanto os seus dedos faziam negaças na madeira arrancando um arpejo mudo e arrebatado, até Ben lhe chamar a atenção pondo-se de novo a choramingar.
Dilsey andava de um lado para o outro na casa de jantar. Nisto, tocou uma campainha sonora e cristalina, e Luster ouviu na cozinha Mrs. Compson e Jason a descerem a escada, e a voz de Jason, e pôs-se a escutar de olhos em alvo.
– Claro, foram lá eles que o partiram – dizia Jason. – Claro que não. Se calhar foi o mau tempo.
– Não sei como isso foi possível – disse Mrs. Compson. – O teu quarto fica fechado à chave o dia todo, desde que sais para a cidade. Nenhum de nós lá entra a não ser ao domingo, para fazer limpeza. Não quero que penses que eu era capaz de entrar onde não sou desejada, ou que deixava entrar lá alguém.
– Não disse que foi a Mãe que o partiu, pois não? – disse Jason.
– Eu não quero entrar no teu quarto – disse Mrs. Compson. – Respeito muito a privacidade de toda a gente. Não passava do limiar da porta, nem que tivesse a chave.
– Eu sei – disse Jason. – Sei que as suas chaves não entram na fechadura. Foi por isso que a mudei. O que eu quero saber é como foi que o vidro se partiu.
– O Luster garante que não foi ele – disse Dilsey.
– Isso já eu sabia mesmo sem lhe perguntar – disse Jason. – Onde está a Quentin? – disse ele.
– Ond’há de ela tá ò domingo de manhã? – disse Dilsey. – O qu’é que lhe deu nestes últimos dias?
– Bem, tudo isso vai mudar – disse Jason. – Vai lá acima e diz-lhe que o pequeno-almoço está pronto.
– Deixe-a tá em paz, Jason – disse Dilsey. – Ela levanta-se pa tomá o pequen’almoço tod’a semana, e Miss Ca’line deixa-a fica na cama ò domingo. Sabe bem qu’é assim.
– Não posso sustentar uma cozinha cheia de negros para estarem à disposição dela, por mais que gostasse de o fazer – disse Jason. – Vai dizer-lhe para vir tomar o pequeno-almoço.
– Nunca ninguém teve d’a servir – disse Dilsey. – Eu deixo-lh’o pequen’almoço na estufa e ela...
– Ouviste o que eu te disse? – disse Jason.
– Ouvi – disse Dilsey. – É só o qu’eu oiço quando tá em casa. Se não é ca Quentin ou ca sua mãe, é co Luster ou co Benjy. Porqu’é qu’o deixa sê assim, Miss Ca’line?
– É melhor fazeres o que ele diz – disse Mrs. Compson. – Ele agora é o chefe da família. Tem todo o direito de querer que respeitemos os seus desejos. Eu tento, e se eu posso, tu também podes.
– É preciso sê mesmo muito malvado p’obrigá a Quentin a levantá-se só porque lh’apetece – disse Dilsey. – Se calhá julga que foi ela que partiu a janela.
– Capaz disso era ela, se se lembrasse – disse Jason. – Vá, vai fazer o que eu te mandei.
– E não era eu qu’a censurava s’o fizesse – disse Dilsey, dirigindo-se para as escadas. – Consigo sempre a implicá co ela quando tá em casa.
– Cala-te, Dilsey – disse Mrs. Compson. – Não é da tua conta nem da minha dizer ao Jason o que ele há de fazer. Às vezes acho que ele está errado, mas procuro fazer-lhe as vontades para o bem de todos. Se eu tenho força suficiente para vir para a mesa, a Quentin também tem de ter.
Dilsey saiu. Ouviram-na subir as escadas. Ouviram-na durante muito tempo a subir as escadas.
– Tem uns criados de primeira – disse Jason. Serviu a mãe e serviu-se a ele. – Já alguma vez teve algum que valesse ao menos o trabalho de o matar? Deve ter tido vários antes de eu ter idade suficiente para me lembrar.
– Tenho de os tratar bem – disse Mrs. Compson. – Dependo deles para tudo. Não é como quando tinha saúde. Quem me dera. Quem me dera ser capaz de tratar da casa sozinha. Pelo menos tirava esse peso das tuas costas.
– E havíamos de viver numa linda pocilga – disse Jason. – Despacha-te, Dilsey – gritou ele.
– Sei que me censuras por lhes ter dado hoje folga para irem à igreja – disse Mrs. Compson.
– Irem aonde? – disse Jason. – O raio do espetáculo ainda cá está?
– À igreja – disse Mrs. Compson. – Os negros vão fazer uma celebração especial de Páscoa. Prometi à Dilsey há duas semanas que os deixava ir.
– O que quer dizer que vamos comer o almoço frio – disse Jason. – Se é que vai haver almoço.
– Sei que a culpa foi minha – disse Mrs. Compson. – Sei que me censuras por isso.
– Por isso o quê? – disse Jason. – Não foi a Mãe que ressuscitou Cristo, pois não?
Ouviram Dilsey subir os últimos degraus e depois os pés a arrastarem-se lentamente pelo corredor.
– Quentin – disse ela. Quando ela chamou da primeira vez Jason pousou o garfo e a faca e ele e a mãe pareceram ficar os dois suspensos, à espera, cada um na sua cabeceira da mesa, em poses idênticas; ele, frio e astuto, de cabelo frisado, castanho e espesso, penteado com dois caracóis de cada lado sobre a testa, lembrando a caricatura de um dono de restaurante, e com uns olhos de avelã orlados a negro, como dois berlindes; e ela, fria e sofrida, de cabelo completamente branco, e olhos inchados, baços e tão negros que pareciam só pupila ou só íris.
– Quentin – disse Dilsey. – Levante-se, meu amô. Eles tão à sua espera pò pequen’almoço.
– Não consigo perceber como é que a janela se partiu – disse Mrs. Compson. – Tens a certeza de que foi ontem? Podia já estar assim há muito tempo, com o tempo quente que tem feito. O caixilho superior, por detrás da persiana, assim...
– É a última vez que lhe digo que foi ontem que isto aconteceu – disse Jason. – Acha que não conheço o quarto onde durmo? Acha que eu era capaz de dormir nele uma semana com um buraco na janela por onde passa uma mão... – a voz sumiu-se-lhe, apagou-se-lhe na garganta, e ele pousou na mãe uns olhos vazios de tudo. Era como se os olhos sustivessem a respiração, enquanto a mãe olhava para ele, com o rosto flácido e sofrido, interminável, clarividente e, no entanto, obtuso. Estavam eles assim quando Dilsey repetiu:
– Quentin. Não teja a brincá comigo. Venha tomá o pequen’almoço, meu amô. Eles tão à sua espera.
– Não percebo – disse Mrs. Compson. – Parece mesmo que alguém tentou assaltar a casa... – Jason deu um salto. A cadeira caiu para trás. – O que... – disse Mrs. Compson, olhando para ele boquiaberta, quando o viu passar por ela a correr e galgar as escadas desvairado, cruzando-se com Dilsey. A cara dele estava na sombra e Dilsey disse:
– Ela tá ca birra. A sua mãe não abriu... – Mas Jason continuou a correr e meteu pelo corredor fora direito à porta dela. Não a chamou. Agarrou a maçaneta e tentou rodá-la. Depois ficou com a mão na maçaneta e a cabeça ligeiramente curvada, como se estivesse a escutar qualquer coisa vinda de muito mais longe do que o espaço que o quarto delimitava, qualquer coisa que ele já tinha ouvido antes. A sua atitude era a de alguém que finge escutar para se convencer de que não ouve o que realmente está a ouvir. Atrás dele veio Mrs. Compson, a subir a escada e a chamar por ele. Nisto, viu Dilsey e parou de o chamar, começando então a chamar por Dilsey.
– Já lhe disse qu’ela ’inda não destrancou essa porta – disse Dilsey.
Quando ela falou, ele voltou-se e correu para ela, mas a sua voz era calma, natural. – Ela traz a chave com ela? – disse ele. – Quero dizer, tem-na com ela agora, ou será que...
– Dilsey – disse Mrs. Compson das escadas.
– O qu’é? – disse Dilsey. – Porque não deixa...
– A chave – disse Jason. – A chave do quarto. Ela trá-la sempre com ela, não traz? A Mãe. – Nisto, viu Mrs. Compson e foi ter com ela ao fundo das escadas. – Dê-me a chave – disse ele, pondo-se a vasculhar nos bolsos do vestido preto ruçado que ela trazia. Ela resistiu.
– Jason – disse ela. – Jason! Será que tu e a Dilsey querem pôr-me de cama outra vez? – disse ela, tentando afastá-lo. – Não podes ao menos deixar-me passar um domingo sossegada?
– A chave – disse Jason, agarrando-a. – Dê-ma cá. – Olhou para trás, para a porta, como se esperasse vê-la abrir-se por encanto antes de ele lá voltar com a chave que ainda não tinha na mão.
– Dilsey! – disse Mrs. Compson, apertando o vestido contra o corpo.
– Dê-me a chave, sua parva! – gritou Jason subitamente. Tirou-lhe do bolso um molho enorme de chaves ferrugentas enfiadas numa argola de ferro, à carcereiro medieval, e correu pelo corredor fora seguido pelas duas mulheres.
– Ouve, Jason! – disse Mrs. Compson. – Ele nunca mais dá com ela – disse ela. – Sabes bem que nunca dou as chaves a ninguém, Dilsey – disse ela. – E começou a chorar.
– Cale-se – disse Dilsey. – Ele não lhe vai fazê nada. Eu não vou deixá.
– Mas num domingo de manhã, na minha própria casa – dizia Mrs. Compson. – Quando passei por tantos sacrifícios para os educar como bons cristãos. Deixa-me procurar a chave, Jason – disse ela, agarrando-lhe o braço. Depois começou a lutar com ele, mas ele deu-lhe uma cotovelada e olhou-a por um instante, com os olhos frios e acossados, voltando-se de novo para a porta e para as indecifráveis chaves.
– Cale-se – disse Dilsey. – Oh, Jason!
– Aconteceu alguma coisa terrível – disse Mrs. Compson, de novo a chorar. – Sei que aconteceu. Espera, Jason – disse ela, agarrando-se a ele outra vez. – Ele nem sequer me deixa procurar a chave de um quarto da minha própria casa!
– Pronto, pronto – disse Dilsey. – Não vai acontecê nada. Eu tou aqui e não o deixo fazê-lhe mal. Quentin! – disse ela, elevando a voz. – Não tenha medo, meu amô, eu tou aqui.
A porta abriu-se para dentro do quarto. Ele ficou parado à entrada, por uns instantes, e depois entrou. – Entrem – disse, com uma voz cava e sumida. Elas entraram. Aquilo não era o quarto de uma menina. Não era o quarto de ninguém, e o vago perfume a cosméticos baratos, bem como os poucos objetos femininos e algumas outras provas que atestavam o esforço grosseiro e infrutífero de o tornar mais feminino, apenas conseguiam torná-lo ainda mais anónimo, conferindo-lhe a transitoriedade inexpressiva e estereotipada das casas de passe. A cama não tinha sido desfeita. No chão estava uma peça de roupa interior já muito suja, num tom de rosa talvez berrante de mais, e da gaveta meio aberta de uma cómoda pendia uma meia de vidro desirmanada. A janela estava aberta. Quase encostada à janela havia uma pereira. Estava em flor e os ramos batiam e raspavam na parede exterior, e o ar de mil partículas, entrando pela janela, trazia até ao quarto o aroma perdido das flores em botão.
– Pronto, pronto – disse Dilsey. – Eu não lhe disse qu’ela tava bem?
– Bem? – disse Mrs. Compson. Dilsey foi com ela até ao quarto e acarinhou-a.
– Vá, venha-se deitá um bocadinho – disse ela. – Eu encontro-a num instante.
Mrs. Compson empurrou-a. – Vê se encontras o bilhete – disse ela. – O Quentin deixou um bilhete quando fez aquilo.
– Tá bem – disse Dilsey. – Eu procuro. Vá, venha pò seu quarto.
– Sempre soube que isto ia acontecer desde o momento em que lhe chamaram Quentin – disse Mrs. Compson. Dirigiu-se à escrivaninha e começou a revolver os objetos que já estavam todos espalhados: perfumes, frasquinhos, uma caixa de pó de arroz, um lápis todo roído, uma tesoura com uma lâmina partida em cima de um lenço enfarruscado, sujo de pó e manchado de ruge. – Vê se encontras o bilhete – dizia ela.
– Tou à procura – disse Dilsey. – Agora venha. Eu e o Jason vamos procurá-lo. Venha pò seu quarto.
– Jason – disse Mrs. Compson. – Onde está ele? – Encaminhou-se para a porta. Dilsey foi atrás dela pelo corredor fora até a uma outra porta. Estava fechada. – Jason – chamou ela. Não obteve resposta. Tentou rodar a maçaneta e voltou a chamá-lo. Mas continuou a não obter resposta, pois ele estava ocupado a tirar tudo para fora do roupeiro: roupas, sapatos, uma mala de viagem. Nisto, saiu de dentro do roupeiro com uma tábua canelada que atirou para o chão, voltando a entrar e aparecendo a seguir com uma caixa de metal. Colocou-a em cima da cama e quedou-se a olhar para a fechadura arrombada enquanto tirava do fundo do bolso um molho de chaves de onde escolheu uma, ficando com ela na mão por mais algum tempo, a olhar para a fechadura. Voltou a guardar as chaves e virou cuidadosamente o conteúdo da caixa para cima da cama. Separou os papéis também com muito cuidado, pegando num de cada vez e sacudindo-os. Depois virou a caixa ao contrário e sacudiu-a também, guardou de novo os papéis e ficou ali, de caixa nas mãos e cabeça caída, a olhar para a fechadura arrombada. Lá fora, ouviu os gaios passarem em turbilhão rente à janela, soltando gritos agudos que o vento levava consigo, e um automóvel passar ao longe perdendo-se na distância. A mãe voltou a chamá-lo do corredor, mas não se mexeu. Ouviu os passos de Dilsey pelo corredor fora e uma porta fechar-se. Então, tornou a meter a caixa dentro do roupeiro, atirou as roupas lá para dentro, desceu as escadas e correu para o telefone. Dilsey apareceu nas escadas quando ele estava à espera, de auscultador encostado ao ouvido. Olhou para ele sem se deter e seguiu em frente.
Do outro lado atenderam. – Fala Jason Compson – disse ele, com uma voz tão cava e tão rouca que teve de repetir. – É Jason Compson – disse novamente, controlando a voz. – Tenha um carro pronto daqui a dez minutos; mande um dos seus ajudantes, se o senhor não puder ir. Eu vou para aí agora... O quê?... Roubo. Em minha casa. Sei quem... Sim, roubo. Tenha um carro pron... O quê? Então não é para fazer respeitar a lei que lhe pagamos? Sim, estou aí dentro de cinco minutos. Tenha o carro pronto para partir imediatamente. Se não tiver, participo de si ao governador.
Bateu com força com o auscultador, atravessou a casa de jantar, onde jazia já frio o pequeno-almoço interrompido e entrou na cozinha. Dilsey estava a encher o saco de água quente. Ben estava sentado, tranquilo e ausente. A seu lado, Luster parecia um cão de fila, de olhar atento e vigilante. Estava a comer qualquer coisa. Jason atravessou a cozinha.
– Então não vem acabar o pequen’almoço? – disse Dilsey. Ele não ligou. – Vá tomá o seu pequen’almoço, Jason. – Ele foi-se embora, batendo a porta das traseiras. Luster levantou-se, foi à janela e olhou lá para fora.
– Ena pá – disse ele. – O qu’é que se passou lá em cima? Ele bateu na Miss Quentin?
– Cala essa boca – disse Dilsey. – Se fazes o Ben chorar, dou cabo de ti. Vê s’ele tá calmo té eu voltar. – Atarraxou a válvula do saco de água quente e saiu da cozinha. Ouviram-na subir as escadas e logo a seguir Jason partiu com o carro. Depois, os únicos sons que se ouviam na cozinha eram o murmúrio da chaleira e o tiquetaque do relógio.
– Sabe o qu’é qu’eu aposto? – disse Luster. – Aposto qu’ele lhe bateu. Aposto que lhe bateu na cabeça e agora foi buscá o médico. Aposto que sim. – O relógio continuava a trabalhar, solene e grave. Dir-se-ia que era o pulsar insensível da própria decadência daquela casa; passado pouco tempo, deu o aviso, apurou a garganta e bateu seis badaladas. Ben ergueu os olhos para o relógio e depois para o contorno fusiforme da cabeça de Luster, desenhado na janela, e recomeçou a abanar a dele e a babar-se. E também a choramingar.
– Cale-se, seu idiota – disse Luster sem se voltar. – Parece que não vai sê hoje que vamos à igreja. – Mas Ben continuava imóvel na cadeira, com as manápulas pendentes entre os joelhos, a gemer baixinho. De repente começou a chorar, num lamento longo, contido e sem sentido. – Cale-se – disse Luster. Voltou-se para trás e levantou a mão. – Quer que lhe bata? – Mas Ben limitou-se a olhar para ele, sempre a soluçar baixinho ao compasso da respiração. Luster aproximou-se e abanou-o. – Cale-se imediatamente! – gritou. – Venha p’aqui – disse ele. Obrigou Ben a levantar-se da cadeira, virou-a de frente para o fogão, abriu a portinhola da fornalha e puxou-o, fazendo-o sentar-se outra vez. Parecia um rebocador a puxar um petroleiro numa doca exígua. Ben sentou-se, calado, a olhar para a porta toda rubra. Nisto, ouviram de novo o relógio e Dilsey a descer a escada com lentidão. Quando a viu entrar, pôs-se a choramingar outra vez. E depois a chorar de rijo.
– Que lhe fizeste? – disse Dilsey. – Logo hoje tinhas de passá a manhã a atazaná-lo. Deix’ò em paz.
– Eu não fiz nada – disse Luster. – Foi Mr. Jason qu’o assustou, isso sim. Ele não vai matá Miss Quentin, pois não?
– Cale-se, Benjy – disse Dilsey. Ele calou-se. Ela foi à janela e olhou lá para fora. – Já parou de chovê – disse ela.
– Já, sissiô – disse Luster. – Há muito tempo.
– Então vão lá pa fora um bocado – disse ela. – Mesmo agora acabei de acalmá Miss Ca’line.
– Vamos à igreja? – disse Luster.
– Logo se verá. Vê s’o aguentas lá por fora té eu vos chamá.
– Podemos ir pò prado?
– Tá bem. Desde que não o deixes vir pa casa. Já não tou com cabeça pa mai nada.
– Sissiô – disse Luster. – Adonde foi Mr. Jason, vó?
– Isso já é querês sabê de mais, não achas? – disse Dilsey. Começou a levantar a mesa. – Cale-se, Benjy. O Luster vai levá-lo a passear.
– Qu’é qu’ele fez a Miss Quentin, vó? – disse Luster.
– Não lhe fez nada. Vá vão brincá lá pa fora.
– Aposto qu’ela já cá não tá – disse Luster.
Dilsey olhou para ele. – Como é que sabes?
– Eu e o Benjy vimo-la saltá da janela onte à noite. Não vimos, Benjy?
– Viste mesmo? – disse Dilsey, olhando para ele muito séria.
– Nós temo-la visto fazê isso todas as noites – disse Luster. – Saltá pela janela e descê pela pereira.
– Não me mintas, negrinho – disse Dilsey.
– Não tou a mentir. Pergunte ò Benjy.
– Então porqu’é que não disseste nada?
– O qu’é qu’eu tinha co isso? – disse Luster. – Não me meto na vida dos brancos. Venha, Benjy. Vamos lá pa fora.
Saíram os dois. Dilsey ficou encostada à mesa por algum tempo, e depois foi levantar a mesa do pequeno-almoço, tomou o dela e arrumou a cozinha. Tirou o avental, pendurou-o, foi até ao fundo das escadas e ficou de ouvido à escuta. Nem um som. Vestiu o capote, pôs o chapéu na cabeça e foi para casa. A chuva tinha parado. O vento tinha virado para sudeste, deixando o céu semeado de clareiras azuis. Para lá das árvores, dos telhados e dos torreões da cidade, o sol repousava sobre a crista de uma colina, como um remendo, esmorecido. O ar vibrou com o repicar de um sino, e logo, como se obedecendo a um sinal, outros se lhe juntaram, imitando-o.
A porta do casebre abriu-se e Dilsey apareceu, outra vez com a capa castanha e o vestido púrpura. Trazia também calçado um par de luvas brancas encardidas que lhe chegavam ao cotovelo, mas desta vez não levava turbante. Veio até ao meio do pátio e chamou Luster. Esperou uns momentos, e depois contornou a casa, sempre colada à parede, aproximou-se sorrateira da porta da adega e espreitou lá para dentro. Ben estava sentado nos degraus. Luster estava do outro lado, sentado no chão húmido. Tinha uma serra na mão esquerda, com a lâmina ligeiramente fletida sob a pressão da mão, e percutia a lâmina com o velho pilão de que ela se servia há mais de trinta anos para moer a farinha. A lâmina vibrou com um gemido único, arrastado, que logo se extinguiu, sem brilho nem ardor, fazendo a serra descrever uma curva bem pronunciada entre a mão de Luster e o chão: parada, imperscrutável, abaulada.
– Era assim qu’ele fazia – dizia Luster. – Só inda não encontrei uma coisa ideal para lhe bater.
– Com qu’então é isso qu’andas a fazê? – disse Dilsey. – Traz-me cá esse pilão – disse ela.
– Não o estraguei – disse Luster.
– Traz-mo cá – disse Dilsey. – E vai pô essa serra ond’a encontraste.
Ele foi arrumar a serra e trouxe-lhe o pilão. Ben começou de novo a soltar gemidos longos, desesperados. Mas não era nada de importância. Apenas sons. Dir-se-ia que, por uma conjunção de planetas, nele encontravam voz por um instante todo o tempo, toda a injustiça e toda a pena.
– Olhe pa ele – disse Luster. – Está assim desde que nos mandou embora. Não sei que tem ele esta manhã.
– Trá-lo cá – disse Dilsey.
– Venha, Benjy – disse Luster, descendo os degraus e pegando-lhe por um braço. Ele veio, obediente e choroso, produzindo aquele som lento e rouco dos navios, que parece começar antes mesmo de o som propriamente dito se ter iniciado, e parar depois de o som propriamente dito já ter cessado.
– Vai a corrê a casa buscar-lhe o boné – disse Dilsey. – E não faças barulho, pa Miss Ca’line não ouvir. Vá, despacha-te. Já tamos atrasados.
– Se não o fizé calá, ela vai ouvi-lo na mesma – disse Luster.
– Ele cala-se quando sairmos daqui – disse Dilsey. – Está a sentir-lhe o cheiro. É o que é.
– O cheiro de quê, vó? – disse Luster.
– Vai buscar-lhe o boné – disse Dilsey. Luster foi. Estavam os dois na escada da adega. O céu estava agora fragmentado em mil pedaços que arrastavam consigo as sombras fugidias para lá do jardim pouco cuidado, passando por cima da cerca partida e atravessando o pátio. Dilsey afagou a cabeça de Ben, com gestos lentos, repetidos, alisando-lhe as farripas. Ele choramingava baixinho, compassadamente. – Esteja caladinho – disse Dilsey. – Vá, agora não chore. Estamos quase a sair. Esteja caladinho. – Mas ele chorava baixinho, sem parar.
Luster voltou, trazendo na cabeça um chapéu de palha novinho em folha avivado com uma fita colorida e um boné de pano na mão. Aos olhos de um observador, o chapéu parecia evidenciar cada ângulo e plano da cabeça de Luster como um foco luminoso. A sua forma era tão singular que à primeira vista o chapéu parecia estar na cabeça de alguém que estivesse por detrás de Luster. Dilsey olhou para o chapéu.
– Porque não trouxeste antes o velho? – disse ela.
– Não fui capaz de dá co ele – disse Luster.
– Aposto que não. Aposto que lhe deste sumiço ontem à noite só pa não o encontrares. Meteste na cabeça qu’hádes dá cabo desse.
– Oh, vó – disse Luster. – Não vai chovê.
– E com’é que sabes? Vai busca o chapéu velho e deixa lá ficá esse.
– Oh, vó.
– Então vai busca o guarda-chuva.
– Oh, vó.
– Tens d’escolhê – disse Dilsey. – O chapéu velho ou o guarda-chuva. Tanto se me dá.
Luster foi à cabana. Ben chorava baixinho.
– Vamos – disse Dilsey. – Eles já nos apanham. Vamos ouvir os cânticos. – Deram a volta à casa e dirigiram-se para o portão. – Esteja caladinho – ia dizendo Dilsey enquanto desciam a rampa até ao portão. Chegaram ao portão. Dilsey abriu-o. Luster vinha um pouco mais atrás com o chapéu de chuva. Vinha também uma mulher. – Lá vêm eles – disse Dilsey. – Saíram o portão. – Então – disse ela. Ben parou de chorar. Luster e a mãe passaram-lhes à frente. Frony levava um vestido de seda azul muito brilhante e um chapéu enfeitado com flores. Era uma mulher magra, com uma cara achatada e simpática.
– Tens seis semanas de trabalho em cima – disse Dilsey. – Que vais fazê se chovê?
– Molhá-me, acho eu. – disse Frony. – Inda não consigo fazê pará de chovê.
– A vó tá sempre a dizê que vai chovê – disse Luster.
– Se não for eu, quem se vai preocupá com vocês – disse Dilsey. – Vamos lá. Já tamos atrasados.
– Hoje é o Rev’endo Shegog que vai fazer a pregação – disse Frony.
– É? – disse Dilsey. – Quem é ele?
– Vem de Saint Louis – disse Frony. – É um grande pregadô.
– Hum – disse Dilsey. – Do qu’estes negrinhos sem préstimo precisam é dum homem que lhes mostre o caminho do bem.
– O Rev’endo Shegog sabe fazê isso muito bem – disse Frony. – É o que todos dizem.
Foram andando. Pela rua tranquila, os brancos, em grupos resplandecentes, dirigiam-se para a igreja, respondendo ao chamado dos sinos trazido pelo vento, banhados de vez em quando por um sol tímido, irregular. O vento soprava afoito de sudeste, frio e rijo, deixando para trás os dias quentes.
– Gostava mais que não o trouxesse sempre consigo pà igreja, mãe – disse Frony. – As pessoas falam.
– Que pessoas? – disse Dilsey.
– Eu bem as oiço – disse Frony.
– Eu sei quais são os que falam – disse Dilsey. – Escumalha branca. Esses é que falam. Acham qu’ele não serve pa entrá na igreja dos brancos, mas qu’é bom de mais pa entrá na dos negros.
– As pessoas falam sempre – disse Frony.
– Manda-as falá comigo – disse Dilsey. – Diz-lhes que Nosso Sinhô não qué sabê s’ele é esperto ou não. Ninguém qué sabê disso, só os brancos.
Chegaram a uma rua que fazia esquina com aquela por onde iam, e que descia em ladeira, transformando-se numa estrada de terra batida. O terreno descia íngreme de cada lado, formando em baixo uma planície salpicada de pequenas cabanas cujos telhados corroídos pelo mau tempo ficavam à altura da estrada. As cabanas estavam situadas em lotes de terreno pelado, pejado de coisas partidas, tijolos, tábuas, loiças, coisas que haviam tido outrora utilidade. O pouco verde que havia eram as ervas bravas e as árvores – amoreiras, cássias e sicómoros –, árvores que partilhavam da secura hedionda que rodeava as casas; árvores cujos rebentos pareciam ser os restos tristes e teimosos de setembro, como se a primavera os tivesse ignorado, deixando-os alimentar-se do odor espesso e inconfundível dos negros que impregnava o ar onde cresciam.
Quando passavam, os negros cumprimentavam-nos da porta de casa, dirigindo-se geralmente a Dilsey:
– Irmã Gibson! Então como tá esta manhã?
– Tou bem. E a irmã, tamém tá?
– Tou muito bem, ’brigada.
Saíam das cabanas e subiam a custo a ladeira argilosa até à estrada. Os homens solenemente vestidos de preto ou castanho-escuro, com correntes de relógio em ouro e um por outro com uma bengala; os rapazes com fatos azul berrante ou de riscas, e chapéus aperaltados; as mulheres engomadas e restolhantes; e as crianças, com roupas compradas aos brancos em segunda mão, olhavam para Ben com o olhar esquivo dos animais noturnos:
– Aposto que não és capaz de lá ires e tocás nele.
– Po’que’é que não hei d’ir?
– Aposto que não és capaz. Aposto que tens medo.
– Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho.
– E então um maluco não faz mal às pessoas?
– Este não. Já lhe toquei.
– Mas aposto qu’agora não tocas.
– Se Miss Dilsey estivé a vê.
– Não tocas de maneira nenhuma.
– Ele não faz mal a ninguém. É só maluquinho.
Os mais velhos davam todos a salvação a Dilsey. Mas, a menos que fossem muito velhos, Dilsey deixava ser Frony a responder.
– A minha mãe não se sente muito bem esta manhã.
– Que pena. Mas o Rev’endo Shegog põe-na boa. Vai dar-lhe conforto e aliviá-lh’a alma.
A estrada subia outra vez até ao que parecia um pano de cenário. Escavada no barro vermelho, coroada de carvalhos, a estrada parecia acabar abruptamente, como uma fita cortada. De um dos lados, uma igreja depauperada erguia um excêntrico campanário, como numa pintura, e toda a cena era tão plana e falha de perspetiva como se pintada num cartão e colocada na beira do mundo, virada ao vento e ao sol, no espaço aberto, em abril, numa manhã impregnada de sinos. Acorriam numerosos à igreja com a pausada determinação do Sabbath. As mulheres e as crianças entraram e os homens ficaram cá fora a conversar em grupos, em voz baixa, até o sino se calar. Nessa altura entraram também.
A igreja estava enfeitada com meia dúzia de flores apanhadas nas sebes e nos jardins, e tiras de papel colorido. Por cima do púlpito estava suspenso um sino de Natal já amachucado, daqueles que se desdobram em harmónio. O púlpito estava vazio, embora os elementos do coro já estivessem no lugar, a abanarem-se com leques, apesar de não estar calor nenhum.
A maior parte das mulheres estava reunida em grupos num dos lados da igreja, a conversarem. O sino soou – uma badalada –, e elas dispersaram e tomaram os seus lugares; os fiéis, todos sentados, aguardavam, expectantes. O sino soou de novo – outra badalada. O coro levantou-se e começou a cantar e toda a assembleia virou a cabeça em uníssono à entrada de seis crianças ainda pequenas – quatro raparigas de tranças apertadas e atadas com laços de tiras de pano colorido como borboletas, e dois rapazes de cabeça quase rapada – que avançaram pela coxia central, enfeitada com fitas brancas e grinaldas de flores. Seguiam-nas dois homens. O que ia atrás era corpulento, da cor de café claro, imponente no seu fraque e laço branco. A cabeça era magistral e profunda, e o pescoço caía sobre o colarinho em grossos refegos. Mas todos o conheciam bem e, por isso, as cabeças continuaram voltadas depois de ele passar, e só quando o coro se calou é que perceberam que o pregador visitante já tinha entrado; e quando viram o homem que vinha à frente do pastor subir ao púlpito, ainda à sua frente, elevou-se da assembleia um rumor indescritível, um suspiro fundo, um som de espanto e desapontamento.
O visitante era franzino e vestia um casaco de alpaca já coçado. A cara era negra e chupada, de macaco velho. E enquanto o coro voltava a cantar e as seis crianças se levantavam e cantavam com vozes finas e assustadas, soltando átonos murmúrios, todos olhavam visivelmente consternados para o homenzinho insignificante sentado ao lado do pastor, cuja volumosa imponência o reduzia a dimensões liliputianas. Ainda o fitavam incrédulos e consternados, quando o pastor se pôs de pé e o apresentou com palavras fluentes e tonitroantes cujo fervor ainda mais aumentou a insignificância do visitante.
– E foram eles a Saint Louis pa buscá isto – cochichou Frony.
– Já vi Deus servir-se de coisas inda mais estranhas – disse Dilsey. – Esteja caladinho – disse ela a Ben. Eles já vão cantá outra vez.
Quando o visitante se levantou para dar início à sua pregação, parecia um branco. A sua voz era fria e monocórdica. Parecia forte de mais para sair dele, e a princípio todos o escutaram por mera curiosidade, como fariam se um macaco ali estivesse a falar. Olhavam para ele como se estivesse a fazer equilíbrio no arame. Esqueceram-se até da sua insignificância levados pelo virtuosismo com que corria, parava e mergulhava no fio gélido e inflexível da voz, até que, por fim, quando ele, com uma espécie de pirueta voltou para junto da estante de leitura, apoiando-se a ela com um braço levantado à altura do ombro, e com o seu corpo de macaco tão despojado de movimento como uma múmia ou um recipiente vazio, a assembleia soltou um suspiro, como se acordasse de um sonho coletivo, mexendo-se nos lugares. Por detrás do púlpito, o coro abanava-se com convicção. Dilsey murmurou: – Agora fique calado. Eles já voltam a cantá.
Nisto, uma voz disse: – Irmãos.
O pregador não se mexera. O seu braço estava ainda sobre a estante, conservando a mesma pose enquanto a voz se extinguia em sonoridades que o eco repercutia pelas paredes. Um tom tão diferente do primeiro como a noite do dia, um som triste, de timbre semelhante ao de uma trompa de contralto, que lhes penetrava o coração e lhes falava por dentro mesmo depois de se extinguir em múltiplos ecos perdidos.
– Irmãos e irmãs – disse outra vez. O pregador tirou o braço da estante e começou a andar para trás e para a frente diante dela, com as mãos atrás das costas, com a sua figura franzina, curvada sobre si mesma, como de alguém de há muito empenhado numa luta solitária contra o mundo implacável: – Eu tenho a memória e o sangue do Cordeiro! – E continuou a andar para trás e para a frente com passadas firmes, por baixo das decorações em papel frisado e do sino de Natal, alquebrado, com as mãos atrás das costas. Era um rochedo já gasto pela erosão das vagas sucessivas da sua própria voz. Parecia alimentar com o seu corpo aquela voz que, como um súcubo, nele cravava os dentes ávidos de carne. E os fiéis pareciam assistir impávidos, enquanto a voz o consumia até o reduzir a nada e os reduzir a nada e já nem voz existir, só corações que falavam uns aos outros através dos cânticos, sem precisarem de palavras, de tal maneira que, quando ele veio apoiar-se na estante, com a cara de macaco erguida alto, e a postura serena e torturada de um cristo crucificado que transcendia a sua própria insignificância e indigência, tornando-as inexistentes, um suspiro longo e lamentoso se elevou da assembleia, e uma voz isolada de mulher, uma voz de soprano, entoou: – Sim, meu Jesus!
À medida que as nuvens avançavam fugazes em ondas sucessivas, as lúgubres vidraças acendiam-se e apagavam-se em fantasmagórica alternância. Na estrada passou um carro, derrapou na areia e perdeu-se na distância. Dilsey estava sentada muito hirta com a mão pousada sobre o joelho de Ben. Duas lágrimas rolavam-lhe pelas faces descaídas, cintilando nas miríades de sulcos retalhados pelos sacrifícios, a abnegação e tantos anos.
– Irmãos – disse o pastor num sussurro rouco, sem se mexer.
– Sim, meu Jesus! – disse a voz de mulher, agora em surdina.
– Irmãos e irmãs! – Soou de novo a sua voz, com as trompetas. Desapoiou o braço da estante, ficou parado e ergueu as mãos. – Eu trago a rècordação e o sangue do Còrdeiro! – Nem notaram que a entoação e a pronúncia se haviam tornado negras, apenas se inclinavam para um lado e para o outro, sempre sentados, deixando que a voz os levasse com ela.
– Quando os longos e gélidos... Oh, digo-vos eu, irmãos, quando os longos e gélidos... Eu vejo a luz e eu vejo a palavra, pobre pecadô! Elas passaram pelo Egito, as quadrigas balançantes; passaram pelas gerações. O home qu’era rico: onde tá el’agora, meus irmãos? O home qu’era pobre: onde tá el ’agora, minhas irmãs? Ah, eu vou-vos dizê, se não tiverdes o leite e o orvalho d’antiga salvação, quando os longos e gélidos anos passarem por vós!
– Sim, meu Jesus!
– Eu vou-vos dizê, irmãos, eu vou-vos dizê, irmãs, eles a seu tempo chegarão. Diz o pobre pecadô Deixai-me repousá no Sinhô, deixai-me repousá o meu fardo. E então, irmãos, que vai dizê Jesus? E então, irmãs, que vai dizê Jesus? Trazes a rècordação e o sangue do Còrdeiro? Não quero sobrecarregá o céu!
Meteu a mão no bolso, tirou um lenço e limpou a cara. Um som cavo, concertado, perpassou a assembleia: – Mmmmmmmmmmm-mm! – E a voz da mulher soou: – Sim, Jesus! Meu Jesus!
– Irmãos! Olhai pa estas criancinhas sentadas entre vós. Jesus um dia foi assim. A sua mãe sofreu a glória e os tormentos. Talvez o tenha abraçado um dia, ao cair da noite, cos anjos a embalá-lo; talvez tenha olhado lá pa fora e visto a ronda romana passá. – Continuava a andar para trás e para a frente, limpando a cara com o lenço. – Escutai, irmãos! Eu tou a vê esse dia. Vejo Maria sentada à porta com Jesus ao colo, o seu menino Jesus. Oiço os anjos a cantá cânticos de paz e de glória; vejo os Seus olhos a fechá-se; vejo Maria dá um salto, vejo a cara dos soldados: Vamos matá! Vamos matá! Vamos matá o teu menino Jesus! Oiço o pranto e os lamentos da pobre mãe sem salvação, sem a palavra de Deus!
– Mmmmmmmmmmmmmmmm! Meu Jesus! Meu Menino Jesus! – e uma outra voz, elevando-se:
– Eu vejo, Oh, Jesus! Eu vejo! – E outra ainda, sem palavras, soando como bolhas de ar subindo dentro de água.
– Eu vejo tudo, irmãos! Eu vejo tudo! Uma visão atroz que deixa meus olhos cegos! Vejo o Calvário e os três troncos sagrados, vejo o ladrão e o assassino e Aquele qu’ind’é menos qu’eles; oiço a chacota, as provocações: S’és mesmo Jesus, ergu’a tua cruz e anda! Oiço o pranto das mulheres e as lamentações noturnas; oiço o choro e os gemidos e a face voltada de Deus: eles mataram Jesus; eles mataram o Meu Filho!
– Mmmmmmmmmmmmm. Oh, Jesus! Eu vejo, oh, Jesus!
– Oh, cego pecadô! Eu digo-vos, irmãos. Eu digo-vos, irmãs, quando o Sinhô voltou a Sua face omnipotente, disse, Não vou sobrecarregar o céu! Vejo Deus inconsolável fechá a Sua porta; vejo o dilúvio chegá avassaladô; vejo as trevas e a condenação eterna abatê-se sobre as gerações. E então, irmãos, atentem! Sim, irmãos! Que vejo eu? Que vejo eu, oh, pecadô? Vejo a ressurreição e a luz; vejo o doce Jesus que diz Eles mataram-me pa que vós possais vivê de novo; morri pa que aquele que vê e acredita não morra nunca. Irmãos, oh, irmãos! Vejo a aurora a despontar e as trompetas a anunciarem a glória, e os mortos a levantarem-se, que têm o sangue e a rècordação do Còrdeiro!
Ben continuava sentado, com o seu olhar azul e doce, envolvido pelas vozes e pelas mãos que se agitavam. Dilsey, muito direita a seu lado, chorava convictamente e em silêncio abandonada ao sangue e à lembrança do Cordeiro.
E chorava ainda, alheia às conversas, quando subiam a estrada de areão sob o sol do meio-dia, e os grupos dispersavam, trocando comentários entre si.
– G’ande pregadô, hem! A princípio não parecia, mas depois... Coisa fina!
– Ele viu o podê e a glória.
– Si sinhô. Viu mesmo. Cara a cara. Isso é que viu.
Dilsey ia calada, sem um trejeito, deixando as lágrimas seguirem o seu curso cavado e sinuoso, caminhando de cabeça levantada, sem qualquer esforço sequer para as limpar.
– Porque não para com isso, mãe? – disse Frony. – Com toda esta gente a vê. Não tarda tamos a encontrá brancos.
– Vi o começo e o fim – disse Dilsey. – Não te preocupes.
– O começo e o fim de quê? – disse Frony.
– Não te preocupes – disse Dilsey. – Vi o começo e agora vejo o fim.
Todavia, antes de chegarem à rua principal, Dilsey parou, pegou na ponta da saia e limpou os olhos à barra do saiote de cima. Depois continuaram. Ben arrastava os pés ao lado de Dilsey, com os olhos postos em Luster, que ia à frente a fazer cabriolas, com o chapéu de chuva na mão e o chapéu de palha novo atrevidamente à banda, reluzindo ao sol; dir-se-ia um canzarrão tonto e desajeitado a admirar um cachorrinho vivaço. Chegaram finalmente ao portão e entraram. E logo Ben desatou na caramunha do costume, e por momentos todos olharam para o cimo da rampa, para a casa quadrada, sem pintura, com a porta apodrecida.
– Que aconteceu por lá hoje? – disse Frony. – Alguma coisa foi.
– Nada – disse Dilsey. – Trata da tua vida e deixa os brancos tratá da deles.
– Alguma coisa foi – disse Frony. – Ouvi-o logo pela manhã. Mas não tenho nada co isso, tá claro.
– E eu té sei o que foi – disse Luster.
– Sabes mais qu’ò que devias – disse Dilsey. – Não ouviste a tua mãe dizê que não é da tua conta? Lev’ò Benjy pàs traseiras e vê s’o entreténs té eu tê o comê pronto.
– Eu sei onde tá Miss Quentin – disse Luster.
– Então guarda pa ti o que sabes – disse Dilsey. – Quando a Quentin precisá dos teus conselhos, eu aviso-te. Vá toc’à ir brincá lá pa trás.
– Já sabe o que vai acontecê mal eles se puserem a jogá além co aquela bola – disse Luster.
– Inda é cedo pa começarem. E nessa altura já cá tá o T. P. pò levá a passeá. Vá, dá cá o chapéu novo.
Luster deu-lhe o chapéu e depois foi com Ben para o pátio das traseiras. Ben continuava a chorar, mas em surdina. Dilsey e Frony foram para a cabana. Daí a nada Dilsey saiu, de novo com o vestido de algodão desbotado, e dirigiu-se para a cozinha. O lume estava quase apagado. O silêncio era absoluto. Pôs o avental e foi ao andar de cima. Não se ouvia nada em lado nenhum. O quarto da Quentin estava tal e qual o tinham deixado. Entrou, apanhou a roupa caída no chão, meteu a meia de vidro na gaveta e voltou a fechá-la. A porta do quarto de Mrs. Compson estava fechada. Dilsey parou cá fora por um instante a escutar. Depois abriu-a e entrou, penetrando num odor intenso a cânfora. Como as persianas estavam descidas, e o quarto e a cama na penumbra, ela pensou que Mrs. Compson estava a dormir; porém, quando ia a fechar a porta, a outra falou.
– Então – disse ela. – O que é?
– Sou eu – disse Dilsey. – Qué alguma coisa?
Mrs. Compson não respondeu. Passado um instante, e sem mexer a cabeça, disse: – Onde está o Jason?
– Inda não voltou – disse Dilsey. – O qu’é que lhe qué?
Mrs. Compson não respondeu. Como tantas outras pessoas frias e fracas, ao ver-se agora confrontada com uma calamidade irremediável, ia buscar sabe-se lá onde uma espécie de força, de coragem. No seu caso era uma convicção inabalável num acontecimento ainda por deslindar. – Bem – disse por fim. – Sempre encontraste?
– Encontrei o quê? Tá a falá de quê?
– Do bilhete. Ela devia pelo menos ter tido por mim a consideração suficiente para deixar um bilhete. Até o Quentin deixou.
– De qu’é que tá a falá? – disse Dilsey. – Então não sabe qu’ela tá bem? Aposto que vai entrá por aquela porta antes d’anoitecê.
– Isso sim – disse Mrs. Compson. – Está-lhe na massa do sangue. Tal tio, tal sobrinha. Ou tal mãe, tal filha. Nem sei o que seria pior. Mas também já não me interessa.
– Pa que continua a falá dessa maneira? – disse Dilsey. – Porqu’é qu’ela havia de querê fazê uma coisa dessas?
– Sei lá. E o Quentin, que motivos tinha? Sim, em nome de Deus, que razões tinha ele? Só pode ter sido para me afrontar, para me magoar. Esteja Deus onde estiver, Ele não ia permitir tal coisa. Eu sou uma senhora. Pode pensar-se que não, a avaliar pelos filhos que tenho, mas sou.
– Tenha calma e espere – disse Dilsey. – Logo à noite ela vai estar aqui, na cama dela, olá se vai. – Mrs. Compson não disse nada. Um lenço embebido em cânfora estava pousado sobre a sua testa. O roupão preto deitado aos pés da cama. Dilsey parada à porta, com a mão na maçaneta.
– Bem – disse Mrs. Compson – O que queres? Vais fazer o almoço para o Jason e o Benjamin, ou não?
– O Jason inda não voltou – disse Dilsey. – Vou prepará qualqué coisa. Tem a certeza que não qué nada? E o saco, inda tá quente?
– Podes dar-me a Bíblia?
– Dei-lhe esta manhã antes de sair.
– Puseste-a à beirinha da cama. Quanto tempo achas que se aguentou lá?
Dilsey foi da porta até à cama e, às apalpadelas, procurou no escuro, acabando por encontrar a Bíblia caída debaixo da cama. Alisou as páginas dobradas e colocou de novo o livro em cima da cama. Mrs. Compson nem abriu os olhos. Os seus cabelos eram da cor da almofada, e sob aquele toucado feito com o terapêutico lenço canforado, parecia uma velha freira a rezar. – Não a ponhas aí outra vez – disse ela, sem abrir os olhos. – Aí foi onde a puseste antes. Parece que queres que eu saia da cama para ter de a ir apanhar.
Dilsey passou a Bíblia por cima dela e pousou-a do lado da cama que estava vazio. – Não pode lê com esta luz. Nem pensá – disse ela. – Qué que suba a persiana um bocadinho?
– Não. Deixa-a estar como está. Vai é preparar qualquer coisa para o Jason comer.
Dilsey foi-se embora. Fechou a porta e voltou para a cozinha. O fogão estava quase frio. Nessa altura, o relógio que estava por cima do aparador bateu dez vezes. – Uma hora – disse ela em voz alta. – O Jason não vem pa casa. Vi o começo e vejo o fim – disse ela, olhando para o fogão arrefecido. – Vi o começo e vejo o fim. – Pôs algumas coisas frias em cima da mesa, sempre a cantar enquanto andava para trás e para a frente, entoando um hino. Cantou-o inteiro, mas repetindo sempre os dois primeiros versos. Preparou a refeição, foi à porta, chamou Luster e, passado pouco tempo, Luster e Ben entraram na cozinha. Ben gemia ainda, como se chorasse para dentro.
– Não há maneira de se calá – disse Luster.
– Vá, venham comê – disse Dilsey. – O Jason não vem almoçá. – Sentaram-se à mesa. Ben conseguia comer sozinho as coisas sólidas, embora, mesmo tratando-se de um almoço só de coisas frias, Dilsey lhe tivesse posto um pano ao pescoço. Ele e Luster iam comendo, Dilsey andava pela cozinha a cantar os únicos dois versos do hino de que se lembrava. – Podem comê à vontade – disse ela. – O Jason não vem pa casa.
Nessa altura estava ele a trinta e tal quilómetros de distância. Depois de sair de casa, dirigiu-se a toda a velocidade para a cidade, ultrapassando os grupos mais atrasados para o Sabbath e até o repicar perentório dos sinos no ar cortado de vento. Atravessou a praça deserta e virou para uma rua estreita que ainda estava mais silenciosa, parou diante de uma casa de madeira e foi até ao alpendre pelo caminho ladeado de flores. Por detrás da porta de rede havia gente a falar. Quando levantou a mão para bater, ouviu passos e susteve o gesto até a porta ser aberta por um homem corpulento de calças largas de sarja preta e uma camisa branca de peitilho engomado. Tinha uma farta cabeleira rebelde e grisalha e uns olhos acinzentados, redondos e pequeninos de menino. Apertou a mão de Jason e levou-o para dentro, ainda a apertar-lhe a mão.
– Entre – disse ele. – Entre.
– Está pronto para partir? – disse Jason.
– Entre – disse o outro, empurrando-o pelo ombro para uma sala onde estavam sentados um homem e uma mulher. – Já conhece o marido da Myrtle, não conhece? Jason Compson, Vernon.
– Sim, sim – disse Jason. Nem sequer olhou para o homem e, enquanto o xerife trazia uma cadeira, o homem disse:
– Nós saímos, para vocês poderem falar à vontade. Anda, Myrtle.
– Não, não – disse o xerife. – Deixem-se estar sentados. Não é nada de muito grave, pois não, Jason? Sente-se.
– Eu conto-lhe no caminho – disse Jason. – Pegue no chapéu e no casaco.
– Nós saímos – disse o homem, pondo-se de pé.
– Deixe-se estar sentado – disse o xerife. – Eu e o Jason vamos ali para o alpendre.
– Vá buscar o chapéu e o casaco – disse Jason. – Eles já levam doze horas de avanço. – O xerife dirigiu-se para o alpendre. Um homem e uma mulher que iam a passar cumprimentaram-no. Ele respondeu com um gesto caloroso e floreado. Ainda repicavam sinos para os lados da zona da cidade conhecida por o Poço dos Negros. – Vá buscar o chapéu, xerife – disse Jason. O xerife puxou duas cadeiras.
– Ora sente-se lá e conte-me o que se passou.
– Já lhe contei ao telefone – disse Jason, continuando de pé. – Fi-lo para ganhar tempo. Será que tenho de apelar para a lei para o obrigar a cumprir o seu dever?
– Sente-se e conte-me tudo – disse o xerife. – Eu já trato de si.
– Trata uma ova – disse Jason. – É a isto que chama tratar de mim?
– Você é que nos está a atrasar – disse o xerife. – Ora sente-se e conte-me lá o que se passou.
Jason contou-lhe, mas era tal o peso do ultraje e da impotência, que depressa esqueceu que tinha pressa, embarcando num turbilhão violento de autojustificação e desagravo. O xerife observava-o atento com os olhos frios e perspicazes.
– Mas não sabe se foram eles – disse ele. – Apenas julga que foram.
– Como pode dizer que não sei – disse Jason. – Quando passei dois dias a persegui-la por becos e travessas, tentando afastá-la dele, depois de lhe ter dito o que lhe fazia se os apanhasse juntos, e vem agora dizer-me que eu não sei que aquela p...
– Calma – disse o xerife. – Já chega. É melhor parar por aí. – E pôs-se a olhar para a rua, de mãos nos bolsos.
– E quando venho ter consigo, um representante da lei... – disse Jason.
– Esta semana o espetáculo vai para Mottson – disse o xerife.
– Pois vai – disse Jason. – E se eu tivesse conseguido encontrar um representante da lei que estivesse minimamente interessado em defender os cidadãos que o elegeram, a estas horas já eu lá estava. – Repetiu a história, recapitulando amargamente os factos, como se retirasse prazer do ultraje e da impotência. O xerife parecia nem ouvir.
– Jason – disse ele. – Que fazia você com três mil dólares escondidos em casa?
– O quê? – disse Jason. – O sítio onde eu guardo o meu dinheiro é da minha conta. Da sua é ajudar-me a recuperá-lo.
– A sua mãe sabia que tinha tanto dinheiro em casa?
– Oiça uma coisa – disse Jason. – A minha casa foi assaltada. Sei quem são os ladrões e sei onde estão. Venho ter consigo, como representante da lei, e mais uma vez lhe pergunto, vai ajudar-me a recuperar o que é meu, ou não vai?
– O que tenciona você fazer com a rapariga, se os apanhar?
– Nada – disse Jason. – Absolutamente nada. Nem lhe toco. Aquela cabra, que me custou um emprego, a única oportunidade que tive de singrar na vida, que matou o meu pai, que está a dar cabo da vida da minha mãe e que fez do meu nome bombo de festa da cidade... Não lhe vou fazer nada – disse ele. – Absolutamente nada.
– Você levou a rapariga a fugir, Jason – disse o xerife.
– A maneira como eu governo a minha família não é da sua conta – disse Jason. – Vai ajudar-me ou não?
– Obrigou-a a fugir de casa – disse o xerife. – E tenho cá as minhas suspeitas de que sei a quem pertence esse dinheiro, mas acho que nunca vou ter a certeza.
Jason continuava de pé, a torcer a aba do chapéu, e disse calmamente: – Então não vai fazer nada para me ajudar a apanhá-los?
– Isso não é nada comigo, Jason. Se você tivesse provas concretas, nesse caso eu tinha de agir. Mas sem elas acho que não tenho nada a ver com o assunto.
– É essa então a sua resposta? – disse Jason. – Pense bem.
– É essa, é, Jason.
– Muito bem – disse Jason. Pôs o chapéu na cabeça. – Vai arrepender-se. Não vou ficar sem ajuda. Não estamos na Rússia, onde um homem é imune só porque usa uma chapa de metal ao peito. – Desceu os degraus, entrou no carro e pôs o motor a trabalhar. O xerife ficou a vê-lo afastar-se, inverter a marcha e passar a acelerar em frente à casa, a caminho da cidade.
Os sinos repicaram outra vez, sons agudos na luz fugaz, em acordes sincopados, desencontrados. Parou numa estação de gasolina e mandou verificar os pneus e encher o depósito.
– Vai de viagem? – perguntou-lhe o negro. Não respondeu. – Parece qu’o tempo vai melhorá, finalmente – disse o negro.
– Melhorar, uma merda – disse Jason. – Ao meio-dia vai estar a chover a potes. – Olhou para o céu, a pensar na chuva, nas estradas escorregadias de terra argilosa, e nele, empanado algures a quilómetros e quilómetros da cidade. Pensava nisso com uma espécie de sentimento triunfal, em como iria faltar ao almoço, em como, partindo imediatamente, cedendo à premência da pressa, estaria à distância máxima possível de ambas as cidades quando o meio-dia chegasse. Parecia-lhe que neste particular as circunstâncias estavam a seu favor, e disse então ao negro:
– Que raio estás tu a fazer? Alguém te pagou para reteres aqui o carro o máximo que pudesses?
– Este pneu não tem ar nenhum – disse o negro.
– Então salta daí para fora e dá cá a bomba – disse Jason.
– Já tá cheio – disse o negro, pondo-se de pé. – Já pode partir.
Jason entrou para o carro, pôs o motor a trabalhar e arrancou. Meteu a segunda, o motor roncava ofegante e ele insistia, carregando no acelerador e fechando e abrindo a entrada de ar com violência. – Vai chover – disse ele. – Quando chegar a meio do caminho vai chover a potes. – E lá foi a acelerar, deixando para trás a cidade e o repicar dos sinos, e já se imaginava atolado em lama à procura de uma parelha de mulas. – E todos estes estupores vão estar na igreja. – Imaginava como finalmente acabaria por encontrar uma igreja e conseguiria arranjar a tal parelha de mulas, e como o dono viria cá fora a correr, a gritar com ele, e ele o atirava ao chão e dizia: – Sou Jason Compson. Experimenta travares-me o passo. Experimenta elegeres um xerife que me consiga travar o passo – dizia ele, imaginando-se a entrar no tribunal escoltado por soldados e trazendo à força o xerife. – Pensa que pode ficar de braços cruzados a ver-me perder o emprego. Eu mostro-lhe o que é perder o emprego. – Não era na sobrinha que pensava, nem no valor relativo do dinheiro. Nenhum deles tinha tido para ele existência real nos últimos dez anos: simbolizavam apenas, em conjunto, o emprego no banco do qual se vira privado antes mesmo de o ter conseguido.
O tempo clareou, as sombras fugidias eram agora um bom prenúncio, e parecia-lhe que o facto de o dia estar a desanuviar era mais um golpe da sorte traiçoeira, da nova batalha para que se dirigia carregado de velhas feridas. De vez em quando passava por igrejas, barracões de madeira por pintar, com campanários de chapa, rodeados de parelhas de pilecas e automóveis estropiados, e parecia-lhe que cada uma delas era mais um posto de vigia de onde a guarda recuada das Circunstâncias o espiava. – E vai-te lixar Tu também – dizia ele. – Experimenta deteres-me – e imaginava-se ao comando da sua escolta de soldados, com o xerife algemado na retaguarda, arrancando a Omnipotência à força do seu trono, se tal fosse necessário; imaginava as legiões do céu e do inferno guerreando-se e ele abrindo caminho por entre elas para finalmente deitar as mãos à sobrinha.
O vento que soprava de sudeste fustigava-lhe o rosto, certeiro. Dir-se-ia que sentia o golpe de ar, persistente, penetrar fundo no seu cérebro e, de súbito, impelido por uma velha premonição, carregou nos travões, parou e quedou-se imóvel e sentado. Depois levou a mão à cabeça e começou a praguejar, e assim continuou, sentado e a praguejar, num rouco sussurro. Quando tinha de guiar por muito tempo, munia-se de um lenço embebido em cânfora que atava à volta do pescoço mal saía da cidade, para inalar os vapores; saiu por isso do carro e levantou a almofada do assento, na esperança de encontrar algum lenço esquecido. Espreitou debaixo dos dois bancos e deixou-se ficar fora do carro mais um pouco, a praguejar, imaginando-se coberto de ridículo pelo seu próprio triunfo. Fechou os olhos e encostou-se à porta. Podia voltar para trás e ir buscar a cânfora, ou seguir em frente. Em qualquer dos casos, sentiria a cabeça a estalar, mas em casa sabia que encontraria cânfora ao domingo, ao passo que se continuasse não sabia se a conseguiria arranjar. Porém, se voltasse para trás, só daí por hora e meia chegaria a Mottson. – Talvez se eu for devagar... – disse ele. – Talvez se eu for devagar, a pensar noutra coisa...
Entrou para o carro e arrancou. – Vou pensar noutra coisa – disse, pondo-se a pensar em Lorraine. Imaginou-se na cama com ela, mas apenas deitado ao lado dela, pedindo-lhe que o ajudasse, mas logo voltou a pensar no dinheiro, e em como tinha sido enganado por uma mulher, uma miúda ainda. Se ao menos pudesse acreditar que fora o homem que o roubara. Mas ver-se roubado daquilo que era a sua compensação pelo emprego gorado, privado daquilo que ele tinha juntado com tanto esforço e risco, do próprio símbolo do emprego perdido, e, pior que tudo, por uma cabra daquelas. Seguiu em frente, protegendo a cara do vento certeiro com a gola do casaco.
Via as forças adversas do destino e da vontade reunirem-se agora, rapidamente, numa aliança irrevogável; estava a ficar astucioso. Não posso falhar, dizia de si para si. Só havia uma saída, sem alternativas: tinha de a usar. Estava convencido de que qualquer deles o reconheceria à primeira vista, ao passo que ele tinha de tentar descobri-la a ela primeiro, a menos que o homem ainda trouxesse a gravata vermelha. E o facto de depender de uma gravata vermelha parecia-lhe ser sinal da fatalidade iminente; podia quase sentir-lhe o cheiro, senti-lo no latejar das têmporas.
Transpôs a última colina. Pairava fumo sobre o vale e viam-se alguns telhados e um ou dois pináculos despontando das árvores. Desceu a encosta e entrou na cidade, abrandando a marcha, mentalizando-se de que todo o cuidado era pouco, procurando a tenda antes de mais nada. Estava com a vista algo afetada, e sabia que era a fatalidade que teimava em dizer-lhe que fosse procurar qualquer coisa para as dores de cabeça. Numa estação de serviço disseram-lhe que a tenda ainda não estava montada, mas que as caravanas estavam num parque junto à estação dos comboios. Foi pois para lá que se dirigiu.
Encontrou duas carrinhas estacionadas, pintadas em cores garridas. Inspecionou o local ainda antes de sair do carro. Esforçava-se por respirar superficialmente para que o sangue não lhe latejasse tanto nas fontes. Saiu do carro e seguiu rente ao muro da estação, sempre atento às caravanas. Havia algumas peças de roupa estendidas nas janelas, pingonas e enrodilhadas, como se tivessem acabado de ser lavadas. No chão, junto aos degraus de uma delas, estavam três cadeiras de lona. Mas não detetou sinais de vida até um homem de avental imundo se assomar à porta e despejar um alguidar de água da loiça com um gesto largo, fazendo refletir o sol no bojo metálico voltando em seguida para dentro.
Agora tenho de o apanhar de surpresa, antes de ele os avisar, pensou. Nem lhe passou pela cabeça que podiam não estar nas caravanas. Que podiam nem sequer estar ali, que o desenlace não iria depender de quem visse primeiro quem, contrariando a natureza, o ritmo dos acontecimentos. Mais do que isso: ele tinha de ser o primeiro a vê-los e recuperar o dinheiro; o que fizessem depois já não teria importância, ao passo que de outra maneira o mundo inteiro ficaria a saber que ele, Jason Compson, tinha sido roubado pela Quentin, sua sobrinha, uma puta.
Fez novo reconhecimento do terreno. Depois aproximou-se da carrinha, subiu os degraus, rápido e silencioso, e parou junto à porta. A cozinha da caravana era escura e tresandava a comida estragada. O homem era uma mancha esbranquiçada, e cantarolava com voz de tenor, trémula e de cana rachada. Um velho, pensou ele, e mais pequeno do que eu. Entrou no carro e o homem levantou os olhos para ele.
– Sim? – disse o homem, parando de cantar.
– Onde estão eles? – disse Jason. – Vá, rápido. Na caravana dormitório?
– Onde está quem? – disse o homem.
– Nada de mentirolas – disse Jason. E avançou para o homem na penumbra, por entre a desarrumação geral.
– Mas que vem a ser isto? – disse o outro. – A quem está você a chamar mentiroso? – E quando Jason lhe deitou a mão ao ombro, ele exclamou: – Eh lá, camarada!
– Nada de mentiras – disse Jason. – Onde estão eles?
– Filho da puta – disse o homem. O braço dele, fino e frágil, estava bem preso nas garras de Jason. Tentou libertar-se, e depois virou-se e começou a tatear entre a tralha que pejava a mesa por detrás dele.
– Vamos – disse Jason. – Onde estão eles?
– Espera lá que eu já te digo onde eles estão – guinchou o homem. – É só eu encontrar a minha faca e vais ver.
– Oiça lá – disse Jason, tentando segurar o outro. – Só estou a fazer-lhe uma pergunta.
– Filho da puta – guinchava o outro, vasculhando por cima da mesa. Jason tentou prender-lhe os dois braços para lhe acalmar a fúria, mas o corpo do homem era tão velho e frágil, mas, não obstante, tão fatalmente determinado, que Jason viu claramente pela primeira vez a fatalidade para a qual se precipitava.
– Pronto! – disse ele. – Pronto. Pronto! Eu saio já. É só o tempo de sair.
– A chamar-me mentiroso – indignava-se o outro. – Deixa-me. Solta-me e vais ver o que eu te faço.
Jason olhava tresloucado para todos os lados, sem o largar. Lá fora o dia estava soalheiro, brilhante, vivo e vazio, e ele pensou nas pessoas que não tardariam a regressar a casa calmamente, com circunspecto decoro, para o seu almoço de domingo, e pensou em si próprio, tentando deter aquele homenzinho furioso e fatal, sem se atrever a soltá-lo para lhe poder voltar as costas e fugir.
– Promete que se controla até eu sair? – disse ele. – Promete? – Mas o outro continuava a debater-se, e Jason soltou uma das mãos e bateu-lhe na cabeça. Um golpe desastrado, atabalhoado, não muito violento, mas o outro tombou de imediato, rolando com estrépito por cima de baldes e panelas. Jason ficou de pé a olhar para ele, ofegante, à escuta. Depois deu meia volta e correu para a porta. Aí, dominou-se e desceu os degraus mais devagar, ficando parado cá fora. A sua respiração produzia um sonoro ha ha ha e ainda ele estava ali parado, a ver se se acalmava, olhando para um lado e para o outro, quando uma restolhada atrás de si o fez voltar-se mesmo a tempo de ver o homenzinho saltar em fúria da caravana, brandindo um machado ferrugento.
Jason agarrou-se ao machado, sem sentir o choque, mas sabendo que tombava e pensando É então assim que isto vai acabar, convencido de estar prestes a morrer, e quando uma coisa o atingiu na nuca pensou Como é que ele me conseguiu atingir aqui? Só se já me bateu há muito tempo, pensou ele, e só agora é que senti. E pensou Depressa. Depressa. Acaba com isso, e de repente foi tomado pelo desejo imperioso de não morrer e desatou a lutar, ouvindo o velho a gemer e a praguejar na sua voz de cana rachada.
Lutava ainda quando o puseram de pé, mas agarraram-no e acabou por parar.
– Estou a sangrar muito? – disse ele. – A nuca. Estou a sangrar? – Ainda a dizer o mesmo, sentiu-se subitamente empurrado, ao mesmo tempo que ouvia a voz do homem, esganiçada e furiosa, a perder-se na distância. – Vejam a minha cabeça – dizia ele. – Esperem, eu...
– Esperem, uma ova – disse o homem que o agarrava. – Aquele danado ainda o mata. Ponha-se a andar. Não está ferido.
– Ele agrediu-me – disse Jason. – Estou a sangrar?
– Vá-se embora – disse o outro. Dobrou a esquina e levou Jason até à estação, até à plataforma vazia onde estava parado um vagão de mercadorias perto de um sítio onde a erva crescia densa num terreiro orlado de flores rígidas, com um anúncio luminoso que dizia: Fique de em Mottson, estando o espaço preenchido por um olho humano com uma pupila elétrica. O homem soltou-o.
– Agora – disse ele – vá-se embora e não volte mais aqui. O que é que queria fazer? Suicidar-se?
– Vim à procura de duas pessoas – disse Jason. – Só lhe perguntei se sabia onde elas estavam.
– Anda à procura de quem?
– De uma rapariga – disse Jason. – E de um homem. Ele andava ontem em Jefferson com uma gravata vermelha. Fazia parte do espetáculo. Eles roubaram-me.
– Ah – disse o homem. – Então você é o tal. Pois é, mas eles não estão aqui.
– Acho que não – disse Jason. Encostou-se ao muro, levou a mão à nuca e olhou para a palma da mão. – Julguei que estava a sangrar – disse ele. – Julguei que ele me tinha batido com o machado.
– Você bateu com a cabeça nos carris – disse o homem. – O melhor é ir-se embora. Eles não estão aqui.
– Sim, ele de facto disse que não estavam. Mas pensei que estivesse a mentir.
– E eu, acha que estou a mentir? – disse o homem.
– Não – disse Jason. – Sei que eles não estão aqui.
– Disse-lhes que se pusessem a andar daqui para fora. Os dois – disse o homem. – Não quero daquilo no meu espetáculo. Eu dirijo um espetáculo respeitável, com um elenco respeitável.
– Claro – disse Jason. – E não sabe para onde foram?
– Não. Nem quero saber. Nenhum dos meus artistas pode fazer avarias dessas. Você é... irmão dela?
– Não – disse Jason. – Isso não interessa. Só queria encontrá-los. Tem a certeza de que ele não me bateu? Quero dizer... que não me fez sangue?
– Tinha corrido sangue, mas era se eu não chegasse quando cheguei. Fique longe daqui. Aquele danado é capaz de o matar. Aquele ali é o seu carro?
– É.
– Ora bem, trate de se meter nele e de voltar para Jefferson. Se os encontrar, não vai ser no meu espetáculo. O meu espetáculo é um espetáculo respeitável. Diz que o roubaram?
– Não – disse Jason. – Não interessa. – Entrou para o carro. E agora o que vou fazer? pensou ele. Nisto, lembrou-se. Pôs o motor a trabalhar e seguiu devagar pela rua acima até encontrar uma farmácia. A porta estava fechada. Ficou parado por uns instantes com a mão no puxador e a cabeça ligeiramente curvada. Depois veio-se embora e, quando daí por um bocado passou um homem, perguntou-lhe se havia alguma farmácia aberta na cidade, mas não havia. Depois perguntou-lhe a que horas partia o comboio para o Norte, e o homem disse-lhe que às duas e meia. Atravessou o passeio, entrou outra vez no carro e deixou-se ficar sentado. Algum tempo depois passaram dois rapazes pretos. Chamou-os.
– Algum de vocês sabe guiar um carro?
– Si, siô.
– Quanto querem para me levarem agora mesmo para Jefferson?
Eles entreolharam-se e conferenciaram.
– Dou-vos um dólar – disse Jason.
Conferenciaram de novo. – Por esse preço, não posso – disse um.
– Então por quanto?
– Tu podes ir? – disse um.
– Não posso sair daqui – disse o outro. – Porque não o levas tu? Não tás a fazê nada.
– Isso é qu’eu tou.
– E o qu’é que tás a fazê?
Puseram-se de novo a cochichar e a rir.
– Dou-vos dois dólares – disse Jason. – A cada um.
– Eu tamém não posso – disse o primeiro.
– Está bem – disse Jason. – Então passem bem.
Deixou-se ficar sentado por mais algum tempo. Ouviu um relógio dar a meia hora e depois começaram a passar pessoas com os seus fatos pascais e domingueiros. Algumas olhavam para ele, para aquele homem tranquilamente sentado ao volante de um carro pequeno, com a saga invisível da sua vida enredada à sua volta como uma peúga velha, e seguiam o seu caminho. Passado um bocado apareceu um negro de fato-macaco.
– É o sinhô que qué ir pa Jefferson? – disse ele.
– Sou – disse Jason. – Quanto levas?
– Quatro dólares.
– Dou-te dois.
– Não poss’ir po menos de quatro. – O homem do carro continuou tranquilamente sentado. Nem para o outro olhava. O negro disse então: – Qué ou não qué os meus serviços?
– Está bem – disse Jason. – Entra.
Chegou-se para o lado e o negro sentou-se ao volante. Jason fechou os olhos. Hei de encontrar qualquer coisa assim que chegar a Jefferson, dizia para si mesmo, tentando descontrair-se para suportar os solavancos, lá hei de encontrar alguma coisa. Seguiram por ruas onde as pessoas regressavam às suas casas para o almoço de domingo, e saíram da cidade. Era nisso que ele pensava. Não pensava na sua própria casa, onde Ben e Luster comiam um almoço frio na mesa da cozinha. Alguma coisa – a ausência de fatalidade, de ameaça, um estado de mal permanente – permitia-lhe esquecer Jefferson como um lugar que nunca tivesse visto, e onde a sua vida iria recomeçar.
Quando Ben e Luster terminaram, Dilsey mandou-os lá para fora. – E vê s’o deixas em paz té às quatro horas. É q’ando cheg’ò T. P.
– Sissiô – disse Luster. Saíram para o pátio. Dilsey almoçou também e arrumou a cozinha. Depois foi até ao fundo das escadas e pôs-se à escuta, mas não se ouvia nada. Passou pela cozinha, saiu pela porta das traseiras e parou nos degraus. Ben e Luster não estavam por ali, mas ouviu de novo um ruído vindo dos lados da adega e para lá se dirigiu, abrindo a porta e espreitando para baixo, numa repetição da cena dessa manhã.
– Era assim qu’ele fazia – dizia Luster. Contemplava a serra imóvel com uma espécie de esperançada dejeção. – Não tenho uma coisa apropriada pa lhe batê – dizia ele.
– E tamém não vai sê aí qu’a encontras – disse Dilsey. – Leva-o já p’apanhá sol. Vocês inda apanham os dois uma pneumonia aqui em baixo neste chão molhado.
Ficou à espera a vê-los atravessar o pátio até ao tufo de cedros junto à cerca. Depois foi para a cabana.
– Agora, não comece – disse Luster. – Hoje já me deu trabalho que chegue. – Havia uma rede de baloiço feita de aros de barril enfiados numa rede de arame. Luster deitou-se a balançar, mas Ben continuou a deambular sem destino. E logo recomeçou a chorar. – Teja calado – disse Luster. – Tou a vê qu’inda tenho de lhe batê. – Deitou-se outra vez na rede. Ben estava quieto, mas Luster ouvia-o choramingar. – Vai-se calá ou não vai? – disse Luster. Saltou da rede e foi ter com Ben, agachado junto a um monte de terra. De cada lado do monte estava enterrado na terra um frasco vazio de vidro azul que antes contivera veneno. Dentro de um deles estava uma folha seca de erva-do-diabo. Ben estava de cócoras a olhar para o frasco e a chorar baixinho. Sempre a chorar, procurou à volta, encontrou um tronquinho e meteu-o no outro frasco. – Porque não se cala? – disse Luster. – Veja lá se qué qu’eu lhe dê uma boa razão pa chorá. E s’eu por exemplo lhe fizess’isto? – Ajoelhou-se e, agarrando de repente no frasco, escondeu-o atrás das costas. Ben calou-se. Continuou de cócoras a olhar para a cova onde o frasco tinha estado, mas, quando ia encher os pulmões de ar, Luster fez aparecer outra vez o frasco. – Chiu! – sibilou. – Não s’atreva a berrá! Tá a ouvi? Já aqui tá. Tá a vê? Tome lá. Já vi que vai chorá s’aqui ficá. Venha daí. Vamos vê se já começaram a batê na bola. – Puxou Ben pelo braço para o ajudar a levantar, foram até à cerca e ficaram os dois lado a lado, a espreitarem por entre as folhas da madressilva que ainda não estava em flor.
– Ali – disse Luster. – Lá vêm uns. Tá a vê-los?
Viram um grupo de quatro jogadores atirarem a bola e seguirem para o buraco seguinte. Ben observava-os, a choramingar, e a gemer. Quando a equipa se afastou, seguiu-os ao longo da cerca, a gemer e a chorar. Um deles disse:
– Vá, caddie, traz o saco.
– Cale-se, Benjy – disse Luster, mas Ben continuou a segui-los, no seu passo desajeitado, agarrado à cerca, a chorar com a sua voz rouca e infeliz. Os homens iam jogando e iam-se afastando, e Ben a segui-los até a cerca acabar, e ele ficar agarrado a ela a ver as pessoas cada vez mais longe, até desaparecerem.
– E agora, vai-se calá? – disse Luster. – Vai-se calá ou não vai? – Abanou o braço de Ben. Ben estava agarrado à cerca, no seu choro rouco e continuado. – Vai pará ou não? – disse Luster. – Então? – Ben tinha o olhar fixo para lá da cerca. – Então tá bem – disse Luster. – Quer que lhe dê uma razão pa chorá? – Olhou para trás, para a casa, por cima do ombro, e murmurou: – Caddy! Vá, berre agora. Caddy! Caddy! Caddy!
Passados uns instantes, Luster ouviu a voz de Dilsey a chamá-los, nos intervalos em que Ben se calava. Pegou no braço de Ben e foram ao encontro dela.
– Eu bem lhe disse qu’ele não ia ficá calado – disse Luster.
– Ah, malandro! – disse Dilsey. – O qu’é que tu lhe fizeste?
– Eu não fiz nada. Eu bem lhe disse que quando os outros começassem a jogá ele desatava a chorá.
– Venham p’aqui – disse Dilsey. – Vá, Benjy. Agora esteja caladinho. – Mas ele não se calava. Atravessaram o pátio e foram para a cabana. – Vai depressa buscá o sapato – disse Dilsey. – E não incomodes Miss Ca’line. S’ela dissé alguma coisa, diz-lhe qu’ele tá comigo. Vá, vai lá num instante. Acho qu’isso consegues fazê direito. – Luster saiu. Dilsey levou Ben para a cama e deitou-o ao lado dela e abraçou-o, embalando-o, enquanto lhe limpava a baba com a barra da saia. – Agora esteja caladinho – dizia ela, afagando-lhe a cabeça. – Esteja caladinho. A Dilsey está ao pé de si. – Mas ele chorava de mansinho, inconsolável, sem verter lágrimas; era o lamento desesperado e mudo de toda a miséria existente à face da terra. Luster voltou, trazendo na mão um chinelinho de cetim branco. Agora já estava amarelo, rasgado e sujo, mas quando o puseram na mão de Ben, ele sossegou por uns momentos. Mas choramingava ainda, e não tardou a elevar a voz.
– Achas que consegues encontrá o T. P.? – disse Dilsey.
– El’ontem disse qu’ia hoje a St. John. Disse que voltav’às quatro.
Dilsey embalava Ben e afagava-lhe a cabeça.
– Há quanto tempo, Sinhô – dizia ela. – Há quanto tempo.
– Eu consigo guiá a caleche, vó – disse Luster.
– Vais é matar-vos aos dois – disse Dilsey. – Dizes isso pa m’atentares. Eu sei que esperteza não te falta. Mas não és de confiança. Vá, esteja caladinho – disse ela. – Vá. Chhh.
– Não vou nada – disse Luster. – Eu guio como o T. P. – Dilsey balançava para trás e para a frente, abraçando Ben. – Miss Ca’line diz que se não conseguir qu’ele se cale, ela levanta-se e vem cá.
– Chhh, meu amô – disse Dilsey, afagando a cabeça de Ben. – Luster, meu amô – disse ela –, vais fazê o qu’a tua avó diz e guiares a caleche direita?
– Sissiô – disse Luster. – Vou guiá-la tão bem como o T. P.
Dilsey continuou a afagar a cabeça de Ben, embalando-o para trás e para a frente. – Eu faço o que posso – disse ela. – Deus sabe que sim. Vai lá buscá-la – disse, levantando-se. Luster saiu a correr. Ben continuava agarrado à chinelinha, a chorar. – Agora cale-se. O Luster vai buscá a caleche e levá-lo ao cemitério. Nem m’atrevo a ir buscá o seu boné – disse ela. Foi a um roupeiro feito num canto do quarto com uma cortina a servir de porta e tirou o chapéu de feltro que tinha levado à igreja. – Inda havemos de chegá a pior do qu’isto, ah, s’as pessoas soubessem – disse ela. – O menino tamém é filho de Deus. E eu tamém vou tê com ele não tarda, louvado seja o Sinhô. Tome. – Pôs-lhe o chapéu na cabeça e abotoou-lhe o casaco. Ele não parava de chorar. Tirou-lhe a chinela da mão, arrumou-a e saíram. Luster apareceu com um velho cavalo branco atrelado a uma caleche desengonçada, toda tombada para um lado.
– Vais tê muito cuidado, Luster, não vais? – disse ela.
– Sissiô – disse Luster. Dilsey ajudou Ben a subir para o banco traseiro. Ele já tinha parado de chorar, mas depressa recomeçou.
– É a flor – disse Luster. – Espere, eu vou-lhe buscá uma.
– Deixa-te aí está – disse Dilsey. Foi para junto do cavalo e segurou-lhe o freio. – Agora vai depressa apanhá uma. – Luster foi de volta até ao jardim e voltou com um narciso.
– Esse tá partido – disse Dilsey. – Porque não lh’arranjas um melhor?
– Foi o único qu’encontrei – disse Luster. – Vocês levaram-nos todos na sexta feira pa decorá a igreja. Espere, eu conserto-o. – E enquanto Dilsey segurava o cavalo, Luster fez uma estaca para a flor com um tronquinho e dois bocados de cordel e deu-a a Ben. Depois subiu para a caleche e pegou nas rédeas. Dilsey ainda não tinha largado o freio.
– Sabes o caminho? – disse ela. – Pela rua acima, dás a volta à praça, vais direito ao cemitério e depois voltas pa casa.
– Sissiô – disse Luster. – Toc’andá, Queenie.
– Vê lá se tens cuidado.
– Sissiô. – Dilsey largou o freio.
– Toc’andá, Queenie – disse Luster.
– Vá – disse Dilsey. – Passa pa cá o chicote.
– Oh, vó! – disse Luster.
– Dá-mo cá – disse Dilsey, encostando-se à roda. Luster deu-lho com relutância.
– Assim a Queenie nunca mais anda.
– Não te preocupes – disse Dilsey. – A Queenie sabe melhor pa onde vai do que tu. Tudo o que tens a fazê é ires aí sentado a segurares as rédeas. Sabes o caminho?
– Sissiô. É o caminho qu’o T. P. faz todos os domingos.
– Então faz tu a mesma coisa este domingo.
– Claro que vou fazê. Então eu não guiei já pelo T. P. mais de cem vezes?
– Então hoje é mais uma – disse Dilsey. – Agora vai. E se magoares o Benjy, negrinho duma figa, nem sei o que te faço. Vais pòs trabalhos forçados, e tão depressa qu’inda lá chegas antes de eles estarem à tua espera.
– Sissiô – disse Luster. – Toc’andá, Queenie.
Bateu com as rédeas no dorso largo de Queenie e a caleche arrancou com um solavanco.
– Olha lá, Luster! – disse Dilsey.
– Vamos. Toc’andá! – disse Luster. Bateu-lhe outra vez com as rédeas. Acompanhada de ruídos subterrâneos, Queenie trotou calmamente pela rampa abaixo, até à rua, onde Luster a espevitou para um trote vivo que se assemelhava a uma queda para a frente, prolongada e em suspensão.
Ben parou de chorar. Ia sentado no meio do banco, com a flor consertada espetada na mão, de olhar sereno e inefável. Mesmo à sua frente, a cabeça fusiforme de Luster voltava-se continuamente até perder a casa de vista. Assim que isso aconteceu, parou na berma da estrada, desceu e foi cortar um ramo a uma sebe. Queenie baixou a cabeça e pôs-se a aparar a relva até Luster subir outra vez para a caleche, puxar-lhe a cabeça para cima e pô-la outra vez em marcha; depois, ele dobrou os braços e, com o ramo e as rédeas ao alto, adotou uma pose fanfarrona, completamente despropositada para a cadência tranquila dos cascos de Queenie e os sons graves de órgão do seu acompanhamento interior. Passavam por eles carros, e pessoas; uma vez foi um grupo de rapazolas negros:
– Olá, Luster. Pa onde vais, Luster? Pò campo dos ossos?
– É – disse Luster. – Mas não pò mesmo campo d’ossos onde vocês hão-d’ir pará. Adiante, elefante.
Aproximavam-se da praça, onde o soldado da Confederação vigiava, de olhar vazio sob a mão de mármore, fustigado por ventos e intempéries. Luster foi ainda mais longe e golpeou o dorso da imperturbável Queenie com o chicote improvisado, espraiando os olhos pela praça. – Tá ali o carro de Mr. Jason – disse ele, ao mesmo tempo que avistava um outro grupo de negros. – Vamos mostrá a estes negros como é que se guia, Benjy – disse ele. – Disse alguma coisa? – Olhou para trás. Ben ia sentado com a flor na mão, de olhar sereno e despreocupado. Luster fustigou de novo Queenie e obrigou-a a virar bruscamente à esquerda junto ao monumento.
Por momentos, Ben viveu um hiato de pânico. Depois desatou a gritar. Grito a grito, a sua voz elevava-se cada vez mais, quase sem pausas para respirar. Havia nela mais do que espanto; era horror; choque; uma agonia sem olhos e sem língua; apenas som, e os olhos de Luster revirando-se para trás por um lapso de brancura. – Valha-me Deus – disse ele. – Cale-se! Cale-se! Valha-me Deus! – Rodopiou outra vez e bateu em Queenie com o ramo. Mas ele partiu-se e Luster deitou-o fora e, com a voz de Ben subindo de tom num crescendo inimaginável, pegou na ponta das rédeas e inclinou-se todo para a frente no momento em que Jason atravessava a praça a correr e saltava para o estribo.
Com um golpe desferido com as costas da mão, Jason empurrou Luster para o lado; agarrou as rédeas, puxou o freio, dobrou as rédeas e fustigou os flancos de Queenie. Golpeava-a sem parar, metendo-a a galope desenfreado, enquanto os gritos roucos de Ben, em agonia, ressoavam por toda a praça. Depois fê-la virar à direita do monumento. Nisto, desferiu um murro na cabeça de Luster.
– Não sabes que não é para a esquerda? – disse ele. Virou-se para trás e bateu em Ben, voltando a partir a haste da flor. – Cala-te! – disse ele. – Cala-te! – Fez Queenie estacar e saltou para o chão. – Vai para o inferno, leva-o para casa. Se tornas a passar daquele portão com ele, dou cabo de ti!
– Si, siô! – disse Luster. Pegou nas rédeas e bateu em Queenie com as pontas. – Levante-se! Vá, levante-se, Benjy. Por amô de Deus!
A voz de Ben soava cada vez mais alto. Queenie pôs-se de novo a passo, os cascos retomaram o seu toc-toc cadenciado e Ben calou-se de imediato. Luster olhou-o de relance por cima do ombro e seguiu em frente. A flor partida pendia da mão de Ben e os seus olhos eram vazios, azuis e serenos outra vez, à medida que cornija e fachada deslizavam de novo da esquerda para a direita, postes e árvores, janelas, portas e cartazes, cada qual no seu devido lugar.
Nova Iorque, N. Y. Outubro de 1928
11 Dia em que, segundo a crença local, os gaios, pássaros do inferno, saíam de lá para descer à terra. (N. da T.)