CAPÍTULO 14    

AS ARTES

Sempre há um gosto da moda: um gosto para escrever as cartas — um gosto para representar Hamlet — um gosto pelas leituras filosóficas — um gosto pelo brilhante — um gosto pelo simples — um gosto pelo tétrico — um gosto pelo terno — um gosto pelo feio — um gosto pelos bandidos — um gosto pelos fantasmas — um gosto pelo diabo — um gosto pelas dançarinas francesas e as cantoras italianas, pelas suíças e tragédias alemãs — um gosto por gozar os prazeres do campo em novembro e os do inverno em Londres até o fim da canícula — um gosto pela fabricação de sapatos — um gosto por viagens pitorescas — um gosto pelo próprio gosto, ou por fazer ensaios sobre o gosto.

A Querida Sra. Pinmoney em T. L. Peacock, Melincourt (1816)

Em proporção à riqueza do país, quão poucos são os belos prédios na Grã-Bretanha (...), que escasso o emprego de capital em museus, quadros, pérolas, objetos raros, palácios, teatros e outros objetos irreproduzíveis! Isto que é o principal fundamento da grandeza do país, é constantemente verificado pelos viajantes estrangeiros e por alguns de nossos próprios jornalistas, como uma prova de nossa inferioridade.

S. Laing, Notas de um viajante sobre as condições políticas e sociais da França, Prússia, Suíça, Itália e outras partes da Europa, 1842 1

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A primeira coisa que surpreende a qualquer um que tente analisar o desenvolvimento das artes neste período de revolução dupla é seu extraordinário florescimento. O meio século que inclui Beethoven e Schubert, o maduro e velho Goethe, os jovens Dickens, Dostoievski; Verdi e Wagner, o último de Mozart e toda ou a maior parte de Goya, Pushkin e Balzac, para não mencionarmos um batalhão de homens que seriam gigantes em qualquer outra companhia, pode servir de comparação com qualquer outro período de mesma duração na história do mundo. Grande parte desta extraordinária abundância se deveu à ressurreição e expansão das artes que atraíram um público erudito em praticamente todos os países europeus.a

Em vez de saturar o leitor com um longo catálogo de nomes, é melhor ilustrarmos a amplitude e profundidade deste renascimento cultural fazendo-se ocasionais cortes transversais em nosso período. Assim, em 1789-1801, o cidadão que sentisse prazer com as inovações artísticas podia se deleitar com as Baladas líricas de Wordsworth e Coleridge em inglês, várias obras de Goethe, Schiller, Jean Paul e Novalis em alemão, ao mesmo tempo que ouvia a Criação e as Estações de Haydn e a Primeira sinfonia e os Primeiros quartetos de cordas de Beethoven. Nestes anos, J. L. David terminou seu Retrato de madame Recamier, e Goya, o seu Retrato da família do rei Carlos IV. Em 1824-1826 este cidadão poderia ter lido vários novos romances de Walter Scott em inglês, os poemas de Leopardi e as Promessi Sposi de Manzoni em italiano, os poemas de Victor Hugo e Alfred de Vigny em francês e, se fosse capaz, as primeiras partes de Eugene Onegin de Pushkin em russo e as recém-editadas sagas nórdicas. A Nona Sinfonia de Beethoven, A morte e a donzela de Schubert, a primeira obra de Chopin e o Oberon de Weber datam destes anos, assim como os quadros O massacre de Chios de Delacroix e a Carreta de feno de Constable. Dez anos mais tarde (1834-1836), a literatura produziu na Rússia O inspetor geral de Gogol e A dama de espadas de Pushkin; na França, o Pai Goriot de Balzac e obras de Musset, Hugo, Théophile Gautier, Vigny, Lamartine e Alexandre Dumas (pai); na Alemanha, as obras de Buchner, Grabbe e Heine; na Áustria, as de Grillparzer e Nestroy; na Dinamarca, as de Hans Andersen; na Polônia, o Pan Tadeusz de Mickiewicz; na Finlândia, a edição fundamental da epopeia nacional Kalevala; na Grã-Bretanha, a poesia de Browning e Wordsworth. A música criou óperas de Bellini e Donizetti, na Itália; as obras de Chopin, na Polônia, de Glinka, na Rússia; Constable pintava na Inglaterra, Caspar David Friedrich, na Alemanha. Um ou dois anos antes e depois deste triênio nos trazem as Anotações de Pickwick de Dickens, A Revolução Francesa de Carlyle, a segunda parte do Fausto de Goethe, os poemas de Platen, Eichendorff e Moerike, na Alemanha, as importantes contribuições à literatura húngara e flamenga, bem como novas publicações dos mais importantes escritores franceses, poloneses e russos, e na música o Davidsbuendlertaenze de Schumann e o Réquiem de Berlioz.

Destas amostras casuais, duas coisas ficam patentes. A primeira delas é a difusão extraordinariamente grande dos acontecimentos artísticos entre as nações. Isto era novo. Na primeira metade do século XIX, a literatura e a música russas surgiram repentinamente como uma força mundial, assim como, de maneira bem mais modesta, aconteceu com a literatura americana com Fenimore Cooper (1787-1851), Edgar Allan Poe (1809-1849) e Herman Melville (1819-1891). O mesmo se deu em relação à música e literatura polonesas e húngaras, e, pelo menos sob a forma de publicação de canções folclóricas, contos de fadas e épicos, em relação à literatura nórdica e dos Bálcans. Além disso, em várias destas recém-criadas culturas literárias, o êxito foi imediato e insuperável: Pushkin (1799-1837), por exemplo, continua sendo o poeta russo clássico; Mickiewicz (1798-1855), o maior dos poloneses; Petoefi (1823-1849), o poeta nacional húngaro.

O segundo fato evidente é o excepcional desenvolvimento de certas artes e gêneros. A literatura, por exemplo, e dentro dela o romance. Provavelmente, nenhum meio século contém uma maior concentração de romancistas imortais: Stendhal e Balzac, na França; Jane Austen, Dickens, Thackeray e as irmãs Bronte, na Inglaterra; Gogol, o jovem Dostoievski, e Turgenev, na Rússia. (O primeiro trabalho de Tolstoi apareceu na década de 1850.) A música talvez seja algo ainda mais surpreendente. O repertório padrão de concertos ainda se baseia grandemente nos compositores ativos neste período — Mozart e Haydn, embora realmente pertençam a uma época anterior, Beethoven e Schubert, Mendelssohn, Schumann, Chopin e Liszt. O período “clássico” da música instrumental foi principalmente o das grandes obras alemãs e austríacas, mas um gênero, a ópera, floresceu mais amplamente e talvez com mais sucesso do que qualquer outro: com Rossini, Donizetti, Bellini e o jovem Verdi, na Itália; com Weber e o jovem Wagner (para não mencionarmos as duas últimas óperas de Mozart), na Alemanha; Glinka, na Rússia, e várias figuras de menor importância, na França. A lista das artes plásticas, por outro lado, é menos brilhante, com a exceção parcial da pintura. A Espanha produziu com Francisco Goya y Lucientes (1746-1828) um de seus grandes artistas, e um dos maiores pintores de todos os tempos. Pode-se dizer que a pintura britânica (com J. M. W. Turner, 1775-1851, e John Constable, 1776-1837) alcançou um nível de maestria e de originalidade um pouco mais alto do que o do século XVIII, e foi certamente mais influente em termos internacionais do que em qualquer época anterior ou posterior; pode-se também sustentar que a pintura francesa (com J. L. David, 1748-1825; J. L. Géricault, 1791-1824; J. D. Ingres, 1780-1867; F. E. Delacroix, 1790-1863; Honoré Daumier, 1808-1879, e o jovem Gustave Courbet, 1819-1877) foi tão eminente quanto havia sido em outras épocas de sua história. Por outro lado, a pintura italiana chegou virtualmente ao fim de seus séculos de glória e esplendor, e a pintura alemã nem chegou perto dos extraordinários triunfos da literatura e da música, ou os que lhe foram próprios no século XVI. A escultura em todos os países foi marcantemente menos brilhante do que no século XVIII e o mesmo se deu com a arquitetura, apesar de algumas obras notáveis na Alemanha e na Rússia. De fato, os maiores empreendimentos arquitetônicos do período foram sem dúvida obra dos engenheiros.

O que determina o florescimento ou o esgotamento das artes em qualquer período ainda é muito obscuro. Entretanto, não há dúvida de que entre 1789 e 1848, a resposta deve ser buscada em primeiro lugar no impacto da revolução dupla. Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nesta época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror, enquanto a sociedade burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua própria experiência e estilos de criação.

Neste período, sem dúvida, os artistas eram diretamente inspirados e envolvidos pelos assuntos públicos. Mozart escreveu uma ópera propagandística para a altamente política maçonaria (A flauta mágica em 1790), Beethoven dedicou a Eroica a Napoleão como o herdeiro da Revolução Francesa, Goethe foi, pelo menos, um homem de Estado e laborioso funcionário. Dickens escreveu romances para atacar os abusos sociais. Dostoievski foi condenado à morte em 1849 por atividades revolucionárias. Wagner e Goya foram para o exílio político. Pushkin foi punido por se envolver com os dezembristas, e toda a Comédia humana de Balzac é um monumento de consciência social. Nunca foi menos verdadeiro definir os artistas criativos como “não comprometidos”. Os que assim o faziam, os gentis decoradores de palácios rococó e vestiários de senhoras, ou os fornecedores de peças às coleções dos milordes ingleses visitantes, foram precisamente aqueles cuja arte definhou. Quantos de nós se recorda de que Fragonard sobreviveu à Revolução por 17 anos? Mesmo a arte aparentemente menos política, a música, teve as mais fortes vinculações políticas. Este talvez tenha sido o único período na História em que as óperas eram escritas ou consideradas manifestos políticos e armas revolucionárias.b

O elo entre os assuntos públicos e as artes é particularmente forte nos países onde a consciência nacional e os movimentos de libertação ou de unificação nacional estavam-se desenvolvendo (veja o Capítulo 7). Não foi por acaso que o despertar ou ressurreição das culturas literárias nacionais na Alemanha, na Rússia, na Polônia, na Hungria, nos países escandinavos e em outras partes coincidisse com — e de fato fossem sua primeira manifestação — a afirmação da supremacia cultural da língua vernácula e do povo nativo, ante uma cultura aristocrática e cosmopolita que constantemente empregava línguas estrangeiras. É bastante natural que este nacionalismo encontrasse sua expressão cultural mais óbvia na literatura e na música, ambas artes públicas, que podiam, além disso, contar com a poderosa herança criadora do povo comum — a linguagem e as canções folclóricas. É igualmente compreensível que as artes tradicionalmente dependentes de comissões das classes dirigentes — cortes, governo, nobreza —, a arquitetura e a escultura, e até certo ponto a pintura, refletissem menos estes renascimentos nacionais.c A ópera italiana floresceu, como nunca, mais como uma arte popular que da corte, enquanto a pintura italiana e sua arquitetura morriam. E claro que não se deve esquecer que estas novas culturas nacionais estavam limitadas a uma minoria de letrados e às classes superiores e médias. Com a provável exceção da ópera italiana, das reproduções gráficas das artes plásticas, e de alguns pequenos poemas e canções, nenhuma das grandes realizações artísticas deste período estava ao alcance dos analfabetos ou dos pobres. A maioria dos habitantes da Europa as desconhecia por completo, até que o nacionalismo de massa ou os movimentos políticos as convertessem em símbolos coletivos. A literatura, é claro, teria a maior circulação, embora principalmente entre as crescentes e novas classes médias, que proporcionavam um mercado particularmente vasto (especialmente entre as mulheres desocupadas) para romances e longas narrativas poéticas. Os autores bem-sucedidos raramente gozaram de uma maior prosperidade relativa: Byron recebeu 2.600 libras pelos três primeiros cantos de Childe Harold. O palco, embora socialmente muito mais restrito, também alcançava um público de milhares de pessoas. A música instrumental não marchava tão bem, exceto em países burgueses como a Inglaterra e a França, e países com sede de cultura como as Américas onde grandes concertos públicos eram executados com frequência. (Logo, vários compositores e virtuosos do continente europeu tinham sua atenção voltada para o lucrativo mercado anglo-saxão.) Em outros países, os concertos eram patrocinados pela aristocracia local ou pela iniciativa privada dos aficcionados. A pintura se destinava, desde sempre, ao comprador individual e desaparecia da vista do público, após sua primeira apresentação nas salas de exposição ou nas galerias, embora as exibições públicas fossem agora bem estabelecidas. Os museus e as galerias de arte que foram fundados ou abertos ao público neste período (como o Louvre e a National Gallery de Londres, fundados em 1826) apresentavam mais a arte do passado do que a do presente. A estampa, a gravação e a litografia, por outro lado, estavam muito generalizadas, porque eram baratas e começavam a invadir os jornais. A arquitetura (com exceção de um certo número de construções arriscadas de habitações particulares) continuava a trabalhar principalmente para encargos públicos ou privados.

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Mas mesmo as artes de uma pequena minoria social ainda podem fazer ecoar o trovão dos terremotos que abalam toda a humanidade. Assim ocorreu com a literatura e as artes de nosso período, e o resultado foi o “romantismo”. Como um estilo, uma escola, uma época artística, nada é mais difícil de definir ou mesmo de descrever em termos de análise formal; nem mesmo o “classicismo” contra o qual o “romantismo” assegurava erguer a bandeira da revolta. Os próprios românticos pouco nos ajudam, pois, embora suas próprias descrições sobre o que buscavam fossem firmes e decididas, também careciam frequentemente de um conteúdo racional. Para Victor Hugo, o Romantismo “surgiu para fazer o que a natureza faz, fundir-se com as criações da natureza, mas ao mesmo tempo não misturá-las: sombra e luz, o grotesco e o sublime — em outras palavras, o corpo e a alma, o animal com o espiritual”.2 Para Charles Nodier, “este último refúgio do coração humano, cansado dos sentimentos comuns, é o que se chama de gênero romântico: uma poesia estranha, bastante apropriada à condição moral da sociedade, às necessidades de gerações saciadas que gritam por sensações a qualquer custo (...)”.3 Novalis achava que o Romantismo buscara dar “um maior sentido ao que é costumeiro, um infinito esplendor ao finito”.4 Hegel sustentava que “a essência da arte romântica está na existência livre e concreta do objeto artístico, e na ideia espiritual em sua verdadeira essência — tudo isto revelado a partir do interior mais do que pelos sentidos”.5 Pouco se pode inferir destas afirmativas, o que era de se esperar, pois os românticos preferiam as luzes bruxuleantes e difusas à claridade.

E ainda assim, embora escape a uma classificação, já que suas origens e conclusão se dissolvem à medida que se tenta datá-las, e que o critério mais agudo se perca em generalidades tão logo tenta defini-lo, ninguém duvida seriamente da existência do Romantismo ou de nossa capacidade em reconhecê-lo. Em um sentido estrito, o Romantismo surgiu como uma tendência militante e consciente das artes, na Grã-Bretanha, França e Alemanha, por volta de 1800 (no final da década da Revolução Francesa), e em uma área bem mais ampla da Europa e da América do Norte depois da batalha de Waterloo. Foi precedido antes da Revolução (principalmente na Alemanha e na França) pelo que tem sido chamado de “pré-romantismo” de Jean-Jacques Rousseau, e a “tempestade e ímpeto” dos jovens poetas alemães. Provavelmente, a era revolucionária de 1830-1848 assistiu à maior voga europeia do Romantismo. No sentido mais amplo, ele dominou várias das artes criadoras da Europa, desde o começo da Revolução Francesa. Neste sentido, os elementos “românticos” em um compositor como Beethoven, um pintor como Goya, um poeta como Goethe e um romancista como Balzac são fatores cruciais de sua grandeza, assim como não o são, digamos, em Haydn ou Mozart, Fragonard ou Reynolds, Mathias Claudius ou Choderlos de Laclos (todos alcançaram o nosso período), embora nenhum daqueles homens pudesse ser inteiramente tachado de “romântico” nem considerasse a si mesmo como tal.d Em um sentido ainda mais amplo, o enfoque da arte e dos artistas característicos do Romantismo se tornou o enfoque-padrão da classe média do século XIX, e ainda conserva muito de sua influência.

Entretanto, embora não seja absolutamente claro quais eram os propósitos do Romantismo, é bastante evidente o que ele combatia: o meio-termo. Qualquer que seja o seu conteúdo, era um credo extremista. Os artistas e pensadores românticos, no sentido mais estrito, são encontrados na extrema esquerda, como o poeta Shelley, ou na extrema direita, como Chateaubriand e Novalis, saltando da esquerda para a direita, como Wordsworth, Coleridge e numerosos defensores desapontados da Revolução Francesa, saltando do monarquismo para a extrema esquerda como Victor Hugo, mas quase nunca entre os moderados ou liberais ingleses do centro racionalista, que de fato eram os fiéis mantenedores do “classicismo”. “Não tenho qualquer respeito pelos whigh”, disse o velho tory Wordsworth, “mas tenho muito do cartismo dentro de mim”.6 Seria demasiado chamá-lo de um credo antiburguês, pois o elemento conquistador e revolucionário das classes jovens, ainda capaz de provocar tempestades, fascinava também os românticos. Napoleão se tornou um de seus heróis míticos, como Satã, Shakespeare, o judeu errante e outros pecadores que se colocavam mais além dos limites comuns da vida. O elemento demoníaco na acumulação capitalista, a busca ininterrupta e ilimitada de mais, além dos cálculos da racionalidade ou do propósito, a necessidade ou os extremos do luxo, tudo isso os encantava. Alguns de seus heróis mais característicos, Fausto e Don Juan, compartilhavam esta insaciável ganância com os bucaneiros do mundo dos negócios dos romances de Balzac. E ainda assim, o elemento romântico permaneceu subordinado, mesmo na fase da revolução burguesa. Rousseau forneceu alguns dos acessórios da Revolução Francesa, mas dominou-a somente na época em que ultrapassou o liberalismo burguês, o período de Robespierre. E mesmo assim, seu hábito básico era romano, racionalista e neoclássico. David foi seu pintor, a Razão, seu Ser Supremo.

O Romantismo não é, portanto, simplesmente, classificável como um movimento antiburguês. De fato, no pré-romantismo das décadas anteriores à Revolução Francesa, muitos de seus slogans característicos tinham sido usados para a glorificação da classe média, cujos sentimentos verdadeiros e simples, para não dizermos insípidos, haviam sido favoravelmente contrastados com a firme camada superior de uma sociedade corrupta, e cuja confiança espontânea na natureza estava destinada, segundo se acreditava, a varrer o artifício da corte e do clericalismo. Entretanto, já que a sociedade burguesa triunfara de fato nas revoluções francesa e industrial, o Romantismo inquestionavelmente se transformou em seu inimigo instintivo, e pode muito justamente ser considerado como tal.

Sem dúvida sua apaixonada, confusa, porém profunda revolta contra a sociedade burguesa se devia aos interesses egoístas dos dois grupos que lhe forneciam suas tropas de choque: os jovens socialmente deslocados e os artistas profissionais. Nunca houve um período para jovens artistas, vivos ou mortos, como o período romântico: as Baladas líricas (1789) foram obra de homens com 20 e poucos anos de idade; Byron tornou-se famoso da noite para o dia aos 24 anos, idade em que Shelley já era famoso e em que Keats já estava quase em sua cova. A carreira poética de Victor Hugo começou quando tinha 20 anos, a de Musset, aos 23. Schubert escreveu Erlkoenig aos 18 anos, morrendo aos 31. Delacroix pintou o Massacre de Chios aos 25 anos e Petoefi publicou seus Poemas aos 21. Uma reputação não obtida ou uma obra-prima não produzida até os 30 anos é uma raridade entre os românticos. A juventude — especialmente a estudantil ou intelectual — era o seu habitat natural; foi durante este período que o Quartier Latin de Paris voltou a ser, pela primeira vez desde a Idade Média, não só o lugar onde se encontrava a Sorbonne, mas um conceito cultural e político. O contraste entre um mundo na teoria totalmente aberto ao talento e, na prática, com cósmica injustiça, monopolizado pelos burocratas sem alma e barrigudos filisteus, clamava aos céus. As sombras da prisão — o casamento, a carreira respeitável, a absorção pelo filisteísmo — envolvia-os, e os pássaros da noite na forma de seus antecessores lhes agouravam (com frequente precisão) sua inevitável sentença, como o registrador Heerbrand na obra de T. A. Hoffmann, Goldener Topf, predisse (“sorrindo maliciosa e misteriosamente”) o pavoroso futuro de um conselheiro da corte para o poético estudante Anselmo. Byron tinha o espírito bastante iluminado para prever que só uma morte extemporânea tinha a possibilidade de salvá-lo de uma “respeitável” velhice, e A. W. Schlegel demonstrou que ele estava certo. Claro que nada havia de universal nesta revolta dos jovens contra os mais velhos. Não era senão um reflexo da sociedade criada pela revolução dupla. Ainda assim, a forma histórica específica desta alienação certamente coloriu uma grande parte do Romantismo.

Assim, e inclusive com maior alcance, a alienação do artista que reagia contra ela transformando-se em “o gênio” foi uma das invenções mais características da era romântica. Onde a função social do artista é clara, sua relação direta com o público — a pergunta do que deve dizer e como dizê-lo respondida pela tradição, a moralidade, a razão e algum outro padrão aceito —, um artista pode ser um gênio, mas raramente se comporta como tal. Os poucos que se adiantaram ao padrão do século XIX — um Michelangelo, um Caravaggio ou um Salvator Rosa — se destacam do exército de homens do tipo artesãos profissionais e entretenedores, os Johann Sebastian Bach, os Handel, os Haydn e Mozart, os Fragonard e Gainsborough da era pré-revolucionária. Onde se conservou algo semelhante à antiga situação social depois da revolução dupla, o artista continuou sem considerar-se um gênio, embora não lhe faltasse futilidade. Os arquitetos e engenheiros, que trabalhavam por encomendas específicas, continuavam a produzir estruturas de uso óbvio que se lhes impunham formas claramente compreensíveis. É significativo que a grande maioria de construções características e famosas do período entre 1789 e 1848 sejam neoclássicas, como a Madeleine, o Museu Britânico, a catedral de S. Isaac em Leningrado, a Londres de Nash, a Berlim de Schinkel, ou funcionais como as maravilhosas pontes, canais, construções ferroviárias, fábricas e estufas daquela época de beleza técnica.

Entretanto, à parte seus estilos, os arquitetos e engenheiros daquela época se comportavam como profissionais e não como gênios. Também nas formas genuinamente populares de arte como a ópera na Itália ou (em um nível socialmente mais alto) o romance na Inglaterra, compositores e escritores continuavam a trabalhar para divertir os demais e consideravam a supremacia da bilheteria uma condição natural de sua arte, e não uma conspiração contra sua musa. Rossini não gostaria de produzir uma ópera não comercial, da mesma forma que o jovem Dickens de escrever um romance que não pudesse ser apresentado em seriados, ou hoje em dia o libretista de um musical moderno, um texto que fosse representado na forma em que foi rascunhado. (Isto também pode ajudar a explicar por que a ópera italiana desta época era tão a-romântica, apesar de seu natural prazer vulgar pelo sangue, o trovão e situações “fortes”.)

O problema real era o do artista apartado de uma função reconhecida, patrocinada ou pública, e deixado para lançar sua alma como uma mercadoria em um mercado cego, que seria comprada ou não, ou para trabalhar dentro de um sistema de patronagem que teria sido em geral economicamente insustentável, mesmo se a Revolução Francesa não tivesse estabelecido sua indignidade humana. O artista, portanto, estava só, gritando dentro da noite, sem nem mesmo a certeza de um eco. Era simplesmente natural que se considerasse um gênio, que criasse somente aquilo que levava dentro de si, sem consideração pelo mundo e como desafio a um público cujo único direito em relação a ele era aceitá-lo em seus próprios termos ou rejeitá-lo de todo. Na melhor das hipóteses, esperava ser entendido, como Stendhal, por uns tantos eleitos ou por uma posteridade indefinida; na pior das hipóteses, escrevia dramas impossíveis de serem representados, como Grabbe ou mesmo a segunda parte do Fausto de Goethe, ou composições para orquestras irrealisticamente gigantescas como Berlioz; alguns enlouqueciam como Hoelderlin, Grabbe, de Nerval e vários outros. De fato, o gênio incompreendido era, às vezes, amplamente recompensado por príncipes acostumados às excentricidades de amantes ou aos gastos que davam prestígio, ou por uma burguesia enriquecida ansiosa em manter contato com as coisas mais altas da vida. Franz Liszt (1811-1886) jamais passou fome no proverbial sótão romântico. Poucos jamais tiveram sucesso em realizar suas fantasias megalomaníacas como Richard Wagner. Entretanto, entre 1789 e 1848, os príncipes de revoluções frequentemente suspeitavam das artes não líricase e a burguesia estava mais engajada em acumular dinheiro do que em gastá-lo. Os gênios eram, portanto, em geral, não só incompreendidos mas também pobres. E a maioria deles, revolucionários.

A juventude e os “gênios” mal compreendidos produziam a reação romântica contra os filisteus, a moda de atormentar e chocar os burgueses, a ligação com o submundo e a boemia (termos estes que adquiriram sua atual conotação durante o período romântico), o gosto pela loucura ou por coisas normalmente censuradas pelos respeitáveis padrões e instituições. Mas isto era só uma pequena parte do Romantismo. A enciclopédia de extremismos eróticos de Mário Praz não é mais representativa da agonia romântica7 do que uma discussão a respeito de esqueletos e espectros no simbolismo elisabetano é uma crítica de Hamlet. Por trás do descontentamento dos românticos como jovens (e ocasionalmente também como mulheres jovens, já que foi este o primeiro período em que as mulheres do continente europeu apareceram como artistas em posse de seus plenos direitos e em considerável número)f e como artistas, havia um descontentamento mais genérico em relação ao tipo de sociedade que surgia a partir da revolução dupla.

A análise social precisa nunca foi o forte dos românticos e, de fato, desconfiavam do resoluto raciocínio mecânico e materialista do século XVIII (simbolizado por Newton, o “bicho papão” de William Blake e Goethe) que corretamente viam como o século das principais ferramentas com que a sociedade burguesa fora construída. Consequentemente, não podemos esperar que fizessem uma crítica arrazoada da sociedade burguesa, embora algo parecido a uma crítica se envolvesse no místico manto da “filosofia da natureza” e se movesse por entre as agitadas nuvens metafísicas formadas dentro de uma ampla estrutura “romântica”, que contribuiu, entre outras coisas, para a filosofia de Hegel (veja o Capítulo 13-2). Uma crítica semelhante também se desenvolveu, em flashes visionários muito próximos da excentricidade, ou mesmo da loucura, entre os primeiros socialistas utópicos da França. Os primeiros seguidores de Saint-Simon (embora não o seu líder) e especialmente Fourier dificilmente podem ser considerados outra coisa que românticos. O resultado mais duradouro desta crítica romântica foi o conceito de “alienação” humana, que iria desempenhar um papel crucial em Marx, e a insinuação da perfeita sociedade do futuro. Entretanto, a crítica mais eficaz e poderosa da sociedade burguesa viria não daqueles que a rejeitavam (e com ela as tradições da ciência e do racionalismo clássicos do século XVII) no todo e a priori, mas sim daqueles que levaram as tradições do pensamento clássico burguês a suas conclusões antiburguesas. O socialismo de Robert Owen não tinha sequer o mínimo elemento de Romantismo em si mesmo; seus componentes eram inteiramente os do racionalismo do século XVIII e da mais burguesa das ciências, a economia política. O próprio Saint-Simon seria mais bem descrito como uma prolongação do “iluminismo”. É significativo que o jovem Marx, formado na tradição alemã (isto é, primordialmente romântica), se tenha transformado no criador do marxismo só quando combinou seu pensamento com a crítica socialista francesa e a teoria totalmente a-romântica da economia política inglesa. E foi a economia política que forneceu a essência de seu pensamento amadurecido.

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Nunca é prudente negligenciar as razões do coração que a própria razão desconhece. Como pensadores dentro dos limites de referência ditados pelos economistas e físicos, os poetas se encontravam sobrepujados, mas não só viam mais profundamente que aqueles, como também às vezes com mais clareza. Poucos homens compreenderam o terremoto social causado pela máquina e pela fábrica antes de William Blake na década de 1790, quando em Londres havia ainda pouco mais que algumas oficinas e olarias. Com algumas exceções, os melhores comentários sobre os problemas da urbanização na Inglaterra se deveram aos escritores criativos, cujas observações, frequentemente de aparência irrealista, demonstraram ser um indicador utilíssimo da grande evolução urbana de Paris.8 Carlyle foi um guia mais confuso, porém mais profundo, para a Inglaterra em 1840 do que o cuidadoso estatístico e compilador J. R. McCulloch, e se J. S. Mill é melhor do que outros utilitaristas, é porque uma crise pessoal fez com que ele sozinho percebesse o valor dos críticos alemães românticos da sociedade: Goethe e Coleridge. A crítica romântica do mundo, embora mal definida, não era portanto desprezível.

A ansiedade que se convertia em obsessão nos românticos era a recuperação da unidade perdida entre o homem e a natureza. O mundo burguês era profunda e deliberadamente antissocial. “Ele impiedosamente quebrou os fortes laços feudais que uniam o homem a seus superiores naturais, e não deixou nenhum outro vínculo entre os homens a não ser o puro interesse pessoal e o insensível ‘pagamento em espécie’. Ele afogou os mais divinos êxtases de fervor religioso, de entusiasmo nobre, de sentimentalismo filisteu, na congelada água do cálculo egoísta. Transformou o valor pessoal em valor de troca, e em lugar das inumeráveis e inquebrantáveis liberdades ergueu uma simples e inescrupulosa liberdade — a liberdade de Comércio.” Esta é a voz do Manifesto comunista, mas ela fala também por todos os românticos. Um mundo deste tipo podia dar conforto e riqueza aos homens — embora na verdade parecesse evidente que este mundo também tornava os outros, em número infinitamente maior, famintos e miseráveis — mas deixou suas almas desnudas e solitárias. Deixou-os sem pátria e sem lar, perdidos no universo como se fossem seres “alienados”. Uma fenda revolucionária na história do mundo impediu-os de evitar esta “alienação” com a decisão de nunca deixar o velho lar. Os poetas do Romantismo alemão sabiam melhor do que ninguém que a salvação consistia somente na simples e modesta vida de trabalho que se desenrolava naquelas idílicas cidadezinhas pré-industriais que salpicavam as paisagens de sonho por eles descritas da maneira mais irresistível. E ainda assim, seus jovens deviam partir para fazer, por definição, a infindável busca da “flor azul” ou simplesmente para vagar para sempre, cheios de melancolia, cantando as líricas de Eichendorff ou as canções de Schubert. A canção dos andarilhos é sua toada, e a nostalgia, sua companheira constante. Novalis chegou mesmo a definir a filosofia nestes termos.9

Três fontes abrandaram a sede da perdida harmonia entre o homem e o mundo: a Idade Média, o homem primitivo [ou, o que dá no mesmo, o exotismo e o “povo” (folk)], e a Revolução Francesa.

A primeira atraiu principalmente os românticos da reação. A estável ordem social da idade feudal, o lento produto orgânico das eras, colorido de heráldica, envolto pelos sombrios mistérios das florestas de contos de fada e coberto pelo dossel do inquestionável céu cristão, era o evidente paraíso perdido dos oponentes conservadores da sociedade burguesa, cujo gosto pela devoção, a lealdade e um mínimo de cultura entre os mais modestos a Revolução Francesa havia aguçado. Com as naturais variações locais, esse era o ideal que Burke atirava contra o rosto dos enfurecidos racionalistas da Bastilha em sua obra Reflexões sobre a Revolução Francesa (1790). Entretanto, onde este sentimento encontrou sua expressão clássica foi na Alemanha, um país que neste período adquiriu algo assim como o monopólio do sonho medieval, talvez porque a organizada Gemuetlichkeit, que parecia reinar sob os castelos do Reno e da Floresta Negra, prestava-se mais prontamente à idealização do que a imundície e a crueldade de países mais genuinamente medievais.g Em todo caso, o medievalismo foi um componente bem mais forte do Romantismo alemão do que qualquer outro, e se irradiou para fora da Alemanha, sob a forma de óperas ou do balé romântico (Freischuetz ou Giselle, de Weber), dos Contos de fadas de Grimm, ou de teorias históricas que inspiraram escritores como Coleridge ou Carlyle. Entretanto, na forma mais genérica de um renascimento gótico, o medievalismo foi o escudo dos conservadores e especialmente dos religiosos antiburgueses em toda a parte. Chateaubriand exaltou o gótico em sua obra Espírito do cristianismo (1802) contra a Revolução; os defensores da Igreja da Inglaterra o favoreciam contra os racionalistas e não conformistas cujos prédios permaneceram clássicos; o arquiteto Pugin e o “Movimento de Oxford”, ultrarreacionário e de tendência católica, da década de 1830, eram góticos até a raiz dos cabelos. Enquanto isto, da nevoenta Escócia remota — há muito um país capaz de todos os sonhos arcaicos como os poemas forjados e atribuídos ao bardo Ossian —, o conservador Walter Scott supria a Europa com mais um conjunto de imagens medievais em seus romances históricos. O fato de que o melhor de seus romances tratasse de períodos bastante recentes da história escapou da atenção do público.

Ao lado desta preponderância do medievalismo conservador, que os governos reacionários surgidos depois de 1815 procuraram traduzir em periclitantes justificativas do absolutismo (veja o Capítulo 12-3), o medievalismo de esquerda carecia de importância. Na Inglaterra, existia principalmente como uma corrente no movimento radical popular, que tendia a ver o período anterior à Reforma como uma idade de ouro do trabalhador, e a Reforma, como o primeiro grande passo em direção ao capitalismo. Na França, foi muito mais importante, pois ali sua ênfase não era colocada sobre a hierarquia feudal e a ordem católica, mas sim sobre o povo, eternamente sofredor, turbulento e criativo: a nação francesa sempre reafirmando sua identidade e sua missão. Jules Michelet, poeta e historiador, foi o maior destes medievalistas democrático-revolucionários; Victor Hugo criou com o Corcunda de Notre Dame o mais conhecido produto daquela preocupação.

Intimamente aliada ao medievalismo, especialmente através de sua preocupação com as tradições da religiosidade mística, estava a busca dos mais antigos mistérios e fontes da sabedoria irracional do Oriente: os reinos românticos, mas também conservadores, de Kublai Khan ou dos brâmanes. Desde sempre, o descobridor do sânscrito, Sir William Jones, foi um sincero whig radical que saudou as revoluções francesa e americana como um cavalheiro erudito, mas o resto dos entusiastas do Oriente e os escritores de poemas pseudopersas, de cujo entusiasmo nasceu uma grande parte do moderno orientalismo, pertenciam à tendência antijacobina. É característico que a Índia dos brâmanes fosse sua meta espiritual em vez do racional e irreligioso Império Chinês, que havia preocupado as imaginações exóticas do Iluminismo do século XVIII.

4

O sonho da perdida harmonia do homem primitivo tem uma história bem mais longa e complexa. Havia sempre sido um sonho avassaladoramente revolucionário, tanto sob a forma da idade de ouro do comunismo, como na da igualdade “quando Adão cavava e Eva fiava”,h quando o livre povo anglo-saxônico ainda não havia sido escravizado pela Conquista Normanda, ou então sob a forma do nobre selvagem que apontava as deficiências de uma sociedade corrompida. Consequentemente, o primitivismo romântico prestava-se mais prontamente à rebelião esquerdista, exceto quando servia simplesmente como uma fuga da sociedade burguesa (como no exotismo de um Gautier ou Mérimée que encontraram no nobre selvagem uma atração turística na Espanha da década de 1830), ou quando a continuidade histórica fazia do primitivismo algo exemplarmente conservador. Este foi, sobretudo, o caso do “povo”. Entre os românticos de todas as tendências se admitia sem discussão que o “povo” — o camponês ou o artesão pré-industrial — exemplificava todas as virtudes e que sua língua, canções, lendas e costumes se constituíam no verdadeiro repositório da alma do povo. Retomar aquela simplicidade e virtude era o objetivo de Wordsworth das Baladas líricas; ser aceito no conjunto de canções folclóricas e de contos de fadas, a ambição — alcançada por vários artistas — de muitos poetas e compositores alemães. O vasto movimento para coletar as canções folclóricas, publicar as antigas narrativas épicas, lexicografar a linguagem viva estava intimamente ligado ao Romantismo; a própria palavra folclore (1846) foi uma invenção do período. As Baladas da fronteira escocesa, de Walter Scott, datadas de 1803, a obra de Arnim e Brentano Des Knaben Wunderhorn (1806), os Contos de fadas (1812) de Grimm, as Melodias irlandesas (1807-1834) de Moore, a História da língua boêmia (1818) de Dobrovski, o Dicionário servo, de Vuk Karajic, datado de 1818, e também sua obra Canções folclóricas da Sérvia (1823-1833), a obra de Tegnér, Frithjof ’s saga (1825), na Suécia, a edição do Kalevala, de Lönnrot, na Finlândia em 1835, a Mitologia alemã (1835) de Grimm, e os Contos folclóricos noruegueses (1842-1871), de Asbjörnson e Moe são alguns dos monumentos daquela tendência.

“O povo” podia ser um conceito revolucionário, especialmente entre os povos oprimidos que estavam a ponto de descobrir ou reafirmar sua identidade nacional, e particularmente entre os que não possuíam uma classe média ou uma aristocracia locais. Para eles, um dicionário, uma gramática ou uma coletânea de canções folclóricas era um acontecimento de vital importância política, uma primeira declaração de independência. Por outro lado, para aqueles que se sentiam mais atraídos pelas virtudes simples do conformismo, ignorância e devoção, pela sabedoria profunda de sua confiança no papa, no rei ou no czar, o culto nacional do primitivo prestava-se a uma interpretação conservadora. Representavam a unidade da inocência, do mito e da antiga tradição, que a sociedade burguesa destruía dia a dia.i O capitalista e o racionalista eram os inimigos contra quem o rei, o senhor e o camponês tinham que manter uma sagrada união.

O primitivo existia em cada aldeia, mas existia como um conceito ainda mais revolucionário na hipotética idade de ouro do comunismo do passado, e como o imaginado nobre selvagem do exterior, especialmente o índio americano. De Rousseau, que a sustentava como o ideal do homem social livre, até os socialistas, a sociedade primitiva era uma espécie de modelo para todas as utopias. A tríplice divisão da história feita por Marx — o comunismo primitivo, a sociedade de classe, e o comunismo em nível mais elevado — confirma, embora também transforme, aquela tradição. O ideal do primitivismo não foi exclusivamente romântico. De fato, alguns de seus defensores mais ardentes pertenciam à tradição Iluminista do século XVIII. A busca romântica levou seus exploradores até os grandes desertos da Arábia e do norte da África, entre os guerreiros e as odaliscas de Delacroix e Fromentin, a Byron através do mundo mediterrâneo, ou Lermontov até o Cáucaso, onde o homem natural na figura do cossaco lutava contra o homem natural na figura do membro de uma tribo, entre precipícios e cataratas, ao invés de levá-los à inocente utopia erótica e social do Taiti. Mas também os levou à América, onde o homem primitivo lutava condenado, uma situação que o trazia mais para perto do sentimento dos românticos. Os poemas indígenas do Austro-Húngaro Lenau se rebelam contra a expulsão dos pele-vermelhas; se o moicano não tivesse sido o último de sua tribo, teria ele se transformado em um símbolo tão poderoso na cultura europeia? Naturalmente, o nobre selvagem desempenhou um papel imensuravelmente mais importante no Romantismo americano do que no europeu — Moby Dick (1815) de Herman Melville é seu maior monumento —, mas nos romances de Fenimore Cooper ele captou o velho mundo como o conservador Natchez de Chateaubriand nunca fora capaz de fazê-lo.

A Idade Média, o povo e a nobreza do selvagem eram ideais firmemente ancorados ao passado. Só a revolução, a “primavera dos povos”, apontava exclusivamente para o futuro, e assim mesmo os mais utópicos ainda achavam cômodo recorrer a um precedente em favor do sem precedente. Isto não foi possível até que uma segunda geração romântica tivesse produzido uma safra de jovens para quem a Revolução Francesa e Napoleão eram fatos da História e não um doloroso capítulo autobiográfico. O ano de 1789 havia sido saudado por praticamente todo artista e intelectual da Europa, mas, embora alguns tivessem conservado seu entusiasmo durante a guerra, o terror, a corrupção burguesa e o império, seus sonhos não eram facilmente comunicáveis. Mesmo na Grã-Bretanha, onde a primeira geração do Romantismo, de Blake, Wordsworth, Coleridge, Southey, Campbell e Hazlitt, fora totalmente jacobina, os desiludidos e os neoconservadores ainda prevaleciam em 1805. Na França e na Alemanha, de fato, a palavra “romântico” fora realmente inventada como um slogan antirrevolucionário pelos conservadores antiburgueses do final da década de 1790 (frequentemente antigos esquerdistas desiludidos), o que esclarece o fato de que um certo número de pensadores e artistas nestes países, que pelos padrões modernos deveriam ser considerados românticos, estejam tradicionalmente excluídos desta classificação. Entretanto, nos últimos anos das guerras napoleônicas, começaram a surgir novas gerações de jovens, para os quais só a grande chama libertadora da Revolução era visível através dos anos, as cinzas de seus excessos e corrupções tendo desaparecido do alcance da vista; depois do exílio de Napoleão, mesmo aquele insensível personagem pôde se transformar em uma fênix ou libertador quase mítico. E à medida que a Europa avançava, ano após ano, mais profundamente em direção às baixas e inexpressivas planícies da reação, da censura e mediocridade e dos pestilentos pântanos da pobreza, da infelicidade e da opressão, a imagem da revolução libertadora tornava-se ainda mais luminosa.

A segunda geração de românticos britânicos — a de Byron (1788-1824), a do apolítico mas simpatizante Keats (1795-1821) e, acima de tudo, a geração de Shelley (1792-1822) — foi, assim, a primeira a combinar o Romantismo e o revolucionarismo ativo: os desapontamentos da Revolução Francesa, inesquecidos pela maioria de seus antepassados, empalideciam ao lado dos visíveis horrores da transformação capitalista em seu próprio país. No continente europeu, a ligação entre a arte romântica e a revolução antecipada na década de 1820 só se tornou realidade durante e depois da Revolução Francesa de 1830. Isto também é verdade a propósito do que talvez possa ser chamado de visão romântica da revolução e estilo romântico de ser revolucionário, cuja expressão mais conhecida é o quadro de Delacroix Liberdade nas barricadas (1831). Aqui, melancólicos jovens com barba e chapéus altos, trabalhadores em mangas de camisa, tribunos do povo com esvoaçantes cabeleiras sob sombreras, rodeados por bandeiras tricolores e bonés frígios, recriam a Revolução de 1793 — não a moderada Revolução de 1789, mas a glória do Ano II — erguendo suas barricadas em cada cidade do continente.

Desde o início, o revolucionário romântico não foi inteiramente uma novidade. Seu precursor imediato foi o membro das sociedades secretas e das seitas maçônicas revolucionárias — carbonaro ou filo-heleno — cuja inspiração vinha diretamente de velhos jacobinos ou babovistas sobreviventes como Buonarroti. Foi a típica luta revolucionária do período da Restauração, cheia de ousados jovens armados ou vestidos com uniformes hussardos, saindo de óperas, soirées e compromissos com duquesas ou de reuniões ritualistas maçônicas para dar um golpe militar ou se colocar à frente de uma nação revoltosa; de fato, seguiam o padrão de Byron. Entretanto, esta moda revolucionária não só estava muito mais diretamente inspirada pelos estilos de pensamento do século XVIII, como talvez fosse socialmente mais exclusiva do que aqueles. Ela também se ressentia de um elemento crucial da visão revolucionária romântica de 1830-1848: as barricadas, as massas, o novo e desesperado proletariado, aquele elemento que a gravura de Daumier sobre o Massacre na Rue Transnonain (1834), com seu trabalhador assassinado, acrescentou à imaginação romântica.

A mais surpreendente consequência desta união do Romantismo com a visão de uma nova e mais elevada Revolução Francesa foi a avassaladora vitória da arte política entre 1830 e 1848. Raramente houve um período em que mesmo os artistas menos “ideológicos” tenham sido mais universalmente partidários, frequentemente considerando o serviço à política seu dever primordial. “O romantismo”, proclamava Victor Hugo no prefácio de Hernani, esse manifesto de rebelião (1830), “é o liberalismo na literatura.”11 “Os escritores”, escrevia o poeta Alfred de Musset (1810-1857), cujo talento natural — como o do compositor Chopin (1810-1849) ou do introspectivo poeta austro-húngaro Lenau (1802-1850) — se inclinava mais para o pronunciamento privado que público, “tinham uma predileção para falar em seus prefácios a respeito do futuro, do progresso social, da humanidade e da civilização.”12 Vários artistas se tornaram figuras políticas e não só em países com angústias de libertação nacional, onde todos os artistas tendiam a ser profetas ou símbolos nacionais: Chopin, Liszt e até mesmo o jovem Verdi entre os músicos; Mickiewcz (que acreditava representar um papel messiânico), Petöfi e Manzoni entre os poetas da Polônia, Hungria e Itália, respectivamente. O pintor Daumier trabalhava basicamente como um caricaturista político. O poeta Uhland e os irmãos Grimm eram políticos liberais; o vulcânico gênio juvenil Georg Buchner (1810-1837), um ativo revolucionário; Heinrich Heine (1797-1856), um íntimo amigo pessoal de Karl Marx, uma voz ambígua, porém poderosa, da extrema esquerda.j A literatura e o jornalismo se fundiram, sobretudo na França, Alemanha e Itália. Em outra época, um Lamennais ou um Jules Michelet na França, um Carlyle ou um Ruskin na Grã-Bretanha poderiam ter sido poetas ou romancistas com algumas opiniões acerca de assuntos públicos; na sua época foram propagandistas, profetas, filósofos ou historiadores levados por um ímpeto poético. Desta forma, a lava da imaginação poética acompanhou a erupção do jovem intelecto de Marx com uma amplitude inusitada entre filósofos ou economistas. Mesmo o delicado Tennyson e seus amigos de Cambridge colocaram seus corações à disposição da brigada internacional que foi apoiar os liberais contra os clericais na Espanha.

As características teorias estéticas surgidas e desenvolvidas durante este período ratificaram esta unidade da arte e do compromisso social. Os seguidores de Saint-Simon, na França, por um lado, os brilhantes intelectuais revolucionários russos, por outro, desenvolveram as ideias que mais tarde formariam parte dos movimentos marxistas sob nomes tais como “realismo socialista”,13 um nobre ideal, porém não totalmente bem-sucedido, derivado da austera virtude do jacobinismo e da fé romântica no poder do espírito, que fez com que Shelley chamasse os poetas de “legisladores não reconhecidos do mundo”. “A arte pelo prazer da arte”, embora já formulada principalmente pelos conservadores e diletantes, ainda não podia competir com a arte para o bem da humanidade ou para o bem das nações e do proletariado. Só depois que as revoluções de 1848 tinham destruído as esperanças românticas do grande renascimento do homem, foi que o esteticismo autocontido de alguns artistas aflorou. A evolução de algumas figuras de 1848, como Baudelaire e Flaubert, ilustra esta mudança política e estética, e a Educação sentimental de Flaubert permanece sendo seu maior êxito literário. Somente em países como a Rússia, onde a desilusão de 1848 não ocorreu (talvez porque na Rússia 1848 não aconteceu), as artes continuaram a ser socialmente comprometidas ou preocupadas como anteriormente.

5

O Romantismo é a moda mais característica na arte e na vida do período da revolução dupla, mas não é absolutamente a única. De fato, visto que não dominava nem a cultura da aristocracia, nem a da classe média, e menos ainda a da classe trabalhadora pobre, sua verdadeira importância quantitativa na época foi pequena. As artes que dependiam do patrocínio ou do apoio maciço das classes abastadas toleravam melhor o Romantismo onde suas características ideológicas eram menos óbvias, como na música. As artes que dependiam do apoio dos pobres quase não tinham nenhum interesse para o artista romântico, embora, de fato, a diversão dos pobres — revistas de contos sentimentaloides, circos, pequenas exibições com uma atração principal, teatros mambembes e coisas semelhantes — tenha sido fonte de muita inspiração para os românticos e, em troca, os artistas populares reforçaram o repertório de emoções oferecidas ao público — cenas de transmutação, fadas, últimas palavras de assassinos, bandoleiros etc. — com adequadas mercadorias adquiridas nos armazéns românticos.

O estilo fundamental da vida e da arte aristocrática permanecia enraizado no século XVIII, embora consideravelmente vulgarizado pela adesão de novos ricos enobrecidos, conforme ocorreu no estilo do Império napoleônico, que foi de impressionante feiura e pretensão, e no estilo da Regência Britânica. Uma comparação entre os uniformes do século XVIII e pós-napoleônicos — a forma de arte que mais diretamente expressava os instintos dos funcionários e cavalheiros responsáveis por seu corte — torna clara esta afirmação. A triunfante supremacia da Grã-Bretanha fez do nobre inglês o padrão da cultura, ou melhor, da incultura aristocrática internacional, pois os interesses do dandy — bem barbeado, impassível e refulgente — deviam ser limitados a cavalos, cães, carruagens, pugilistas profissionais, caça, jogo, diversões de cavalheiros e sua própria pessoa. Tal extremismo heroico incendiou até mesmo os românticos, que também apreciavam o “dandismo”, mas provavelmente excitou as jovens senhoras de origem modesta ainda mais, fazendo-as sonhar (nas palavras de Gautier):

Sir Edward era exatamente o inglês de seus sonhos. O inglês bem barbeado, corado, brilhante, arrumado e polido, que enfrentava os primeiros raios do sol da manhã com um cachecol branco, perfeito, o inglês de impermeável e galochas. Não era ele a própria coroa da civilização? Terei pratarias inglesas, pensava ela, e porcelana de Wedgwood. Haverá tapetes por toda a casa e serviçais empoados e respirarei o ar ao lado de meu marido, dirigindo uma parelha de quatro cavalos através do Hyde Park (...) Corças malhadas e dóceis brincarão na grama verde do jardim de minha casa de campo, e talvez também algumas crianças coradas e louras. As crianças ‘ficam muito bem’ no assento dianteiro de um Barouche, ao lado de um cachorro spaniel, com pedigree (...)”14

Esta era talvez uma visão inspirada, mas não romântica, assim como o quadro das majestades reais ou imperiais graciosamente assistindo a uma ópera ou um baile, cobertas de joias, galanteria e beleza.

A cultura das classes média e baixa não era mais romântica. Sua tônica fundamental era a sobriedade e a modéstia. Somente entre os grandes banqueiros e especuladores, ou entre a primeiríssima geração de milionários industriais, que jamais ou não mais necessitavam reinvestir uma grande parte de seus lucros nos negócios, é que o pseudobarroco opulento do final do século XIX apareceu, e só nos poucos países em que as velhas monarquias e aristocracias não mais dominavam a “sociedade” inteiramente. Os Rothschild, monarcas por direito próprio, já se exibiam como príncipes.15 A burguesia comum não o fazia. O puritanismo, a religiosidade católica ou evangélica encorajavam a moderação, a poupança, uma sobriedade espartana e um orgulho moral sem precedentes na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na Alemanha e na França huguenote; a tradição moral do Iluminismo do século XVIII e da maçonaria fazia o mesmo no setor mais emancipado e antirreligioso. Exceto na busca do lucro e na lógica, a vida da classe média era uma vida de emoção controlada e de perspectivas limitadas deliberadamente. A enorme parcela da classe média que, no continente europeu, não estava envolvida em negócios mas em funções governamentais, como funcionários, professores, ou em alguns casos como pastores, estava ausente até mesmo da fronteira expansionista da acumulação de capital, e o mesmo acontecia com o modesto burguês de província que, consciente de que a riqueza da cidade pequena era o limite de suas possibilidades, não se deixava impressionar pelos padrões de riqueza e poderio de sua época. De fato, a vida da classe média era “a-romântica”, e seus padrões ainda eram em grande parte dominados pelas modas do século XVIII.

Isto é perfeitamente evidente no lar da classe média, que era, afinal de contas, o centro da sua cultura mesocrática. O estilo da casa e da rua burguesa pós-napoleônica deriva-se diretamente e quase sempre continua o classicismo ou o rococó do século XVIII. As construções no estilo georgiano continuaram na Grã-Bretanha até a década de 1840, e em outras partes o rompimento arquitetônico (introduzido principalmente por uma redescoberta artisticamente desastrosa da “renascença”) chegou mais tarde ainda. O estilo predominante da decoração de interiores e da vida doméstica, melhor chamado de Biedermeier, depois de alcançar sua mais perfeita expressão na Alemanha, foi uma espécie de classicismo doméstico acalentado pela intimidade da emoção e pelos sonhos virginais (Innerlichkeit, Gemuetlichkeit), que devia alguma coisa ao Romantismo — ou melhor, ao pré-romantismo do final do século XVIII —, mas que reduziu até mesmo esta dívida às dimensões da modesta interpretação burguesa de quartetos nas tardes de domingo na sala de estar. O Biedermeier produziu um dos mais belos estilos de decoração jamais criado: cortinas brancas lisas contra paredes foscas, assoalhos vazios, cadeiras e escrivaninhas sólidas mas elegantíssimas, pianos, gabinetes de trabalho e jarrões cheios de flores. Foi essencialmente um estilo clássico tardio. Talvez seu mais nobre exemplo seja a casa de Goethe em Weimar. Assim, ou algo muito semelhante, era o cenário em que viviam as heroínas dos romances de Jane Austen (1775-1817), para os rigores evangélicos e deleites da seita de Clapham, para a alta burguesia de Boston ou para os leitores provincianos franceses do Jornal de Debates.

O Romantismo entrou na cultura da classe média talvez principalmente pelo aumento dos devaneios entre as mulheres da família burguesa. Exibir a capacidade do homem em prover o sustento da família para mantê-las em uma grande ociosidade foi uma de suas principais funções sociais, uma acalentada escravidão era seu destino ideal. Em todo caso, as moças burguesas, como as não burguesas, as odaliscas e as ninfas que os pintores antirromânticos como Ingres (1780-1867) levaram do contexto romântico para o ambiente burguês, adaptaram-se rapidamente ao mesmo tipo frágil, pálido, de cabelos macios, a suave flor vestida com um xale e um gorro tão característicos da moda de 1840. Havia sido percorrido um longo caminho desde aquela leoa humilhada, a duquesa de Alba, de Goya, ou as jovens neogregas emancipadas, vestidas com musseline branca, que a Revolução Francesa havia espalhado pelos salões, ou as altivas damas e cortesãs da Regência como Lady Lieven ou Harriete Wilson, tão antirromânticas quanto antiburguesas.

As moças burguesas podiam tocar em suas casas a música romântica civilizada de Chopin ou de Schumann (1810-1856). O estilo Biedermeier podia encorajar um tipo de lirismo romântico, como o de Eichendorff (1788-1857) ou de Eduard Mörike (1804-1875), no qual a paixão cósmica era transfigurada em nostalgia ou ansiedade passiva. O empresário ativo podia até mesmo, enquanto estivesse em uma viagem de negócios, desfrutar em uma estância montanhosa “a visão mais romântica que jamais vi”, descansar em casa fazendo esboços do “Castelo de Udolfo” ou mesmo, como John Cragg de Liverpool, “sendo um homem de gosto artístico” bem como um dono de metalúrgica, “introduzir o ferro fundido na arquitetura gótica”.16 Mas, em seu conjunto, a cultura burguesa não era romântica. O próprio alvoroço do progresso técnico obstruía o Romantismo ortodoxo, pelos menos nos centros industriais avançados. Um homem como James Nasmyth, inventor do martelo a vapor (1808-1890), era tudo menos um bárbaro, só pelo fato de ser filho de um pintor jacobino (“o pai da pintura paisagística na Escócia”), criado entre artistas e intelectuais, amante do pitoresco e do antigo e com toda a grande e sólida instrução de um bom escocês. Ainda assim, seria natural o filho de um pintor se tornar um mecânico, ou que, durante uma excursão feita em sua juventude com seu pai o que mais lhe tenha interessado fora a Metalúrgica de Devon? Para ele, bem como para os educados cidadãos de Edinburgo do século XVIII entre os quais cresceu, as coisas eram sublimes mas não irracionais. Rouen continha simplesmente uma “maravilhosa catedral e a Igreja de S. Ouen, tão exótica em sua beleza, juntamente com os refinados restos de arquitetura gótica espalhados por aquela cidade interessante e pitoresca”. O pitoresco era esplêndido; ainda assim, ele não pôde deixar de notar, em suas entusiasmadas férias, que era um produto desdenhável. A beleza era esplêndida, mas certamente o que andava errado com a arquitetura moderna era o fato de que “o propósito da construção é (...) encarado como uma coisa secundária”. “Relutei em sair de Pisa”, escreveu ele, mas “o que mais me interessou na Catedral foram as duas lâmpadas de bronze suspensas no final da nave, que sugeriram a Galileu a invenção do pêndulo.”17 Tais homens não eram nem bárbaros nem filisteus, mas seu mundo estava bem mais próximo do de Voltaire e Josias Wedgwood do que do de John Ruskin. Sem dúvida, o grande inventor de ferramentas Henry Maudslay se sentia muito mais à vontade em Berlim, com seus amigos Humboldt, o rei dos cientistas liberais, e o arquiteto neoclássico Schinkel, do que teria se sentido em companhia do grande mas nebuloso Hegel.

Em qualquer caso, nos centros da sociedade burguesa avançada, as artes como um todo vinham em segundo lugar em relação às ciências. O culto engenheiro ou fabricante, americano ou britânico, poderia apreciá-las, especialmente em momentos de descanso ou férias em família, mas seus verdadeiros esforços culturais se dirigiam para a difusão e o avanço do conhecimento — do seu próprio, em instituições tais como a Associação Britânica para o Progresso da Ciência, ou do povo, através da Sociedade para a Difusão de Conhecimentos Úteis e outras organizações semelhantes. É característico que o produto típico do Iluminismo do século XVIII, a Enciclopédia, tenha florescido como nunca, retendo ainda (como no famoso Léxico de conversação dos alemães, de Meyer, um produto da década de 1830) muito de seu liberalismo político militante. Byron ganhou muito dinheiro com seus poemas, mas o editor Constable, em 1812, pagou a Dugald Stewart mil libras por um prefácio sobre o progresso da filosofia para o suplemento da Enciclopédia britânica.18 E, mesmo quando a burguesia era romântica, seus sonhos eram os da tecnologia: os jovens inspirados por Saint-Simon se tornaram os planejadores do Canal de Suez, das gigantescas redes de ferrovias que uniam todas as partes do globo, das finanças faustuosas muito além do tipo natural de interesse dos calmos e racionalistas Rothschild, que sabiam que se podia ganhar muito dinheiro por meios conservadores,19 com um mínimo de arrojo especulativo. A ciência e a técnica foram as musas da burguesia, e celebraram seu triunfo, a estrada de ferro, no grande pórtico neoclássico (hoje em dia destruído) da estação de Euston.

6

Enquanto isto, fora do raio de ação da literatura, a cultura do povo comum seguia seu caminho. Nas partes não urbanas e não industriais do mundo, pouco mudou. As canções e festas da década de 1840, os costumes, motivos e cores das artes decorativas do povo, o padrão de seus hábitos continuavam a ser quase os mesmos de 1789. A indústria e o desenvolvimento das cidades começaram a destruí-los. Ninguém poderia viver em uma cidade industrial da mesma maneira que o havia feito em uma aldeia, e todo o complexo da cultura necessariamente teria que se esfacelar com o colapso da armação social que o mantinha unido e lhe dava forma. Quando uma canção tem por tema o cultivo da terra, não pode ser cantada por homens que não a cultivam, e se ainda assim o fosse deixava de ser uma canção folclórica e se transformava em uma outra coisa qualquer. A nostalgia do emigrante mantinha os velhos costumes e canções no exílio da cidade, e talvez mesmo tenha intensificado sua atração, pois tais costumes e canções aliviavam a dor da erradicação. Mas, fora das cidades e das fábricas, a revolução dupla transformara — ou mais precisamente, devastara — somente alguns aspectos da antiga vida rural, notadamente em algumas partes da Irlanda e da Grã-Bretanha, até o momento em que as velhas formas de vida se tornaram impossíveis.

De fato, mesmo na indústria, a transformação social não tinha ido longe o suficiente antes da década de 1840 para destruir completamente a cultura antiga, pelo menos nas zonas da Europa ocidental onde as manufaturas e os artífices tinham tido muitos séculos para desenvolver, por assim dizer, um padrão semi-industrial de cultura. No interior, os mineiros e os tecelões expressavam sua esperança e seu protesto através de canções folclóricas tradicionais, e a revolução industrial não fez mais que aumentar seu número e torná-las mais intensas. A fábrica não tinha necessidade de canções de trabalho, mas outras atividades relacionadas com o desenvolvimento econômico tinham esta necessidade, e as desenvolveram à moda antiga: a canção do cabrestante dos marujos empregados em grandes veleiros pertence a esta época de ouro da canção folclórica “industrial” na primeira metade do século XIX, como as baladas dos caçadores de baleia da Groenlândia, a balada do dono da mina e da mulher do mineiro e o lamento do tecelão.20 Nas cidades pré-industriais, os grêmios de artesãos e empregados domésticos desenvolviam uma intensa cultura, na qual as seitas protestantes colaboravam ou competiam com o radicalismo jacobino para estimular a educação, unindo os nomes de Bunyan e João Calvino aos de Tom Paine e Robert Owen. Bibliotecas, capelas e institutos, jardins e viveiros (onde o artesão “mais extravagante” produzia suas flores artificialmente exageradas, pombos e cães) enchiam estas autoconfiantes e militantes comunidades de homens habilidosos; Norwich, na Inglaterra, era famosa não só por seu espírito republicano e ateu, mas também por seus canários.k Mas a adaptação de antigas canções folclóricas à vida industrial não sobreviveria (exceto nos Estados Unidos da América) ao impacto da era das ferrovias e do ferro, e as comunidades de velhos homens qualificados — como a dos antigos tecelões de linho de Dunfermline — tampouco sobreviveriam ao avanço da fábrica e da máquina. Depois de 1840, cairiam em ruínas.

Até então, nada substituía a antiga cultura. Na Grã-Bretanha, por exemplo, o novo padrão de uma vida totalmente industrial não surgiria em sua plenitude até as décadas de 1870 e 1880. O período que vai desde os antigos modos tradicionais de vida até então foi, portanto, de muitas maneiras, a parte mais negra daquilo que já era em si uma terrível época negra para o trabalhador pobre. Em nosso período, nem as grandes cidades conseguiram desenvolver um padrão de cultura popular — necessariamente comercial mais do que de criação própria — como nas comunidades menores.

É verdade que a grande cidade, especialmente a grande cidade capital, já possuía importantes instituições que supriam as necessidades culturais dos pobres, ou da “raça miúda”, embora frequentemente, coisa curiosa, também as da aristocracia. Entretanto, muitas delas procediam do século XVIII, cuja contribuição para a evolução das artes populares tem sido tão constantemente negligenciada. O teatro popular dos subúrbios de Viena, o teatro dialetal nas cidades italianas, a ópera popular (distinta da ópera da corte), a commedia dell’arte e as pantomimas ambulantes, as lutas de boxe e as corridas de cavalo, ou a versão democratizada das touradas espanholasl eram produtos do século XVIII; a literatura popular e os livretos de baladas eram produtos de um período anterior. As formas genuinamente novas de diversão urbana na grande cidade eram subprodutos da taberna ou loja de bebidas, que se converteu em uma crescente fonte de consolo secular para o trabalhador pobre em sua desorganização social, e a última trincheira urbana do costume e do cerimonial tradicional, preservada e intensificada por grêmios de artífices, sindicatos e as ritualísticas “sociedades de amigos”. O “music-hall” e o salão de bailes surgiram da taberna; mas, por volta de 1848, esta espécie de diversão ainda não havia se desenvolvido totalmente, mesmo na Grã-Bretanha, embora seu aparecimento já tivesse sido notado na década de 1830.22 As outras novas formas de divertimento urbano das grandes cidades nasceram do conveniente, sempre acompanhadas por seu séquito de artistas mambembes. Na grande cidade, fixaram-se permanentemente, e mesmo na década de 1840, a mistura de exibições variadas com uma atração principal, de teatros, mascates, batedores de carteiras e mendigos em bulevares que proporcionavam diversão ao populacho e inspiração aos intelectuais românticos de Paris.

O gosto popular também determinou a forma e a decoração das relativamente poucas mercadorias que a indústria produzia primordialmente para o mercado dos pobres: as canecas comemorativas do triunfo da Lei da Reforma, a grande ponte de ferro sobre o rio Wear ou ainda os magníficos veleiros que cruzavam o Atlântico; a literatura popular em que se imortalizavam os sentimentos revolucionários ou patrióticos, os crimes famosos e alguns poucos artigos de mobília e de roupas que estavam ao alcance do poder aquisitivo destes. Mas em seu conjunto a cidade, e especialmente a nova cidade industrial, continuava sendo um lugar desolado, cujos poucos atrativos — espaços abertos, festas — iam gradativamente diminuindo pela febre das construções, pela fumaça que empestiava a natureza, e pela obrigatoriedade do trabalho incessante, reforçado em casos adequados pela austera disciplina dominical imposta pela classe média. Só a nova iluminação a gás e as amostras de comércio nas ruas principais, aqui e ali, antecipavam as vivas cores da noite na cidade moderna. Mas a criação da grande cidade moderna e dos modernos estilos urbanos de vida popular teriam que esperar a segunda metade do século XIX.