CAPÍTULO 7
O NACIONALISMO
Todo povo tem sua missão especial que ajudará no cumprimento da missão geral da humanidade. Esta missão constitui a sua nacionalidade. A nacionalidade é sagrada.
Ato de Fraternidade da Jovem Europa, 1834
Chegará o dia (...) em que a sublime Germânia estará no pedestal de bronze da liberdade da justiça, segurando em uma das mãos a tocha do esclarecimento, que lançará a luz da civilização aos mais remotos cantos da terra, e na outra a balança da justiça. Os povos lhe pedirão que julgue as suas disputas, estes mesmos povos que agora nos mostram que o poder é o direito e nos chutam com a botina do escárnio e do desprezo.
Discurso de Siebenpfeiffer no Festival de Hambach, 1832
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Depois de 1830, como vimos, o movimento geral em favor da revolução se dividiu. Um dos resultados desta divisão merece atenção especial: os movimentos nacionalistas conscientes.
Os movimentos que melhor simbolizam esta evolução são os movimentos “jovens” fundados ou inspirados por Giuseppe Mazzini logo depois da Revolução de 1830: Jovem Itália, Jovem Polônia. Jovem Suíça, Jovem Alemanha, Jovem França, em 1831-1836, e o análogo Jovem Irlanda, da década de 1840, ancestral da única organização revolucionária bem-sucedida e duradoura baseada no modelo das irmandades conspiradoras do início do século XIX, os fenianos ou Fraternidade Republicana Irlandesa, melhor conhecia através de seu braço executivo, o Exército Republicano Irlandês. Em si mesmos estes movimentos não foram de grande importância; a simples presença de Mazzini teria sido suficiente para assegurar sua ineficiência. Simbolicamente, todavia, são de extrema importância, como indica a adoção pelos movimentos nacionalistas subsequentes de rótulos como “Jovens Tchecos” ou “Jovens Turcos”. Eles são o marco da desintegração do movimento revolucionário europeu em segmentos nacionais. Sem dúvida, todos estes segmentos tinham uma tática, uma estratégia e um programa político muito semelhantes, até mesmo uma bandeira semelhante — quase invariavelmente tricolor, de algum tipo. Seus membros não viam qualquer contradição entre suas próprias exigências e as dos movimentos de outras nações e, de fato, pretendiam uma fraternidade de todos, libertando-se simultaneamente. Por outro lado, cada um deles tendia agora a justificar sua preocupação primordial com sua própria nação através da adoção do papel de Messias de todos. Através da Itália (segundo Mazzini), da Polônia (segundo Mickiewicz), os sofridos povos do mundo seriam conduzidos à liberdade; uma atitude que era prontamente adaptável às políticas conservadoras ou mesmo imperialistas, como testemunham os eslavófilos russos com sua defesa da Sagrada Rússia, a Terceira Roma, e os alemães que posteriormente iriam proclamar ao mundo dentro de uma relativa distância que ele seria curado pelo espírito alemão. Reconhecidamente, esta ambiguidade do nacionalismo vinha desde a Revolução Francesa. Mas naquela época tinha havido apenas uma grande nação revolucionária e era lógico considerá-la então (como ainda mesmo depois) o quartel-general de todas as revoluções e o necessário primeiro motor da libertação do mundo. Confiar em Paris era racional; confiar em uma vaga “Itália”, “Polônia” ou “Alemanha” (representadas na prática por um punhado de conspiradores e de emigrantes) só era lógico para os italianos, os poloneses e os alemães.
Se o novo nacionalismo tivesse se limitado apenas aos membros das fraternidades revolucionárias nacionais, não valeria a pena dar-lhe muita atenção. Entretanto, ele também refletia forças muito mais poderosas, que se estavam tornando politicamente conscientes na década de 1830 como resultado da revolução dupla. A mais imediatamente poderosa destas forças era o descontentamento dos proprietários menores ou pequena nobreza inferior e o surgimento de uma classe média e até de uma classe média inferior em inúmeros países, sendo seus porta-vozes, em grande parte, intelectuais profissionais.
O papel revolucionário da baixa pequena nobreza talvez seja mais bem ilustrado na Polônia e na Hungria. Lá, de uma maneira geral, os grandes magnatas proprietários de terras haviam descoberto fazia muito tempo que era possível e desejável entrar em acordo com o absolutismo e a dominação estrangeira. Os magnatas húngaros eram, em geral, católicos e de há muito tinham sido aceitos como os pilares da sociedade da corte vienense; poucos deles iriam se unir à Revolução de 1848. A memória da velha Rzeczpospolita fazia com que até mesmo os magnatas poloneses tivessem uma mentalidade nacionalista; mas o mais influente dos seus partidos seminacionais, a união Czartoryski, que agora operava a partir do luxuoso ambiente de emigração do Hotel Lambert em Paris, sempre fora a favor da aliança com a Rússia e continuava a preferir a diplomacia à revolta. Economicamente, eles eram suficientemente abastados para obter o que precisassem sem gastos vultuosíssimos, e até mesmo para investir na benfeitoria de suas propriedades o bastante para poder usufruir da expansão econômica da época, se assim o quisessem. O Conde Széchenyi, um dos poucos liberais moderados desta classe e paladino da melhoria econômica, deu um ano de seus rendimentos para a nova Academia Húngara de Ciências — cerca de 60.000 florins. Não há prova de que seu padrão de vida tenha sofrido com esta generosidade desinteressada. Por outro lado, os muitos cavalheiros que pouco tinham, exceto o seu nascimento, para distingui-los dos outros fazendeiros pobres — um oitavo da população húngara reivindicava o status de cavalheiro — não tinham nem o dinheiro para tornar suas propriedades lucrativas nem a inclinação para competir com os alemães e judeus pela riqueza da classe média. Se não podiam viver decentemente das suas rendas, e uma época degenerada privava-os de suas chances como soldados, então poderiam, se não fossem muito ignorantes, tentar o direito, a administração ou alguma posição intelectual; mas não uma atividade burguesa, que desconsideravam. Estes cavalheiros eram, de há muito, a fortaleza de oposição ao absolutismo e à dominação dos magnatas e estrangeiros, protegendo-se (como na Hungria) por trás do escudo duplo do calvinismo e da administração dos condados. Era natural que sua oposição, descontentamento e aspiração a mais empregos para os cavalheiros locais se fundissem agora com o nacionalismo.
As classes empresariais que surgiram neste período foram, paradoxalmente, um elemento bem menos nacionalista. Reconhecidamente, na Alemanha e na Itália desunidas, as vantagens de um grande mercado nacional unificado eram lógicas. O autor do Deutschland uber Alles abraçou
Presunto e tesouras, botas e ligas,
Lã, sabão, fios e cerveja.1
porque tinham conseguido, coisa que o espírito nacional fora incapaz de fazer, um genuíno senso de unidade nacional por meio da União Aduaneira. Entretanto, há pouca prova de que, digamos, os armadores de Gênova (que mais tarde iriam fornecer a maior parte do apoio financeiro a Garibaldi) preferissem as possibilidades de um mercado italiano nacional à maior prosperidade de comércio por todo o Mediterrâneo. E nos grandes impérios multinacionais, os núcleos comerciais e indústrias que cresceram em determinadas províncias podiam rosnar contra a discriminação, mas, no fundo, claramente preferiam os grandes mercados abertos a eles agora do que os pequenos mercados de futura independência nacional. Os industriais poloneses, com toda a Rússia a seus pés, ainda tinham pouca participação no nacionalismo polonês. Quando Palacky reivindicou a favor dos tchecos que, “se a Áustria não existisse, teria que ser inventada”, ele não só estava pedindo o apoio da monarquia contra os alemães, mas também expressando o perfeito raciocínio econômico do setor economicamente mais avançado do grande e de outra forma atrasado império; os interesses empresariais eram, às vezes, o carro-chefe do nacionalismo, como na Bélgica, onde uma pioneira comunidade industrial considerava-se, duvidosamente, desafortunada sob o domínio da poderosa comunidade mercantil holandesa, à qual tinha sido presa em 1815. Mas este era um caso excepcional.
Os grandes proponentes do nacionalismo de classe média neste estágio foram as camadas média e inferior das categorias profissionais, administrativas e intelectuais, ou seja, as classes educadas. (É claro que estas não são distintas das classes empresariais, especialmente em países atrasados, onde os administradores das propriedades, os tabeliões e os advogados se encontram entre os principais acumuladores da riqueza rural.) Para sermos precisos, a guarda avançada do nacionalismo de classe média fez sua guerra ao longo da linha que demarcava o progresso educacional de um grande número de “homens novos” em áreas até então ocupadas por uma pequena elite. O progresso das escolas e das universidades dava a dimensão do nacionalismo, na mesma medida em que as escolas e especialmente as universidades se tornavam seus defensores mais conscientes: o conflito entre a Alemanha e a Dinamarca sobre o Schleswig-Holstein, em 1848, foi previsto pelo conflito entre as universidades de Kiel e Copenhague, sobre o mesmo problema, na metade da década de 1840.
O progresso foi surpreendente, embora o número total de pessoas “instruídas” continuasse pequeno. O número de alunos nos liceus estatais franceses duplicou entre 1809 e 1842 e aumentou com particular rapidez durante a Monarquia de Julho, mas ainda assim, em 1842, este número era inferior a 19.000 alunos. (O total de crianças que recebiam educação secundária2 naquela época era de cerca de 70.000.) A Rússia, por volta de 1850, tinha perto de 20.000 alunos secundaristas em uma população total de 68 milhões de habitantes.3 O número de estudantes universitários era ainda menor, naturalmente, embora estivesse subindo. É difícil imaginar que a juventude acadêmica prussiana, que foi tão inflamada pelo ideal de liberdade depois de 1806, consistisse em 1805 em pouco mais que 1.500 jovens, e que a Escola Politécnica de Paris, a peste que atormentou os Bourbon restaurados em 1815, acolhesse um total de 1.581 jovens em todo o período entre 1815 e 1830, ou seja, uma admissão anual de cerca de cem alunos. A proeminência revolucionária dos estudantes no período de 1848 faz-nos esquecer que em todo o continente europeu, incluindo-se as antirrevolucionárias Ilhas Britânicas, não havia mais que 40.000 estudantes universitários ao todo.4 Ainda assim, estes números aumentavam. Na Rússia, subiu de 1.700 em 1825 para 4.600 em 1848. E mesmo se eles não aumentassem, a transformação da sociedade e das universidades (veja o Capítulo 15) dava-lhes uma nova consciência de si mesmos como um grupo social. Ninguém se recorda que em 1789 havia cerca de 6.000 estudantes na Universidade de Paris, já que eles não desempenharam qualquer papel independente na Revolução.5 Mas por volta de 1830 ninguém poderia subestimar uma tamanha quantidade de jovens acadêmicos.
As pequenas elites podem operar com línguas estrangeiras, mas a língua nacional se impõe uma vez que o quadro de pessoas instruídas tenha-se tornado suficientemente grande (como testemunha a luta por um reconhecimento linguístico nos Estados indianos desde a década de 1940). Daí, o momento em que livros didáticos e jornais são impressos pela primeira vez na língua nacional, ou quando essa língua é usada pela primeira vez para algum fim oficial, marca um passo importantíssimo na evolução nacional. A década de 1830 viu este passo ser dado em grandes áreas da Europa. Assim, as primeiras obras tchecas importantes sobre astronomia, química, antropologia, mineralogia e botânica foram escritas ou terminadas nesta década, quando também apareceram na Romênia os primeiros livros didáticos escritos em romeno, em substituição ao grego habitual. O húngaro, em vez do latim, foi adotado como a língua oficial da Dieta Húngara em 1840, embora a Universidade de Budapeste, controlada por Viena, não tivesse abandonado as palestras dadas em latim até o ano de 1844. (Entretanto, a luta em favor do uso do húngaro como língua oficial já estava sendo travada desde 1790.) Em Zagreb, Gai publicou a sua Gazeta Croata (mais tarde Gazeta Nacional Ilírica), a partir de 1835, na primeira versão literária do que até então fora simplesmente um complexo de dialetos. Nos países que possuíam havia muito tempo uma língua nacional oficial, a mudança não pode ser tão facilmente avaliada, embora seja interessante notar que, depois de 1830, o número de livros em alemão publicados na Alemanha (em comparação com os títulos em latim e francês) ultrapassou pela primeira vez os 90%, e o número de livros escritos em francês caiu depois de 1820 para menos de 4%.a6 De maneira mais genérica, a expansão editorial nos fornece uma indicação semelhante. Assim, na Alemanha, o número de livros publicados em 1821 foi quase o mesmo que em 1800 — cerca de 4.000 títulos por ano; mas em 1841, tinha subido para 12.000 títulos.7
É claro que a imensa maioria dos europeus (e não europeus) continuava sem instrução. De fato, com exceção dos alemães, dos holandeses, dos escandinavos, dos suíços e dos norte-americanos, não se pode dizer que qualquer outro povo fosse alfabetizado em 1840. Pode-se dizer que vários povos eram totalmente analfabetos, como os eslavos do sul, que contavam menos de 0,5% de pessoas alfabetizadas em 1827 (mesmo muito mais tarde somente 1% dos recrutas dálmatas do exército austríaco sabiam ler e escrever), ou os russos, que tinham 2% em 1840; e que muitos outros eram quase analfabetos, como os espanhóis, os portugueses (que parece tinham somente cerca de 8.000 crianças ao todo na escola após a Guerra Peninsular) e, com exceção dos lombardos e piemonteses, os italianos. Até mesmo a Grã-Bretanha, a França e a Bélgica tinham cerca de 40% a 50% de analfabetos na década de 1840.8 O analfabetismo não se constitui em um obstáculo à consciência política, mas não há de fato qualquer prova de que o nacionalismo do tipo moderno fosse uma poderosa força de massa exceto em países já transformados pela revolução dupla: na França, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e — por ser um país dependente política e economicamente da Grã-Bretanha — na Irlanda.
Equacionar o nacionalismo com a alfabetização não significa que a maioria, digamos, dos russos, não se considerasse “russa” quando confrontada com alguém ou alguma coisa que não o fosse. Contudo, para as massas em geral, o teste de nacionalidade ainda era a religião: o espanhol era definido por ser católico, o russo, por ser ortodoxo. Entretanto, embora tais confrontações estivessem se tornando bem mais frequentes, ainda eram raras, e certos tipos de sentimento nacional, tal como o italiano, ainda eram totalmente estranhos à grande massa do povo, que nem mesmo falava a língua literária nacional e sim dialetos quase mutuamente incompreensíveis. Mesmo na Alemanha, a mitologia patriótica exagerou em muito o grau de sentimento nacional contra Napoleão. A França era extremamente popular na Alemanha Ocidental, especialmente entre os soldados, a quem empregava livremente.9 As populações muito ligadas ao papa ou ao imperador podiam expressar ressentimento contra os inimigos da Igreja e da Coroa, que por acaso eram os franceses, mas isto dificilmente implicava qualquer sentimento de consciência nacional, quanto mais um desejo em favor de um Estado nacional. Além do mais, o fato de o nacionalismo ser representado pela classe média e pela pequena nobreza era suficiente para deixar o pobre desconfiado. Os revolucionários poloneses radical-democratas tentaram arduamente — como também o fizeram os mais avançados carbonários do sul da Itália e outros conspiradores — mobilizar o campesinato, até mesmo a ponto de oferecer uma reforma agrária. Seu fracasso foi quase total. Os camponeses da Galícia, em 1846, se opuseram aos revolucionários poloneses, embora estes tenham efetivamente proclamado o fim da servidão, preferindo massacrar os cavalheiros e confiar nos agentes do Imperador.
O desenraizamento dos povos, que é talvez o mais importante fenômeno do século XIX, destruiria este profundo e antigo tradicionalismo local. Ainda assim, na maior parte do mundo, até a década de 1820, quase ninguém ainda migrava ou emigrava, exceto quando forçado pelos exércitos e pela fome, ou então nos grupos migratórios tradicionais, como os camponeses do centro da França, que em determinada estação iam trabalhar em construções no norte, ou como os artesãos ambulantes alemães. O desenraizamento ainda significava, não a suave forma de saudade de casa que se tornaria a doença psicológica característica do século XIX (refletida em inúmeras canções populares sentimentais), mas o agudo e mortal mal de pays ou mal de coeur, que foi descrito clinicamente pela primeira vez pelos médicos entre os velhos mercenários suíços em terras estrangeiras. O recrutamento para as guerras revolucionárias revelou o mesmo, especialmente entre os bretões. A atração das remotas florestas do nordeste era tão forte que levou uma empregada estoniana a deixar seus excelentes patrões os Kügelgen, na Saxônia, onde era livre para voltar à servidão em casa. A migração e a emigração, cujo índice mais conveniente é a migração para os Estados Unidos, aumentou notavelmente a partir da década de 1820, embora não tivesse alcançado maiores proporções até a década de 1840, quando 1.750.000 pessoas cruzaram o Atlântico Norte (quase o triplo da década de 1830). Assim mesmo, a única grande nação migratória fora das Ilhas Britânicas ainda era a Alemanha, de há muito acostumada a enviar seus filhos como colonos rurais para a Europa oriental e a América, assim como artesãos por todo o continente e mercenários a todas as partes do mundo.
Na verdade, podemos falar apenas de um movimento nacional no Ocidente, organizado de forma coerente antes de 1848, que foi genuinamente baseado nas massas, e até mesmo este movimento gozava da enorme vantagem da identificação com o mais forte portador da tradição, a Igreja. Foi o movimento irlandês de revogação sob a liderança de Daniel O’Connell (1785-1847), advogado demagogo e eloquente, de origem camponesa, e o primeiro — até 1848, o único — dos líderes populares carismáticos que marcam o despertar da consciência política das massas até então atrasadas. (As únicas figuras comparáveis, antes de 1848, foram Feargus O’Connor (1794-1855), outro irlandês, que simbolizou o cartismo na Grã-Bretanha, e talvez Luís Kossuth (1802-1894), que deve ter adquirido um pouco do seu posterior prestígio entre as massas antes da Revolução de 1848, embora sua reputação na década de 1840 fosse na verdade a de um paladino da pequena nobreza — o fato de ter sido canonizado mais tarde pelos historiadores nacionalistas torna difícil entender com clareza sua carreira inicial.) A Associação Católica de O’Connell, que adquiriu o apoio das massas e a confiança não totalmente justificada do clero na vitoriosa luta pela Emancipação Católica (1829), não estava absolutamente ligada à pequena nobreza, que era, de qualquer forma, protestante e anglo-irlandesa. Foi um movimento de camponeses e da classe média baixa irlandesa, ou melhor, dos elementos dessas camadas que podiam existir na empobrecida ilha. “O Libertador” foi levado à liderança por sucessivas ondas de um movimento de massa de revolta agrária, a principal força motivadora da política irlandesa nesse século espantoso. Foi organizado em sociedades secretas terroristas que ajudaram a destruir o paroquianismo da vida irlandesa. Entretanto, o objetivo de O’Connell não era nem a revolução nem a independência nacional, mas sim uma moderada autonomia para a classe média irlandesa através de acordo ou negociação com os liberais britânicos. Efetivamente, ele não foi um nacionalista e menos ainda um revolucionário camponês, mas sim um autônomo moderado da classe média. E, de fato, a principal crítica que foi feita, não injustificadamente, contra ele pelos nacionalistas irlandeses posteriores (semelhante à dos nacionalistas radicais indianos em relação a Gandhi, que ocupou uma posição análoga na história de seu país) foi a de que poderia ter incitado toda a Irlanda contra os britânicos, mas deliberadamente recusou-se a fazê-lo. Isto não altera o fato de que o movimento que ele liderou foi genuinamente apoiado pela massa da nação irlandesa.
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Fora do moderno mundo burguês houve, entretanto, movimentos de revolta popular contra o domínio estrangeiro (isto é, normalmente entendido como significando o domínio de uma religião diferente em vez de uma nacionalidade diferente), que às vezes parecem antecipar os movimentos nacionais posteriores. Assim foram as rebeliões contra o Império Turco, contra os russos no Cáucaso, e a luta contra o usurpador domínio britânico nos confins da Índia. Seria insensato interpretar esses movimentos como tendo muito a ver com o nacionalismo moderno, embora em áreas atrasadas habitadas por camponeses e pastores armados, combativos, organizados em clãs e inspirados por chefes tribais, heróis bandoleiros e profetas, a resistência ao governante (ou infiel) estrangeiro pudesse tomar a forma de autênticas guerras do povo, bem diferentes dos movimentos nacionalistas de elite em países menos homéricos. Na verdade, entretanto, a resistência dos maratas (um grupo militar feudal hindu) e dos sikhs (uma seita religiosa militante) aos britânicos, respectivamente em 1803-1818 e 1845-1849, tem pouca ligação com o nacionalismo indiano posterior, nem produziu algum que lhe fosse peculiar.b As tribos caucasianas, selvagens, heroicas e feudais encontraram na puritana seita islâmica do muridismo um laço temporário de união contra os invasores russos, e em Shamyl (1797-1871), um líder de grande estatura; mas não existe até a presente data uma nação caucasiana, mas sim meramente um agregado de pequenos povos montanheses em pequenas repúblicas soviéticas. (Os georgianos e os armênios, que formaram nações no sentido moderno, não estavam envolvidos no movimento de Shamyl.) Os beduínos, varridos pelas seitas religiosas puritanas como a wahhabita, na Arábia, e a sanusi, no que é hoje a Líbia, lutaram pela simples fé em Alá e a vida simples do pastor e do assaltante, contra a corrupção dos impostos, os paxás e as cidades; mas o que hoje conhecemos como nacionalismo árabe — um produto do século XX — nasceu das cidades e não dos acampamentos nômades.
Até mesmo as rebeliões contra os turcos nos Bálcans, especialmente entre os povos montanheses raramente subjugados do sul e do oeste, não devem ser muito prontamente interpretadas em termos nacionalistas modernos, embora os bardos e os bravos — os dois eram frequentemente os mesmos, como no caso dos bispos-guerreiros-poetas de Montenegro — relembrassem as glórias de heróis seminacionais como o albanês Skanderbeg e as tragédias como a derrota dos sérvios em Kossovo nas remotas batalhas contra os turcos. Nada era mais natural do que se revoltar, onde fosse necessário e desejável, contra uma administração local ou um enfraquecido Império Turco. Entretanto, pouco mais do que um subdesenvolvimento econômico unta o que hoje conhecemos como iugoslavos, mesmo os do Império Turco, e a própria concepção de Iugoslávia foi produto de intelectuais na Austro-Hungria e não dos que realmente lutaram pela liberdade.c Os montenegrinos ortodoxos, jamais subjugados, lutaram contra os turcos, mas com igual vontade contra os infiéis albaneses católicos, e os infiéis, porém solidamente eslavos, bósnios muçulmanos. Os bósnios revoltaram-se contra os turcos, de cuja religião muitos deles partilhavam, com tanta presteza quanto os ortodoxos sérvios da planície coberta de bosques do Danúbio, e com mais vontade do que os “velhos sérvios” ortodoxos da fronteira com a Albânia. Os primeiros dos povos balcânicos a se insurgir no século XIX foram os sérvios, sob o comando do heroico bandoleiro e comerciante de porcos, Jorge, o Negro (1760-1817), mas a fase inicial de sua revolta (1804-1807) não era sequer contra o domínio turco, e sim, pelo contrário, justamente a favor do sultão contra os abusos dos governantes locais. Pouco há na história inicial das rebeliões montanhesas dos Bálcans ocidentais que sugira que os sérvios, os albaneses, os gregos e outros não teriam, no século XIX, ficado satisfeitos com um tipo de principado autônomo não nacional como o que o poderoso sátrapa Ali Paxá, o Leão de Janina (1741-1822), estabeleceu por certo tempo no Épiro.
Em um e somente em um caso, a perene luta dos pastores de ovelhas e dos heróis-bandoleiros contra qualquer governo efetivo se fundiu com as ideias do nacionalismo da classe média e da Revolução Francesa: na luta grega pela independência (1821-1830). Portanto, não foi por acaso que a Grécia se tornou o mito inspirado dos nacionalistas e liberais de todo o mundo. Pois somente na Grécia todo um povo se insurgiu contra o opressor de uma maneira que poderia ser identificada de forma plausível com a causa da esquerda europeia; e, por sua vez, o apoio da esquerda europeia, encabeçada pelo poeta Byron, que lá morreu, foi uma considerável ajuda para a conquista da independência grega.
A maioria dos gregos era muito semelhante aos outros esquecidos camponeses-guerreiros e clãs da Península Balcânica. Entretanto, uma parte formava uma classe administrativa e mercantil internacional também estabelecida em colônias ou em comunidades de minoria espalhadas por todo o Império Turco e fora dele, e a língua e os mais altos escalões da Igreja Ortodoxa, à qual pertencia a maioria dos povos balcânicos, eram gregos, a começar pelo Patriarca Grego de Constantinopla. Funcionários públicos gregos, transformados em príncipes vassalos, governavam os principados do Danúbio (a atual Romênia). Em certo sentido, todas as classes mercantis e instruídas dos Bálcans, da região do Mar Negro e do Levante, quaisquer que fossem suas origens nacionais, foram helenizadas pela própria natureza de suas atividades. Durante o século XVIII, essa helenização ocorreu mais intensamente do que antes, em grande parte devido à marcante expansão econômica que também estendeu o alcance e os contatos da diáspora grega. O novo e próspero comércio de cereais do Mar Negro levou-a até os centros de negócios italianos, franceses e britânicos e fortaleceu seus laços com a Rússia; a expansão do comércio balcânico trouxe os comerciantes gregos ou helenizados para a Europa central. Os primeiros jornais em língua grega foram publicados em Viena (1784-1812). A emigração e os deslocamentos periódicos dos camponeses rebeldes reforçaram ainda mais as comunidades de exilados. Foi entre esta diáspora cosmopolitana que as ideias da Revolução Francesa — o liberalismo, o nacionalismo e os métodos de organização política através das sociedades secretas maçônicas — lançaram raízes. Rhigas (1760-1798), o líder de um primeiro e obscuro movimento revolucionário possivelmente panbalcânico, falava francês e adaptou a Marselhesa às situações helênicas. A Philiké Hetairía, a sociedade secreta patriótica que foi a principal responsável pela revolta de 1821, foi fundada em Odessa, grande e novo porto russo exportador de cereais, em 1814.
O nacionalismo grego foi até certo ponto comparável aos movimentos de elite ocidentais. É o que explica o projeto de se fazer uma rebelião pela independência grega nos principados do Danúbio sob a liderança de magnatas gregos locais, pois as únicas pessoas que podiam ser consideradas gregas nestas miseráveis terras de servos eram lordes, bispos, comerciantes e intelectuais. É claro que o levante fracassou miseravelmente (1821). Por sorte, entretanto, a Hetairía se pusera também a arregimentar nas montanhas o anárquico mundo de heróis-bandoleiros, proscritos e chefes de clãs (especialmente no Peloponeso), e com um sucesso consideravelmente maior — pelo menos depois de 1818 — do que os cavalheiros carbonários do sul da Itália, que tentaram um proselitismo semelhante com seus bandoleiros locais, os banditi. É duvidoso que algo parecido com o nacionalismo moderno tivesse algum significado para esses bandoleiros gregos, embora muitos tivessem os seus “escreventes” — o respeito e o interesse pelo estudo de livros era uma relíquia sobrevivente do antigo helenismo — que compunham manifestos na terminologia jacobina. Se havia alguma coisa pela qual eles lutavam, esta era o antigo gênio da península, em que o papel do homem era o de tornar-se um herói, e o proscrito que fugia para as montanhas para resistir a qualquer governo e para consertar os erros dos camponeses, o ideal político geral. Os nacionalistas do tipo ocidental deram liderança e um alcance pan-helênico, em vez de meramente local, às rebeliões de homens como Kolokotrones, bandoleiro e comerciante de gado. Por seu turno, os bandoleiros produziram esta coisa única e terrível, a insurreição em massa de um povo armado.
O novo nacionalismo grego foi suficiente para conquistar a independência, embora a combinação da liderança de classe média com a desorganização dos bandoleiros e com a intervenção de uma grande potência produzisse uma destas pobres caricaturas do ideal ocidental de liberdade, que viriam a se tornar tão familiares em áreas como a América Latina. Mas teve também o resultado paradoxal de confinar o helenismo à Hellas, criando ou intensificando assim o nacionalismo latente de outros povos balcânicos. Enquanto o fato de ser grego fora apenas pouco mais do que a habilitação profissional do cristão ortodoxo balcânico alfabetizado, a helenização progrediu. Quando passou a significar o apoio político à Hellas, ela retrocedeu, mesmo entre as classes alfabetizadas balcânicas assimiladas. Neste sentido, a independência grega foi a condição preliminar essencial para a evolução de outros nacionalismos balcânicos.
Fora da Europa, é difícil falar de nacionalismo. As muitas repúblicas latino-americanas que substituíram os velhos impérios espanhol e português (para sermos exatos, o Brasil se tornou uma monarquia independente e assim permaneceu de 1816 a 1889), com suas fronteiras frequentemente refletindo pouco mais do que a distribuição das propriedades dos nobres que tinham apoiado essa ou aquela rebelião local, começaram a adquirir interesses políticos estáveis e aspirações territoriais. O ideal pan-americano original de Simon Bolívar (1783-1830) na Venezuela e San Martin (1778-1850) na Argentina foi impossível de realizar, embora persistisse como uma poderosa corrente revolucionária em todas as regiões unidas pela língua espanhola, exatamente como o panbalcanismo, o herdeiro da unidade ortodoxa contra a islâmica, persistiu e pode ainda persistir hoje em dia. A grande extensão e variedade do continente, a existência de focos de rebelião independentes no México (que deram origem à América Central), na Venezuela e em Buenos Aires, e o especial problema do centro do colonialismo espanhol no Peru, que foi libertado a partir de fora, impunham uma fragmentação automática. Mas as revoluções latino-americanas foram obra de pequenos grupos de aristocratas, soldados e elites afrancesadas “evoluídas”, deixando a massa da passiva população branca, católica e pobre, e dos índios indiferente ou hostil. Só no México a independência foi conquistada pela iniciativa de um movimento de massa agrário, isto é, indígena, que marchou sob a bandeira da Virgem de Guadalupe; e por isso o México trilhou desde então um caminho diferente e politicamente mais avançado do que o resto da América Latina continental. Entretanto, mesmo entre a minúscula camada dos latino-americanos politicamente decisivos, seria anacrônico falarmos nesse período de algo mais que o embrião da “consciência nacional” colombiana, venezuelana, equatoriana etc.
Mas algo parecido com um protonacionalismo existia em vários países da Europa oriental, embora paradoxalmente tenha tomado o rumo do conservadorismo em vez da rebelião nacional. Os eslavos se achavam oprimidos em toda parte, exceto na Rússia e em algumas fortalezas selvagens dos Bálcans, mas na sua perspectiva imediata os opressores eram, como vimos, não os monarcas absolutos, mas os proprietários de terras alemães e magiares e os exploradores urbanos. E o seu nacionalismo não dava nenhuma margem para a existência nacional eslava: mesmo um programa tão radical como o dos Estados Unidos Alemães, proposto pelos republicanos e democratas de Baden, sudoeste da Alemanha, previa a inclusão de uma república Ilíria (isto é, croata e eslovena) com capital na italiana Trieste, uma república morávia com capital em Olomuc, e uma república boêmia com sede em Praga.10 Logo, a esperança imediata dos nacionalistas eslavos estava nos imperadores da Áustria e da Rússia. Várias versões da solidariedade eslava expressavam a orientação russa e atraíam os rebeldes eslavos — até mesmo os poloneses antirrussos —, especialmente em tempos de derrota e de desesperança, como depois do fracasso dos levantes em 1846. O “ilirianismo” na Croácia e um nacionalismo tcheco moderado expressavam a tendência austríaca, e ambos recebiam apoio deliberado dos Habsburgo, de quem dois dos mais importantes ministros — Kolowrat e o chefe do sistema policial, Sedlnitzky — eram tchecos. As aspirações culturais croatas foram protegidas na década de 1830 e, em 1840, Kolowrat chegou a propor o que mais tarde viria a ser tão útil na Revolução de 1848, a designação de um interventor militar croata (ban) como chefe da Croácia, e com controle sobre a fronteira militar com a Hungria, como um contrapeso aos exaltados magiares.11 Portanto, ser um revolucionário em 1848 equivalia virtualmente a se opor às aspirações nacionais eslavas, e o tácito conflito entre as nações progressistas e reacionárias contribuiu em muito para condenar as revoluções de 1848 ao fracasso.
Nada que se pareça com nacionalismo pode ser descoberto em outras regiões, pois não existiam as condições sociais para isto. De fato, quando muito, as forças que mais tarde viriam a produzir o nacionalismo estavam neste estágio em oposição à aliança da tradição, da religião e da pobreza das massas que produziu a mais poderosa resistência ao abuso dos conquistadores e exploradores ocidentais. Os elementos de uma burguesia local que surgiram em países asiáticos o fizeram à sombra dos exploradores estrangeiros de quem dependiam e eram em grande parte agentes ou intermediários: a comunidade parse de Bombaim é um exemplo. Mesmo que o asiático instruído e “esclarecido” não fosse um comprador ou um funcionário de menor importância de algum governo ou companhia estrangeira (uma situação não diferente daquela da diáspora grega na Turquia), sua primeira tarefa política era a de se ocidentalizar — isto é, introduzir as ideias da Revolução Francesa e da modernização técnica e científica contra a resistência unida de governantes e governados tradicionais (situação não diferente daquela dos cavalheiros jacobinos do sul da Itália). Portanto, ele estava duplamente afastado de seu povo. A mitologia nacionalista tem frequentemente obscurecido este divórcio, em parte pela supressão do elo entre o colonialismo e as primeiras classes médias nativas, em parte por atribuir às mais antigas resistências contra o estrangeiro as cores de um movimento nacionalista posterior. Mas, na Ásia, nos países islâmicos e, mais ainda, na África, a união entre as elites “evoluídas” e o nacionalismo, e entre ambos e as massas só viria a ocorrer no século XX.
O nacionalismo no Oriente foi, portanto, um produto, enfim, da influência e da conquista ocidental. Este elo é talvez mais evidente no país plenamente oriental em que foram implantados os princípios do que viria a se tornar o primeiro movimento nacionalista moderno das colônias:d o Egito. A conquista de Napoleão introduziu as ideias, os métodos e as técnicas ocidentais, cujos valores foram logo reconhecidos por um hábil e ambicioso soldado local, Mohammed Ali (Mehemet Ali). Tendo conseguido o poder e a virtual independência da Turquia no confuso período que se seguiu à retirada dos franceses, e com o apoio francês, Mohammed Ali partiu para estabelecer um despotismo eficiente e ocidentalizante com ajuda técnica estrangeira (principalmente francesa). Nas décadas de 1820 e 1830, os esquerdistas europeus exaltaram esse autocrata esclarecido e colocaram seus serviços à sua disposição quando a reação em seus próprios países parecia por demais desanimadora. A extraordinária seita dos saint-simonianos, oscilando entre a defesa do socialismo e do desenvolvimento industrial promovido por engenheiros e investimentos bancários, deu-lhe temporariamente um auxílio coletivo e elaborou os seus planos de desenvolvimento econômico (sobre esses planos, veja o Capítulo 13-2). Assim foram eles também que lançaram a dotação para o Canal de Suez (construído pelo saint-simoniano Lesseps), iniciando a dependência fatal dos governantes egípcios de grandes empréstimos negociados por grupos competidores de trapaceiros europeus, que transformaram o Egito em um centro de rivalidade imperialista e, mais tarde, de rebelião anti-imperialista. Mas Mohammed Ali não era mais nacionalista do que qualquer outro déspota oriental. Sua ocidentalização, não as suas aspirações ou as de seu povo, foi que lançou as bases para o nacionalismo posterior. Se o Egito teve o primeiro movimento nacionalista do mundo islâmico e Marrocos um dos últimos, foi porque Mohammed Ali (por razões geopolíticas perfeitamente compreensíveis) estava enquadrado nos principais caminhos da ocidentalização, enquanto o isolado Império Muçulmano do leste da África (um xerifado, como se autointitulava) não estava nem fez qualquer tentativa para estar. O nacionalismo, como tantas outras características do mundo moderno, é filho da revolução dupla.