CAPÍTULO 15
A CIÊNCIA
Jamais nos esqueçamos que muito antes de nós, as ciências e a filosofia combateram os tiranos. Seus constantes esforços fizeram a revolução. Como homens livres e gratos, devemos estabelecê-las entre nós e para sempre cuidar delas com devoção, pois as ciências e a filosofia manterão a liberdade que conquistamos.
De um membro da Convenção 1
“Os problemas da ciência”, comentava Goethe, “são com grande frequência problemas de carreira. Uma única descoberta pode tornar um homem famoso e lançar o princípio de sua fortuna como cidadão. (...) Todo fenômeno observado pela primeira vez é uma descoberta, e toda descoberta é uma propriedade. Mexa-se na propriedade de um homem e logo suas paixões vêm à tona.”
Diálogos com Eckermann, 21 de dezembro de 1823
1
Traçar um paralelo entre as artes e as ciências é sempre perigoso, pois as relações entre cada uma delas e a sociedade em que vicejam são muito diferentes. Mas as ciências também refletiram na sua marcha a revolução dupla, em parte porque esta lhes colocou novas e específicas exigências, em parte porque lhes abriu novas possibilidades e confrontou-as com novos problemas, e em parte porque sua própria existência sugeria novos padrões de pensamento. Não desejo deduzir disso que a evolução das ciências entre 1789 e 1848 possa ser analisada exclusivamente em termos dos movimentos da sociedade que as rodeavam. A maior parte das atividades humanas tem sua lógica interna, que determina ao menos uma parte de seu movimento. O planeta Netuno foi descoberto em 1846, não porque algo alheio à astronomia encorajasse seu descobrimento, mas porque as tabelas de Bouvard, em 1821, demonstraram que a órbita do planeta Urano, descoberto em 1781, apresentava inesperados desvios dos cálculos, e por volta do fim da década de 1830, estes desvios tinham-se tornado maiores experimentalmente atribuídos a distúrbios produzidos por algum corpo celeste desconhecido, e vários astrônomos começaram a calcular a posição deste corpo. Contudo, mesmo o mais apaixonado crente na imaculada ciência pura é consciente de que o pensamento científico pode ser influenciado por questões alheias ao campo específico de uma disciplina. Os cientistas, até mesmo o mais antimundano dos matemáticos, vivem em um mundo mais vasto que o de suas especulações. O progresso da ciência não é um simples avanço linear, cada estágio determinando a solução de problemas anteriormente implícitos ou explícitos nele, e por sua vez colocando novos problemas. Este avanço também acontece pela descoberta de novos problemas, de novas maneiras de abordar os antigos, de novas maneiras de enfrentar ou solucionar velhos problemas, de campos de investigação inteiramente novos, de novos instrumentos práticos e teóricos de investigação. Em todo ele há um grande espaço para o estímulo ou a formação do pensamento através de fatores externos. Se, de fato, a maioria das ciências em nosso período tivesse avançado de uma simples forma linear — como foi o caso da astronomia, que permaneceu substancialmente dentro da sua estrutura newtoniana —, tais considerações poderiam não ser muito importantes. Mas, como veremos, nosso período foi de novos pontos de partida radicais em alguns campos do pensamento (como na matemática), do despertar de ciências até então adormecidas (como a química), da virtual criação de novas ciências (como a geologia), e da injeção de novas ideias revolucionárias em outras ciências (como as ciências sociais e biológicas).
Como aconteceu com todas as demais forças externas ao desenvolvimento da forma científica, as exigências diretas feitas aos cientistas pelo governo ou pela indústria estavam entre as menos importantes. A Revolução Francesa mobilizou-os colocando o geômetra e engenheiro Lazare Carnot à frente do esforço de guerra jacobino o matemático e físico Monge (ministro da Marinha em 1792-1793) e uma equipe de matemáticos e químicos à frente da produção bélica, como antes havia encarregado o químico e economista Lavoisier do preparo de uma estimativa da renda nacional. Aquela foi, talvez, a primeira ocasião na História em que o cientista enquanto tal fez parte do governo, embora isto tenha sido de maior importância para o governo do que para a ciência. Na Grã-Bretanha, as principais indústrias de nosso período foram as têxteis de algodão, as do carvão, do ferro, das ferrovias e da construção de navios mercantes. As habilidades revolucionárias foram as de homens empíricos, talvez demasiadamente empíricos. O herói da revolução da ferrovia britânica foi George Stephenson, que não era culto do ponto de vista científico, mas um intuitivo que adivinhava as possibilidades de uma máquina: um superartesão mais que um técnico. As tentativas de cientistas como Babbage para tornarem os conhecimentos úteis às ferrovias, ou de engenheiros como Brunel para estabelecê-los sobre bases racionais, e não simplesmente empíricas, não deram resultado.
Por outro lado, a ciência se beneficiou tremendamente com o surpreendente estímulo dado à educação científica e técnica, e com o menos surpreendente apoio dado à investigação durante nosso período. Aqui a influência da revolução dupla é bastante clara. A Revolução Francesa transformou a educação técnica e científica de seu país, principalmente devido à criação da Escola Politécnica (1795) — que pretendia ser uma escola para técnicos de todas as especialidades — e do primeiro esboço da Escola Normal Superior (1794), que seria firmemente estabelecida como parte de uma reforma geral da educação secundária e superior feita por Napoleão. Também fez renascer a definhante Academia Real (1795) e criou, no Museu Nacional de História Natural (1794), o primeiro centro genuíno de pesquisa fora das ciências físicas. A supremacia mundial da ciência francesa durante a maior parte de nosso período se deveu quase certamente a estas importantes fundações, notadamente à Politécnica, um turbulento centro do jacobinismo e liberalismo que atravessou todo o período pós-napoleônico, e um incomparável criador de grandes matemáticos e físicos. A Escola Politécnica teve imitadores em Praga, Viena e Estocolmo, em São Petersburgo e Copenhague, em toda a Alemanha e Bélgica, em Zurique e Massachusetts, mas não na Inglaterra. O choque da Revolução Francesa também sacudiu a letargia educacional da Prússia, e a nova Universidade de Berlim (1806-1810), fundada como parte do despertar prussiano, tornou-se o modelo da maioria das universidades alemãs que, por sua vez, criariam o padrão das instituições acadêmicas em todo o mundo. Uma vez mais, nenhuma reforma deste tipo se deu na Grã-Bretanha, onde a revolução política nada ganhou nem conquistou. Mas a imensa riqueza do país, que tornava possível a criação de laboratórios particulares como o de Henry Cavendish e o de James Joule, e a pressão geral das pessoas inteligentes da classe média por uma educação técnica e científica obteve bons resultados. O Conde de Rumford, um peripatético aventureiro ilustrado, fundou a Instituição Real em 1799. Sua fama entre os leigos baseava-se principalmente em suas famosas conferências públicas, mas sua verdadeira importância reside nas facilidades únicas para a ciência experimental que concedeu a Humphry Davy e Michael Faraday. Foi, de fato, um primeiro exemplo do laboratório de pesquisa. Associações para o progresso da ciência, como a Sociedade Lunar de Birmingham e a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, mobilizaram a ajuda dos industriais nas províncias: John Dalton, fundador da teoria atômica, saiu desta última sociedade. Em Londres, os radicais benthamitas fundaram (ou melhor, assumiram o controle e modificaram) o Instituto dos Mecânicos de Londres — atualmente Birkbeck College — como uma escola para técnicos, a Universidade de Londres como uma alternativa para a sonolência de Oxford e Cambridge, e a Associação Britânica para o Progresso da Ciência (1831) como uma alternativa para o torpor aristocrático da degenerada Sociedade Real. Não eram fundações destinadas a acalentar a busca do conhecimento puro por si mesmo, já que este tipo de instituição demorou mais a surgir. Mesmo na Alemanha, o primeiro laboratório universitário de pesquisa química (o de Liebig, em Giessen) não foi instalado até 1825. Seria desnecessário dizer que sua inspiração foi francesa. Havia instituições para formar técnicos, como na França e na Grã-Bretanha, professores, como na França e na Alemanha, ou para criar na juventude um espírito de serviço a seu país.
A era revolucionária, portanto, fez crescer o número de cientistas e eruditos e estendeu a ciência em todos os seus aspectos. E ainda mais, viu o universo geográfico das ciências se alargar em duas direções. Em primeiro lugar, o progresso do comércio e o processo de exploração abriram novos horizontes do mundo ao estudo científico e estimularam o pensamento sobre eles. Um dos maiores gênios científicos de nosso período, Alexandre von Humboldt (1769-1859), contribuiu primordialmente desta forma para o progresso da ciência: como um incansável viajante, observador e teórico nos campos da geografia, etnografia e história natural, embora sua nobre síntese de todo o conhecimento, a obra Cosmos (1845-1859), não possa ser definida dentro dos limites de disciplinas particulares.
Em segundo lugar, o universo das ciências se ampliou para abraçar países e povos que até então só tinham dado contribuições insignificantes. A lista de grandes cientistas de, digamos, 1750, contém muito poucos que não sejam franceses, britânicos, alemães, italianos e suíços. Mas a lista menor dos grandes matemáticos da primeira metade do século XIX contém o nome de Henrik Abel da Noruega, de Janos Bolyai da Hungria e de Nikolai Lobachevsky da remota cidade de Kazan. Aqui, mais uma vez, a ciência parece refletir a ascensão das culturas nacionais fora da Europa ocidental, o que é também um surpreendente produto da era revolucionária. Este elemento nacional na expansão das ciências se refletiu, por seu turno, no declínio do cosmopolitismo que havia sido tão característico das pequenas comunidades científicas dos séculos XVII e XVIII. A era da itinerante celebridade internacional que, como Euler, viajou da Basileia a São Petersburgo, e daí para Berlim, voltando à corte de Catarina a Grande, passou com os velhos regimes. Daí em diante, o cientista permaneceria dentro de sua área linguística, exceto para pequenas visitas, comunicando-se com seus colegas através dos jornais especializados, tão típicos produtos deste período: as Atas da Real Sociedade (1831), as Comptes Rendus de l’Academie des Sciences (1837), as Atas da Sociedade Filosófica Americana (1838), ou as novas revistas especializadas tais como a Journal fur Reine und Angewandte Mathematick, de Crelle, ou os Anais de Química e Física (1797).
2
Antes que possamos julgar a natureza do impacto da revolução dupla sobre as ciências, seria conveniente analisar brevemente o que aconteceu com elas. No todo, as clássicas ciências físicas não foram revolucionadas, isto é, permaneceram substancialmente dentro dos termos de referência estabelecidos por Newton, ou continuando as linhas de pesquisa já seguidas no século XVIII ou expandindo as antigas descobertas fragmentárias e coordenando-as em sistemas teóricos mais amplos. Assim, o mais importante dos novos campos abertos, e o único que teve imediatas consequências tecnológicas, foi o da eletricidade, ou melhor, o do eletromagnetismo. Cinco datas importantes — quatro delas em nosso período — marcam seu progresso decisivo: 1786, quando Galvani descobriu a corrente elétrica; 1799, quando Volta construiu sua bateria; 1800, quando a eletrólise foi descoberta; 1820, quando Oersted descobriu a conexão entre eletricidade e magnetismo; 1831, quando Faraday estabeleceu as relações entre todas estas forças, e por acaso se viu como o pioneiro de um enfoque da física (em termos de “campos”, em vez de impulsos mecânicos) que se antecipava à era moderna. A mais importante das novas sínteses teóricas foi a descoberta das leis da termodinâmica, isto é, das relações entre calor e energia.
A revolução que transformou a astronomia e a física em ciências modernas ocorrera no século XVII; a que criou a química estava em pleno desenvolvimento no início de nosso período. De todas as ciências, esta foi a mais íntima e imediatamente ligada à prática industrial, especialmente aos processos de tingimento e branqueamento da indústria têxtil. Além do mais, seus criadores foram não só homens práticos, ligados a outros homens práticos, como Dalton na Sociedade Filosófica e Literária de Manchester e Priestley na Sociedade Lunar de Birmingham, como também, algumas vezes, revolucionários políticos, embora moderados. Dois deles foram vítimas da Revolução Francesa: Priestley, nas mãos da turba conservadora do partido Tory, por simpatizar excessivamente com ela, e o grande Lavoisier na guilhotina, por não simpatizar o suficiente, ou melhor, por ser um grande homem de negócios.
A química, como a física, foi proeminentemente uma ciência francesa. Seu verdadeiro fundador, Lavoisier (1743-1794), publicou o seu fundamental Tratado elementar de química no próprio ano da Revolução, e a inspiração para os avanços químicos, e especialmente a organização da pesquisa química em outros países — mesmo naqueles que viriam a ser mais tarde os principais centros da pesquisa química, como a Alemanha — foi primeiramente francesa. Os principais avanços antes de 1789 consistiram em estabelecer uma ordem elementar no emaranhado de experiências empíricas, através da elucidação de certos processos químicos fundamentais, tais como a combustão, e de alguns elementos fundamentais, como o oxigênio. Também trouxeram uma medição quantitativa precisa e um programa de ulteriores investigações. O conceito crucial de uma teoria atômica, fundada por Dalton (1803-1810), tornou possível a invenção da fórmula química, e com isto a abertura do estudo da estrutura química, ao que se seguiu uma abundância de novos resultados experimentais. No século XIX, a química viria a ser uma das mais vigorosas de todas as ciências, e consequentemente foi uma ciência que atraiu, como acontece com todo assunto dinâmico, uma massa de homens capazes. Entretanto, a atmosfera e os métodos da química continuaram em grande parte a ser os mesmos do século XVIII.
A química teve, entretanto, uma implicação revolucionária: a descoberta de que a vida podia ser analisada em termos das ciências inorgânicas. Lavoisier descobriu que a respiração é uma forma de combustão do oxigênio. Woehler descobriu, em 1828, que um composto até então só encontrado em coisas vivas — a ureia — podia ser sintetizado no laboratório, abrindo, assim, o vasto e novo campo da química orgânica. Ainda assim, apesar de haver sido superado o grande obstáculo para o progresso — a crença de que a matéria viva obedecia a leis naturais fundamentalmente diferentes da matéria inerte — nem o estudo da mecânica nem o da química permitiram ao biólogo avançar muito. O avanço mais fundamental da biologia neste período, a descoberta feita por Schleiden e Schwann de que todas as coisas vivas eram compostas de multiplicidades de células (1838-1839), estabeleceu uma espécie de equivalente da teoria atômica para a biologia, mas uma biofísica e uma bioquímica maduras ainda estavam muito longe.
Uma revolução ainda mais profunda mas, pela própria natureza do assunto, menos óbvia do que a ocorrida na química, se deu em relação à matemática. Contrariamente à física, que continuou dentro dos termos de referência do século XVII, e à química, que respirava forte através da porta aberta no século XVIII, a matemática em nosso período entrou em um universo inteiramente novo, muito além do universo dos gregos, que ainda dominava a aritmética e a geometria plana, e daquele do século XVII que dominava a análise. Poucos, exceto os matemáticos, apreciarão a profundidade da inovação trazida para a ciência pela teoria das funções de complexos variáveis (Gauss, Cauchy, Abel, Jacobi), da teoria dos grupos (Cauchy, Galois) ou dos vetores (Hamilton). Mas até mesmo o leigo é capaz de compreender o alcance da revolução pela qual o russo Lobachevsky (1826-1829) e o húngaro Bolyai (1831) derrubaram a mais permanente das certezas intelectuais, a geometria euclidiana. Toda a majestosa e inabalável estrutura da lógica euclidiana se apoiava em certas suposições, uma das quais, o axioma de que as paralelas nunca se encontram, não é nem evidente nem comprovável. Hoje em dia pode parecer elementar construir uma geometria igualmente lógica com base em alguma outra suposição, por exemplo (Lobachevsky, Bolyaj) de que uma infinidade de paralelas a qualquer linha L pode passar pelo ponto P; ou (Riemann) de que nenhuma linha paralela à linha L passa pelo ponto P, tanto mais quanto podemos construir superfícies reais às quais estas regras se aplicam. (Assim, a terra, na medida em que é um globo, se adapta às suposições riemannianas e não às euclidianas.) Mas chegar a estas suposições no início do século XIX era um ato de audácia intelectual comparável a colocar o Sol e não a Terra no centro do sistema planetário.
3
A revolução matemática passou despercebida, exceto para alguns especialistas em assuntos notórios por sua distância da vida cotidiana. A revolução nas ciências sociais, por outro lado, não podia deixar de abalar o leigo, já que o afetava visivelmente, em geral — segundo se acreditava — para pior. Os eruditos e amantes das ciências nos romances de Thomas Love Peacock estão geralmente banhados de simpatia ou de um ridículo afetuoso, não acontecendo o mesmo com os economistas e propagandistas da Steam Intellect Society.
Para sermos precisos, houve duas revoluções cujos cursos convergem para produzir o marxismo como a mais abrangente síntese das ciências sociais. A primeira delas, que dava continuidade ao brilhante pioneirismo dos racionalistas dos séculos XVII e XVIII, estabelecia o equivalente das leis físicas para as populações humanas. Seu primeiro triunfo foi a construção de uma sistemática teoria dedutiva de economia política, que já estava bastante avançada por volta de 1789. A segunda delas, que em substância pertence a nosso período e está intimamente ligada ao Romantismo, foi a descoberta da evolução histórica (veja também o Capítulo 13-1 e 2).
A ousada inovação dos racionalistas clássicos havia sido demonstrar que algo como leis logicamente compulsórias era aplicável à consciência e ao livre-arbítrio humano. As “leis da economia política” eram deste tipo. A convicção de que eram tão distantes do gostar e do desgostar quanto as leis da gravidade (com as quais eram constantemente comparadas) emprestava uma impiedosa certeza aos capitalistas do início do século XIX, e tendia a imbuir seus oponentes românticos de um antirracionalismo igualmente selvagem. Em princípio, os economistas, é claro, estavam certos, embora exagerassem muito a universalidade dos postulados sobre os quais baseavam suas deduções, a capacidade de “outras coisas” permanecerem “iguais” e também, às vezes, suas próprias capacidades intelectuais. Se a população de uma cidade se duplica e o número de habitações não cresce, então, permanecendo as outras coisas iguais, os aluguéis devem subir, queiram ou não. Proposições deste tipo constituíam a força dos sistemas de raciocínio dedutivo criados pela economia política, principalmente na Grã-Bretanha, embora também, em menor grau de intensidade, nos velhos centros de ciências do século XVIII, a França, a Itália e a Suíça. Como vimos, o período que vai de 1776 a 1830 assistiu ao triunfo desta economia política (veja o Capítulo 13-1). Ela foi suplementada pela primeira apresentação sistemática de uma teoria demográfica que pretendia estabelecer uma relação mecânica, e virtualmente inevitável, entre as proporções matemáticas dos aumentos de população e os meios de subsistência. Ensaio sobre a população, de T. R. Malthus (1798), não era nem tão original nem tão indiscutível quanto seus defensores reivindicavam, no entusiasmo da descoberta de que alguém provara que os pobres deviam permanecer sempre pobres, e que a generosidade e a benevolência podiam fazê-los ainda mais pobres. Sua importância não está em seus méritos intelectuais, que foram moderados, mas nos direitos que ele fazia valer para um tratamento científico de um conjunto de decisões tão individuais e caprichosas quanto as decisões sexuais, consideradas um fenômeno social.
A aplicação de métodos matemáticos à sociedade deu mais um passo importante neste período. Também aqui os cientistas de língua francesa lideravam a marcha, assistidos, sem dúvida, pela soberba atmosfera matemática da educação francesa. Assim, Adolphe Quételet, da Bélgica, em sua marcante obra Sobre o homem (1835), demonstrou que a distribuição estatística das características humanas obedecia a leis matemáticas conhecidas, do que deduziu, com uma confiança considerada então excessiva, a possibilidade de assimilar as ciências sociais às ciências físicas. A possibilidade de uma generalização estatística sobre as populações humanas e o estabelecimento de firmes prognósticos sobre essa generalização haviam sido antecipados pelos teóricos da probabilidade (o ponto de partida de Quételet nas ciências sociais), e por homens práticos que eram obrigados a confiar nela, como no caso das companhias de seguro. Mas Quételet e o grupo de florescentes estatísticos contemporâneos, antropometristas e pesquisadores sociais aplicaram estes métodos a campos bem mais amplos e criaram o que ainda é a principal ferramenta matemática para a investigação de fenômenos sociais.
Estes desenvolvimentos nas ciências sociais foram revolucionários da mesma maneira que a química: seguindo os avanços já realizados teoricamente. Mas as ciências sociais também tiveram algo inteiramente novo e original a seu crédito, que por sua vez fertilizou as ciências biológicas e até mesmo as físicas, como no caso da geologia. Foi a descoberta da História como um processo de evolução lógica, e não simplesmente como uma sucessão cronológica de acontecimentos. Os elos desta inovação com a revolução dupla são tão óbvios que não precisam ser explicados. Assim, o que veio a se chamar sociologia (a palavra foi inventada por Augusto Comte por volta de 1830) nasceu diretamente da crítica ao capitalismo. O próprio Comte, que normalmente é considerado fundador daquela disciplina, começou sua carreira como secretário particular do pioneiro socialista utópico, o Conde de Saint-Simon,a e o mais formidável teórico contemporâneo em matéria sociológica, Karl Marx, considerava sua teoria primordialmente como um instrumento para a mudança do mundo.
A criação da História como uma matéria acadêmica talvez seja o aspecto menos importante desta historiografia das ciências sociais. É verdade que uma epidemia de historiadores tomou conta da Europa na primeira metade do século XIX. Raramente tantos homens se propuseram a interpretar seu mundo escrevendo relatos de muitos volumes a respeito do passado dos vários países, às vezes pela primeira vez: Karamzin, na Rússia (1818-1824), Geijer, na Suécia (1832-1836), Palacky, na Boêmia (1836-1867), são os fundadores da historiografia de seus países. Na França, o ímpeto para entender o presente através do passado era particularmente forte, e a própria Revolução logo se tornou assunto de intensos e partidários estudos de Thiers (1823, 1843), Mignet (1824), Buonarroti (1828), Lamartine (1847) e do grande Jules Michelet (1847-1853). Foi o período heroico da historiografia, mas sobreviveu muito pouco da obra de Guiwt, Augustin Thierry e Michelet na França, do dinamarquês Niebuhr e do suíço Sismondi, de Hallam, Lingard e Carlyle na Grã-Bretanha, e de inúmeros professores alemães, exceto como documento histórico, como literatura ou ocasionalmente como registro de um gênio.
Os resultados mais duradouros deste despertar histórico se deram no campo da documentação e da técnica histórica. Colecionar relíquias do passado, escritas ou não, se transformou em uma paixão universal. Talvez, em parte, fosse uma tentativa de salvaguardá-las contra os ataques do presente, embora o nacionalismo provavelmente fosse seu mais importante estímulo: em nações até então adormecidas, os historiadores, os lexicógrafos e os colecionadores de canções folclóricas foram muitas vezes os verdadeiros fundadores da consciência nacional. E foi assim que os franceses criaram sua École des Chartes em 1821, os ingleses, o Departamento de Registros Públicos em 1838, e os alemães começaram a publicar a Monumental História Alemã, em 1826, enquanto a doutrina de que a história devia se basear na escrupulosa avaliação dos documentos originais era lançada pelo prolífico Leopold von Ranke (1795-1886). Enquanto isso, como vimos no Capítulo 14, os linguistas e os folcloristas produziam os dicionários fundamentais de seus idiomas e as coletâneas de tradições orais de seus povos.
A inserção da história nas ciências sociais teve seus efeitos mais imediatos no direito, onde Friedrich Karl von Savigny fundou a escola histórica de jurisprudência, em 1815; no estudo da teologia, em que a aplicação de critérios históricos — notadamente no Leben Jesu (1835) de D. F. Strauss — horrorizava os fundamentalistas; mas especialmente em uma ciência totalmente nova, a filologia. Esta ciência também se desenvolveu primeiramente na Alemanha, que era de longe o mais vigoroso centro de difusão de estudos históricos. O fato de que Karl Marx fosse alemão não é meramente casual. O ostensivo estímulo para a filologia era a conquista de sociedades não europeias pela Europa. As investigações pioneiras de Sir William Jones em relação ao sânscrito, em 1786, foram o resultado da conquista de Bengala pelos britânicos; a decifração dos hieróglifos por Champollion (seu principal trabalho sobre o assunto foi publicado em 1824) foi o resultado da expedição de Napoleão ao Egito; a elucidação de Rawlinson da escrita cuneiforme (1835) refletiu a ubiquidade dos oficiais coloniais britânicos. Mas, de fato, a filologia não se limitava à descoberta, descrição e classificação. Nas mãos de grandes eruditos alemães, principalmente, como Franz Bopp (1791-1867) e os irmãos Grimm, tornou-se a segunda ciência social propriamente dita, isto é, a segunda a descobrir leis genéricas aplicáveis a um campo aparentemente tão caprichoso como o da comunicação humana. (A primeira foi a economia política.) Porém, contrariamente às leis da economia política, as da filologia eram fundamentalmente históricas, ou melhor, evolutivas.b
Seu fundamento foi a descoberta de que uma vasta série de idiomas, os indo-europeus, se relacionava uns com os outros; ao que se acrescentou o fato evidente de que toda língua europeia escrita tinha sido completamente transformada com o decorrer dos séculos e presumivelmente ainda estava sofrendo modificações. O problema não se constituía simplesmente em provar e classificar estas relações mediante comparação científica, tarefa que estava então sendo empreendida a fundo (por exemplo, na anatomia comparada, por Cuvier). Era também, e principalmente, elucidar sua evolução histórica a partir do que deveria ter sido um ancestral comum. A filologia foi a primeira ciência que considerou a evolução como sua verdadeira essência. Desde logo teve sorte porque a Bíblia é relativamente silenciosa quanto à história das línguas, ao passo que, como sabem os biólogos e os geólogos, é muito explícita em relação à criação e à história primitiva do mundo. Consequentemente, o filólogo estava menos propenso a ser afogado pelas águas do Dilúvio ou derrubado pelos obstáculos do Gênesis I do que seus infelizes colegas. Pelo menos a afirmação bíblica de que “toda a terra usava a mesma língua e a mesma fala” estava do seu lado. Mas a filologia também teve a sorte de que, de todas as ciências sociais, era a única que não lidava diretamente com seres humanos — que sempre se ressentem com a sugestão de que suas ações são determinadas por algo que não seja seu livre-arbítrio —, mas que se ocupava de palavras, que não se ofendem por isto. Consequentemente, estava livre para enfrentar o que ainda é o problema fundamental das ciências históricas, qual seja, como investigar e descobrir a origem da imensa variedade, frequentemente caprichosa, de indivíduos existentes na vida real, a partir do funcionamento de leis genéricas invariáveis.
Os filólogos pioneiros, na verdade, não avançaram muito quanto à explicação das mudanças linguísticas, embora o próprio Bopp já tivesse proposto uma teoria sobre a origem das inflexões gramaticais. Mas, de fato, estabeleceram uma espécie de árvore genealógica para as línguas indo-europeias. Fizeram uma série de generalizações indutivas a respeito das proporções relativas de mudança nos diferentes elementos linguísticos, e algumas generalizações históricas de grande alcance, como a “Lei de Grimm” (que demonstrou que todas as línguas teutônicas sofreram certas alterações consonantais e, vários séculos mais tarde, um grupo de dialetos teutônicos sofreram uma outra mudança semelhante). Entretanto, durante aquelas explorações pioneiras, nunca duvidaram de que a evolução das línguas não era simplesmente uma questão de estabelecer uma sequência cronológica ou registrar mudanças, mas que esta evolução devia ser explicada por leis gerais da linguística, análogas às leis científicas.
4
Os biólogos e os geólogos tiveram menos sorte. Também para eles a História se constituía o principal problema, embora o estudo da terra estivesse (através da mineração) intimamente ligado à química, e o estudo da vida (através da medicina), intimamente relacionado à fisiologia, e (através da crucial descoberta de que os elementos químicos existentes nas coisas vivas eram os mesmos existentes na natureza inorgânica) à química. Porém, para o geólogo, os problemas mais óbvios envolviam a história: por exemplo, a explicação da distribuição de terra e água, de montanhas e, acima de tudo, a formação das camadas terrestres.
Se o problema histórico da geologia era o de como explicar a evolução da terra, o do biólogo era duplo: como explicar a formação da vida desde o ovo, a semente ou o esporo, e como explicar a evolução das espécies. Ambos estavam unidos pela prova evidente dos fósseis, dos quais uma seleção particular podia ser encontrada em determinada camada terrestre e não em outra. Um engenheiro inglês, William Smith, descobriu, na década de 1790, que a sucessão histórica das camadas podia mais convenientemente ser datada pelos seus fósseis característicos, lançando assim luz sobre ambas as ciências por meio das operações de escavação da revolução industrial.
O problema fora tão óbvio que já se haviam feito tentativas para criar teorias de evolução, notadamente para o mundo animal, pelo elegante zoólogo, embora às vezes precipitado, Comte de Buffon (Les Époques de la Nature, 1778). Na década da Revolução Francesa, estas teorias ganharam terreno rapidamente. O reflexivo James Hutton, de Edinburgo (Teoria da Terra, 1795), e o excêntrico Erasmus Darwin, que brilhava na Sociedade Lunar de Birmingham e escrevia parte de sua obra científica em versos (Zoonomia, 1794), publicaram teorias evolutivas bastante completas sobre a terra, as plantas e a espécie animal. Laplace, em 1796, antecipado pelo filósofo Immanuel Kant, desenvolveu também uma teoria evolucionista do sistema solar, e Pierre Cabanis, mais ou menos na mesma época, considerou as próprias faculdades mentais do homem produto de sua história evolutiva. Em 1809, Lamarck, da França, propôs a primeira teoria moderna e sistemática da evolução, baseada na herança de caracteres adquiridos.
Nenhuma destas teorias obteve triunfo. Na verdade, logo enfrentaram a apaixonada resistência dos “tories” da Quarterly Review, cuja “adesão à causa da revelação é tão decisiva”.2 O que aconteceria ao Dilúvio e à Arca de Noé? O que aconteceria com a distinta criação das espécies, para não mencionar o homem? O que aconteceria, sobretudo, com a estabilidade social? Não só os simples sacerdotes e os menos simples políticos se preocupavam com estas perguntas. O grande Cuvier, fundador do estudo sistemático dos fósseis (Recherches sur les ossements fossiles, 1812), rejeitava a evolução em nome da Providência Divina. Seria melhor até mesmo imaginar uma série de catástrofes na história geológica, seguida por uma série de recriações divinas — era difícil considerar a mudança geológica distinta da mudança biológica —, do que intrometer-se com a rigidez da Sagrada Escritura e de Aristóteles. O infeliz Dr. Lawrence, que respondeu a Lamarck propondo uma teoria quase darwiniana da evolução pela seleção natural, foi forçado pelo protesto dos conservadores a retirar sua obra História natural do homem (1819) de circulação. Ele havia sido suficientemente imaturo para não só discutir a evolução do homem, mas também para enfatizar as consequências de suas ideias para a sociedade contemporânea. Sua retratação preservou seu emprego, assegurou sua carreira futura e perturbou para sempre sua consciência, que tranquilizava adulando os corajosos impressores radicais que, de tempos em tempos, publicavam ilegalmente sua obra incendiária.
Só na década de 1830 — quando a política dera outra guinada para a esquerda — foi que as amadurecidas teorias da evolução irromperam na geologia, com a publicação da famosa obra de Lyell, Princípios de Geologia (1830-1833), que pôs fim à resistência dos netunistas, que sustentavam, com a Bíblia, que todos os minerais haviam surgido das soluções aquosas que em certa época cobriram a terra (cf. Gênesis I, 7-9), e dos “catastrofistas”, que seguiam a desesperada linha de argumentação de Cuvier.
Na mesma década, Schmerling, pesquisando na Bélgica, e Boucher de Perthes, que felizmente preferia seu hobby de arqueologia a seu cargo de diretor da alfândega de Abbeville, previram algo ainda mais alarmante: a descoberta dos fósseis do homem pré-histórico, cuja possibilidade havia sido acaloradamente negada.c Mas o conservadorismo científico ainda foi capaz de rejeitar aquela terrível possibilidade alegando a falta de provas definitivas, até a descoberta do homem de Neanderthal, em 1856.
Não havia outra alternativa a não ser aceitar que: (a) as causas agora em movimento tinham, no transcurso do tempo, transformado a terra de seu estado primitivo para o presente estado; (b) que isto levara um tempo muito maior do que se podia deduzir das Escrituras; (c) que a sucessão de camadas geológicas revelava uma sucessão de formas animais que implicava uma evolução biológica. Bastante significativamente, os que aceitaram esta ideia prontamente, e na verdade demonstraram o maior interesse no problema da evolução, foram os autoconfiantes leigos radicais das classes médias britânicas (sempre com exceção do egrégio Dr. Andrew Ure, mais conhecido por seus hinos de louvor ao sistema fabril). Os cientistas foram lentos na aceitação da ciência. Este fato é menos surpreendente se nos lembrarmos de que a geologia era a única ciência deste período suficientemente cavalheiresca (talvez porque era praticada ao ar livre, de preferência em dispendiosas “viagens geológicas”) para ser seriamente estudada nas Universidades de Oxford e Cambridge.
A evolução biológica, entretanto, ainda engatinhava. Só bem depois da derrota das revoluções de 1848 foi que este explosivo assunto voltou a ser examinado. Mesmo então, Charles Darwin teve muito cuidado e ambiguidade ao manejá-lo. Até mesmo a investigação paralela da evolução através da embriologia diminuiu temporariamente. Aqui também os primeiros filósofos especuladores alemães, como Johann Meckel, de Halle (1781-1833), tinham sugerido que durante o seu crescimento o embrião de um organismo recapitulava a evolução de sua espécie. Porém esta “lei biogenética”, embora a princípio apoiada por homens como Rathke, que descobriu que os embriões de pássaros atravessam um estágio no qual têm guelras (1829), foi rejeitada pelo notável Von Baer, de Koenigsberg e S. Petersburgo — a fisiologia experimental parece ter exercido uma grande atração sobre os investigadores das áreas eslavônias e bálticasd —, e esta linha de pensamento não foi revivida até o advento do darwinismo.
Enquanto isso, as teorias da evolução tinham feito surpreendentes progressos no estudo da sociedade. Ainda assim, não devemos exagerar este progresso. O período da revolução dupla pertence à pré-história de todas as ciências sociais, com exceção da economia política, da linguística e talvez da estatística. Até mesmo o seu mais formidável empreendimento, a coerente teoria da evolução social de Marx e Engels era, nesta época, pouco mais que uma brilhante suposição publicada em um soberbo panfleto — ou usada como base para o relato histórico. A firme construção de bases científicas para o estudo da sociedade humana não teria lugar até a segunda metade do século.
O mesmo ocorreria nos campos da antropologia ou etnografia social, da pré-história, da sociologia e da psicologia. É importante o fato de que estes campos de estudo foram batizados em nosso período, ou de que reivindicações para considerar cada um deles uma ciência peculiar com suas características próprias foram então formuladas. John Stuart Mill, em 1843, foi talvez o primeiro a reivindicar este status para a psicologia. O fato de que sociedades etnológicas especiais foram fundadas na França e na Inglaterra (1839, 1843) para estudar “as raças do homem” é igualmente significativo, como o é a multiplicação de investigações sociais através de meios estatísticos e de sociedades estatísticas entre 1830 e 1848. Porém as “instruções gerais aos viajantes” da Sociedade Etnológica Francesa que os compelia a “descobrir o que as memórias dos povos têm preservado de suas origens (...) o que as revoluções têm significado em seu idioma ou costumes, em sua arte, ciência e riqueza, seu poder ou governo, através de causas internas ou de invasão estrangeira”3 não passam de um programa, embora profundamente histórico. De fato, o que importa a respeito das ciências sociais em nosso período são menos os seus resultados (embora se acumulasse um considerável material descritivo) do que sua firme predisposição materialista, expressa em uma determinação de explicar as diferenças sociais humanas em termos do meio ambiente, e seu comprometimento igualmente firme em relação à evolução. Em 1787 não havia Chavannes definido a nascente etnologia como “a história do progresso dos povos em direção à civilização”?4
Um obscuro subproduto deste desenvolvimento inicial das ciências sociais deve, contudo, ser mencionado rapidamente: as teorias da raça. A existência de diferentes raças (ou melhor, cores) de homens tinha sido muito discutida no século XVIII, quando o problema de uma criação única ou múltipla do homem preocupava também aos espíritos de reflexão. A fronteira entre monogenistas e poligenistas não era simples. O primeiro grupo reunia defensores da evolução e da igualdade humana, com homens que consideravam que, sobre este ponto, a ciência não era conflitante com a Escritura: os pré-darwinianos Prichard e Lawrence, ao lado de Cuvier. O segundo grupo incluía não só cientistas de boa-fé, mas também racistas e escravagistas provenientes do sul dos Estados Unidos. Estas discussões a respeito das raças produziram uma viva explosão de antropometria, principalmente baseada na coleção, classificação e medida de crânios, prática também encorajada pelo estranho hobby contemporâneo da frenologia, que tentava determinar o caráter a partir da configuração do crânio. Na Grã-Bretanha e na França, as sociedades frenológicas foram fundadas em 1823 e 1832, respectivamente, embora o assunto logo tenha sido abandonado pela ciência.
Ao mesmo tempo, uma mistura de nacionalismo, radicalismo, história e observação de campo introduziram o igualmente perigoso tópico das permanentes características raciais ou nacionais na sociedade. Na década de 1820, os irmãos Thierry, historiadores e revolucionários franceses, tinham-se lançado ao estudo da Conquista Normanda e dos gauleses, que se reflete na proverbial frase dos manuais escolares franceses Nos ancêtres les Gaulois e nos maços azuis de cigarros Gauloise. Como bons radicais, mantinham o ponto de vista de que o povo francês descendia dos gauleses, os aristocratas dos teutões que os conquistaram, argumentação que mais tarde seria usada com fins conservadores por etnógrafos da classe alta, como o Conde de Gobineau. A crença de que uma linhagem racial específica sobrevivia — ideia defendida com compreensível zelo por um naturalista galês, W. Edwards, em favor dos celtas — se encaixava admiravelmente em uma época em que os homens pretendiam descobrir a romântica e misteriosa individualidade de suas nações para reivindicar missões messiânicas para elas se fossem revolucionários, ou para atribuir sua riqueza e poderio a uma “superioridade inata”. (Em troca, não demonstravam qualquer tendência a atribuir a pobreza e a opressão a uma inferioridade inata.) Porém, para atenuar a responsabilidade destes homens, deve-se dizer que os piores abusos das teorias racistas ocorreram após o final de nosso período.
5
Como podemos explicar estes desenvolvimentos científicos? Como, particularmente, relacioná-los com as outras mudanças históricas da revolução dupla? É evidente que há correlações óbvias. Os problemas teóricos da máquina a vapor levaram o brilhante Sadi Carnot, em 1824, ao mais fundamental insight da física do século XIX, as duas leis da termodinâmica (Reflexions sur la puissance motrice du feue), embora não fossem as únicas aproximações do problema. O grande avanço da geologia e da paleontologia devia-se em grande parte ao zelo com que os engenheiros e construtores industriais retalhavam a terra e a grande importância da mineração. Não foi por acaso que a Grã-Bretanha se transformou no país geológico por excelência, instituindo um órgão nacional para a Pesquisa Geológica em 1836. A análise dos recursos minerais deu aos químicos inúmeros compostos inorgânicos para seu estudo; a mineração, a cerâmica, a metalurgia, as artes têxteis, as novas indústrias de iluminação a gás e de produtos químicos, assim como a agricultura estimularam seus trabalhos. E o entusiasmo da sólida burguesia radical britânica e da aristocracia whig, não só em relação à pesquisa aplicada, mas também em relação aos ousados avanços no campo do conhecimento, que assustavam a própria ciência oficial, é prova suficiente de que o progresso científico de nosso período não pode ser separado dos estímulos da revolução industrial.
Do mesmo modo, as implicações científicas da Revolução Francesa são evidentes na aberta ou dissimulada hostilidade à ciência com que os políticos conservadores ou moderados encontravam o que consideravam as consequências naturais da subversão racionalista e materialista do século XVIII. A derrota de Napoleão trouxe uma onda de obscurantismo. “A matemática era a algema do pensamento humano”, dizia Lamartine, “respiro, e ela se rompe.” A luta entre uma combativa esquerda anticlerical e pró-científica, que em seus raros momentos de vitória havia erigido a maioria das instituições que permitiam aos cientistas franceses funcionar, e uma direita anticientífica, que tudo fez para eliminá-las,5 continua desde então. Com isto não queremos dizer que, na França ou em outros países, os cientistas fossem particularmente revolucionários. Alguns deles o eram, como o jovem Evariste Galois, que se lançou às barricadas em 1830, sendo perseguido como rebelde e morto em um duelo provocado por fanfarrões políticos, com a idade de 21 anos, em 1832. Gerações de matemáticos se têm alimentado das profundas ideias que ele escreveu febrilmente durante aquela que sabia ser sua última noite de vida. Por outro lado, alguns foram francamente reacionários, como o legitimista Cauchy, embora por razões óbvias a tradição da Escola Politécnica, de que era o orgulho, fosse militantemente antimonarquista. Provavelmente, a maioria dos cientistas pertencia à esquerda moderada durante o período pós-napoleônico, e alguns, especialmente nas novas nações ou nas comunidades até então apolíticas, foram forçados a aceitar importantes cargos políticos, notadamente os historiadores, os linguistas e outros cientistas com óbvias ligações com movimentos nacionais. Palacky se tornou o principal porta-voz dos tchecos em 1848, os sete professores universitários de Göttingen que assinaram uma carta de protesto em 1837 se transformaram em figuras nacionais,f e o Parlamento de Frankfurt, durante a Revolução Alemã de 1848, era notoriamente uma assembleia de professores universitários e de altos servidores civis. Por outro lado, em comparação com os artistas e filósofos, os cientistas — especialmente os cientistas naturais — demonstravam um grau muito baixo de consciência política, a menos que seus estudos ou experiências exigissem outra coisa. Fora dos países católicos, por exemplo, demonstravam uma capacidade notável para combinar a ciência com uma tranquila ortodoxia religiosa que surpreende o estudioso da era pós-darwiniana.
Tais derivações diretas explicam algumas coisas sobre o desenvolvimento científico entre 1789 e 1848, mas não muito. Os efeitos indiretos de acontecimentos contemporâneos foram claramente mais importantes. Ninguém podia deixar de notar que o mundo estava se transformando mais radicalmente nesta era do que em qualquer outra anterior. Nenhuma pessoa que usasse o raciocínio poderia deixar de estar atemorizada, abalada e mentalmente estimulada por estas convulsões e transformações. Quase não surpreende que os padrões de pensamento derivados das rápidas mudanças sociais, das profundas revoluções, da substituição sistemática de instituições tradicionais e costumeiras por inovações racionalistas radicais resultaram aceitáveis. É possível ligar este visível aparecimento da revolução com a presteza dos matemáticos antimundanos em romper com as eficientes barreiras do pensamento até então existentes? Não podemos assegurá-lo, embora saibamos que a adoção de novas linhas revolucionárias de pensamento é normalmente evitada não por sua dificuldade intrínseca, mas por seu conflito com tácitas suposições sobre o que é ou não “natural”. Os próprios termos “número irracional” (para números como ) ou “número imaginário” (para números como
) indicam a natureza da dificuldade. Uma vez que decidimos que não são nem mais nem menos racionais ou reais do que quaisquer outros, tudo fica claro. Porém, pode ser necessária toda uma era de profunda transformação para encorajar os pensadores a tomar tais decisões; e assim as variáveis complexas ou imaginárias em matemática, tratadas com confusa precaução no século XVIII, só alcançaram sua plenitude depois da revolução.
Deixando a matemática de lado, era de se esperar que os padrões retirados das transformações da sociedade tentariam os cientistas em campos aos quais tais analogias pareciam aplicáveis; por exemplo, para introduzir os dinâmicos conceitos de evolução em conceitos até então estáticos. Isto poderia ocorrer diretamente ou por intermédio de alguma outra ciência. Assim, o conceito da revolução industrial, fundamental para a História e para a maior parte da economia moderna, foi introduzido na década de 1820 como algo análogo ao de Revolução Francesa. Charles Darwin deduziu o mecanismo da “seleção natural” por analogia com o modelo da competição capitalista, que tomou de Malthus (a “luta pela existência”). A voga de teorias catastróficas em geologia (1790-1830) também pôde dever-se em parte à familiaridade daquela geração com as violentas convulsões da sociedade.
Contudo, fora das ciências mais claramente sociais, não há por que dar muito peso a estas influências externas. O mundo do pensamento é, até certo ponto, autônomo: seus movimentos, por assim dizer, se produzem dentro do mesmo histórico comprimento de onda que os movimentos de fora, mas não são simples ecos destes.
Assim, por exemplo, as catastróficas teorias da geologia também se deveram, em parte, à insistência protestante, e especialmente calvinista, na onipotência arbitrária do Senhor. Tais teorias foram, em grande parte, monopólio dos trabalhadores protestantes, tão distintos dos católicos ou agnósticos. Se no campo das ciências se produzem movimentos paralelos aos de outros campos, não é porque cada uma delas possa conectar-se de maneira simples a um aspecto correspondente da política ou da economia.
Ainda assim, as ligações são difíceis de serem negadas. As principais correntes do pensamento geral em nosso período têm sua correspondência no especializado campo da ciência, o que nos habilita a estabelecer um paralelismo entre as ciências e as artes ou entre ambas e as atitudes político-sociais. Assim, o “classicismo” e o “romantismo” existiram também nas ciências e, como já vimos, cada um se ajustava a um enfoque particular da sociedade humana. A adequação do classicismo (ou, em termos intelectuais, o universo newtoniano, racionalista e mecanicista, do Iluminismo) com o ambiente do liberalismo burguês, e do Romantismo (ou, em termos intelectuais, a chamada “filosofia natural”) com seus oponentes, é obviamente de extrema simplificação, e se rompe por completo depois de 1830. Ainda assim, representa um certo aspecto da verdade. Até que a ascensão de teorias como o socialismo moderno tivessem firmemente ancorado o pensamento revolucionário ao passado racionalista (veja o Capítulo 13), ciências tais como a física, a química e a astronomia marcharam com o liberalismo burguês franco-britânico. Por exemplo, os revolucionários plebeus do Ano II estavam inspirados por Rousseau e não por Voltaire, e suspeitavam de Lavoisier (a quem executaram) e de Laplace, não só devido a suas ligações com o velho regime, mas por razões semelhantes àquelas que levaram o poeta William Blake a denunciar Newton.g Reciprocamente, a “história natural” era adequada, pois representava a estrada para a espontaneidade da verdadeira e incorruptível natureza. A ditadura jacobina, que dissolveu a Academia Francesa, fundou nada menos que 12 cadeiras de pesquisa no Jardin des Plantes. Da mesma forma ocorreu na Alemanha, onde o liberalismo clássico era fraco (veja o Capítulo 13): uma ideologia científica rival à clássica — a “filosofia natural” — foi mais popular.
É fácil subestimar a “filosofia natural”, porque ela entra em conflito com o que viemos acertadamente considerando como ciência. A “filosofia natural” era especulativa e intuitiva. Buscava expressar o espírito do mundo ou da vida, da misteriosa união orgânica de todas as coisas com as demais, e de muitas outras coisas que resistiam a uma precisa aferição quantitativa ou a uma clareza cartesiana. De fato, estava em aberta revolta contra o materialismo mecânico, contra Newton, e às vezes contra a própria razão. O grande Goethe gastou uma considerável quantidade de seu precioso tempo tentando desmentir a ótica de Newton, pela simples razão de que não se sentia feliz com uma teoria que deixava de explicar as cores pela interação dos princípios da luz e da escuridão. Uma aberração de tal ordem nada causaria senão dolorosa surpresa na Escola Politécnica, onde a persistente preferência dos alemães pelo confuso Kepler, com sua carga de misticismo, em detrimento da lúcida perfeição dos Principia era incompreensível. O que se poderia compreender desta passagem de Lorenz Oken?
A ação ou a vida de Deus consiste em manifestar-se e contemplar-se eternamente na unidade e na dualidade, dividindo-se externamente e ainda assim permanecendo uno. (...) A polarização é a primeira força que aparece no mundo. (...) A lei da causalidade é uma lei de polarização. A causalidade é um ato de geração. O sexo está enraizado no primeiro movimento do mundo. (...) Em tudo, portanto, há dois processos, um individualizador, vitalizante, e outro universalizador, destrutivo.6
O que fazer com tal filosofia? A total incompreensão de Bertrand Russell em relação a Hegel, que operava nestes termos, é um bom exemplo da resposta do racionalista do século XVIII a esta pergunta retórica. Por outro lado, o débito que Marx e Engels reconheceram ter francamente com a filosofia naturalh nos adverte que não se pode considerá-la como simples verborragia. A verdade é que exercia certa influência. E produziu não só um esforço científico — Lorenz Oken fundou a liberal Deutsche Naturforscherversammlung e inspirou a Associação Britânica para o Progresso da Ciência — mas também resultados frutíferos. A teoria celular em biologia, muito da morfologia, embriologia, filologia e muito do elemento histórico e evolutivo em todas as ciências foram primordialmente de inspiração “romântica”. Mas até mesmo em seu campo predileto — a biologia — o “romantismo” teve finalmente de ser substituído pelo frio classicismo de Claude Bernard (1813-1878), fundador da fisiologia moderna. Por outro lado, mesmo nas ciências físico-químicas, que continuaram a ser a fortaleza do “classicismo”, as especulações dos filósofos naturais sobre assuntos tão misteriosos como a eletricidade e o magnetismo trouxeram importantes avanços. Em Copenhague, Hans Christian Oersted, discípulo do nebuloso Schelling, buscou e encontrou a ligação entre ambas as forças quando demonstrou o efeito magnético das correntes elétricas em 1820. Ambas as tentativas de aproximação às ciências, de fato, se misturavam, mas quase nunca se fundiam, nem mesmo em Marx, que conhecia perfeitamente as origens intelectuais de seu pensamento. No todo, o caminho “romântico” serviu como um estímulo para novas ideias e pontos de partida, que foram posteriormente e mais uma vez abandonados pela ciência. Mas em nosso período não pode ser desprezado.
Se não pode ser menosprezado como um estímulo puramente científico, menos ainda pode sê-lo pelo historiador de ideias e opiniões, na medida em que até mesmo as ideias falsas e absurdas são fatos e forças históricas. Não podemos subestimar um movimento que captou ou influenciou homens do mais alto calibre intelectual, como Goethe, Hegel e o jovem Marx. Podemos simplesmente buscar compreender a profunda insatisfação com o “clássico” ponto de vista franco-britânico do século XVIII a respeito do mundo, cujos grandes empreendimentos na ciência e na sociedade foram inegáveis, mas cuja estreiteza e limitações foram também terrivelmente evidentes no período das duas revoluções. Estar consciente destes limites e buscar, frequentemente através da intuição e não da análise, os termos com que se poderia construir um quadro mais satisfatório do mundo não era realmente construí-lo. Nem as visões de um universo evolutivo, interligado e dialético, que os filósofos naturais expressavam, eram provas ou mesmo formulações adequadas. Porém refletiam problemas reais — até mesmo problemas reais nas ciências físicas — e antecipavam as transformações e ampliações do mundo das ciências que vieram a produzir nosso moderno universo científico. A seu modo, refletiam também o impacto da revolução dupla, que não deixou qualquer aspecto da vida humana inalterado.