CAPÍTULO 5
A PAZ
O atual concerto (das potências) é sua única segurança perfeita contra a brasa revolucionária mais ou menos espalhada por todos os Estados da Europa, e (...) a verdadeira sabedoria é reprimir as pequenas disputas corriqueiras e se unir em defesa dos princípios estabelecidos da ordem social.
Castlereagh 1
L’empereur de Russie est de plus le seul souverain parfaitement en état de se porter des à présent aux plus vastes entreprises. Il est à la tête de la seule armée vraiment disponible qui soit aujourd’hui formée en Europe.a
Gentz, 24 de março de 1818 2
Após mais de vinte anos de guerras e revoluções quase ininterruptas, os velhos regimes vitoriosos enfrentaram os problemas do estabelecimento e da preservação da paz, que foram particularmente difíceis e perigosos. Os escombros das duas décadas tinham de ser varridos, e a pilhagem territorial, redistribuída. E, além do mais, era evidente para todos os estadistas inteligentes que não se toleraria daí por diante outra guerra de grandes proporções na Europa, pois este tipo de guerra quase que certamente significaria uma nova revolução e a consequente destruição dos velhos regimes. “No atual estado de doença social da Europa”, disse o rei Leopoldo da Bélgica (tio da rainha Vitória, sábio embora um tanto enfadonho) a propósito de uma crise posterior, “seria inconcebível declarar(...) uma guerra total. Tal guerra(...) certamente traria um conflito de princípios e, pelo que sei a respeito da Europa, penso que tal conflito mudaria sua forma e jogaria por terra toda a sua estrutura”.3 Os reis e os estadistas não eram mais sábios nem tampouco mais pacíficos do que antes. Mas inquestionavelmente estavam mais assustados.
Foram também inusitadamente bem-sucedidos. De fato, não houve nenhuma guerra total na Europa, nem qualquer conflito armado entre duas grandes potências, da derrota de Napoleão à Guerra da Crimeia, em 1854-1856. Na verdade, exceto pela Guerra da Crimeia, não houve nenhuma guerra que envolvesse mais do que duas grandes potências entre 1815 e 1914. O cidadão do século XX teria mesmo que apreciar a magnitude desse sucesso, que foi ainda mais impressionante porque a cena internacional estava longe de ser tranquila, sendo muitas as ocasiões para um conflito. Os movimentos revolucionários (que consideraremos no Capítulo 6) destruíram repetidas vezes a estabilidade internacional duramente obtida: na década de 1820, notadamente no sul da Europa, nos Bálcans e na América Latina; depois de 1830, na Europa ocidental (principalmente na Bélgica); e novamente às vésperas da Revolução de 1848. O declínio do Império Turco, ameaçado duplamente pela dissolução interna e pelas ambições das grandes potências — principalmente a Grã-Bretanha, a Rússia e até certo ponto a França —, fez da chamada “Questão Oriental” uma causa permanente de crise: na década de 1820 ela brotou na Grécia; na década de 1830, no Egito, e, embora se acalmasse após um conflito particularmente acirrado em 1838-1841, permaneceu potencialmente tão explosiva quanto antes. A Grã-Bretanha e a Rússia mantinham péssimas relações devido ao Oriente Próximo e ao território sem qualquer jurisdição entre os dois impérios na Ásia. A França estava longe de se sentir conformada com uma posição muito mais modesta do que a que ocupara antes de 1815. Ainda assim, a despeito de todos esses obstáculos e redemoinhos, as naus da diplomacia atravessaram sem colisão um oceano de dificuldades.
Nossa geração, que fracassou bem mais espetacularmente na fundamental tarefa da diplomacia internacional, qual seja, a de evitar guerras generalizadas, tendeu, portanto, a analisar os estadistas e os métodos de 1815-1848 com um respeito que seus sucessores imediatos nem sempre sentiram. Talleyrand, que presidiu a política externa francesa de 1814 a 1835, continua sendo o modelo de diplomata francês até os dias de hoje. Vistos em retrospecto, Castlereagh, George Canning e Viscount Palmerston, que foram secretários para assuntos estrangeiros da Grã-Bretanha respectivamente em 1812-1822, 1822-1827 e em todas as administrações não conservadoras de 1830 a 1852, adquiriram uma estatura enganadora de gigantes diplomáticos. O príncipe Metternich, o principal ministro da Áustria durante todo o período desde a derrota de Napoleão até sua própria queda em 1848, é hoje visto menos frequentemente como um simples inimigo rígido de qualquer mudança e mais como um sábio mantenedor da estabilidade do que acontecia à sua época. Entretanto, mesmo uma visão de fé tem sido incapaz de detectar ministros do Exterior ideais na Rússia de Alexandre I (1801-1825) e de Nicolau I (1825-1855) ou na Prússia, relativamente insignificante no período que focalizamos.
Em certo sentido, o elogio é justificável. A estabilização da Europa após as Guerras Napoleônicas não foi mais justa nem moral do que qualquer outra, mas, dado o propósito inteiramente antiliberal e antinacional (isto é, antirrevolucionário) de seus organizadores, ela foi realista e sensata. Não foi feita qualquer tentativa para se tirar partido da vitória total sobre os franceses, que não deviam ser provocados para não sofrerem um novo ataque de jacobinismo. As fronteiras do país derrotado ficaram com uma pequena diferença para melhor em relação ao que tinham sido em 1789; a compensação financeira da vitória não foi excessiva, a ocupação pelas tropas estrangeiras teve pouca duração e, por volta de 1818, a França era readmitida como membro integrante do “concerto da Europa”. (Não fosse o malsucedido retorno de Napoleão em 1815 e estes termos teriam sido até mesmo mais moderados.) Os Bourbon foram reconduzidos ao poder, mas ficou entendido que eles tinham que fazer concessões ao perigoso espírito de seus súditos. As principais mudanças da Revolução foram aceitas, e aquele excitante instrumento, a Constituição, lhes foi garantido — embora, é claro, de uma maneira extremamente moderada — sob a máscara de uma Carta “livremente concedida” pelo ressuscitado monarca absoluto, Luís XVIII.
O mapa da Europa foi redelineado sem se levarem conta as aspirações dos povos ou os direitos dos inúmeros príncipes destituídos pelos franceses, mas com considerável atenção para o equilíbrio das cinco grandes potências que emergiam das guerras: a Rússia, a Grã-Bretanha, a França, a Áustria e a Prússia. Destas, somente as três primeiras contavam. A Grã-Bretanha não tinha ambições territoriais no continente, embora preferisse manter o controle ou a sua mão protetora sobre assuntos de importância comercial e marítima. Ela reteve Malta, as Ilhas Jônicas e a Heligolândia, manteve a Sicília sob cuidadosa vigilância e se beneficiou mais evidentemente com a transferência da Noruega do domínio dinamarquês para o sueco, o que evitou que um único Estado controlasse a entrada do Mar Báltico, e com a União da Holanda e da Bélgica (anteriormente chamadas de Países Baixos austríacos), que colocou a embocadura do Reno e do Scheldt nas mãos de um Estado inofensivo, mas bastante forte — especialmente quando auxiliado pelas fortalezas do sul — para resistir ao conhecido apetite francês pela Bélgica. Ambos os arranjos foram profundamente impopulares entre os belgas e os noruegueses, e o último deles só durou até a Revolução de 1830, quando foi substituído, após alguns atritos franco-britânicos, por um pequeno reino permanentemente neutro governado por um príncipe escolhido pelos ingleses. Fora da Europa, é claro, as ambições territoriais britânicas eram muito maiores, embora o controle total de todos os mares pela marinha inglesa tornasse em grande parte irrelevante o fato de que qualquer território estivesse realmente sob a bandeira inglesa ou não, exceto nos confins do noroeste da Índia, onde somente principados caóticos ou regiões fracas separavam os impérios russo e britânico. Mas a rivalidade existente entre a Grã-Bretanha e a Rússia pouco afetou a área que tinha que ser reapaziguada em 1814-1815. Na Europa, os interesses britânicos não necessitavam de qualquer poder para serem muito fortes.
A Rússia, a decisiva potência militar terrestre, satisfez suas limitadas ambições territoriais através da aquisição da Finlândia (à custa da Suécia), da Bessarábia (à custa da Turquia) e da maior parte da Polônia, à qual foi assegurada uma certa autonomia sob o comando da facção local que sempre fora a favor da aliança com os russos. (Após a insurreição de 1830-1831, esta autonomia foi abolida.) O resto da Polônia foi distribuído entre a Prússia e a Áustria, com exceção da cidade-república de Cracóvia, que por sua vez não sobreviveu à insurreição de 1846. No mais, a Rússia sentia-se satisfeita em exercer uma hegemonia remota, embora longe de ser ineficaz, sobre todos os principados absolutos a leste da França, e seu principal interesse era evitar a revolução. O czar Alexandre patrocinou uma aliança sagrada com este objetivo, à qual se juntaram a Polônia e a Áustria, ficando a Grã-Bretanha de fora. Do ponto de vista britânico, esta virtual hegemonia russa sobre a maior parte da Europa era um acordo menos que ideal, embora refletisse as realidades militares e não pudesse ser evitada exceto concedendo-se à França um poderio bem maior do que qualquer de seus adversários anteriores estava disposto a dar, ou ao custo intolerável da guerra. O status francês de grande potência era claramente reconhecido, mas isso era tudo.
A Áustria e a Prússia eram realmente grandes potências só por cortesia, ou assim se acreditava — corretamente — em vista da conhecida fraqueza austríaca em tempos de crise internacional e — incorretamente — em vista do colapso da Prússia em 1806. Sua principal função era a de atuar como estabilizadores europeus. A Áustria recebeu de volta suas províncias italianas, além dos antigos territórios venezianos na Itália e na Dalmácia, e o protetorado sobre os principados menores do norte e do centro da Itália, a maioria deles governados por parentes dos Habsburgo (exceto o principado de Piemonte-Sardenha, que absorveu a antiga República Genovesa para atuar como um parachoque mais eficiente entre a Áustria e a França). Se se tivesse que manter a “ordem” em qualquer parte da Itália, a Áustria era o policial de serviço. Visto que seu único interesse era a estabilidade — tudo o mais arriscava a sua desintegração —, nela se podia confiar para uma atuação como salvaguarda permanente contra quaisquer tentativas de desorganizar o continente. A Prússia se beneficiou através do desejo britânico de ter um poderio razoavelmente forte na Alemanha Ocidental (região onde os principados tinham de há muito tendido a acompanhar a França ou que poderiam ser dominados por ela) e recebeu a Renânia, cujas imensas potencialidades econômicas os diplomatas aristocráticos deixaram de reconhecer. Ela também se beneficiou com o conflito entre a Grã-Bretanha e a Rússia sobre o que os britânicos consideravam uma excessiva expansão russa na Polônia. O resultado líquido das complexas negociações, entremeadas de ameaças de guerra, foi que a Prússia concedeu parte de seus antigos territórios poloneses à Rússia, mas recebeu metade da rica e industrializada Saxônia. Em termos econômicos e territoriais, a Prússia lucrou relativamente mais com a organização de 1815 do que qualquer outra potência, e de fato tornou-se pela primeira vez uma grande potência europeia em termos de recursos reais, embora este fato não tivesse se tornado evidente para os políticos até a década de 1860. A Áustria, a Prússia e o rebanho de Estados alemães menores, cuja principal função internacional era fornecer um bom estoque de criação para as casas reais da Europa, vigiavam-se mutuamente dentro da Confederação Alemã, embora a ascendência da Áustria não fosse desafiada. A principal função internacional da Confederação era manter os Estados menores fora da órbita francesa, na qual eles tradicionalmente tendiam a gravitar. Apesar do repúdio nacionalista, estavam longe de se sentir infelizes como satélites napoleônicos.
Os estadistas de 1815 foram bastante inteligentes para saber que nenhum acordo, não obstante quão cuidadosamente elaborado, resistiria com o correr do tempo à pressão das rivalidades estatais e das circunstâncias mutáveis. Consequentemente, trataram de elaborar um mecanismo para a manutenção da paz — isto é, resolvendo todos os problemas maiores à medida que eles surgissem — por meio de congressos regulares. Claro, entendia-se que as cruciais decisões nesses congressos fossem tomadas pelas “grandes potências” (o próprio termo é uma invenção deste período). O “concerto da Europa” — outro termo que surgiu então — não correspondia por exemplo a uma ONU, mas sim aos membros permanentes do seu Conselho de Segurança. Entretanto, os congressos regulares só foram mantidos por alguns anos — de 1818, quando a França foi oficialmente readmitida no concerto, até 1822.
O sistema de congressos ruiu porque não pôde sobreviver aos anos imediatamente posteriores às guerras napoleônicas, quando a fome de 1816-1817 e depressões nos negócios mantiveram um vivo mas injustificável temor de revolução social em toda parte, inclusive na Grã-Bretanha. Após a volta da estabilidade econômica por volta de 1820, todo distúrbio dos acordos de 1815 simplesmente revelava as divergências entre os interesses das potências. Diante do primeiro ataque de intranquilidade e insurreição em 1820-1822, só a Áustria agarrou-se ao princípio de que todos estes movimentos deviam ser imediata e automaticamente suprimidos em nome dos interesses da ordem social (e da integridade territorial austríaca). As três monarquias da “Sagrada Aliança” e a França entraram em acordo a respeito da Alemanha, da Itália e da Espanha, embora a França, exercendo com prazer a função de policial internacional na Espanha (1823), estivesse menos interessada na estabilidade europeia do que em aumentar o campo de suas atividades militares e diplomáticas, particularmente na Espanha, Bélgica e Itália, onde se encontrava o grosso de seus investimentos estrangeiros.4
A Grã-Bretanha ficou de fora, em parte porque — especialmente depois que o flexível Canning substituiu o reacionário e rígido Castlereagh (1822) — estava convencida de que as reformas políticas na Europa absolutista eram mais cedo ou mais tarde inevitáveis e porque os políticos britânicos não tinham simpatia pelo absolutismo, mas também porque a aplicação do princípio de policiamento teria simplesmente trazido potências rivais (principalmente a França) para a América Latina, que era, como vimos, uma colônia econômica britânica extremamente vital. Logo, os ingleses apoiaram a independência dos Estados latino-americanos, como também o fizeram os Estados Unidos na Declaração Monroe de 1823, um manifesto que não tinha nenhum valor prático — se alguma coisa protegia a independência latino-americana, era a marinha britânica —, mas com considerável interesse profético. As potências estavam ainda mais divididas a respeito da Grécia. A Rússia, com todo o seu desgosto pelas revoluções, só podia se beneficiar com o movimento de um povo ortodoxo, que enfraquecia os turcos e devia confiar grandemente na ajuda russa. (Além do mais, ela tinha, por tratado, o direito de intervir na Turquia em defesa dos cristãos ortodoxos.) O temor de uma intervenção unilateral russa, a pressão filo-helênica, os interesses econômicos e a convicção geral de que a desintegração da Turquia era inevitável, mas podia ser, na melhor das hipóteses, organizada, finalmente levaram os ingleses da hostilidade, passando pela neutralidade, a uma intervenção informal pró-helênica. Assim, em 1829, a Grécia conquistou sua independência através da ajuda russa e britânica. O dano internacional foi minimizado com a transformação do país em um reino, que não seria um mero satélite russo, sob o comando de um dos muitos pequenos príncipes disponíveis. Mas o ajuste de 1815, o sistema de congressos e o princípio de se suprimir todas as revoluções jaziam em ruínas.
As revoluções de 1830 destruíram-nos completamente, pois elas afetaram não somente os pequenos Estados mas também uma grande potência, a França. De fato, elas retiraram toda a Europa a oeste do Reno do alcance das operações policiais da Sagrada Aliança. Enquanto isso, a “Questão Oriental” — o problema do que fazer a respeito da inevitável desintegração da Turquia — transformou os Bálcans e o Oriente em um campo de batalha das potências, notadamente a Rússia e a Grã-Bretanha. A “Questão Oriental” perturbou o equilíbrio das forças porque tudo conspirava para fortalecer os russos, cujo principal objetivo diplomático, naquela época e também mais tarde, era conquistar o controle dos estreitos entre a Europa e a Ásia Menor, que condicionavam seu acesso ao Mediterrâneo. Esta não era uma questão de importância meramente diplomática e militar mas, com o crescimento das exportações de cereais ucranianas, de urgência econômica também. A Grã-Bretanha, preocupada como de costume com as tentativas de aproximação da Índia, estava profundamente aflita a respeito da marcha para o sul de uma grande potência que poderia ameaçá-la razoavelmente. A política óbvia era escorar a Turquia a todo custo contra a expansão russa. (Isto tinha a vantagem adicional de beneficiar o comércio britânico no Oriente, que aumentou satisfatoriamente neste período.) Infelizmente esta política era totalmente impraticável. O Império Turco não era absolutamente uma massa disforme, ao menos em termos militares, mas, na melhor das hipóteses, só era capaz de sustentar ações retardatárias contra a rebelião interna (que ele ainda podia destruir com bastante facilidade) e a força conjunta da Rússia e de uma situação internacional desfavorável (que não podia enfrentar). Nem era ainda capaz de se modernizar, nem tampouco demonstrava disposição para fazê-lo, embora os princípios da modernização tivessem sido lançados no governo de Mahmoud II (1809-1839) na década de 1830. Consequentemente, só o apoio direto, diplomático e militar da Grã-Bretanha (isto é, a ameaça de guerra) podia evitar o firme aumento da influência russa e o colapso da Turquia sujeita a seus muitos problemas. Isto fez da “Questão Oriental” o mais explosivo problema em assuntos internacionais após as guerras napoleônicas, o único capaz de levar a uma guerra generalizada e o único que de fato o fez em 1854-1856. Entretanto, a própria situação que fazia com que os dados favorecessem a Rússia e prejudicassem a Grã-Bretanha também fez com que a Rússia se inclinasse a uma acomodação. Ela podia atingir seus objetivos diplomáticos de duas maneiras: ou pela derrota e divisão da Turquia e uma eventual ocupação russa de Constantinopla e dos estreitos, ou então por um virtual protetorado sobre a fraca e subserviente Turquia. Mas uma ou outra forma estaria sempre aberta. Em outras palavras, para o czar, Constantinopla não valia o esforço de uma grande guerra. Assim, na década de 1820, a guerra grega encaixava-se na política de divisão e de ocupação. A Rússia fracassou em tirar o máximo proveito dessa situação, o que poderia ter feito, mas sentia-se relutante em levar sua vantagem muito longe. Em vez disso, negociou um tratado extraordinariamente favorável em Unkiar Skelessi, em 1833, com uma Turquia pressionada, que estava agora profundamente cônscia da necessidade de um protetor poderoso. A Grã-Bretanha sentiu-se insultada: os anos da década de 1830 viram a gênese de uma russofobia em massa que criou a imagem da Rússia como uma espécie de inimigo hereditário da Grã-Bretanha.b Em face da pressão britânica, os russos por sua vez bateram em retirada, e na década de 1840 voltaram a propor a partilha da Turquia.
A rivalidade russo-britânica no Oriente era na prática, portanto, muito menos perigosa do que o choque público de sabres sugeria (especialmente na Grã-Bretanha). Além do mais, sua importância foi reduzida por um temor britânico muito maior: o do ressurgimento da França. De fato, ela é bem traduzida na expressão “o grande jogo”, que mais tarde veio a identificar as atividades de capa e espada dos aventureiros e agentes secretos de ambas as potências, que operavam nas regiões orientais sem jurisdição entre os dois impérios. O que tornou a situação realmente perigosa foi o imprevisível curso dos movimentos de libertação dentro da Turquia e a intervenção de outras potências. Destas, a Áustria teve um considerável interesse passivo no problema, sendo ela mesma um império internacional em ruínas, ameaçado pelos movimentos dos mesmíssimos povos que também minavam a estabilidade turca — os eslavos balcânicos e, notadamente, os sérvios. Entretanto, a ameaça desses movimentos não foi imediata, embora mais tarde viessem a proporcionar o estopim para a Primeira Guerra Mundial. A França era mais problemática, tendo um longo registro de influência econômica e diplomática no Oriente, que ela periodicamente tentava restaurar e aumentar. Em particular, desde a expedição de Napoleão ao Egito, a influência francesa foi poderosa naquele país, cujo paxá, Mohammed Ali, um governante virtualmente independente, tinha ambições em relação ao Império Turco. De fato, as crises da “Questão Oriental” na década de 1830 (1831-1833 e 1839-1841) foram essencialmente crises nas relações de Mohammed Ali com seu soberano nominal, complicadas no último caso pelo apoio francês ao Egito. Entretanto, se a Rússia se achava relutante em fazer uma guerra contra Constantinopla, a França não podia nem queria fazê-la. Havia crises diplomáticas. Mas no final, exceto pelo episódio da Crimeia, não houve guerra pela Turquia durante todo o século XIX.
Assim, fica claro pelo curso das disputas neste período que o material inflamável nas relações internacionais simplesmente não era explosivo o bastante para deflagrar uma guerra de grandes proporções. Das grandes potências, os austríacos e os prussianos eram muito fracos para contar muito. Os ingleses estavam satisfeitos. Por volta de 1815, eles tinham obtido uma vitória mais completa do que qualquer outra potência em toda a história mundial, tendo emergido dos vinte anos de guerra com a França como a única economia industrializada, a única potência naval — em 1840 a marinha britânica tinha quase tantos navios quanto todas as outras marinhas reunidas — e virtualmente a única potência colonial do mundo. Nada parecia atrapalhar o único grande interesse expansionista da política externa britânica, a expansão do comércio e do investimento britânicos. A Rússia, conquanto não tão saciada, tinha somente ambições territoriais limitadas, e nada havia que pudesse por muito tempo — ou pelo menos assim parecia — atrapalhar o seu avanço. Ao menos nada que justificasse uma guerra generalizada socialmente perigosa. Só a França era uma potência “insatisfeita”, e ela tinha a capacidade de romper a estável ordem social. Mas só poderia fazê-lo sob uma condição: de que mais uma vez mobilizasse as energias revolucionárias do jacobinismo, dentro do país, e de liberalismo e nacionalismo, no exterior. Pois, em termos de rivalidade ortodoxa de grandes potências, ela havia sido fatalmente enfraquecida e nunca mais seria capaz, como durante o reinado de Luís XIV ou durante a Revolução, de enfrentar uma coalizão de duas ou mais potências em pé de igualdade, dependendo somente de seus recursos e população internos. Em 1780, havia 2,5 franceses para cada inglês, mas, em 1830, a relação era de menos de três para dois. Em 1780, existiam quase tantos franceses quanto russos, mas em 1830 havia quase uma metade a mais de russos do que de franceses; e o compasso da evolução econômica francesa arrastava-se fatalmente atrás da inglesa, da americana e, em pouco tempo, da alemã.
Mas o jacobinismo era um preço muito alto para ser pago por qualquer governo francês por suas ambições internacionais. Em 1830, e novamente em 1848, quando a França derrubou seu regime e o absolutismo foi abalado ou destruído em outras partes, as potências tremeram. Elas poderiam ter evitado noites insones. Em 1830-1831, os moderados franceses eram incapazes de erguer um dedo que fosse em favor dos rebeldes poloneses, com quem toda a opinião francesa (bem como toda a opinião liberal europeia) simpatizava. “E a Polônia?”, escreveu o velho mas sempre entusiasmado Lafayette a Palmerston, em 1831. “O que fareis, o que faremos por ela?”5 Nada, era a resposta. A França poderia ter prontamente reforçado seus próprios recursos com os da revolução europeia, como de fato todos os revolucionários esperavam que ela fizesse. Mas as implicações de um tamanho salto em direção a uma guerra revolucionária assustavam os governos franceses liberal-moderados tanto quanto a Metternich. Nenhum governo francês entre 1815 e 1848 colocaria em jogo a paz geral em função de seus próprios interesses estatais.
Fora do alcance do equilíbrio europeu, é claro, nada impedia a expansão e a agressividade. De fato, embora extremamente grandes, as efetivas aquisições territoriais feitas pelas potências brancas foram limitadas. Os britânicos contentavam-se em ocupar pontos cruciais para o controle naval do mundo e para seus interesses comerciais externos, tais como o sul da África (tomada dos holandeses durante as guerras napoleônicas), o Ceilão, Singapura (que foi fundada neste período) e Hong Kong, e as exigências da campanha contra o comércio de escravos — que satisfazia duplamente as opiniões humanitárias domésticas e os interesses estratégicos da marinha britânica, que a usou para reforçar seu monopólio global — levaram-nos a manter bases ao longo da costa africana. Mas no geral, com uma exceção crucial, o ponto de vista inglês era de que um mundo aberto ao comércio britânico e a uma proteção pela marinha britânica contra intrusos mal recebidos era explorado de forma mais barata sem os custos administrativos de uma ocupação. A exceção crucial era a Índia e tudo que dissesse respeito a seu controle. A Índia tinha de ser mantida a qualquer custo, como a maioria dos livres comerciantes anticolonialistas nunca duvidaram. Seu mercado era de importância crescente (como visto anteriormente no Capítulo 2-2) e certamente sofreria, segundo se argumentava, se a Índia fosse deixada a sua própria sorte. Ela foi a chave para a abertura do Extremo Oriente, para o tráfico de drogas e outras atividades lucrativas semelhantes que os negociantes europeus desejavam empreender. Assim, a China foi aberta na Guerra do Ópio de 1839-1842. Consequentemente, entre 1814 e 1849, o tamanho do Império Britânico na Índia cresceu na proporção de dois terços do subcontinente, como resultado de uma série de guerras contra os maratas, os nepaleses, os birmaneses, os rajputs, os afegãos, os sindis e os sikhs, e a rede de influência britânica foi estendida mais para perto do Oriente Médio, que controlava a rota direta para a Índia, organizada a partir de 1840 pelos vapores da linha P e O, suplementada pela travessia por terra do istmo de Suez.
Embora a reputação russa de expansionismo fosse grande (pelo menos entre os ingleses), suas verdadeiras conquistas foram bem modestas. Neste período, o czar só conseguiu adquirir algumas faixas grandes e vazias da estepe de Kirghiz, a leste dos Urais, e algumas áreas montanhosas duramente disputadas na região do Cáucaso. Por outro lado, os Estados Unidos virtualmente conquistaram todo o seu lado oeste ao sul da fronteira do Oregon, através da insurreição e da guerra contra os desafortunados mexicanos. Já os franceses tiveram que limitar suas ambições expansionistas à Argélia, que eles invadiram com base em uma desculpa forjada, em 1830, e tentaram conquistar nos 17 anos seguintes. Em 1847, tinham conseguido liquidar a resistência.
Uma cláusula do acordo de paz internacional deve, entretanto, ser mencionada separadamente: a abolição do comércio escravagista internacional. As razões para isto foram tanto econômicas quanto humanitárias: a escravidão era revoltante e extremamente ineficaz. Além disso, do ponto de vista dos ingleses, que foram os principais defensores desse admirável movimento entre as potências, a economia de 1815-1848 não mais dependia, como no século XVIII, da venda de homens e de açúcar, mas da venda de produtos de algodão. A verdadeira abolição da escravatura veio mais lentamente (exceto, é claro, onde a Revolução Francesa já a havia exterminado). Os britânicos aboliram-na em suas colônias — principalmente nas Antilhas — em 1834, embora viessem logo a substituí-la, onde a plantação agrícola em larga escala sobreviveu pela importação de trabalhadores contratados da Ásia. Os franceses não a aboliram oficialmente até a Revolução de 1848. Em 1848, ainda havia uma grande quantidade de escravos e, consequentemente, de comércio (ilegal) de escravos no mundo.