114.

Quando senti a bala penetrar em meu coração

E então, mais uma vez subi as escadas em espiral da minha torre, mais uma vez cheguei ao parapeito mais alto do meu castelo e mais uma vez contemplei meus convidados, meus criados, meu penhasco e meu mar de águas mornas.

Os Hoenikker estavam comigo. Trancamos a porta do quarto de “Papa” e espalhamos para todos os empregados da casa que o “Papa” estava se sentindo bem melhor.

Nesse momento, os soldados construíam uma pira funerária perto do gancho. Não sabiam com que finalidade.

Havia muitos, muitos segredos naquele dia.

Gira, gira, gira.

Pensei que estava na hora de começar a cerimônia e disse a Frank para sugerir ao embaixador Horlick Minton que começasse seu discurso.

O embaixador Minton foi até o parapeito que dava para o mar, a coroa de flores do memorial ainda dentro da valise. E ele fez um excelente discurso em honra dos Cem Mártires da Democracia. Dignificou os mortos, seu país e a vida que morreu com eles dizendo “Cem Mártires da Democracia” no dialeto da ilha. Aquele fragmento de dialeto veio gracioso e fácil em seus lábios.

O resto do discurso foi proferido em inglês americano. Ele tinha uma cópia do discurso escrito – devia ser pomposo e bombástico, imagino. Contudo, quando descobriu que falaria a tão poucos, e a colegas americanos em sua maioria, deixou de lado o discurso formal.

Uma leve brisa marítima agitou seus cabelos ralos:

– Estou prestes a fazer algo impróprio a um embaixador – ele declarou. – Estou prestes a dizer a vocês como me sinto de verdade.

Talvez Minton tivesse inalado muita acetona ou talvez tivesse pressentido o que estava para acontecer com todos, menos comigo. De qualquer forma, foi um discurso claramente bokononista o que ele fez.

– Amigos, estamos aqui reunidos – ele disse – para honrar uoz Sien-ehn Marr-tieehrz dia Diemoo-craz-yía, crianças mortas, todas mortas, todas assassinadas na guerra. É normal em dias assim chamar tais crianças perdidas de homens. Não posso chamá-las de homens por um simples motivo: na mesma guerra em que morreram uoz Sien-ehn Marr-tieehrz dia Diemoo-craz-yía, meu próprio filho morreu.

“Minha alma insiste que eu não lamente por um homem, mas por uma criança.

“Não estou dizendo que as crianças não morrem como homens na guerra, se for realmente a hora delas. Para sua honra eterna e nossa eterna vergonha, elas realmente morrem como homens, tornando possível, assim, o júbilo viril nos feriados patrióticos.

“Mas isso não muda o fato de que são crianças assassinadas.

“E proponho a vocês, para prestarmos nossos sinceros respeitos às cem crianças perdidas de San Lorenzo, que passemos o dia desprezando justamente aquilo que as matou: a estupidez e a violência de toda a humanidade.

“Talvez, para manter viva a lembrança das guerras, devêssemos tirar nossas roupas, pintar o corpo de azul e grunhir como porcos, permanecendo assim durante os quatro dias. Certamente isso seria mais apropriado do que nobres discursos e exibições de bandeiras e armas polidas.

“Não quero parecer ingrato com a excelente exibição marcial que veremos em breve, e que espetáculo animado ela será…”

Olhou cada um de nós nos olhos e então disse muito gentilmente:

– E viva os espetáculos animados, digo eu.

Tivemos de nos esforçar para ouvir suas próximas palavras:

– Mas se o dia de hoje for realmente em honra de cem crianças assassinadas na guerra – ele disse –, é adequado termos um espetáculo animado neste dia? A resposta é sim, com uma condição: que nós, que celebramos, trabalhemos consciente e incansavelmente para acabar com a estupidez e a violência que vive dentro de nós mesmos e em toda a humanidade.

Ele abriu o fecho da sua valise.

– Estão vendo o que eu trouxe? – ele nos perguntou.

Abriu a valise e nos mostrou o forro escarlate e a coroa de flores dourada. A coroa era feita com arame e folhas de louro artificiais, pintada por cima com tinta spray.

A coroa de flores levava uma faixa de seda cor de creme com as palavras: “PRO PATRIA”.

Minton recitou, então, um poema de Edgar Lee Masters, tirado do livro Spoon River Anthology*, que deve ter soado incompreensível aos san lorenzanos na plateia – e também a H. Lowe Crosby e Hazel, Angela e Frank:

Eu fui um dos primeiros frutos caídos na Batalha de Missionary Ridge.

Quando senti a bala penetrar em meu coração

Desejei ter ficado em casa e ido para a prisão

Por roubar os porcos de Curl Trenary,

Em vez de fugir e me alistar no exército.

Prefiro mil vezes a prisão do condado

A jazer sob essa figura de mármore com asas,

E esse pedestal de granito

Com as palavras “Pro Patria” gravadas.

O que isso quer dizer, afinal?

– O que isso quer dizer, afinal? – repetiu o embaixador Horlick Minton. – Isso quer dizer “pela pátria”. – E acrescentou, murmurando: – Qualquer pátria.

“Esta coroa de flores que trago comigo é um presente do povo de um país para o povo de outro país. Não importa que países sejam. Pensem no povo…

“E nas crianças assassinadas em guerras…

“E em qualquer país.

“Pensem na paz.

“Pensem no amor fraternal.

“Pensem em abundância.

“Pensem no paraíso que seria este mundo se os homens fossem bondosos e sábios.

“Mesmo com homens estúpidos e violentos, este é um dia adorável. Eu, com todo o meu coração e como representante do povo amante da paz dos Estados Unidos da América, lamento que uoz Sien-ehn Marr-tieehrz dia Diemoo-craz-yí estejam mortos neste dia lindo.”

E jogou a coroa de flores do parapeito.

Ouviu-se um zumbido no ar. Os seis aviões da Força Aérea de San Lorenzo estavam vindo, agitando meu mar de águas mornas. Iam atirar nas efígies que H. Lowe Crosby chamou de “praticamente todos os inimigos da liberdade”.

* Coleção de pequenos poemas em versos livres publicada em 1915, que narra os epitáfios dos moradores da cidadezinha fictícia de Spoon River. O poema citado é o 26: “Knowlt Hoheimer”. [N. de E.]