Passaram-se seis meses curiosos – os seis meses nos quais escrevi este livro. Hazel foi bem precisa em chamar nossa pequena sociedade de família Robinson suíça, afinal, havíamos sobrevivido a uma tempestade, estávamos isolados, e a vida acabara se tornando bem fácil, na verdade. Não deixava de ter um certo charme à la Walt Disney.
Nenhuma planta ou animal havia sobrevivido, é verdade. Mas o gelo-nove preservara porcos, vacas, pequenos cervos, e pilhas de pássaros e frutas. Ou seja, era só degelar e preparar a comida quando nos apetecesse. Além disso, para engrossar a boia, havia toneladas de enlatados nas ruínas de Bolivar. E aparentemente éramos as únicas pessoas vivas em San Lorenzo.
Comida não era um problema, nem abrigo e roupas. Afinal, o clima estava sempre seco, quente e morto. Estávamos perfeitamente – e monotonamente – saudáveis. Parecia que os germes também estavam mortos, ou pelo menos haviam tirado uma soneca.
Nossa adaptação tornou-se tão satisfatória, tão complacente, que ninguém reclamou ou se admirou quando Hazel disse:
– Uma coisa boa é que não há mais mosquitos.
Ela estava sentada em um banco de três pernas, na clareira onde tinha existido a casa de Frank. Estava costurando, unindo tiras de pano vermelhas, brancas e azuis. Assim como Betsy Ross, estava fazendo a bandeira dos Estados Unidos. Ninguém cometeu a indelicadeza de dizer que o vermelho estava na verdade mais para um tom rosa de pêssego, que o azul estava mais para verde, e que as cinquenta estrelas que ela tinha recortado estavam mais para estrelas de Davi de seis pontas do que para estrelas americanas de cinco pontas.
Seu marido, que sempre fora um bom cozinheiro, acendera uma fogueira e agora preparava um ensopado fumegante em uma panela de ferro. Ele preparava toda a comida para nós, adorava cozinhar.
– Parece bom e cheira bem – comentei.
Ele piscou:
– Não matem o cozinheiro. Ele está fazendo o melhor que pode.
Ao fundo dessa agradável conversa, era possível ouvir o insistente “bi-biii” e “da-daaa” do transmissor automático de S.O.S. que Frank havia construído. O aparelho pedia ajuda dia e noite.
– Salve nossas almaaas – Hazel entoou, cantando junto com o transmissor enquanto costurava. – Salve nossas almaaas.
– E como está indo o livro? – ela me perguntou.
– Muito bem, mamãe, muito bem.
– Quando vai mostrá-lo para nós?
– Quando estiver pronto, mamãe, quando estiver pronto.
– Vários escritores famosos eram hoosiers.
– Eu sei.
– Você será mais um em uma longa, longa linhagem. – Sorriu, esperançosa. – É um livro engraçado?
– Espero que sim, mamãe.
– Adoro uma boa risada.
– Sei que adora.
– Cada um de nós é especialista em algo, tem algo a acrescentar ao outro. Você escreve livros que fazem a gente rir, Frank faz coisas científicas, o pequeno Newt pinta quadros para nós, eu costuro e Lowie cozinha.
– “Muitas mãos tornam o trabalho bem mais leve.” Um velho provérbio chinês.
– Os chineses eram bem espertos para algumas coisas.
– Sim, devemos manter essa memória viva.
– Queria ter estudado mais.
– Bem, não é algo fácil, mesmo nas condições ideais.
– Queria ter estudado mais coisas.
– Todo mundo se arrepende de algo, mamãe.
– Não adianta chorar pelo leite derramado.
– Como diria o poeta, mamãe: “De todas as palavras sobre ratos e homens, as mais tristes delas são ‘Poderia ter sido’”.*
– Isso é lindo, e muito verdadeiro.
* Vonnegut faz referência ao poema “To a Mouse”, do escocês Robert Burns, cujos versos inspiraram o escritor John Steinbeck a escrever o clássico americano Sobre ratos e homens. [N. de E.]