1. Para mim, insanidade é a perda de controle sobre o pensamento, sentimentos e emoções, levando a uma falta total de harmonia entre atitudes e valores pessoais e a uma perda de contato com a realidade.
2.Sim. Ao voltar para casa na madrugada de 27 de dezembro do ano passado, estava já tão afetado pelo álcool, que estava fora de mim. Tinha estado em uma festa de amigos, em Brasília, e, quando cheguei à casa dos meus pais, fiz muito barulho (tive um apagamento, mas eles me dizem que eu já estava gritando a quarteirões de distância, com raiva e hostilidade, para todo mundo ouvir). Fui agressivo com meu pai, cambaleei e caí, houve uma briga e muita discussão, meu filho se assustou e continuei a gritar pela janela, em voz muito alta e possante: “Odeio vocês! Odeio vocês!”. No dia seguinte não me lembrava completamente do meu comportamento, achei que meus pais tinham entrado em pânico e exagerado tudo, e, pior, achei que a história de minha agressividade com meu pai era mentira e parte de um complô para que eu me sentisse culpado e não bebesse mais. Não me lembro do que aconteceu porque devo ter voltado ao álcool assim que meus pais foram ao sítio de tarde com meu filho. Senti raiva, culpa e vergonha.// Em julho de 1987, estávamos em Porto Alegre para uma apresentação no Gigantinho (um estádio com capacidade para mais de 25 mil pessoas). Após o show, no quarto de um de nossos assessores, se reuniram todos que queriam beber e cheirar cocaína, já que a norma do hotel era a de que mulheres não podiam subir aos quartos de hóspedes masculinos sem que uma diária extra fosse paga, e muitos ali tinham ficado na mão. Entre os rapazes estava um modelo de nome C., o gaúcho que nos conseguiu a droga, e ele me interessou imediatamente. (O hotel não fazia restrição à visita de rapazes aos hóspedes masculinos, por algum motivo.)
Já armando o bote, bebi pouco, cheirei menos ainda e, vendo que a cocaína iria acabar, separei um ou dois gramas para mim (era muita quantidade). Quando a droga se foi, todos ficaram a ver navios e a festa logo murchou. Acompanhei C. até o elevador e lhe disse que tinha mais, em meu quarto, e não gostaria ele de conversar um pouco? Isso era por volta das 4h30 da manhã. Ficamos no meu quarto até as 9h a.m., insistindo em chegar a qualquer espécie de orgasmo, de todas as maneiras, o que foi impossível por causa do efeito cumulativo do álcool e da cocaína (e dos baseados, ao longo do caminho). Foram mais de quatro HORAS de masturbação mútua e sexo oral, sem resultados. Me senti frustrado mas feliz ao mesmo tempo, foi achei muito divertido na verdade. Hoje parece até hilário, mas foi insanidade mesmo. Ao voltar a Porto Alegre um ano depois, nosso encontro quase se repetiu, mas ficamos tão acanhados com a lembrança do primeiro encontro, que decidimos desistir, o que foi uma pena, porque o C. era um gato e disposto a fazer tudo. Isso é insanidade, certamente.
3. Não.
4. Racionalizar a respeito das “injustiças” do mundo, achar que Deus era uma invenção do homem (à sua própria imagem e semelhança, o que achava ridículo), confundir espiritualidade com religião, justificar os males do mundo a partir dos crimes cometidos pela Igreja, ver em Maomé um profeta-guerreiro e em Buda resignação e sofrimento, no Espiritismo uma ilusão primária, acreditar que a fé era instrumento para a repressão, escravidão e ignorância do ser humano, no Hinduísmo ver uma insalubridade doentia (templos para ratos e baratas?) — a doença me fazia sentir onipotente, autossuficiente e fechado a qualquer luz, mesmo com meu sofrimento e solidão. Achava a vida sem sentido e vazia. Não consigo especificar comportamentos ou situações, mas me sentia abandonado, vazio, com medo, raiva e desesperança, pessimista e cínico. Minha atitude era sempre a de me afogar em álcool e drogas para me entorpecer e esquecer meu horror pelo mundo.
5. Sim, ainda racionalizo demais, mas a cada dia de abstinência meu coração está se abrindo e estou começando a perceber que a razão não é tudo, e que existe uma força maior do que o ser humano tem capacidade para compreender. E já tive, neste período de abstinência, alguns momentos de harmonia comigo mesmo e com o mundo que só podem ter acontecido a partir da intervenção de um Poder Superior.
6. O Poder Superior para mim é o tempo, a vida, o amor, a amizade, o sopro de esperança presente até nos momentos mais difíceis, o mistério que me cerca, uma emoção inexplicável que faz o tempo parar, me faz me sentir muito bem e me traz um sorriso aos lábios, minha vontade de crescer e trazer luz para os meus e os outros. Na verdade, para mim, o Poder Superior não se explica por palavras. Sua existência é percebida não pelo intelecto, mas sim pelo coração. É como o vento, não se vê o vento, mas vemos as árvores em movimento, ouvimos o som e sentimos o vento no corpo. Só que o vento se explica, e o Poder Superior não. É importante para mim porque minha vida agora depende disso.
7. Procurar acreditar na vida, trabalhar minha espiritualidade, respeitar o próximo, ter esperança, ver o lado bom das coisas, compartilhar, ajudar e pedir ajuda aos outros, acreditar em mim mesmo.
8. Já no terceiro dia comecei a sentir algo diferente (era Sexta-Feira Santa). Foi a Sexta-Feira Santa mais feliz e tranquila dos últimos vinte anos, eu acho. Meu sono se regularizou, comecei a perceber vários defeitos de caráter e sentir a necessidade de trabalhá-los, e também ver que tenho muitas qualidades. Ainda não sei se utilizei a ajuda do Poder Superior conscientemente, por isso é difícil ser específico. O que parece é que o Poder Superior se manifestou sem que eu me desse conta disso; só com a sensação de plenitude e tranquilidade inexplicável é que passava a imaginar que era do Poder Superior a razão para esta harmonia (que vai e volta de repente) — e isso só depois de tentar explicar o motivo por estar me sentindo tão confiante e sem medo. Não consegui achar uma explicação lógica várias vezes, então só pode ter sido por causa de uma força maior, fora de mim, o mistério primeiro e eterno. E isso se deu a partir do meu TEMPO interior, não sei especificar momentos, datas, atitudes. É uma sensação de satisfação plena, sem ligação com coisas e ideias — estou sentindo um pouco disso agora.
9. Entendi que a única saída para o alcoólatra é o caminho espiritual. A melhor coisa que um bêbado conhecido pode fazer é se tornar um alcoólatra anônimo, e para isso o único caminho é seguir os doze passos e aceitar a espiritualidade e o Poder Superior como guia e fonte de esperança e luz — o que estou pouco a pouco e cada vez mais aprendendo. Reaprendendo, na verdade, porque a doença destruiu o meu lado espiritual que, lembrando agora, sempre esteve muito presente em minha vida, até que eu começasse a beber e usar drogas. Agora, tudo mudou (por hoje pelo menos, 24 horas!).
8-B. RELATE SITUAÇÕES DO SEU TRATAMENTO ONDE PERCEBEU-SE RECOBRANDO AS CARACTERÍSTICAS DE SANIDADE, E IDENTIFIQUE COMO UTILIZOU A AJUDA DO PODER SUPERIOR EM CADA UMA DELAS:
Não gosto de fazer exame de sangue, fico irritadiço e mal-humorado. No dia 3 de maio deste ano, veio o moço do laboratório indicado por meu clínico até Vila Serena. Estava de jejum, perdi a comunitária e, com meu mau humor habitual, lá fui eu para o encontro com os vampiros (como eu costumo me referir à equipe do Braz Maiolino)20. Mais tarde, soube, através do enfermeiro Cr., que o moço do laboratório tem medo de mim. Não lembro de tê-lo maltratado no passado (faço exames de quarenta em quarenta dias, por causa do meu fígado,* que, após uma hepatite B seriíssima e meu uso de álcool, tranquilizantes e má alimentação, ainda inspira cuidados — e a coleta é feita em minha casa). Mas sempre reclamo do preço, qualquer problema é motivo para reclamação e, quando fico de cara fechada, é algo realmente desagradável. Pois bem, dessa vez o mau humor veio novamente, mas me vi contando até dez e me esforçando para ser gentil ou pelo menos desligar-me emocionalmente e separar o problema da pessoa (assertividade). Isso é algo novo para mim e certamente tem a ver com a recuperação de minha sanidade (não estou repetindo os mesmos erros achando que terei resultados diferentes). E, agora que já trabalhei meu segundo passo, vejo que devo isso em parte também ao Poder Superior, pois estou mais calmo e paciente, aceitando um pouco mais as coisas que não posso modificar. Nem reclamei muito do preço, que achei absurdo, mas depois, ao converter o custo em dólares, vi que foi uma bagatela. Espero que tudo tenha se resolvido, porque o motorista do laboratório é um gato e a equipe muito atenciosa e gentil. E não quero mais fazer inimigos de graça.
* E otras cositas más.