5. As Tentativas

No final de uma tarde de Outono, naquele primeiro ano em que Tsukuda começou a frequentar as nossas reuniões, o senhor Inácio bateu-me à porta do gabinete. Não me lembro do que estava a fazer– talvez olhasse para a lista de alunos que iriam reprovar nesse semestre, e as respectivas disciplinas, algo que eu perversamente fazia quando me encontrava relativamente desocupado.

Entre, disse-lhe, e o homem abriu a porta com a perna direita e fez avançar um balde com uma esfregona no interior, apoiando-se no cabo. Ah, quer limpar a sala, eu saio, continuei, e ia levantar-me, mas Inácio fez-me sinal para permanecer sentado. Fiquei a olhá-lo. Tinha uma pilha de processos para tratar e perdera quase todo o dia com minudências. Sim?, insisti, impaciente. Inácio olhou para trás, na direcção do corredor, como se alguém pudesse ali estar escondido a tentar ouvir a nossa conversa, e depois perguntou:

Sabe aquele tipo que costuma vir aqui às quartas-feiras? Ao seu clube de solteiros?

Por essa altura eu já desistira de tentar convencê-lo de que as reuniões não eram um clube de solteiros.

Qual tipo?, inquiri, embora já soubesse a resposta.

Inácio encostou o cabo da esfregona à porta e, com os indicadores das duas mãos, simulou um rosto asiático a repuxar os olhos para cima.

Isso é escusado, senhor Inácio, disse-lhe eu.

O chinoca, disse ele.

Japonês, corrigi.

É tudo a mesma coisa.

Não é, não.

Pronto, como queira. É que eu conheço-o de ginjeira.

Conhece-o de onde?

Do meu bairro. Vivo ali para os lados do hospital dos malucos e já o vi entrar e sair por aquelas portas uma dúzia de vezes.

Isso não é da sua conta, senhor Inácio.

Lamento, senhor director, mas tudo o que acontece dentro da escola é da minha conta, incluindo os que por aqui passam.

Quase nunca me chamava assim («senhor director»), excepto quando precisava de fazer valer algum argumento– embora eu não fosse director e Inácio soubesse perfeitamente que o meu papel era outro. Pedi-lhe que entrasse na sala. Ele tornou a olhar para trás, para o corredor vazio. Era o entardecer de um dia enfadonho de Outubro ou de Novembro. Arrastou o balde para dentro da sala e cruzou os braços. Reparei que, na parte interior do antebraço direito, tinha uma tatuagem, meio apagada pelo tempo. Perguntei-lhe o que dizia. Ele olhou para o antebraço como se eu lhe desse uma novidade; pareceu quase surpreso. Depois mostrou-ma.

Oh, cenas do tempo da guerra.

Mas o que diz?, insisti.

É fraqueza desistir-se da cousa começada, respondeu.

Devo ter feito a expressão sisuda de quem procura uma referência que não encontra, porque Inácio apressou-se a dizer-me que era Camões.

Então é coincidência?, perguntei.

O quê?

Que acabe a trabalhar no Liceu Camões com Camões tatuado no braço.

Desculpe lá dizer-lhe isto, mas o senhor director não quer é falar do maluco que anda para aqui às quartas-feiras.

Recostei-me na cadeira e encarei Inácio. Parecia genuinamente revoltado com a ideia de Tsukuda andar pelos nossos corredores. Pensei que talvez estivesse na altura de lhe explicar o que eram as reuniões. Mas depois o zelador lançou-se numa descrição do japonês a passear pela Avenida do Brasil em trajes menores, fugido de um internamento, e de uma vez em que o vira atacar um pombo perto do Horto do Campo Grande. Os carros que subiam para a Cidade Universitária tiveram de parar porque, no meio da estrada, Tsukuda perseguia incansavelmente a criatura: as penas voavam, o pombo desesperava, a tentar fugir das garras do homem ensandecido, todo vestido de preto, com os sapatos caríssimos a sapatear no alcatrão.

Um cangalheiro de aviário, disse Inácio. Sim, já o vi por aí, repetiu, e aquilo nem sequer é gente, uma coisa de bradar aos céus, um perigo para esta instituição centenária. Há juventude por aqui, e a juventude é facilmente impressionável.

Garanto-lhe que o homem não é perigoso, disse-lhe eu, embora não tivesse garantia nenhuma.

Sabe o que acho?, perguntou.

Não, diga lá.

Acho que desde a morte do professor Tavares isto nunca mais foi ao sítio, é o que acho. Primeiro foram as obras e as reestruturações e mais sei lá o quê, quiseram fazer disto uma modernice sem gosto nenhum. Agora é o seu clube de solteiros e malucos, e sabe-se lá o que vem a seguir.

Pois sabe o que acho, senhor Inácio?, ripostei. Acho que o senhor tem dificuldade em aceitar tudo o que são mudanças, novidades que perturbem o statu quo.

Franziu o sobrolho quando ouviu as últimas duas palavras.

Está a chamar reaccionário a um antigo combatente pela liberdade?, perguntou, agarrando o cabo da esfregona. Pela sua liberdade?

Suspirei e, ao ver que a conversa podia acabar mal, usei o trunfo de Steinitz, explicando-lhe as ideias do austríaco sobre o xadrez. No princípio do jogo, as forças estão em equilíbrio, e um jogador só pode ganhar em consequência de um erro do adversário; o jogo ideal consiste em perturbar o equilíbrio a nosso favor. Ele perguntou-me que raio aquilo tinha que ver com o chinês, ao que respondi:

No instante em que ele perturbar o equilíbrio vigente, o senhor tem autorização para fazer a sua jogada de ataque.

Inácio hesitou, pensou uns momentos e agradeceu. Foi-se embora mais satisfeito, e eu recomecei o trabalho quando a noite já se punha, consciente de que entregara um enorme trunfo nas mãos de um homem que escrutinaria todos os nossos movimentos vindouros.

floritura

Ao longo dos anos de sobriedade, presenciei uns quantos milagres. Podia contar aqui histórias de pessoas arruinadas que, em poucos meses, recompuseram as suas vidas; ou de companheiros, fulminados por doenças terminais, sentados calmamente numa reunião, em estado de graça, a tentarem ajudar um recém-chegado. E fui também testemunha de prantos intermináveis por causa de relações interrompidas, de alcoólicos em recaída constante e de verdadeiras conversões espirituais; da raiva com Deus a promessas suicidas, tudo se atravessa no nosso caminho. Quando o considero, ocorre-me, curiosamente, a história dos grandes ditadores– ou de como as suas enormes crueldades podem ter sido consequência de uma insuportável solidão. Adolf Hitler, por exemplo, rejeitado pela Academia de Artes de Viena: se tivesse sido aceite, e a sua putativa carreira de pintor encontrado aprovação, talvez o Holocausto não tivesse existido, apenas umas quantas inaugurações de mau gosto. O mesmo se poderia dizer se, no seu tempo, houvesse existido uma irmandade para artistas frustrados.[1]

Alexandre e eu discutimos muitas vezes este tema. Ele oferecia constantes analogias com as jogadas do xadrez, em que era necessário contrariar o impulso de atacar para estabelecer uma defesa mais sólida, e eu pensava constantemente num dos meus livros favoritos, o Moby Dick, e na vontade indómita do capitão Ahab, na tragédia que o seu desejo de vingança da grande baleia-branca acabava por trazer sobre todos os tripulantes do Pequod. Hitler, Ahab, Quixote: três exemplos acabados de uma vontade desalinhada com a vontade divina. Mais que não fosse pelos terríveis resultados que cada um deles lograva alcançar, não apenas para si mas para os outros, ou até para um navio, um sistema político, um país (no caso do tirano Nero, para uma religião: de acordo com o historiador romano Tácito, para deter o rumor de que pegara fogo a Roma, Nero acusou falsamente os cristãos e puniu-os com as torturas mais vis, semelhantes à que Pôncio Pilatos infligiu ao próprio Cristo, dando origem às perseguições dos cristãos pelos Romanos). As consequências deste tipo de vontade são, geralmente, uma cadeia de sofrimento.

Alonso Quijano, ao perder a sanidade, torna-se Quixote, e decide que a sua missão é reavivar a cavalaria e trazer justiça e reparações a este mundo; enceta, por isso, uma campanha de loucura que choca de frente com os ditames da realidade. O próprio Rocinante é um cavalo exausto disfarçado de garanhão, à semelhança de Quijano, seu duplo: desajeitado, velho, enredado numa tarefa que em muito supera as suas capacidades. Sancho Pança é um analfabeto que, por causa de Quixote, acaba espancado, humilhado. A metáfora é explícita quando o cavaleiro diz a Sancho Pança (ou procura convencê-lo), no capítulo X, que existe um bálsamo chamado Ferrabrás que resolve todos os males. Esta ilusão é a resposta de Quixote ao que Pança –por mais simplório que seja, o aio é a medida da verdade durante todo o livro– lhe tenta dizer repetidamente: que a sua história não é extraordinária; que ele não é o mestre de tudo o que é heróico, mas um pobre coitado com dificuldade em aceitar a realidade. «Eu nunca li histórias», diz Sancho Pança, «porque não sei ler nem escrever; mas o que atrevo a apostar é que mais atrevido amo do que Vossa Mercê, nunca eu servi em dias de minha vida.» É então que o presumido cavaleiro fala da poção mágica, cuja receita reside na sua memória: um bálsamo graças ao qual «ninguém pode ter medo da morte, nem se morre de ferida alguma; e assim, quando eu o tiver feito e to entregar, não tens mais nada que fazer».

Esta ideia fixa e obsessiva de algo perfeito, plenamente isento de mácula, solução milagrosa engendrada pelo Homem – fruto da volição humana–, é capaz de produzir uma ilusão tão poderosa, tão desmesurada, que incita o iludido ao desvario, à perseguição de raças, a êxodos e guerras, a carnificinas e genocídios. Leva um déspota a atiçar o fogo à sua própria cidade, na vã esperança de uma glória póstuma; conduz o capitão de um navio numa pulsão homicida; convence um demagogo austríaco, baixo e feio, das virtudes supremas da raça ariana. E leva um alcoólico a beber, numa fantasia escapista. Tanto quanto consigo entender, as religiões têm uma origem semelhante. Nunca acreditei nelas, sempre me pareceram dogmáticas, autoritárias e exclusivas. Na sua génese estão homens rendidos, mas os que as popularizam, apregoando a verdade, são tão loucos quanto o rei Herodes. O único deus em que acreditei, durante todos estes anos, foi o deus amantíssimo que só se encontra quando trazemos a nossa vida até à beira de um precipício e, convencidos de que chegámos ao fim, vemo-nos, de repente, amparados por um milagre

Nesse sentido, é quase uma contradição, genial paradoxo: encontrar deus depois de passar uma vida inteira a renegá-lo, a reclamar constantemente o controlo do nosso destino, a supremacia das nossas melhores ideias. Imaginem o que é chegar a uma espécie qualquer de iluminação, uma candeia acesa na escuridão, quando tudo o que fizemos foi entrar em vielas obscuras, descer por caminhos cada vez mais tortuosos.

Sim: o género humano não se rende com facilidade, de mão beijada.

Em 1998 tive uma das provas mais cabais (oferecida, claro, pela experiência) deste desalinhamento de vontades. Nessa altura já cumprira dez anos de sobriedade, que comemorei esquecendo-me de ir a uma reunião levantar a minha medalha comemorativa. Andava obcecadamente atrás de uma mulher chamada Helena, que possuía a única qualidade que eu considerava atraente: não gostava de mim. Tínhamo-nos conhecido no programa e, pouco tempo depois desse primeiro encontro, eu começara a planear a minha semana de acordo com as reuniões onde havia a possibilidade de ela estar (ou não). Entrava na reunião, espavorido e inquieto; se não a encontrava, arranjava uma desculpa para me ir embora.

Os meus companheiros observavam-me com a paciência de quem conhece intimamente a obsessão. O meu horário na biblioteca escolar era sempre o mesmo, das oito e meia às quatro (ainda não tinha, nesse tempo, as obrigações que vim a ter mais tarde), e as restantes horas do dia eram passadas a cogitar estratégias de perseguição. Se a encontrava numa reunião, então permanecia até ao fim, esmerava-me numa das minhas partilhas cuidadosamente planeadas e depois encontrava-a cá fora, junto dos que fumavam cigarros e usufruíam do alívio temporário que aquela hora proporcionava, e arranjava maneiras subtis de a convencer a ir tomar café comigo, ou a sairmos, ou a dormirmos juntos. Como todos os recém-chegados, Helena era um poço de contradições, uma nefelibata incapaz de manter um compromisso, cumprir com a palavra ou respeitar os sentimentos alheios. Não gostava de mim, mas gostava da atenção e, portanto, mantinha-me por perto porque a minha presença carente e prestável lhe atribuía significado e importância num mundo novo e brutal. Extraordinário foi eu, sóbrio havia uma década, ter caído nesta armadilha. Foram meses de agonia, de perseguição do inatingível, tão parecidos com os anos de bebedeiras inconsoláveis. Emagreci, fiquei exausto e desconsolado; a velha depressão começou a regressar. O centro da minha vida tornou-se aquela mulher fugidia, inacessível.

Até que, um dia, Alexandre me ligou e pediu para eu tomar conta de Prometeu durante duas semanas. Disse que ia fazer uma viagem às ilhas Baleares (por vezes fugia da sua solidão em Lisboa e ia procurá-la noutro lugar), e que eu era a única pessoa em que ele confiava para tomar conta do cão. Quando isto aconteceu, João tinha doze anos e, pela primeira vez nas nossas vidas, a mãe acedera a que ele passasse um fim-de-semana comigo. Por isso disse a Alexandre ser impossível, ao que ele respondeu que todos os bons jogadores de xadrez conseguem, ao mesmo tempo, olhar o tabuleiro, analisar a situação, encontrar ideias construtivas sobre os próximos movimentos e, na realidade, decidir esses movimentos, poucos segundos depois de serem confrontados com a sua própria posição.

Mas eu não sou bom jogador de xadrez, respondi, ao que Alexandre replicou que não estava a falar de mim, mas de si: ao contemplar a perspectiva de férias, decidiu, olhando o tabuleiro e analisando a situação, que a decisão mais acertada era deixar Prometeu aos meus cuidados. Aprendera-o com Adriaan de Groot, um holandês que escrevera sobre a psicologia do xadrez.

Sabes qual é a outra grande qualidade de um jogador?, perguntou-me. É a capacidade de conseguir estar sentado durante muito tempo.

E, com isto, desligou e veio entregar-me o enorme setter irlandês, ruivo como o sol poente, um cão pachorrento e benigno que começou logo a babar-se para cima dos meus sofás e a ressonar em sonos prolongados, arrastando-se vagarosamente pelo apartamento da Rua de São José, que, em muito pouco tempo, passou a ser a sua propriedade. Eu não sabia tomar conta de cães e fiquei furioso com Alexandre. Mais tarde percebi que fiquei furioso porque a guarida daquele cão me desviava do propósito principal, que era a perseguição de Helena, forçando-me a estar atento a algo que era verdadeiro e real, uma criatura que precisava de mim. João chegou na sexta-feira à noite e apaixonou-se pelo cão. Havia um entendimento entre eles, provavelmente relacionado com a fraca audição do meu filho– entendimento que parecia operar a um nível pré-auditivo, de maneira que os dois coordenavam movimentos e desejos em simultâneo, sem qualquer esforço.

Na primeira noite com Prometeu, levantei-me às cinco da madrugada com uma sensação de terror iminente e encontrei-o a defecar no meio da sala. Sentei-me numa cadeira e fiquei a observá-lo, o ar de gozo e de estúpida satisfação no focinho do animal, enquanto dentro de mim morria a esperança de que aquelas semanas pudessem trazer alguma coisa boa. Mas Prometeu não tornou a fazer as necessidades dentro de casa; explicaram-me depois que os cães também ficam nervosos em territórios desconhecidos, e que isso altera, temporariamente, os seus padrões. Com João, o cão ficou feliz e perseguia-o para todo o lado, dobrando as esquinas da casa e das ruas sempre que o passeávamos, saltitando ao lado do miúdo, com o seu grande porte, de língua de fora, lambendo-lhe as pernas. Aquilo que eu imaginara –que tomar conta de um cão e de uma criança era tarefa demasiado complicada– acabou por se revelar a melhor solução possível para o fim-de-semana com o meu filho, junto do qual ainda me sentia pouco à vontade, assombrado pela culpa.

À noite, quando João adormecia, eu ia ao seu quarto, que inventara sozinho quando me mudara para aquele apartamento –uma cama com lençóis do Homem-Aranha, uma meia-lua de plástico, fugazmente iluminada, pendurada na parede, uma nave espacial feita de lego–, e ficava a olhar para o aparelho da surdez que ele tirava para dormir, pousado junto do candeeiro de latão. Lembrava-me da sua infância, do momento em que lhe pegara, recém-nascido, e ele me devolvera aquele ar atento e ignoto, e eu amaldiçoara o destino. Porém, de repente, com o setter irlandês deitado aos pés da cama, a aconchegar João aos sonhos, tudo parecia fazer sentido e, contudo, tudo era estranho e novo, como se aquelas duas criaturas que agora habitavam comigo (embora provisoriamente) me mostrassem a beleza das coisas e o quanto eu, fechado em mim próprio, refém, estava a perder neste mundo.

Durante esse fim-de-semana, não pensei uma única vez em Helena. Ou, se pensei, mais não foi do que uma ideia vaga, por concretizar, parecida com as páginas de um livro que nunca chegamos a abrir: sabemo-las lá, mas não nos interessam particularmente. Quando o rapaz de azeite e gengibre partiu, regressando a casa da mãe, despediu-se de Prometeu com um abraço enorme. Se o cão tivesse braços capazes, também teria abraçado o miúdo; mas, porque era apenas um cão, limitou-se a lamber o rosto do meu filho. Ficámos, eu e Prometeu, sozinhos no apartamento. Alexandre ligava diariamente para saber se eu o levava à rua, se o alimentava decentemente. Uma vez, pediu-me para falar com o animal. Não contestei. Após dez anos de amizade, deixara de perguntar pelas razões do que ­Alexandre me pedia para fazer.

E, uma vez mais, compreendi porquê. Dois dias antes de devolver Prometeu à proveniência, por algum motivo que não recordo, faltou-me tempo de passear o cão de manhã. Voltei a casa perto da hora do almoço, ressentido com o pobre bicho– porque João partira, metade da minha atenção fora-me devolvida, tornando a concentrar-se na obsessão do momento. Quando entrei em casa, a suar de calor, encontrei Prometeu junto da porta, desvairado de ansiedade, mas fui incapaz de lhe dar um afago, de me ajoelhar e o receber nos braços da maneira que o meu filho me ensinara. Tudo em que conseguia pensar era que jamais chegaria a tempo à reunião da hora do almoço, onde Helena estaria (provavelmente, ou talvez não). Os cães sentem estas coisas, a nossa irritação e indisponibilidade. Prometeu sentou-se no chão, à minha frente, e começou a urinar na carpete assim que me viu ir buscar a trela. Era ironia na forma de um castigo: no momento em que eu me dispunha a levá-lo à rua, ele abandonava finalmente o controlo excessivo da bexiga e fazia as necessidades ali mesmo, de língua de fora, numa incontida satisfação.

Fiquei com tanta raiva que, por um momento, me ocorreu sair e deixá-lo fazer o resto também na carpete. Para o castigar, ficaria o dia todo dentro de casa. Mas depois lembrei-me do que acontecera a Hércules no seu décimo primeiro trabalho. Só o titã Prometeu conhecia o segredo para roubar as maçãs do Jardim das Hespérides; quando Hércules chegou à rocha no Monte Cáucaso, encontrou o titã agrilhoado, punido por Zeus, com uma águia monstruosa a bicar-lhe pedaços do fígado todas as manhãs. Hércules matou a águia e, num gesto de gratidão, Prometeu contou-lhe o segredo para conseguir as maçãs: teria de trocar de lugar com Atlas, que as iria buscar, enquanto ele segurava o peso do céu e da terra nos ombros.

Contrariado, levei Prometeu à rua, planeando não me demorar mais do que cinco minutos. Mas o cão, quem sabe por vingança, recusava-se a fazer a segunda necessidade, e fui perseguindo-o, com ele a farejar os passeios, as fezes dos outros cães, os sapatos das pessoas, os esgotos. Dobrámos a esquina para a Rua das Pretas, era um daqueles princípios de tarde gloriosos em Lisboa, quando o sol faz da cidade um reflexo branco que ofusca e magoa os olhos. Eu encontrava-me no pior estado de espírito possível, e fui seguindo Prometeu, a pedir desculpa às pessoas à frente das quais ele se atravessava, obrigando-as a desviarem-se. Algumas sorriam e outras faziam cara feia, oferecendo resmungos e palavrões. Atravessámos a Avenida da Liberdade, mas nada acontecia: o cão recusava-se a defecar.

Do outro lado havia o pequeno jardim da Praça da Alegria. Olhei para Prometeu, que, no seu alegre resfolegar, parecia fazer pouco de mim, castigando-me. Voltava a cabeçorra para trás e olhava-me, como se me dissesse: Anda, idiota, vou mostrar-te quem manda. E eu continuava, porque já não havia nada a fazer. Passava do meio-dia e meia e nunca chegaria à reunião a tempo. Sob o sol escaldante dessa tarde de Junho, Prometeu levou-me até um dos bancos do jardim, onde me sentei, e depois começou a enrodilhar-se na trela de tal maneira que o soltei. Aproveitei o momento para fechar os olhos por uns instantes enquanto o cão farejava as árvores e saltava de um lado para o outro, contente de não estar confinado ao apartamento. Doíam-me as têmporas, a cabeça latejava-me. No interior das minhas pálpebras havia uma luz antiga, morna, soterrada por pensamentos negativos. Como Atlas, tinha o peso do céu e da terra sobre os ombros, e não sabia como me livrar dele. Sem dar por isso, adormeci. Quando acordei, estava sozinho. O cão desaparecera.

Levantei-me de surto, andei de um lado para o outro à procura dele, a chamá-lo pelo nome. Vasculhei o minúsculo jardim, procurei atrás dos bancos e atrás dos arbustos; comecei a entrar em pânico, imaginei Alexandre a matar-me com um tabuleiro de xadrez. Prometeu desaparecera. Eu suava de desespero. Do outro lado da praça, vi a esquadra da polícia. Era inútil, mas que podia mais eu fazer? Entrei e, assim que atravessei o pequeno átrio para a sala de espera, onde as pessoas aguardavam para serem atendidas, avistei o cão. O medo desfez-se, a agonia abandonou-me. Enfiava o focinho no colo de um rapaz da idade do meu filho, de joelhos esfolados, sentado ao lado de uma mulher magra, de queixo proeminente e mãos compridas. Ela olhava para o lado, distraída, na direcção do polícia, que se sentava atrás de um postigo a ler o jornal. ­Presumi que aquele seria o filho dela, da mesma maneira que ela teria presumido, se houvesse reparado na gratidão com que me agarrei a Prometeu, que aquele era o meu cão havia muito ­perdido.

Tudo isso era falso. A verdade é que aquela era a mulher com quem acabaria por me casar. Quando isso aconteceu, percebi finalmente o sentido do famoso ditado que diz que deus escreve direito por linhas tortas – ou dito de outra maneira: a verdadeira dádiva era eu ter-me mantido sóbrio tempo suficiente para poder assistir aos milagres que transformaram a minha vida.

O que tem isto que ver com Henrique Tsukuda?

Nada.

E tudo.

Não consigo contar a sua história extraordinária sem primeiro contar esta história banal, porque as duas são interdependentes. Henrique é um dos homens mais criativos que jamais conheci, o que o põe na delicada posição de um Ahab ou de um Quixote: tem uma imaginação delirante à mercê de uma vontade desmedida, em permanente braço-de-ferro com a realidade. O magro consolo oferecido pelos que frequentavam a reunião das quartas-feiras, no Liceu Camões, era um expediente demasiado pequeno para as suas ambições. Arrependi-me muitas vezes de ter deixado a situação chegar aonde chegou ou de sequer ter permitido que a reunião acabasse por ser o seu poiso; de não ter percebido que Tsukuda não pertencia ali, que a ajuda de que carecia era outra.

Talvez fosse a maneira como ele falava –o seu sarcasmo, a sua inteligência– que me deu a ilusão de alguma coerência. Uma vez, numa noite limpa de Novembro, à saída da reunião, veio ter comigo e propôs-me um dos seus e se, outra diatribe da sua imaginação doentia.

Imagina só isto, disse ele, enquanto chupava sofregamente um cigarro. Imagina que vocês eram um grupo que, em vez de promover o bem-estar, propunham a depressão como um estado a fomentar.

Riu-se. Vi-lhe os dentes meio podres, os olhos japoneses semicerraram-se e desapareceram.

Um grupo de prevenção da ideação e comportamento saudável, continuou. Que se lixem os ginásios, a homeopatia, os produtos biológicos e a medicina. A vida é dor!

Tornou a rir-se, muito alto.

Disseste «vocês», reparei. Mas tu fazes parte do grupo, és igual a todos nós.

Eh!, ripostou ele, como se eu o tivesse insultado. Posso ser maluco, mas não sou como vocês.

Ah sim? E o que é que faz de ti diferente?

Chupou o cigarro com mais força, e o rosto inteiro escondeu-se por detrás de uma nuvem de fumo.

Sou um exemplo requintado de personalidade narcísica com um padrão invasivo de grandiosidade. Basicamente, um tipo com grandes ideias. Ideias importantes, que toda a gente julga que são parvoíces de uma mente desvairada, porque toda a gente (ou quase toda a gente) é incapaz de reconhecer uma boa ideia mesmo que ela lhe venha dar um pontapé nos dentes.

E o que é que isso faz de nós?, perguntei.

O hálito dele misturava álcool e fumo.

Não sei, respondeu. Personalidades histriónicas? Com alguns toques de comportamento exibicionista. Todos fechados na sala, com o raio da santinha a velar por vocês. Um bocadinho de superstição à mistura, diria eu. Crendice. Aquele velho maluco que anda atrás da ama-seca, o que é que dirias que ele tem? Tusa geriátrica? Ou o outro, o bonzinho, que salva as pessoas dos incêndios, e que está obviamente apaixonado pela viúva que foi casada com o irmão, mas não se atreve. Não se atreve, o cobarde. Ah, e não me ponhas sequer a falar dos paneleiros.

Estávamos no lugar do costume, junto da paragem do autocarro, e não havia vivalma. Os outros tinham dispersado rapidamente a seguir à reunião. Apesar daquelas palavras agressivas, pensei que Tsukuda precisava que eu fosse gentil. Começámos a caminhar, e mudei de assunto. Disse-lhe que tinha visto as ilustrações de Gustave Doré – não apenas as que ele referira, mas também as que o francês fizera para o Dom Quixote de ­Cervantes.

Não lhe disse, porém, o quanto ele me fazia lembrar do cavaleiro de La Mancha – ou quanto do seu delírio parecia beber dessas efabulações, tão parecidas com as de um filme de George Méliès que a minha mulher adorava e que me levara a ver na Cinemateca, num ciclo de reposições dos filmes do realizador ilusionista francês. Era uma das películas do final da sua carreira chamada À la conquête du pôle. O filme começa com uma reunião de vários académicos para decidirem qual é a melhor forma de chegar ao pólo norte. Após muita discussão e discursos apoplécticos – que se tornam ainda mais interessantes porque o filme é mudo–, e depois de o debate ser interrompido por um grupo de sufragistas empunhando cartazes onde se lê «O Pólo Norte às Mulheres!», fica decidido que a melhor solução para chegar ao destino pretendido é a máquina voadora do professor Klaps Platz, escolhida por delegados de vários países. O absurdo reina: o delegado de Espanha chama-se Cerveza e o do Japão Kakoku. A construção da máquina começa: uma avioneta com cabeça de águia. Mas as sufragistas recusam ficar em segundo plano e congeminam a sua própria engenhoca, um aparelho voador montado numa espécie de trenó, com hélice e balões. A máquina do professor Klaps parte. Os académicos que ficam em terra arranjam outras maneiras de seguir para o pólo norte, alguns deles de balão e outros em viaturas estranhíssimas: carros a vapor, eléctricos, bólides sensacionais. A meio do filme, surge uma legenda que diz: «Os mestres do ar nada temem.» Segue-se uma parafernália de aparelhos voadores que rumam com sucesso ao Norte do planeta. A máquina do professor atinge alturas heróicas, e visita as estrelas e as constelações do zodíaco, antes de chegar a um pólo norte dominado pelo Gigante das Neves, uma criatura de gelo que fuma cachimbo e tenta comer o professor e os seus companheiros.

Tudo isto era candidamente divertido, e os efeitos especiais notáveis para a época; o subtexto da obra de Méliès, contudo, fazia sonora ressonância com as pretensões de Henrique Tsukuda. A ideia do voo como possibilidade de fuga, de conquista da nossa pós-humanidade, orquestrada numa panóplia de símbolos e referências, de lugares-comuns e objectos de contemplação estética. A mente de Tsukuda, praticamente insondável, tornava-se mais aceitável quando eu pensava em Cervantes, em Méliès, em Doré. Havia ainda o facto de Méliès, que realizou centenas de filmes, ter sido um ilusionista de sucesso; alguém cuja preocupação não era a realidade, mas o seu simulacro, uma utopia silenciosa destinada a convencer, a ludibriar. Era nisso muito parecido com a personagem de Vogler, o mágico mudo de um filme de Bergman chamado O Rosto (outra das tardes passadas com a minha mulher na Cinemateca). Neste outro filme, a experiência é semelhante. Em meados do século XIX, Vogler e a sua trupe encontram-se a caminho de Estocolmo, numa Europa infectada pelo racionalismo científico. Oferecem ao público magia, poções e a promessa do sobrenatural. Cedo Vogler encontra em Vergérus, o conselheiro de Medicina Real da corte sueca, um adversário à altura, bem como nas autoridades da cidade, que põem em causa o bando e se predispõem a desmascará-los como charlatães. Para mim, o mais interessante do filme é a personalidade de Vogler, protagonizado por um Max von Sydow calado. Ele é feito de duas metades: por um lado, uma espécie de Cristo incapaz, descrente nos seus milagres; por outro, um «mágico», vulgar charlatão remediado. A certa altura, Vogler produz um truque de ressurreição, que simboliza o milagre dos milagres (o triunfo sobre a morte); seria também a ressurreição da fé. Mas Vogler revela aos seus inimigos que a magia é uma fraude, o espelho da promessa frustrada de eternidade feita por deus ao Homem desamparado. No fundo, essa é a essência da agonia de Cristo, com que Max von Sydow, de cabelo escurecido e barba postiça, tanto se parece no filme. «Os milagres não acontecem», diz Vergérus, «é sempre o aparato e a conversa fiada que fazem o trabalho.» A fé, ou a possibilidade de magia, encontra-se no filme intimamente ligada à arte, ao engenho que produz uma ilusão– os aparatos de um mágico em comparação com a ilusão produzida pelos aparatos religiosos que nos vinculam ao divino.

Dom Quixote!, disse Tsukuda, e atirou o cigarro para a calçada, pisando-o com a ponta do sapato. Esse pobre diabo. Por falar em ideias importantes, esse teve-as todas.

Ou por falar em personalidades histriónicas e comportamentos exibicionistas, adiantei.

Ele apressou o passo, os sapatos a ressoarem na calçada. Creio que usava sempre a mesma roupa e cheirava um tanto a vagabundo– não ostensivamente, umas breves lufadas.

Sabes qual é a diferença?, continuou. É que, nos tempos de Cervantes, um homem como o fidalgo de La Mancha não era internado num hospital e medicado até ficar a babar-se num sofá com a língua de fora. Podiam chamar-lhe louco, mas era livre de acreditar em si próprio. Já reparaste que vivemos, deste lado do mundo, em torno de um mito construído em contradição com o que vulgarmente se define por «sanidade»? Um homem crucificado, mortinho da silva, que ressuscita ao fim de três dias! Aí está a tua sanidade, a tua devastadora contradição. Desafio qualquer um a explicar-me que raio é isso da loucura. E então concederei que Quixote é louco, e que eu também sou louco.

Olhou-me de soslaio, acendeu outro cigarro. Parecia zangado, e julguei que ia insultar-me, mas não o fez.

Sanidade, vociferou. Milhares de pessoas de joelhos rumo a Fátima, ou a Nossa Senhora de Guadalupe. Séculos de carnificinas em nome de um deus ou de outro, não importa. Cultos pejados de celebridades que acreditam em ficção científica. E nós no meio disto, reduzidos à conivência, não vá aquilo que pensamos desta farsa incomodar o vizinho. Temos de ser fortes, é o que dizem. Resistir à tristeza, à melancolia. Construir diques para nos protegermos dos sentimentos. Esconder os doentes da cabeça nos manicómios. É preciso andarmos em filinha, caladinhos, a toque de caixa, ao ritmo que eles querem. Para terem a certeza de que nunca nos ergueremos acima desta vulgaridade.

Parou subitamente e pisou o chão duas vezes, batendo com a sola do sapato nas pedras cinzentas.

Desta calçada cheia de merda de cão.

Devíamos aprender a voar, não era?, sugeri, provocando-o. Para andarmos sempre lá em cima.

Havia semanas que Henrique não falava do assunto, desde a conversa que tivéramos após a sua primeira reunião. No entanto, aquilo intrigara-me; deixara-me a pensar se o sentido das suas palavras era figurado ou literal, se ele era ainda mais quixotesco do que eu o julgara, ou simplesmente um rebelde tardio que apreciava metáforas redundantes.

Não precisamos de aprender, corrigiu-me. Só temos de recordar como se faz.

Explica lá isso melhor.

O problema do Homem não é o que está a menos em si, mas o que está a mais, disse ele, sem tirar os olhos da calçada. E o que está a mais oculta a verdade. Não sou eu que o digo, génio. Vai ler os filósofos todos de que os Ocidentais tanto gostam, e até eles, na sua infinita estupidez, sabiam que a vida humana não é marcada pela ignorância, mas pelo esquecimento. O dilema não é não sabermos, é não saber que sabemos, e portanto esse conhecimento tem de ser arrancado de dentro de nós com um saca-rolhas existencial.

Pensava que nunca lias, contrapus.

E nunca leio.

(Nessa noite, quando cheguei a casa, fui às estantes do escritório buscar um exemplar de Ménon, de Platão. Eu sublinhara alguns diálogos: «Portanto, sem ninguém o ensinar, mas sim interrogando-o, ele adquirirá conhecimentos, readquirindo ele próprio o saber de si próprio […]. Mas o facto de se readquirir a ele próprio, nele mesmo, com relação ao saber, não é o acto de recordar-se?» Fora ali que Tsukuda roubara aquela ideia.)

Tínhamos chegado a um cruzamento. A noite de Novembro adensara-se, e uma espécie de bruma caía sobre a cidade. Os olhos de Tsukuda eram invisíveis atrás das grandes olheiras.

Nós já sabemos tudo o que há para saber desde o princípio dos tempos, declarou. E, apesar disso, não sabemos nada. Contraditório, não é? Que chatice. C’est la vie.

Acendeu mais um cigarro.

Imagina que és uma criança e que, um dia, um circo chega à tua cidade. Nesse circo há uma mulher com uma bola de cristal que te mostra o futuro. Tens sete ou oito anos, e aquele momento é especial, algo que nunca esquecerás. Passam-se quarenta anos e, um dia, lembras-te desse momento, nem sabes bem porquê. E percebes que não fazes ideia do que viste na bola de cristal, porque a vida, entretanto, te seduziu com o seu perfume traiçoeiro.

E então?

Sabes o que é que lá estava?

Não.

O que estava na bola de cristal era que no futuro não te lembrarias do que estava na bola de cristal.

Embora parado, Tsukuda agitava os pés, intranquilo.

Entendes agora o paradoxo?, perguntou-me.

Mais ou menos.

Ficámos uns segundos em silêncio, ao fim dos quais concluí que ele era louco– ou que, no mínimo, padecia de excesso de racionalidade. Eu não era diferente, e talvez fosse isso que nos aproximava.

Portanto, aquilo que nos parece aprendizagem é apenas a lembrança daquilo que esquecemos, concluí.

Exacto.

E o que é que isso tem a ver com voar?

Aproximou-se de mim. Nunca se tinha chegado tanto, nunca lhe tinha visto o rosto tão de perto. Soltou uma baforada do cigarro, o fumo envolveu-me; o cheiro, desta feita, foi-me agradável, devolveu-me alguma coisa do passado que era quase consoladora. Tsukuda pegou-me no braço direito e levantou-o, depois deixou-o cair. Fez o mesmo com o meu braço esquerdo. Senti-me ridículo, ali parado, com os braços pendentes do tronco, que, depois de ele lhes tocar, me pareceram estranhos apêndices.

Não tem nada a ver, disse ele.

Então para que foi isto?

Queria ver se estavas em forma, preciso de alguém que me ajude com a mobília.

Estás em mudanças?

Qualquer coisa assim.

Henrique voltou costas e começou a caminhar na direcção oposta.

Adeus, génio, disse, a erguer o braço direito para acenar de maneira displicente. Era uma repetição do que acontecera após a nossa última conversa, e eu continuava incompetente na onerosa missão de o compreender.

As ilustrações de Doré, chamei, levantando a voz. Não te cheguei a dizer o que achei delas.

Por nós passava uma senhora com um cão pela trela. O animal, ao aproximar-se de Tsukuda, começou a ladrar.

Cala-te, parvalhão, disse a mulher, e seguiram caminho.

Tsukuda estacara.

E então?, perguntou ele.

Estávamos a alguns metros de distância, como dois homens prestes a encetarem um duelo.

O diabo tem um ar triste, continuei. Há uma ilustração em que está a olhar para a serpente no chão, tão desanimado que dá vontade de lhe dar um abraço. E a outra de que falaste, dele com o queixo assente na mão, tão aborrecido… É um diabo muito pouco diabólico. É quase como se Doré brincasse connosco, dizendo-nos que, se o diabo é assim, então o verdadeiro cabrão nesta história do Paraíso não é ele, mas sim o outro.

O outro, riu-se Tsukuda – um riso rouco, cacofónico. Estás a falar de Deus.

Talvez.

Deus é um perverso, um ocultador, disse ele. Tem a humanidade na palma das mãos e entretém-se connosco. Mas que sei eu sobre Deus? Não sei nada. Se somos feitos à sua imagem, então Deus não deve ser grande coisa ou, se for parecido comigo, é feio como a noite dos trovões. Não. Deus não somos nós. São as árvores e as pedras, o Sol e a Lua, mas não somos nós.

Tornou a rir-se, a sua gargalhada de hiena a ecoar tristemente pela noite.

Gostava de perceber metade das coisas que dizes, lamentei-me. Talvez ficasse contente com um quarto.

Eu avisei-te que sou um narcisista com um padrão invasivo de grandiosidade, respondeu. Não esperes compreender o que te digo: metade é egoísmo, a outra metade é ilusão.

Tsukuda abanou a cabeça.

Pobre diabo, declarou.

Vemo-nos para a semana?, perguntei.

Ele encolheu os ombros, voltou costas e desapareceu, arrastando os sapatos brilhantes pela calçada escura.

floritura

Gostava de poder dizer que, com a passagem do tempo, fiquei a conhecer melhor quem era Henrique. Ou que a sua personalidade, complexa e perturbada, se foi revelando gradualmente nas reuniões do grupo do Liceu Camões. Mas nada disso aconteceu. A única vez que falou de si numa reunião– a única vez em que abriu a boca que não fosse para insultar alguém, rir-se desmesuradamente daquilo que outra pessoa acabara de dizer ou papaguear o que ouvira, imitando cruelmente a voz de um dos nossos companheiros – revelou-se extraordinariamente inventivo, mas também excessivo, efabulatório; julgo que ninguém acreditou na sua história.

Aconteceu na mesma quarta-feira em que Jorge e Agrião anunciaram o casamento. Era uma tarde gelada de Janeiro, e eu passara o dia metido na sala dos professores com Euclides e alguns técnicos superiores para discutir a implementação do truculento programa educativo desse ano (o director confessara-me, antes da reunião, que estava tão farto de directivas que considerava seriamente a hipótese de se barricar no gabinete com uma bomba). O meu estado de espírito era de derrota iminente, e estava com paciência para tudo menos aturar mais um grupo de queixosos.

A reunião começou por ser dominada pela paixão não correspondida de Mário por Luísa, a educadora de infância. Aparentemente, o homem pusera em prática um plano ardiloso de conquista de Leonor, mãe de Luísa, senhora da sua idade mas, nas palavras de Mário, «sobejamente banal», uma solitária que facilmente se deixava levar pela sua conversa de sedução com recurso a poemas de Bocage. Tinha o intuito de, por becos e travessas, chegar ao coração de Luísa. Enquanto Agrião, enfiado num casaco preto grossíssimo e nas suas sonoras botas de militar, distribuía copos de plástico com chá de ervas aromáticas (era impossível imaginá-lo de bata branca), Mário recitava um dos péssimos poemas do Setubalense («Quanto digo, meu bem, quanto não digo/ Tudo em tua presença degenera./ Nada se pode comparar contigo.») como exemplo das coisas que declamava a Leonor na presença de Luísa, enquanto os três almoçavam juntos ou ele convenientemente convidava a septuagenária para um passeio no mesmo parque onde sabia que Luísa estaria com as crianças do vizinho.

Tsukuda entrou na sala mais ou menos por esta altura. A porta rangeu e um vento frio, proveniente do corredor, fez gelar os presentes– o que significava que Inácio estaria no final do seu turno. Era seu costume abrir as janelas durante cinco a dez minutos para arejar os corredores antes de fechar tudo outra vez, e o japonês entrou nesse momento, trôpego e rabugento, possivelmente embriagado. Sentou-se numa das filas de trás, enfiou as mãos o mais fundo possível nos bolsos do casaco e ali ficou, meio adormecido.

É uma coisa incrível, isto da genética, dizia o senhor Mário. A mãe tem o mesmo cabelo da filha, as mesmas sardas, até as expressões são parecidas. E eu gosto tanto de uma, e à outra nem lhe suporto o cheiro.

Falou demoradamente da situação, do desconforto que lhe causava estar a sós com a viúva. Leonor gostava de ver as telenovelas à noite e pedia-lhe que lhe fizesse companhia. Ele sentava-se no sofá de veludo ao lado dela, por vezes davam a mão (que Mário confessou lavar todas as noites antes de se ir embora, porque não queria levar a velha consigo para casa). ­Leonor encantara-se de um dos actores, um tipo novo que fazia de proprietário de uma fazenda em São Tomé e Príncipe e açoitava os seus escravos com uma chibata. Leonor dava saltinhos no sofá sempre que a personagem castigava um negro, soltando pequenas exclamações de surpresa, conjugadas com um certo júbilo.

Ainda por cima é racista, disse Mário, e vi-lhe a tristeza no olhar, o fado da sua vida. Imaginei-o a deitar-se sozinho no seu diminuto apartamento no Inverno do Martim Moniz: uma cama de solteiro, o crucifixo por cima da cama, os atarefados sons das vozes lá fora –vozes de brancos e pretos, de asiáticos, africanos e brasileiros– e ele sozinho, a amaldiçoar o infortúnio de não ter a mulher que queria, mas outra; de se deitar sozinho com a morte sentada numa cadeira a um canto do quarto.

Seguiu-se, nessa tarde, a partilha de Noémia, a bonita e discreta rapariga que aparecera entre nós para dar apoio à irmã Rosa. Contou-nos que o pai delas havia morrido, que o funeral fora na semana anterior (todos ficámos surpreendidos, pois Rosa não dissera nada) e que o senhor deixara uma herança substancial a uma pessoa desconhecida, uma mulher que vivia numa zona remota do Norte do país, de quem as irmãs nunca tinham ouvido falar. Foi uma partilha breve, que terminou com Noémia a olhar para o colo, no qual pousara as mãos, a que se seguiu um silêncio inesperadamente interrompido por Rosa:

Espero que ele arda no Inferno.

Ninguém reagiu. Nenhum rosto contorcido, nenhuma palavra de censura. Olhei para Rosa e reparei que sorria discretamente, os cantos da boca arrebitados, e pensei no sofrimento daquela mulher, na sua doçura; na forma como se entregava aos outros, esquecendo-se de si própria; nas humilhações por que passava à mercê dos alunos; e pareceu-me que renascia ali mesmo com a morte do pai, à imagem de Santa Bárbara assassinada pelo progenitor. Já não tinha mais de viver nas regiões superiores da atmosfera, assustada ou receosa; podia finalmente habitar um lugar que o seu carrasco já não ocupava com a sua assustadora amplitude. Talvez se tornasse a casar um dia, pensei, desta vez com um homem que percebesse melhor a dinâmica da electricidade, ou um que fosse o oposto do pai. Quando olhei para Santos, o bombeiro, que, atrás das duas irmãs, estava de olhos fechados e cabeça tombada em sinal de respeito, ocorreu-me que talvez esse homem já ali estivesse, o irmão menos cerebral, de pés mais assentes na terra. Foi também nesse princípio de noite que Rosa contou ao grupo, contrariando as minhas conjecturas, que tinha começado a sair com um colega das aulas de pilates. Era a primeira vez que saía com alguém desde a morte de Teotónio, o cientista do papagaio; e partilhou connosco o sentimento de culpa e de vergonha que a dominavam por se ter dado permissão de estar com alguém que poderia vir a gostar dela, de quem também poderia vir a ­gostar.

Julgo que foram essas palavras –culpa, vergonha– que arrancaram Tsukuda da sua habitual indiferença. Ele alternava entre duas atitudes. Habitualmente sentava-se de braços à banda, o rabo meio fora da cadeira, as pernas abandonadas, o rosto recolhido ao peito com uma expressão de alheamento (de olhos fechados, a murmurar qualquer coisa levemente denunciada pelos lábios em subtil movimento). Mas também lhe dava para repetir o que alguém dizia, normalmente as partilhas de Jorge sobre a crueldade dos alunos ou as vicissitudes de ser homossexual num ambiente de estreitíssima tolerância. A voz do professor de Educação Física tendia a agudizar-se quando se irritava ou estava magoado; se terminava uma frase com, por exemplo, «não há direito», Tsukuda repetia a mesma frase do fundo da sala, voltando de imediato ao seu torpor, como um papagaio zombeteiro. Por vezes, Jorge chorava, e era consolado por Agrião, que, na sua bonomia e constante optimismo, parecia antes um irmão mais velho e não um parceiro romântico. Enquanto Jorge se assoava ruidosamente com o lenço da risquinha roxa, Tsukuda ria-se. Agrião nunca levava a sério a má educação do homem; servia-lhe o mesmo chá que a todos os outros, com a mesma generosidade; era o perfeito exemplo de alguém que parecia saber as coisas pelas quais valia a pena lutar e as outras, mais pequenas e mesquinhas, que, no limite, poderiam ser alvo de compaixão.

Outras vezes, Henrique chegava tarde à reunião, num estado de espírito tão desassossegado que, em poucos minutos, a contagiava com as suas manifestações de narcisismo. Punha-se a cantar enquanto alguém partilhava ou, num dia particularmente difícil, imitava um cantor de ópera bêbedo, desafinado, e cantava uma ária de O Navio Fantasma, de Wagner. Havia gente que perdia a paciência com Henrique, que o insultava, mandando-o calar. Na tarde em questão, uma senhora mais velha, que soubera das nossas reuniões pela dona Eduarda (eram vizinhas), saiu da sala depois de agredir Tsukuda. Enquanto partilhava sobre o marido, homem que bebia e a submetia a violência doméstica, Henrique, de olhos fechados, começou a dizer palavras em japonês, quase a gritá-las, desferindo-as como balas, interrompendo a mulher que, no fundo de si, encontrara forças para revelar o que mais lhe doía. Ela perdeu as estribeiras: levantou-se e deu uma bofetada sonora a Tsukuda. Depois começou a puxar-lhe o cabelo, chamou-lhe porco e cabrão, filho da puta, e Santos teve de intervir para acabar com aquele espectáculo decadente. Henrique não apresentou qualquer resistência. Era quase como se quisesse que a mulher lhe batesse, lhe enchesse a cara de pancada.

Quando a senhora se foi embora, magoada, Tsukuda falou do pai pela única vez. A violência doméstica parecia ter tocado num sítio qualquer que lhe era familiar– não cacarejara em japonês para ofender a mulher, percebi então, mas porque ficara à mercê das próprias memórias. Por isso, quando, perto do fim dessa reunião de Janeiro, Henrique começou a falar, todos os presentes se voltaram na sua direcção. Guida, sentada ao meu lado, soergueu-se na cadeira. Parecia tão constrangida como curiosa e permitiu que Tsukuda prosseguisse. Pensei: Aqui está o resultado da tua audácia; agora safa-te. Persistia essa voz em mim, teimosa e misógina, que a culpava por tudo, a prestável e subserviente Guida.

Quando eu era pequeno, dormia numa esteira no chão, num quarto vazio, disse Tsukuda, numa voz rouca, esparramado na cadeira, qual flor defunta. A luz da lua entrava pelas persianas, nas noites claras, e o meu pai vinha buscar-me a meio da noite. Levava-me para o quarto dos fundos, onde só havia um narciso a esmorecer numa jarra, amarrava-me os tornozelos e, depois, com uma vara de bambu, açoitava-me as solas dos pés até fazer sangue. Eu ficava deitado no chão a sangrar, a chorar. Os vultos da noite assombravam o quarto, cada um deles me chamava até si, e diziam-me: Vem, entra dentro desta escuridão. O meu pai dizia que eu era um inútil, que os meus pés eram de chumbo porque a minha alma era opaca, tão densa como a alma dos animais mais estúpidos, e era por isso que me batia, noite após noite, no quarto do narciso.

Imaginei o pai dele um homem rude, agricultor nos arrozais do Japão, de mãos bojudas e rosto sulcado de rugas e rancor.

Um dia abriu um buraco no chão do quintal, um buraco grande, do tamanho de uma pessoa pequena, e enterrou-me até ao pescoço, fiquei só com a cabeça de fora.

Tsukuda moveu-se pela primeira vez desde que começara a história, levando a mão esquerda ao pescoço.

Assim, explicou, como um guilhotinado pela terra.

O pai deixou-o no buraco durante dias, contou. Dava-lhe água, e mais nada. A cabeça do rapaz ficou à mercê do sol e do frio, dos bichos que medravam no solo. A pele caiu-lhe, e perdeu temporariamente a visão. Numa noite de temporal, tirou-o do buraco e meteu-o no banco traseiro do carro. Conduziram muito tempo pelos campos.

Via as gotas a caírem no vidro dianteiro, disse Tsukuda, não há nada mais bonito do que o vidro de um carro a avançar contra a noite e a noite a devolver-lhe a chuva. Na escuridão, quando somos pequenos, tudo é idêntico, nada é em lugar nenhum, só sabemos reconhecer o umbral da nossa porta e as luzes da nossa casa. O meu pai estacionou o carro junto de um precipício e disse-me que eu ia voar, e eu soube reconhecer a verdade no hálito do meu soberano, aquele hálito que sempre tinha quando regressava da taberna.

Ia-se instalando, entre alguns dos presentes, a sensação de que nos contava uma fábula. Eu inclinara-me para a frente na cadeira, fascinado pela capacidade que ele tinha de acreditar naquilo que dizia; ao meu lado, Guida estremecia ligeiramente com as palavras do japonês.

Levou-me até à beira da falésia pelo pescoço, continuou. Segurava-me o cachaço como se faz aos animais, aos porcos, quando ainda não foram desmamados. Eu ouvia o rumor das ondas, lá em baixo, e a chuva batia-me no rosto, tinha a pele descarnada dos dias passados no buraco, a água ardia-me na cara. O meu pai disse-me: Está na altura de voares, seu merdas, e começou a inclinar o meu corpo sobre a falésia, eu sentia os dedos dele cravados de ambos os lados do pescoço, e via, lá em baixo, o negrume do mar e a espuma, estávamos algures entre a Lua e os faróis acesos do carro. Voa, inútil, voa, repetia o meu pai, voa, meu inútil.

Tsukuda segurava, com a mão direita, o pescoço de um miúdo imaginário. Guida soçobrara e começou a soluçar.

E eu tentei, fiz tudo o que era possível por obedecer. Queria agradar ao meu pai, queria fazer-lhe a vontade. Agitei os braços como se tivesse duas asas e pensei que ele me ia largar, mas, em vez disso, puxou-me para trás, atirou-me ao chão e deu-me uma tareia que me deixou todo negro. Lembro-me da terra e do pó dentro da boca, de um dente partido. Da ponta dos sapatos do meu pai nas minhas costelas.

Fez uma pausa e respirou fundo, exalando longamente. A seguir, soltou um dos seus risinhos sofridos.

Digamos que não era um tipo cerebral, rematou.

Depois, de súbito, caiu em silêncio, regressando ao seu habitual mutismo. Como se não tivesse dito nada daquilo; ou não houvesse deixado entre nós um profundo desconforto, nascido da enorme piedade que todos agora sentiam por ele, fosse ou não verdadeira a sua história. Guida chorava sem fazer barulho, as lágrimas desciam-lhe pelo rosto. Jorge e Agrião estavam de mãos dadas, numa rara demonstração de afecto em público. Noémia tapava a boca com a mão, e Rosa, de olhos marejados, fitava a noite gelada no exterior da janela.

A reunião terminou aí. Quando saímos da sala, reparei que Inácio ainda lá estava, muito depois de o seu turno ter acabado (éramos nós quem costumava fechar a escola às quartas-feiras, éramos nós quem batia a porta). Fingindo-se distraído, o zelador dizia boa-noite a quem passava por ele e lhe desejava o mesmo, controlando, pelo canto do olho, os movimentos de Tsukuda. Este, sozinho como sempre, atravessou o corredor com passo arrastado na direcção da saída, sem prestar atenção a ninguém, para depois tornar a desaparecer numa vida que eu desconhecia.

Nada daquilo me convenceu. As conversas que eu tivera com o japonês haviam-me deixado alerta para a possibilidade do engodo, de uma ilusão cuidadosamente planeada. Tsukuda era Vogler: um ilusionista desiludido com o fracasso das suas manipulações; um Cristo incapaz, em agonia. E, por isso, aquela manifestação súbita de intimidade – uma confissão insuspeita, extemporânea – cativou-me mas não me convenceu. Deixou-me até ligeiramente irritado. Foi o que Aurora me disse quando cheguei a casa e ceámos: que eu parecia enervado com qualquer coisa na periferia, como alguém que, numa noite de calor, desliga as luzes do quarto e descobre uma melga a esvoaçar em redor dos seus ouvidos.

Por isso, quando o telefone tocou, às onze e meia da noite, estive quase para dizer à voz do outro lado que não me incomodasse, que Tsukuda não era problema meu, que não tinha nada que ver comigo. Eles que ligassem para Guida, pensei; ela ficara suficientemente emocionada com o pungente relato do japonês para querer sair de casa àquela hora e ir ajudá-lo. Tudo isto me ocorreu em meia dúzia de segundos. Depois, o hábito de anos, a voz de Alexandre a dizer-me: Não te esqueças de que és alcoólico, que um tipo como tu ressente as pessoas que lhe roubam protagonismo; pessoas exactamente iguais a ti, que não suportam serem figurantes ou actores secundários numa peça de teatro na qual nunca ninguém lhes prometeu o papel principal.

Ele deu-nos o seu nome e o lugar onde trabalha, foi assim que o encontrámos, explicou, do outro lado da linha, alguém que imaginei ser um enfermeiro do Hospital Júlio de Matos.

Não era um enfermeiro, mas um dos psiquiatras de serviço, que se apresentou quando cheguei ao parque de estacionamento, praticamente vazio. O homem aguardava-me e conduziu-me por uma entrada lateral para a zona de internamentos. Passava da meia-noite quando, numa das enfermarias compridas, de ladrilhos axadrezados e um cheiro vincado e desagradável, qualquer coisa entre o suor e a demência, encontrei Tsukuda deitado numa cama, de olhos fechados, a cabeça tombada para o lado esquerdo. Um líquido escorria-lhe para dentro do braço, por via intravenosa. Havia outras duas camas com pacientes adormecidos; ao fundo, um homem muito comprido e careca, deitado, construía um puzzle num tabuleiro pousado em cima do colo.

Espero que não fosse isto que querias dizer com mudanças, disse eu, percebendo depois que falava em voz alta. O psiquiatra olhou-me com estranheza e explicou que o paciente, que era sobejamente conhecido daquela instituição, tinha sido avistado por um vizinho numa tentativa de suicídio, a preparar-se para saltar da beira do terraço do prédio onde vivia. O vizinho chamou os bombeiros que, por sua vez, chamaram a equipa de prevenção do suicídio, que o levou para o Júlio de Matos.

Ele já passou algum tempo aqui internado, disse o psiquiatra.

Eu sei.

Perguntou-me que tipo de relação tínhamos. Respondi que o conhecia mal, que frequentávamos o mesmo grupo de apoio.

Grupo de apoio a quê?

Hesitei. Na verdade não sabia a resposta e, portanto, não disse nada. Olhei para o fundo da sala, onde o homem que fazia o puzzle adormecera repentinamente, de boca aberta, e ressonava, produzindo um ruído parecido com uma escavação subterrânea.

Houve uns problemas durante o tempo que ele passou aqui no hospital, continuou o médico.

Imagino.

Com uma das enfermeiras, andou a persegui-la sem parar. Foi um caso bastante sério, a rapariga teve de mudar de serviço e, mais tarde, de hospital, porque ele conseguia sempre apanhá-la sozinha. Fosse nos corredores ou nos gabinetes, no parque de estacionamento. A nossa política, aqui dentro, é dar a maior liberdade possível aos pacientes internados, eles são livres de passearem no jardim ou até na rua, se quiserem, se tiverem condições para isso. Grande parte deles são ino-fensivos, mas neste caso foi necessário tomar medidas mais radicais, porque o Henrique não a deixava em paz. Foi um sarilho.

Não podiam dar-lhe medicamentos?

Tivemos alguma dificuldade em fazer-lhe o diagnóstico. Ele passou por vários médicos, não apenas neste hospital, mas noutros. Várias instituições. Quando aqui chegou já tinha um enorme historial clínico: bipolaridade, esquizofrenia, autismo, borderline, transtorno de ansiedade, insanidade temporária e permanente, psicose, exibicionismo, etc. Não me lembro do que mais, mas era quase tudo o que vem nos livros.

Narcisista com um padrão invasivo de grandiosidade, acrescentei.

O médico olhou-me novamente com surpresa. Era um homem jovem, baixo e de rosto algo assustado, como se ter aquela profissão lhe provocasse um medo permanente.

Bom, talvez. Isso também, de certeza.

Então andava por aqui sem estar medicado.

O último médico que o acompanhou foi advertido pelo hospital onde ele esteve anteriormente da possibilidade de suicídio, explicou-me. Aparentemente, tinha ameaçado matar-se. Nunca acreditei nisso, sempre o achei demasiado louco para querer voluntariamente abandonar as suas fantasias. Mas veio parar ao meu grupo de prevenção, e digamos que as coisas também não correram pelo melhor.

Na cama, Tsukuda parecia completamente ausente do mundo. O cabelo tapava-lhe o olho direito; da boca entreaberta, corria um espesso fio de baba.

O que é que aconteceu?

O psiquiatra cruzou os braços em volta de uma camisola sem mangas, aos quadrados azuis e castanhos.

Ele sugeriu aos seus companheiros de grupo, quando eu não estava presente, uma espécie de puputan balinês.

O que é isso?

Um suicídio colectivo. Aconteceu algumas vezes no princípio do século XX, em Bali, perante a ameaça holandesa. Era uma coisa qualquer de honra, o acto dos que preferiam a morte à humilhação de se renderem perante um inimigo sem valor. Qualquer coisa deste género.

«Um inimigo sem valor» para Tsukuda, pensei. Recordei as nossas conversas: os médicos, os hospitais. Os medicamentos, a ciência.

Tive de o tirar dali, como deve compreender, justificou-se o médico, os olhos medrosos a percorrerem a periferia do quarto. Os meus outros pacientes estavam a deixar-se seduzir por aquela conversa, e não me apetecia nada ter um motim suicida em mãos, sobretudo quando a minha carreira depende de impedir que as pessoas cometam actos dessa natureza.

Claro, seria terrível, comentei, escondendo alguma vontade de rir perante a excessiva seriedade do médico. O grupo de prevenção do suicídio que se suicida em grupo.

Não tem graça, disse o médico.

Suspirou de cansaço. Imaginei o quão terrível devia ser trabalhar ali. Um dia após outro de contrariedades, de tentar desesperadamente controlar o que não podia ser controlado, de estar constantemente alerta, a observar cada detalhe e minudência do comportamento dos pacientes, de encontrar caso após caso de loucura sem remissão, de gente que atravessara uma fronteira para lá da qual não existia nada, porta que, uma vez aberta, desfazia a existência do lugar que a precedia. Era assim que eu pensava na loucura: um contágio ou peste que nos remetia a lugares como aquele, tão humanos quanto desumanos.

Quando é que ele acorda?, perguntei.

Não deve demorar, respondeu o médico. Pusemo-lo numa dose baixa de tranquilizantes, porque, quando o trouxeram, se debatia bastante.

O olhar dele abandonou a periferia e pousou no japonês deitado.

Insultou-me, queixou-se, parecendo subitamente melancólico. Chamou-me uma série de nomes em frente das enfermeiras, a vergonha do costume.

Posso fazer-lhe uma última pergunta? Ele anuiu em silêncio, tornando a cruzar os braços em torno dos quadrados. Como é que sabiam que ele estava a tentar matar-se?

Ergueu um sobrolho, perplexo.

Que outra coisa estaria ele a fazer na beira do terraço?

Não sei, repliquei, meio atrapalhado. A admirar a vista nocturna de Lisboa?

É Janeiro, argumentou. Estão seis graus, o céu está encoberto.

Depois perguntou-me: Leva-o para casa?

Eu?

Por favor, leve-o daqui. É só assinar o termo de responsabilidade.

Resisti, mas não fui capaz de recusar. Talvez uma parte de mim desejasse tomar conta dele, oferecer-lhe alívio da sua abespinhada guerra contra as leis do universo e da física. No carro, apercebi-me de que ele, no hospital, acordara muito antes do momento em que parecera despertar, que se fingira inconsciente e escutara a minha conversa com o médico.

Chamei-lhe estupor, disse Tsukuda. E cobarde, e paneleiro. Tudo verdades.

Reclinara o banco do carro e ia quase deitado, de olhos fechados. Eram quase duas da madrugada, e a Avenida de Roma encontrava-se fria e silenciosa, nem vivalma nas ruas. Havia uma certa paz àquela hora da noite e, apesar do frio (eu saíra de casa apressado e esquecera-me de levar um casaco mais grosso), o barulho suave das rodas sobre o asfalto e os semáforos amarelos, intermitentes, emprestavam à cidade qualquer coisa de abandono, de conforto na quietude. Ao mesmo tempo, sentia-me cansado e algo irritado– era um dia de semana, tinha de estar a pé às sete e meia e aquele homem nunca se lembraria de me agradecer, jamais o faria ou demonstraria gratidão por o ter ido buscar, por o levar a casa.

Não estavas a tentar matar-te, pois não?

Henrique manteve os olhos fechados. Dos seus lábios emergia um murmúrio qualquer, uma espécie de ladainha enervante.

Estava, sim, respondeu. Ia saltar, mas queria que fosse à hora certa.

À hora certa?

Sim. Faltavam poucos minutos para as dez quando os bombeiros apareceram. Cabrões. É importante morrer à hora certa, para que não restem dúvidas na certidão de óbito. Não há nada pior do que aqueles falecimentos confusos: «Fulano morreu entre as dez e quarenta e três e as onze e cinco.» É preciso fazê-lo com seriedade, não andar a brincar ao gato e ao rato com a morte.

Voltei à direita num semáforo e entrámos numa rotunda, depois saímos em direcção ao centro.

Estás a gozar, não estás? Só podes estar.

Porque é que haveria de estar a gozar?

Tu não queres morrer.

Também não quero viver.

É melhor estar vivo do que estar morto.

Dá-me uma razão.

Sei lá. Estares vivo para ires à praia no Verão.

O sol faz-me mal à pele.

Para tomares conta dos teus filhos.

Não tenho filhos nem quero tê-los.

Dos teus sobrinhos.

Sou filho único.

Para leres um bom livro.

Já te disse que detesto ler.

Ou veres um bom filme.

Os filmes roubam-nos a imaginação.

Para usufruíres dos prazeres da mesa.

Comer dá-me gases, tenho um estômago fraco.

Dos prazeres da cama.

Tenho um pénis pequeno e sofro de ejaculação precoce.

Porra, disse eu, quase a gritar, e que tal para poderes respirar? E sentires o calor do sol, e o frio da noite, e saboreares um fruto, e poderes olhar para as estrelas e perguntares-te que raio andamos a fazer aqui, e sentires medo e dúvida e esperança e aquelas coisas todas que as pessoas sentem quando não estão fechadas nas suas cabeças a tentar resolver uma equação impossível? E que tal isto tudo? Não te serve? Nada disto te chega?

Sem dar por isso, começara a acelerar. Enervado, bati com as mãos no volante, e o rádio do carro ligou-se. Das colunas surgiu uma voz de mulher, quente e lânguida, daquelas que apresentam os programas da madrugada.

Calma, génio, disse Tsukuda, mantendo os olhos fechados. Ainda acordas os mortos.

Fizemos o resto do caminho em silêncio. (Ou quase, porque ele insistia na sua ladainha. Parecia um velho demente a cantar no rescaldo de uma batalha num filme de Kurosawa.) A morada que me dera –Rua da Arriaga, num bairro caro– era o último lugar onde esperaria que ele vivesse. Quando estacionei o carro, Tsukuda adormecera. Abri um pouco a janela, respirei fundo e fechei os olhos. Era tarde, e o cansaço começava a trair-me, mexendo com a minha percepção das coisas: tudo me parecia selvagem, por domesticar.

Acordei-o e saímos do carro. Ele arrastou-se pela rua, à minha frente. Passámos por uma igreja presbiteriana escocesa até chegarmos à porta de um prédio que parecia ser cor-de-rosa, embora a noite confundisse as cores, com uma fachada bem arranjada. O japonês enfiou a mão no bolso das calças (com a outra segurava as abas do casaco, enquanto um vento forte lhe despenteava o cabelo revolto) e encontrou uma chave. Abriu a porta e entrámos. Subiu as escadas à minha frente, os sapatos a pesarem, desmesurados, na madeira, o murmúrio incompreensível fazendo agora eco na caixa de ressonância do prédio.

Um vizinho do primeiro andar abriu a porta e surgiu no patamar das escadas. Era um homem nos seus cinquentas, alto, de cabelo curto e grisalho, e vestia um roupão elegante. Por baixo do roupão usava um pijama de linho; era evidente que tinha estado deitado e se levantara de propósito.

Senhor cônsul, disse Tsukuda, estacando repentinamente e com uma vénia despropositada.

Recuei um passo e deixei-me ficar nas sombras.

Não vamos ter problemas esta noite, ou vamos?, perguntou o homem.

Tinha uma voz calma e controlada, uma oitava abaixo da de Tsukuda. Hesitou um segundo no patamar e, então, recuou e entrou em casa, fechando a porta. Depois tornou a abri-la quando eu já estava a meio do lanço de escadas, iluminado pela luz de presença.

Quem é este?, perguntou o cônsul a Henrique.

É um amigo da escola, Vossa Excelência, respondeu o japonês.

Não acho graça nenhuma às suas parvoíces, Tsukuda, respondeu, e olhou para mim. Sabe que horas são?

Só vim acompanhá-lo a casa, respondi.

Não são amigos, então?

Sim, disse Tsukuda.

Não, disse eu.

Bom, então deixe-me dar-lhe um conselho, avançou o cônsul. Dê meia-volta e vá-se embora, daqui não leva nada de bom.

Apontou para o japonês, que, à luz diáfana do corredor, parecia uma velha gralha, corcunda e rabugenta.

Aquele que ali está, disse-me o homem, é uma desgraça de ser humano. Das piores coisinhas que algum dia conheci. O pai, esse sim, era outra história. Gente educada, responsável. Um cavalheiro.

Um filho da puta, disse Tsukuda, que acendeu um cigarro e puxou-me pelo braço. Vamos, Sua Excelência quer deitar-se.

O homem de roupão ficou a olhar-nos enquanto subíamos o segundo lanço de escadas. Depois fechou a porta lentamente, talvez a tempo de ouvir Tsukuda insultá-lo, entre dentes, antes de entrarmos no apartamento.

Acendeu as luzes. No hall havia um espelho de corpo inteiro, ao lado de um cabide onde se encontrava pendurado um casaco de homem de fazenda castanha, com botões pretos e cotoveleiras; não era o género de casaco que Henrique usaria. Entrámos na sala. O tecto era alto, o espaço amplo, com sofás rasos de ângulos rectos, e uma mesa central onde repousava um requintado serviço de chá. Numa das paredes havia três quadros pendurados em linha; em cada um dos quadros, sobre um fundo branco, uma letra do alfabeto japonês. Perto da grande janela, que enfrentava a Rua da Arriaga, um bonsai de folhas vermelhas e laranja, sobre uma mesinha de mogno.

Tsukuda despiu o casaco e deixou-o cair no chão. Meio cambaleante, foi ao canto da sala, onde havia uma garrafa pousada no chão. Tirou a rolha e bebeu. Depois voltou-se para mim e mostrou-me a garrafa, erguendo-a. Recusei com um aceno de mão. Ele encolheu os ombros e desapareceu por um corredor. Pus a hipótese de me ir embora, mas estava demasiado perplexo– era incongruente, quase incompreensível, que ele vivesse naquele apartamento de luxo, decorado com bom gosto, quase limpo. Na parede do fundo, oposta à dos quadros, alguma coisa brilhante chamou-me a atenção. Aproximei-me e reparei que havia um sabre em exibição, delicadamente sustentado na parede por dois pedaços de madeira praticamente invisíveis. A longuíssima lâmina reluzia sob as luzes do tecto, que ressaltava ainda a ligeira curvatura, o cabo com gravuras de garças e tartarugas. Tentei pegar-lhe. Ao fazê-lo, a espada, muito mais pesada do que eu calculara, caiu do suporte com estrondo.

Merda, disse, em voz alta.

Quando Tsukuda apareceu novamente na sala, eu estava de joelhos no chão a apanhar a arma. Olhei para cima. Ele vestira um quimono de cetim, com imagens de um guerreiro a perseguir um dragão por entre cálices de flores. Trazia a garrafa na mão.

Gostas?, perguntou, exibindo o quimono.

É como ler um livro ilustrado, respondi.

São narcisos, disse ele.

Que bonito.

Henrique bebeu da garrafa e pousou-a na mesa da sala. Depois, tirou-me o sabre, empunhando-o com as duas mãos. Recuei uns passos até ficar junto do bonsai.

Ele tem doze roupões, disse Tsukuda, agitando o sabre. Seis de seda, e outros seis de linho e algodão turco. Dez pares de sapatos escuros e dois pares de ténis de corrida.

O sabre cortou o ar com um som de sucção.

Sete gravatas, nove camisas brancas e cinco pares de calças.

Novo voo da espada, rasgando o silêncio daquela atmosfera tranquila, quase estagnada.

E eu tenho a roupa que vês, a que trago vestida.

Continuou a fazer exercícios ridículos com o sabre. Suado, algo barrigudo, agia sob efeito do tranquilizante que lhe tinham dado no hospital misturado com o álcool, tentando manobrar uma pesada arma com a qual podia ferir, a si e aos outros.

Kiai!, gritou ele. E depois: Aiá! Iiiiii-ah!

Quem é ele?, perguntei.

Embriagado e trôpego, Tsukuda parou de agitar o sabre. Respirava a custo, a espada pesava uma tonelada. Segurava-a com a mão esquerda, o cabo voltado para baixo e a ponta da lâmina pousada no chão.

Sa-Bu-Ro Tsu-Ku-Da!, gritou, pronunciando o nome com um sotaque japonês fingido, a imitar um actor num filme de samurais. E, em seguida: Banzai, filho da mãe!

Tentou fazer outro golpe no ar, mas desistiu a meio. Exausto, largou a espada no chão, que caiu com estrépito, e ­atirou-se para cima de um sofá, enterrando o rosto na almofada.

Pensava que o teu pai tinha morrido, disse eu.

Não decorreram dez segundos até o ouvir a ressonar. Olhei para o relógio: passavam quinze minutos das três. Que se lixe, pensei, não vou dormir. Pus a hipótese de ligar para casa, mas o telefonema, àquela hora, seria mais um incómodo do que um alívio para Aurora. Decidi passear-me pela casa. Percorri o corredor de onde Tsukuda surgira com o quimono. Havia várias portas, mas a do fundo estava entreaberta. A meio do corredor, um quadro chamou-me a atenção, um par de fotografias emolduradas, discreta e elegantemente iluminadas. Na fotografia da esquerda, mais antiga, a preto-e-branco, havia um homem japonês, de pé, ao lado de uma criança de seis ou sete anos. O homem tinha a cabeça rapada e usava um quimono muito simples, com uma faixa à cintura. Estava descalço, era magríssimo, de cabeça inclinada para baixo, o queixo descaído. Na sua postura adivinhava-se um enorme peso, algo invisível que lhe arqueava os ombros, uma melancolia difícil de suportar. Tinha a boca entreaberta como se tivesse sede, e os olhos havia muito perdidos em parte incógnita. A criança erguia o braço direito como se quisesse dar a mão ao homem –presumivelmente o pai–, e usava um casaco e calções, com meias pretas; era um rapaz bonito e de feições meigas, algo amedrontadas. Não havia cenário. Talvez fosse uma fotografia de estúdio, ou sobreexposta. Atrás das duas figuras, restava um bege pastoso, informe; debaixo dos pés, um fino tapete. Na parte inferior da moldura, gravada sobre uma diminuta placa dourada, a inscrição Showa 17.

A fotografia do lado direito era muito mais recente. A cores, tirada também em estúdio, abarcava apenas o rosto e os ombros de um homem. Não era um rosto sorridente, mas também não possuía nenhuma da sinistra decrepitude do outro. Um homem japonês de sessenta ou setenta anos, calculei (se fosse ocidental, diria cinquenta ou cinquenta e cinco, mas a verdade é que os rostos orientais envelhecem mais devagar), vestido com um casaco castanho (perguntei-me se seria o casaco pendurado à entrada) e uma camisa azul-clara. Havia uma enorme bonomia nas suas feições, que eram meigas como as do rapaz na fotografia da esquerda. A inscrição dizia: «Saburo Tsukuda Embaixador do Japão», e datava de quatro anos antes.

Era o pai de Henrique. Recuei um pouco, fui engolido pela penumbra. Não podia ser aquele homem, pensei: não podia ser. Aquele é que era o filho da puta, o cabrão? O pai que gostava de distribuir porrada, de espancar o filho, de o enterrar até ao pescoço? Que o levara, em miúdo, para a beira de um penhasco a meio da noite? Eu desconfiara de que os lamentos de Tsukuda naquela reunião de quarta-feira eram exageros, mistificações; mas nunca imaginaria que o pai dele, o senhor Saburo, fosse na verdade um homem de respeito, um diplomata, alguém tão distante da figura cruel que o filho pintara, que era impossível associar o rosto naquela imagem a qualquer das descrições de Henrique (lembrei-me, nesse momento, da ilustração de ­Quixote sentado no quarto, delirante, rodeado de monstros e donzelas em apuros). Um passo adiante, havia um póster antigo, emoldurado, os cantos desfeitos pelo tempo, de um jogador de basebol com um meio sorriso, de mãos nas ancas, a luva calçada na mão esquerda. O uniforme parecia um pijama, com um símbolo indecifrável do lado esquerdo.

Avancei para a porta entreaberta e entrei num quarto escuro, com um cheiro desagradável. Era o fedor de Henrique– das suas roupas, do seu corpo, quando se sentava, desmazelado e porco, na cadeira ao fundo da sala. Do lado esquerdo havia uma janela através da qual se viam as luzes da ponte; ao centro, uma grande cama desfeita, aos pés da qual jaziam garrafas vazias, cinzeiros, beatas de cigarros, papéis amachucados, jornais antigos, restos de comida em pratos sujos e uma pilha de livros espalhados pelo chão, muitos deles abertos, maltratados, com páginas arrancadas. Ele transformara aquela divisão numa pocilga. Vasculhei alguns dos livros que estavam caídos no chão e encontrei o Paradise Lost de Milton ilustrado por Gustave Doré. A capa era o desenho da queda do Diabo do Céu, um corpo humano com asas demoníacas a despenhar-se em direcção a uma terra pura, protegida por nuvens, o céu uma escuridão estrelada. No canto superior da primeira página, estava escrito, em alfabeto ocidental, o nome de Saburo Tsukuda. Os outros livros tinham todos a mesma inscrição; pertenciam ao pai de Henrique, mas eram, invariavelmente, livros sobre temas que rondavam as obsessões do filho. O livro de esboços de Leonardo da Vinci, por exemplo. As páginas que diziam respeito às suas famosas máquinas voadoras, desenhos minuciosos da construção de asas muito parecidas com as que o diabo de Doré ostentava –asas de morcego–, embora, na sua totalidade, o ornitóptero de Da Vinci fosse muito mais parecido com um pássaro cuja energia nascia da volição humana. Havia também o esboço de uma máquina que se assemelhava a um helicóptero medieval, duas enormes hélices sustentando uma espécie de cadeira de formato cónico, além de inúmeros rabiscos e apontamentos ilegíveis junto de cada uma das partes destes engenhos imaginários.

Um terceiro volume era ainda mais estranho. Chamava-se Manual de Instruções para Levitar sobre os Telhados. No frontispício tinha o nome de um autor que eu desconhecia. Era um livro antigo de uma editora francesa, provavelmente defunta, e as páginas estavam amarelecidas e desgastadas pelos anos. Assim que o abri, chegou-me às narinas aquele odor característico dos volumes de alfarrabistas, que, infelizmente, me provocam alergia. O livro falava de famosos levitadores, de proezas inauditas, de êxtases religiosos e epifanias, de experiências transcendentais. Os capítulos eram divididos por fases: dos Prolegómenos aos Obstáculos, dos Exemplos às Tarefas, etc. Abri-o ao acaso. Um dos capítulos começava assim:

«[…] o utilizador deste manual deverá, por esta altura, ter a experiência directa, não mediada, nem sonhada ou alucinada, do que é levitar alguns centímetros acima do chão, embora, porventura, essa experiência possa durar uma pequena brevidade e revelar-se ainda assaz frustrante.»

Escutei a voz de Tsukuda, que, do outro lado do apartamento, parecia gemer ou implorar. Reparei que, ao lado da cama, escondidas entre as garrafas e os jornais, havia duas pantufas na forma de dois peixes azuis, de olhos vermelhos e barbatanas amarelas. Não pude evitar rir-me em voz alta. Imaginei Henrique a passear-se pela casa com aquelas pantufas calçadas, enlouquecido, a ler o manual de levitação, e ocorreu-me que a sua estranheza –ou tudo aquilo que nele era fora do comum– pudesse ser a parte nipónica da sua personalidade. Afinal, os Japoneses gostavam de peixe cru e de algas, atrofiavam as árvores para caberem dentro de casa e enfiavam espadas na barriga quando já não podiam mais suportar a dor do arrependimento ou da desonra. Não havia razão nenhuma para que Henrique fosse um homem normal. E, no entanto, Saburo, o seu pai, aparentava ser um homem normal (estaria vivo ou morto? Aquele apartamento pertencia, obviamente, a um vivo).

Regressei à sala e encontrei Tsukuda caído no chão. O roupão abrira-se, revelando o seu corpo flácido, o pénis pequeno, com poucos pêlos púbicos, descaído para um dos lados. Conseguira, de alguma maneira, beber o resto da garrafa, e desfalecera novamente, os braços abertos na pose de um cristo pornográfico. Ajoelhei-me e tentei acordá-lo, batendo-lhe levemente no rosto. Henrique abriu um dos olhos e pareceu não me reconhecer, continuava dentro de um sonho.

És tão linda, disse, a arrastar as palavras. Mexe aqui.

Tentou levar-me a mão ao pénis.

Está quieto, respondi.

Grunhiu alguma coisa. Depois, consegui a custo erguer-lhe o tronco (a barriga pendia-lhe feiosamente, uma massa adiposa do excesso de álcool), lentamente pusemo-nos de pé e, com o japonês abraçado a mim –ou pendurado em mim–, atravessámos o corredor. Tsukuda arrastava os pés como um condenado, e eu tentava não respirar para evitar sentir o seu cheiro a pessoa por lavar, a bêbedo. Porque lhe voltara o rosto, com Henrique à minha esquerda, tornei a ver a imagem de Saburo, que parecia acompanhar-nos com a sabedoria dos antigos, aqueles que observam os penitentes com terna compaixão, sabendo que nenhum sofrimento é em vão, que nenhuma agonia é eterna.

No quarto, já em esforço, afastando o lixo, consegui deitar Tsukuda em cima da cama. O homem caiu de costas como se tombasse de uma enorme altura, a sacudir o colchão e os lençóis, a boca aberta revelando dentes desiguais, amarelos do tabaco. Tirei-lhe a custo os sapatos. Também cheirava mal dos pés. Tinha os olhos fechados e murmurava qualquer coisa, parecia querer falar comigo. Aproximei-me para ouvir o que dizia.

Não acreditaste naquele paneleiro, pois não?

A voz saía-lhe rouca, quase imperceptível.

Em quem?

No médico.

Claro que não.

Tentei encontrar o cobertor aos pés da cama. O quarto, ao contrário do resto da casa, era frio, quase gelado; tive receio de que ele morresse ali dentro de hipotermia, alcoolizado como estava. Levou as mãos ao abdómen e depois, parecendo sofrer de uma dor de barriga aguda, deu meia-volta na cama e ficou de cabeça enterrada na almofada.

Não estavas a tentar matar-te, pois não?

Mmmmffff, disse ele, a voz abafada pela almofada.

No terraço, insisti, sentando-me na beira da cama. Acreditas mesmo que, se saltares, vais conseguir voar? Que vais subir em vez de caíres, como todos os seres humanos? Que não vais acabar no chão, todo estropiado?

Ao menos estou disposto a tentar, respondeu.

É uma tentativa muito estúpida.

Uma das vantagens de estar vivo, disse ele, a parecer emergir do torpor, é sabermos que podemos acabar com isto a qualquer altura. Meter a corda ao pescoço. Engolir os comprimidos todos do frasco. Puxar o gatilho, enfiar a espada na barriga. Imagina que não te podias matar. Que vivias num quarto sem portas e sem janelas, e que não havia maneira de pores fim à vida, que tinhas de passar a eternidade toda aprisionado.

Essa não é a realidade, respondi.

Dá-me uma razão para continuar aqui, pediu.

Precisas de uma razão para tudo?

Ele fez uma expressão de esforço e soltou gases ruidosos. Sorriu, aliviado.

Final por final, prefiro que seja lá em cima.

Então serás tu a sacrificar-te pela raça humana, argumentei. Era o que eu devia ter dito ao médico: que o teu padrão invasivo de grandiosidade vai levar-te, mais cedo ou mais tarde, a fazer um disparate que, em vez de fazer de ti imortal, vai fazer de ti mais um idiota que entra na estatística dos que se atiram de um quinto andar sem deixar sequer uma carta de despedida.

À hora certa, não te esqueças, confirmou ele.

Ficámos uns segundos calados. Tsukuda agarrou-me no braço e apertou-o ligeiramente, como se procurasse consolo.

Onde é que está o teu pai?, perguntei.

Saburo is dead, disse ele, num inglês rudimentar.

És um mentiroso.

Ele voltou a cabeça para o outro lado. Falou para a parede, e as palavras surgiram sumidas, recatadas, surpreendentemente cândidas; como se àquela hora, pesando o cansaço e a bebida, fosse um outro, menos doente.

Quando eu tinha oito anos, eu e o meu pai vivíamos numa casa pequenina em Tóquio, no distrito de Yanaka. Era um bairro de ruas pequenas, lojinhas, mercearias e templos. A rua onde vivíamos tinha muitas árvores, cerejeiras. Por vezes, quando eu acordava, tinha flores de cerejeira nos lençóis e no chão, elas esvoaçavam e entravam pela janela. Era tão bonito acordar com aquelas pétalas cor-de-rosa. Anos mais tarde, quando conheci as mulheres, não havia uma vagina que não me lembrasse flores de cerejeira. Todas me recordavam das flores, da janela aberta no Inverno, do cheiro de Tóquio ao fim da tarde. Da tristeza que eu sentia na casa do meu pai.

E a tua mãe?, perguntei.

Não havia mãe, disse Tsukuda. Mãe, mãe, mãe, repetiu. Sabes como se diz em japonês? É uma risota: Haha. Assim, como uma pessoa que se ri de outra, ou de alguém a tropeçar numa casca de banana. Haha. Não, mãe não houve. Nasci esculpido e cinzelado pelo senhor Saburo, artesão da humanidade, grande filho da puta. Um dia, chamou-me ao seu quarto, onde dormia de cigarro aceso na boca. Às vezes, dormia com dois cigarros acesos na boca, foi um milagre nunca ter pegado fogo à casa. Chamou-me e ordenou que não comesse mais nada nesse dia, nem no dia seguinte. Que bebesse apenas meio copo de água antes de me deitar. Eu nunca questionava as ordens do meu pai com aquela idade, nunca. Era homem de poucas palavras. Não comi, só bebi meio copo de água. No dia seguinte, cheio de fome, fui perguntar ao meu pai se podia comer o resto de pão que havia na cozinha, ou mesmo só os rebentos de soja que havia no frigorífico, ou o feijão-verde, mas o meu pai gritou comigo, que não me atrevesse a tocar em nada, só meio copo de água e ia imediatamente para a cama. Deitado, ele fumava os seus cigarros e apagava-os no chão. Nessa noite não consegui dormir, só pensava em comida. Fechava os olhos e via frangos e bolos de arroz e camarões e líchias a desfilarem na escuridão, lembro-me de que até vi um gato, e perguntei-me, com aquela idade, se eu seria capaz de comer um gato, e decidi que sim, que, se alguém entrasse por aquela porta com um gato na frigideira, eu comia-o sem pensar duas vezes. Ao final da tarde seguinte, Saburo veio buscar-me por um braço e levou-me para a sala. O dia morria, os pardais-monteses celebravam a chegada da noite empoleirados nos ramos das árvores. Só tínhamos uma janela, que dava para uma rua tranquila, lá fora viam-se os telhados das casas ao lado da nossa, os telhados em tesoura dos Japoneses e os cabos de electricidade, parecia que, nesses tempos, estavam por todo o lado, acima das nossas cabeças e, às vezes, nas ruas mais estreitas, desciam muito baixo, pendiam em meia-lua sobre as ruas, eu imaginava sempre que um homem muito alto podia pendurar-se dos cabos e assim andar pela cidade. Na sala, o meu pai abriu a janela e ficámos a ver o dia morrer. Lembro-me que a nossa sala era despida de conforto. Tinha um sofá, uma televisão antiga e mais nada. Era a sala de um homem sozinho, um lugar triste. É curioso como a melancolia dos adultos pode contagiar uma criança a ponto de ela julgar que também sofre do mesmo. Que a tristeza é sua. Não é verdade que o maior desejo de um miúdo é ser igual ao seu pai? Ora aí tens. Ao mesmo tempo, estava convencido de que o meu pai era assim por minha culpa. Que eu era um peso, um fardo demasiado grande, que ter de cuidar de mim era uma tarefa tão cruel que o melhor era não existir, ou comer um gato e morrer. Quando a noite chegou, eu tinha frio e muita fome, mas o meu pai não se movia, e eu não saía do seu lado, tudo o que queria era estar ao seu lado. As luzes de Tóquio acenderam-se, sobre os telhados dançavam pássaros negros e sombras, os cabos da electricidade agitados pelo vento pareciam tentáculos de monstros, as estrelas observavam-nos em silêncio, eram olhos de deuses pacíficos, zombavam do nosso preocupante destino. E então ele deu-me a mão.

Tsukuda fez uma pausa e tossiu. Pensei que se ia revirar na cama, mas ficou muito quieto. Eu não lhe via o rosto, somente a sombra que o meu tronco projectava sobre o corpo deitado, iluminados pela brevíssima luz do corredor. Aguardei.

Deu-me a mão, repetiu, com a outra mão tirou-me uma flor de cerejeira do cabelo, e começámos a voar. Não espero que acredites nisto. Cada um tem o seu deus, a sua maneira de acreditar no infinito. Voámos. Os meus pés de rapazinho ergueram-se do chão para atravessarmos a moldura da janela. E voámos para dentro da noite. Foi uma sensação como eu nunca tivera na vida. A sensação de não estar em mim, de ser todas as coisas. De ser a noite e o vento, as estrelas e a Lua, os telhados, de ser a minha mão e a mão do meu pai, de sermos uma coisa só. Já não tinha fome nem sede, a única coisa que existia era o lento movimento de ascensão dos nossos corpos, o meu pai à frente, eu a pouca distância. Pousámos por um momento no telhado vizinho, o vento atravessava a cidade, o silêncio era enorme, os meus pés resvalaram das telhas, depois senti que uma força cuidadora me puxava para cima outra vez. Voámos ainda mais alto, e tive a visão do horizonte iluminado, as luzes a perder-se na distância, a Torre de Tóquio, em Minato, a erguer-se acima de tudo, enquanto os nossos corpos penetravam o negro.

Incrível, disse eu, invejando a imaginação de Tsukuda, a sua surpreendente eloquência; ao mesmo tempo que lamentava o seu profundo delírio.

Senti-me vazio, disse ele. As palavras começavam a sair-lhe mais lentas, mais fracas. Ou esvaziado, é essa a palavra certa. Não tinha nada dentro de mim, nenhum peso. Nenhuma espécie de âncora. Sim, era isso. O contrário do que sinto hoje, que estou atracado a este chão como se fosse um barco muito velho e naufragado, o casco corroído de verdete, preso ao fundo por âncoras pesadas e ferrugentas.

Como o Diabo de Doré, disse eu.

Pobre coitado, respondeu, e suspirou demoradamente. Nessa noite, voámos durante muito tempo, continuou. Não fomos muito longe. Andámos pelos telhados da vizinhança, íamos de um para o outro, pousávamos numa casa, tornávamos a partir, pousávamos noutra, assustando os pássaros. Pareceu-me uma eternidade, eu sempre de mão dada ao meu pai, ele em silêncio ou, às vezes, a observar-me pelo canto do olho para ter a certeza de que eu entendia o milagre. Depois, lembro-me de despertar na minha cama. Abri os olhos e já não estava a voar, já não estava de mão dada ao meu pai. Estava sozinho na minha cama, e via, nítido como a água, à luz de um dia claro, um fio muito fino que esvoaçava por cima da minha cabeça. Tentei agarrá-lo, mas o fio desapareceu, esfumou-se no ar. Restou-me no corpo o sentimento de uma profunda felicidade, de ter descoberto a maravilha. Qual maravilha? A de saber que o homem não estava condenado a arrastar-se, mas era capaz de elevar-se acima de si mesmo. Que podia planar nos lugares que pertenciam aos pássaros e às outras criaturas aladas.

Finalmente, voltou-se na cama. A escuridão estava mais intensa, e pensei que talvez as luzes do corredor houvessem diminuído de intensidade; era possível que esmorecessem sozinhas quando não havia ninguém. Vi-lhe o rosto mergulhado na penumbra, as feições indistintas. Pareceu-me que chorava em silêncio, mas não posso ter a certeza. Havia alguma coisa de profundamente infantil na sua expressão, como se contar um episódio da infância o fizesse regressar à infância, aos anos precoces em que os sonhos e a realidade são uma e a mesma matéria, permutada e moldável. Ao mesmo tempo, nunca o ouvira falar com tanta candura– sem o recurso habitual à zombaria. Nada fazia sentido, e isso era quase uma maneira de tudo aquilo fazer sentido– de ser consentâneo com a loucura de Henrique. A história de Saburo era contraditória (um tirano; alguém que oprimia o filho pela violência; um super-homem capaz de voar; um plácido diplomata), e era até difícil acreditar que ele acreditasse na sua própria mitologia (ora dormia numa esteira no chão, ora numa cama; ora havia uma mãe, ora não havia), que não existisse um lado seu que se comprazia na ilusão que ia construindo, nos artifícios de que rodeava a sua personalidade desfragmentada.

Não espero que acredites em mim, disse Tsukuda, fechando os olhos e abraçando a almofada, enquanto se aninhava em posição fetal. O medo impede-nos de acreditar naquilo que o medo nos diz que é impossível.

Os mestres do ar nada temem, respondi.

Em poucos segundos, Tsukuda ressonava vigorosamente. Tapei-o com o cobertor que encontrei aos pés da cama e, sem fazer barulho, saí do quarto e fechei a porta. Fui para a sala e, sentindo que me faltavam as forças, sentei-me num dos sofás. Era extremamente confortável. A manhã ainda não chegara, mas havia um prenúncio de luz no horizonte acima da ponte, suspenso sobre as águas. O bonsai respirava tranquilamente. No chão, o sabre dormia. Ocorreu-me, ali deitado, que talvez fosse insensato ocultar do médico que Tsukuda, ao contrário do que parecia, não tentava o suicídio, mas esperava um milagre. Se o contasse, talvez no Júlio de Matos pudessem de facto ajudá-lo, alguém que tivesse a sabedoria e o discernimento para o fazer descer das suas rebuscadas fantasias e o trazer de regresso ao mundo dos comuns mortais. À nossa maneira, embora tivéssemos os pés no chão, pairávamos de cabeça nas nuvens.

Adormeci. Sonhei com o apartamento em que eu e Irina vivíamos quando o nosso filho nasceu, recordei o dia em que me fechei na casa de banho a chorar, olhei pela janela e o desespero quase me fez saltar. No sonho, em vez de chorar, como resposta ao desespero abria a janela que enfrentava o prédio oposto, e, avistando o céu na abertura entre os dois prédios, a faixa vertical de azul, o meu corpo começava a erguer-se do chão. Levitei pela noite, tão leve, tão livre de mim próprio. Acordei estremunhado, ainda feliz; depois percebi que continuava deitado no sofá, que tudo aquilo tinha sido uma fantasia, que o corpo me doía, me pesava, e senti uma enorme desilusão, uma tristeza ensombrada.

Cabrão, praguejei.

O palavrão era para Tsukuda, que começava a infectar-me com as suas loucuras. Levantei-me a custo, com um grunhido. Do fundo do corredor ouvia os roncos do japonês. O dia nascera. Do outro lado da grande janela da sala, reparava agora, havia um terraço com um jardim. No centro do jardim, um limoeiro. Num dos ramos pousava um pássaro pequeno, de muitas cores, que batia as asas muito depressa. Tinha um bico longo, como uma agulha. Nunca tinha visto um pássaro daqueles; talvez fosse uma espécie que Saburo, quer estivesse vivo, quer estivesse morto, trouxera do Japão. Peguei no livro antigo sobre levitação traduzido do francês e, desavergonhadamente, fui-me embora com ele.

Talvez a razão pela qual um grande jogador de xadrez tem a capacidade de estar sentado durante muito tempo seja a mesma razão pela qual alguém, perante uma situação difícil, perante uma enorme dúvida ou incerteza, é capaz de esperar por uma resposta sem entrar em desespero. Pouquíssimos de nós conseguem contrariar a urgência de apressar a realidade, o desejo quase incontrolável de obter, pelo menos, algum alívio do medo. Esse passo, essa capacidade de saber esperar, o que nos separa de deus, é o mais difícil. Foi nisso que matutei durante muito tempo depois de ter estado em casa dos Tsukudas, depois de ter assistido de perto à insanidade de Henrique, à sua prisão num lugar de devaneio. Ali estava um homem que precisava urgentemente de uma resposta, precisamente aquilo que nunca obteria enquanto a procurasse desvairadamente. Tudo era demasiado lento para a sua urgência[2], e essa urgência corroía-o, pois levava-o a repetir os mesmos erros, a pôr-se uma e outra vez no centro do tabuleiro.

Aprendi o significado desta metáfora naquela ocasião em que fiquei duas semanas com Prometeu, no dia em que o cão despareceu da minha vista e o julguei desparecido. Quando entrei naquela esquadra (em agonia, desesperado) e vi o bicho de focinho enfiado no colo de um rapaz, a única coisa em que consegui pensar foi no meu alívio– já não teria de dizer a ­Alexandre que o seu estimado e fiel amigo andava perdido pela cidade. Teria sido um golpe demasiado duro, que talvez Alexandre até suportasse com maior estoicismo do que eu. Poderia ter sido o meu fim; não era incomum um alcoólico tornar a beber por causa de um erro semelhante. Lancei-me ao animal, abracei o enorme setter irlandês, ajoelhando-me à frente da mulher e do rapaz. Era um miúdo de doze ou treze anos, de joelhos ensanguentados, vestido com farrapos, ténis sujíssimos, com o lábio inchado e o cabelo sujo. A mulher olhou-me com curiosidade e disse que eu devia amar muito aquele cão, que o bicho tinha sorte. Expliquei-lhe que o bicho não era meu e que por isso a responsabilidade era ainda maior.

Então está abraçado à responsabilidade, disse ela.

E, na verdade, estava, sem o saber, em mais sentidos do que o estritamente literal. Ela conseguira resumir-me numa frase; todo aquele período da minha vida, que parecia culminar ali, fora consumido pelo esforço de reabilitação de uma figura imaginária – um eu confiante, adaptado e feliz, que nunca existira nem nunca chegaria a existir. Perante esta exigência desumana, qualquer espírito arranja subterfúgios de irracionalidade para se libertar do espartilho, e eu arranjara inúmeros ao longo de uma década. Quando na esquadra Aurora disse aquilo –éramos completos desconhecidos–, foi como se alguma coisa dentro de mim se tivesse desfeito, alguma coisa sólida e túrgida que se intrometera no caminho de vir a aceitar quem eu era.

Cedo percebi que o rapaz não era filho dela. A situação era mais estranha: o miúdo tinha tentado assaltá-la. Passara por ela na rua e, com um puxão violento, tentara roubar-lhe a carteira, mas Aurora resistira e acabara por deitar o rapaz ao chão. Envergonhado de ser dominado por uma mulher, pusera-se aos berros, insultando-a de tal maneira que ela decidiu arrastá-lo até à esquadra da polícia para lhe dar uma lição. Quando alguns dias mais tarde fomos tomar um café, confessou que não queria que prendessem o miúdo; queria somente mostrar-lhe as consequências das suas acções.

Ou melhor: que tudo aquilo que fazemos tem consequências, reverbera no universo. Devo dizer mais?, perguntou ela, com um sorriso.

Sorria sem razão, a propósito de coisas que eu nem entendia. No decurso dos anos, raramente soube compreender que pessoa era aquela, ou que enorme sentido de justiça a movia; por que razão se alegrava subitamente, por que motivo se interessara por mim, por que carga de água perdia tempo com um miúdo pobre que roubava (um futuro delinquente juvenil). Nunca abarquei que espécie de cabeça era a sua, que via humor nas enormes orelhas de uma criança surda e, ao mesmo tempo, elaborava planos minuciosos para os seus dias (costumava escrever, nos seus cadernos, as horas precisas dos afazeres num dia cheio: despertar às 07h30, duche às 07h45, pequeno-almoço às 08h00, e por aí fora). O facto de nunca a ter conseguido entender plenamente despertou em mim o amor, que era tão diferente da obsessão romântica-sexual que durante anos a fio eu confundira com amor. Apareceu Aurora e logo Helena desapareceu do meu horizonte. De tal maneira que, depois de ter conhecido Aurora, nem me dava conta da sua presença nas reuniões. Talvez tenha sido então que lhe despertei mais a atenção. Um dia veio ter comigo e perguntou-me o que se passava – que eu parecia ausente, distraído. Sorri e disse que estava tudo bem, que não precisava de se preocupar. Que se preocupasse consigo (senti, claro, uma secreta satisfação em dizê-lo, como sempre acontece quando nos libertamos daquilo que nos causa dor). E depois dei-lhe um abraço leve e esqueci-a para sempre.

Que outra coisa poderia eu fazer? Cada um tem o seu deus, a sua maneira de acreditar no infinito.