MATANÇAS RELIGIOSAS

A coisa mais estranha sobre os conflitos religiosos é que algumas pessoas negam que tenham existido. Dirão que as Cruzadas se deram por motivos econômicos, e que a Inquisição foi um movimento de consolidação de poder. Negarão que alguém lute por causa de religião, a despeito do fato de que os participantes admitiram livremente que lutaram por causa dela.

Obviamente, nenhuma guerra é 100% religiosa, ou 100% de qualquer coisa, na sua motivação, mas não podemos nos furtar ao fato de que alguns conflitos envolvem mais religião do que outros. Então, como podemos decidir quando a religião é a causa real de um conflito, e não apenas uma desculpa conveniente para encobrir outros objetivos?

Bem, para começar, se a única diferença entre os dois lados é a religião, então é bem seguro afirmar que o conflito é religioso. Sérvios, croatas e bósnios são basicamente o mesmo povo, exceto quanto à religião. O mesmo acontece com os holandeses e belgas. Nas guerras religiosas francesas, na divisão da Índia, nos distúrbios da Irlanda do Norte e na guerra no Líbano, as pessoas que tinham a mesma aparência, falavam a mesma língua e moravam nas mesmas comunidades pulavam na garganta das outras apenas porque seguiam religiões diferentes.

Outra consideração: até que ponto você pode descrever um conflito sem mencionar a religião? A Guerra Civil Americana certamente teve motivos religiosos: o fanatismo de John Brown, o discurso inaugural de Lincoln, “O Hino da Batalha da República”, mas você pode facilmente escrever uma história detalhada daquela guerra sem mencionar nenhuma dessas coisas. Compare aquele conflito com, por exemplo, as Cruzadas. Será que você poderia compor um parágrafo sobre estas últimas sem mencionar o papa, a Terra Santa ou Jerusalém? Você pode argumentar que as Cruzadas foram sobre algo mais que religião, mas tente escrever duas páginas sem trazer esse assunto à baila.

Finalmente, se as partes alegam motivos religiosos para o conflito, devemos pelo menos levar em conta a possibilidade de que eles estejam dizendo a verdade. A religião é tão central para uma pessoa, no mundo todo, que a maioria das grandes decisões tem algum tipo de motivação religiosa. Mesmo que o comandante em chefe use a religião apenas como uma desculpa conveniente e cínica para levantar as massas, a principal razão para que ele faça isso é porque isso funciona. Você nunca vê um desses tipos beligerantes convocando os exércitos para destruir o inimigo que soletra ou se barbeia diferentemente, porque essas são razões estúpidas para se lutar uma guerra. Uma religião diferente, em contraste, é geralmente aceita como uma razão perfeitamente boa para se matar alguém. Se não fosse, por que as pessoas se uniriam em torno dela?

Mas nem todo conflito entre religiões diferentes é um conflito religioso, especialmente quando há múltiplas diferenças entre os grupos em confronto. Na conquista europeia das Américas, o desejo de converter os nativos era muito menos importante do que o desejo de explorá-los. A guerra do Pacífico entre japoneses e norte-americanos é facilmente explicada como uma luta pelo poder geopolítico. Quando os turcos avançaram pela Europa, a religião desempenhou um papel, motivando tanto os atacantes quanto os defensores, mas esse motivo era secundário em face da simples construção de um império ocorrendo em todas as suas fronteiras.

Para a organização da nossa lista, contamos apenas conflitos e opressões nos quais a religião é amplamente considerada a razão primária do conflito, juntamente com sacrifícios humanos e assassinatos rituais.

As trinta matanças religiosas mais letais

A Rebelião Taiping (1850-64)

Vinte milhões morreram no levante messiânico dos cristãos chineses.

A Guerra dos Trinta Anos (1618-48)

Sete milhões e meio morreram enquanto católicos e protestantes lutavam para controlar a Alemanha.

O Holocausto (C.1938-45. Ver “Segunda Guerra Mundial”)

A Alemanha nazista matou 5,5 milhões de judeus por toda a Europa. Embora os nazistas tenham alegado ter matado judeus por motivos raciais, a única diferença essencial entre as vítimas do Holocausto e os que não foram eliminados foi sua religião ancestral. Foi o clímax de diversos séculos do antissemitismo europeu.a

A revolta Mahdi (1881-98)

Cinco milhões e meio de sudaneses morreram durante esse levante fundamentalista muçulmano.

Os combates de gladiadores (264 a.C. – 435 d.C.)

Talvez 3,5 milhões de gladiadores tenham sido mortos para homenagear os ancestrais romanos.

As guerras religiosas francesas (1562-98)

Três milhões e meio de pessoas morreram nas guerras entre católicos e protestantes na França.

As Cruzadas (1095-1291)

Por duzentos anos, os cristãos europeus tentaram arrebatar o controle da Terra Santa das mãos do muçulmanos. Talvez 3 milhões de pessoas tenham morrido nessas guerras.

A Rebelião Fang La (1120-22)

Dois milhões de pessoas morreram numa revolta de camponeses na China, que começou com um atrito entre um imperador taoista e uma minoria mandchu.

Os sacrifícios humanos dos astecas (1440-1524)

Os astecas sacrificaram 1,2 milhão de pessoas.

A Cruzada albigense (1208-49)

Em torno de 1 milhão de pessoas no sul da França foram mortas nessa guerra para exterminar a heresia cátara.

A Rebelião Panthay (1855-73)

A rebelião dos muçulmanos no sudeste da China matou 1 milhão.

A Rebelião Hui (1862-78)

Outra rebelião de muçulmanos no noroeste da China matou 640 mil.

A divisão da Índia (1947)

A violência das multidões matou 500 mil hindus e muçulmanos.

A invasão da Irlanda por Cromwell (1649-52)

Cromwell matou de 300 mil a 500 mil irlandeses nessa invasão.

As guerras romano-judaicas (66-74 e 130-136 d.C.)

Uma série de revoltas messiânicas contra a autoridade romana ocasionou talvez 350 mil mortes.

A Bíblia

Há dois lados no debate sobre as atrocidades descritas na Bíblia: (1) Deus é misericordioso e tudo descrito na Bíblia é absoluta, infalivelmente verdadeiro, mas o número de pessoas chacinadas pelos israelistas foi enormemente exagerado, e, de qualquer maneira, aquelas pessoas mereciam morrer; (2) a Bíblia foi escrita por meros mortais, que cometeram uma porção de erros, de modo que você não pode acreditar em tudo que está escrito ali, mas olhe para todas aquelas pessoas mortas pelo chamados homens santos nas chamadas guerras santas na chamada Terra Santa.

Consideremos, por exemplo, a cidade de Ai. A Bíblia afirma bem claramente que Josué matou 12 mil pessoas naquela cidade por ordem de Deus. Se você é fundamentalista, tem de se explicar muito, mas se é pagão, você pode simplesmente dizer que Ai significa “ruína”, e que os arqueólogos já determinaram que a cidade foi destruída muito antes de os israelitas chegarem à Palestina, e que, portanto, a Bíblia está errada. Isso significa que nenhum dos lados do debate pode usar confortavelmente a Bíblia para apoiar sua interpretação da história.

Seja como for, se totalizarmos as partes da Bíblia que narram atrocidades, encontramos 1.167 mil pessoas assassinadas por humanos e especificamente enumeradas naquele livro. Talvez um quarto dessas (cerca de 300 mil) seja um número historicamente plausível e com motivação religiosa.1

Japão (1587-1660)

Durante a Rebelião Shimabora, de 1637 a 1638, a força rebelde cristã de 20 mil guerreiros e 17 mil mulheres e crianças foi chacinada, deixando apenas 105 sobreviventes. Ao todo, a Igreja Católica conta 3.135 mártires de nomes conhecidos e 200 mil a 300 mil mártires desconhecidos no Japão naquele período.2

Bósnia (1992-95)

Quando a república da Bósnia-Herzegovina, predominantemente muçulmana, se separou da Iugoslávia, os sérvios cristãos locais e o governo em Belgrado tentaram evitar esse desligamento. Duzentas mil pessoas morreram na guerra civil que se seguiu.3

Sati (declarado ilegal em 1829)

O sacrifício de uma viúva na pira funerária de seu marido era prática comum na Índia, particularmente no estado de Bengali, onde as autoridades registraram 8 mil satis entre 1815 e 1828. Talvez 60 mil viúvas, ou perto disso, foram queimadas vivas por toda a Índia durante o século anterior, e algumas centenas de milhares desde a Idade Média.4

A Guerra Civil Inglesa (1642-46)

Na luta entre os puritanos do Parlamento e os defensores da Alta-Igreja do rei, 190 mil ingleses morreram, inclusive, no final, o próprio rei.5

Líbano (1975-90)

O Líbano foi originalmente separado da Síria francesa, para dar aos cristãos locais um país onde pudessem ser uma (tênue) maioria. Por volta de 1975, a maioria nacional já era de muçulmanos, de modo que irrompeu a guerra civil pela partilha do poder. Cento e cinquenta mil pessoas foram mortas.6

Argélia (1992-2002)

Até 150 mil morreram numa guerra civil que começou quando a junta militar recusou entregar o governo aos partidos fundamentalistas muçulmanos que haviam vencido as recentes eleições.7

Vietnã (1820-85)

Um total de cerca de 130 mil missionários e convertidos católicos foram mortos sob a perseguição movida por diversas gerações de governantes vietnamitas.8

Rússia (1919)

Cerca de 115 mil judeus foram mortos em progroms empreendidos pelos soldados antibolcheviques na Ucrânia durante a Guerra Civil Russa.9

Império Bizantino (C. 845-55)

A imperatriz bizantina Teodora (não a esposa de Justiniano; essa Teodora foi a viúva do imperador Teófilo, o regente de Miguel III, e depois canonizada) perseguiu e matou 100 mil paulicianos, seguidores da heresia gnóstica.10

A revolta holandesa (1566-1609)

Os protestantes do norte da Holanda se rebelaram contra o domínio espanhol. O duque de Alba, espanhol, se vangloriou de ter executado 18.600 rebeldes depois de ter sido enviado para sufocar o levante. Ao todo, 100 mil pessoas morreram na revolta, inclusive 8 mil no saque da cidade de Antuérpia. As terras protestantes se transformaram na República Holandesa, independente, enquanto o sul, católico, continuou leal à Espanha, e depois se tornou a Bélgica.11

Ucrânia (1648-54)

Na rebelião contra a Polônia, os cossacos, comandados por Bogdan Chmielnicki, massacraram até 100 mil judeus, e varreram do mapa trezentas comunidades judias.12

Império Romano do Oriente (514-18)

Quando o imperador Anastásio nomeou bispos monofisitas, isto é, que acreditavam que os aspectos divino e humano de Cristo eram separados, em vez de bispos calcedônios, que acreditavam que os aspectos divino e humano de Cristo eram unificados, o general calcedônio Vitaliano se levantou em revolta contra o trono. Sessenta e cinco mil pessoas morreram no que Edward Gibbon chamou de “a primeira guerra religiosa”.13

Caça às bruxas (1400-1800)

Sessenta mil mulheres acusadas de serem bruxas foram queimadas ou executadas de uma ou outra forma por toda a Europa.14

Os Thuggee (até o século XIX)

Esse culto místico de ladrões e estranguladores talvez tenha sacrificado 50 mil viajantes em honra da deusa Kali.b

Em Deus confiamos

Se formos categorizar as entradas dessa lista de acordo com quais religiões entraram em conflito, poderíamos ter o seguinte resumo:

cristãos versus cristãos: 9

muçulmanos versus cristãos: 3

cristãos versus judeus: 3

orientais versus cristãos: 3

judeus versus pagãos: 2

muçulmanos versus chineses: 2

muçulmanos versus muçulmanos: 2

sacrifícios humanos na Índia: 2

sacrifícios humanos no México: 1

matança ritual em Roma: 1

muçulmanos versus hindus: 1

maniqueus versus taoistas: 1

Provavelmente podemos ir além e agrupá-los em quatro categorias maiores: sacrifício humano de indígenas (4), religiões monoteístas lutando entre si (17), pagãos lutando contra religiões monoteístas (8) e pagãos levantando distúrbios em suas próprias hostes (1). No início da história, a maioria das matanças religiosas envolvia sacrificar pessoas para subornar e aplacar as perigosas forças do universo. Então, o judaísmo e seus rebentos, a cristandade e o islamismo, imaginaram uma visão do mundo em que um único e todo-poderoso deus exigia uma crença estrita, sem concessões, em vez de oferendas tangíveis. Depois disso, as matanças religiosas tiveram a tendência de surgir do atrito entre crenças incompatíveis.

Observe que os seguidores das religiões orientais não se mataram frequentemente uns aos outros, discutindo sobre quem tinha o melhor deus. Isso também aconteceu com pagãos, xamanistas e animistas. Essas religiões, relativamente flexíveis, geralmente se mantêm calmas até que se defrontem com as rígidas religiões monoteístas.

Embora a maioria de nós seja a favor da tolerância religiosa, no final essa é uma estratégia derrotada. A intolerância monoteísta de crenças rivais é uma das principais razões mais flexíveis pelas quais ela tem conseguido êxito em substituir as religiões nativas da Europa, África, Américas e Oriente Médio.

aA ambiguidade da religião de Hitler lança confusão sobre essa questão. Em público, ele era católico. Falava bem de Cristo e nunca foi excomungado. Muitos de seus seguidores se consideravam cristãos lutando contra o comunismo ateu. Quaisquer que tenham sido seus planos para a cristandade, ele tratava esta mais suavemente e com mais respeito do que fazia com o comunismo, o judaísmo e os homossexuais.

É difícil identificar a religião pessoal de Hitler. Os nazistas durões preferiam se considerar Gottbläubiger, “crentes em Deus”, uma maneira formal de se afastar da cristandade, e a categoria ampla em que Hitler melhor se enquadra é o deísmo, a crença num poder impessoal, mais alto, baseado na razão e na natureza, sem revelação ou milagres. Isso o coloca no mesmo sistema de crenças de Benjamin Franklin, Mark Twain, Voltaire e Thomas Jefferson, embora claramente na outra extremidade do espectro moral.

bA tendência mais recente dos acadêmicos é tratar os thugs principalmente como gangues de bandidos, com muitas superstições, em vez de considerá-los pertencentes a um culto; entretanto, a opinião tradicional considera o sacrifício humano como sendo a principal motivação dos thugs, de modo que eu os incluí nesta lista (Mike Dash, Thug: The First True Story of India’s Murderous Cult, Londres, Granta Books, 2005 [Thugs: A primeira história verdadeira do culto de assassinos indianos]).