GENOCÍDIO

O extermínio dos indígenas americanos foi um genocídio? Bem, os indígenas se interpunham no caminho, e os europeus se livraram deles. Foi genocídio no efeito, se bem que não na intenção.

Em quase todas as etapas do caminho, poderosas facções mataram deliberadamente indígenas não assimilados, e isso perturbou suas consciências não mais do que desmatar as florestas ou caçar animais predadores perigosos. Na maior parte do hemisfério, europeus e africanos substituíram por completo os ameríndios, e até mesmo onde sobreviveram populações originais, seus descendentes adotaram as línguas e as religiões ocidentais.

A palavra G

Como genocídio é a pior acusação que se pode lançar contra uma nação, toda forma de opressão acaba sendo chamada de genocídio, de uma forma ou de outra. Chamar o morticínio de expurgo ou massacre não parece ser o bastante. Então, como o genocídio é um insulto tão grande, toda acusação é negada com veemência, geralmente insistindo-se que a matança foi um ato de guerra legítimo, o número de mortos foi menor, o inimigo merecia o castigo ou que as mortes não foram deliberadas. Uma longa história de leis internacionais proibindo o assassinato de civis não tem evitado, realmente, o massacre de civis, mas tem nos feito sentir bem confortáveis ao apresentarmos as desculpas.

Depois de meio século discutindo o significado de genocídio, a palavra perdeu suas arestas afiadas, mas vamos defini-la aqui de maneira bem restrita, significando a tentativa de erradicação de um grupo étnico usando-se a violência. Vamos além, definindo etnicidade como a identidade de um grupo sobre o qual você não tem controle. Você nasce nele, compartilha-o com sua família, e isso não muda, não importa o que possa acontecer mais tarde na sua vida. Como a palavra genocídio tem a mesma raiz que a palavra genética, o senso comum concluiria que genocídio é a matança de pessoas baseada na sua ancestralidade, não na sua religião, riqueza, educação ou crenças políticas.

Por essa definição, o bombardeio de Nagasaki, as matanças efetuadas pelo regime do Khmer Vermelho e o massacre de Katyn não foram genocídios; o bombardeio porque a rendição era uma opção, as matanças porque foram políticas e dentro de uma única etnia, e o massacre (ver “Josef Stálin”) porque a escala não foi bastante grande para ser classificada como “tentativa de erradicação”.

Uma característica definidora de genocídio é a devoção sincera com a qual os opressores erradicam o grupo-alvo. Os opressores não ficam satisfeitos simplesmente com a matança de quem se revolta e resiste, mas fazem questão de caçar e eliminar todo homem, mulher, criança, bebê e cachorro. Se você pertence ao grupo demográfico alvo, será morto, não interessando se você implora misericórdia; as moças, entretanto, são em geral poupadas, estupradas e escravizadas, porque não são bastante importantes para serem mortas.

Vingar-se de uma família inteira pelos crimes cometidos por um único membro daquela família também não conta como genocídio, mesmo que frequentemente se pareça com ele.

Observe-se que cerca de metade dos genocídios listados a seguir teve sucesso. O grupo-alvo foi inteiramente eliminado e substituído pelos perpetradores, pelo menos nas regiões onde se deu o ataque. Grande parte das maiores etnias atuais apossou-se das terras onde elas vivem eliminando seus rivais. Outro genocídios não tiveram êxito. As vítimas reagiram e o único resultado que persistiu foi a lembrança amarga de dezenas de milhares de mortes desnecessárias.

Trinta e um genocídios notáveis

Indígenas das Américas: 15 milhões talvez tenham morrido nas mãos dos conquistadores europeus.

Juntamente com o colapso da população nativa em todo o hemisfério ocidental, centenas de tribos individuais simplesmente desapareceram:

Os arrohattocs, da Virgínia, haviam desaparecido em 1669.

Os apalaches, da Flórida, desapareceram na década de 1700.

Os yazzos, do Mississippi, desapareceram depois de 1729.

A língua powhatan, da Virgínia, ficou extinta na década de 1790.

Os timucuas, da Flórida, desapareceram logo depois de 1821.

Shanawdithit, o último remanescente da tribo dos beothuks, de Newfoundland, morreu em 1829.

Durante a década de 1870, os argentinos eliminaram os indígenas araucanianos para abrir os pampas à colonização branca.1

Ishi, o último yahi da Califórnia, morreu em 1916.2

Os clackamas, do Oregon, já haviam desaparecido por volta da década de 1920.

A língua natchez, da Louisiana, foi extinta na década de 1930.

A família linguística catawban, das Carolinas, foi extinta na década de 1960.

O padrão de extermínio de cada tribo foi mais ou menos o mesmo. Os primeiros visitantes brancos eram recebidos com cautelosa hospitalidade. Logo o contato com os europeus infectava os nativos com doenças catastróficas. Em seguida baleeiros, soldados, colonos e mineiros atacavam a tribo em busca de mão de obra escrava e suprimentos. Os indígenas roubavam cavalos, gado e ferramentas. Ladrões e invasores de propriedades eram mortos. O outro lado retaliava. Por algum tempo a paz voltava. Seguia-se a guerra. Por fim, os brancos do local decidiam que a única solução era eliminar completamente os nativos. Os indígenas que cooperavam eram arrebanhados e expulsos, enquanto os que não cooperavam eram caçados e mortos. Os poucos miseráveis sobreviventes ficavam sob a proteção de uma instituição de caridade, onde recebiam abrigo num telheiro nos fundos, e aprendiam a cantar hinos. Os últimos membros da tribo eram considerados uma curiosidade triste, bêbados, e se lhes permitia morrer sem perpetuar sua cultura ou linhagem.

Holocausto: 5.500 mil judeus foram mortos3 (ver “Segunda Guerra Mundial” para detalhes).

Como a palavra genocídio foi cunhada em 1944 especificamente para descrever o que Hitler estava fazendo na Europa conquistada, esse é o único acontecimento que conta como genocídio, não importa como você o defina. Na verdade, a maioria das pessoas usa a palavra para significar qualquer atividade que as faça lembrar do Holocausto, independentemente de se a ONU decide que a atividade se enquadra na sua estrita definição de genocídio.a

Ucranianos: cerca de 4.200 mil pessoas morreram de fome em 1932-334 (ver “Josef Stálin” para detalhes).

A “fome do terror” que Stálin criou enquanto reestruturava a agricultura soviética caiu mais pesadamente nos ucranianos, que insistem que o Holodomor foi um genocídio inequívoco, dirigido especificamente contra eles; entretanto isso talvez seja um bom exemplo de uma brutal atrocidade que foi tão ruim quanto um genocídio sem no entanto sê-lo.

Bengalis: 1.500 mil foram mortos pelos paquistaneses em 1971.

Embora todo mundo fora de Bangladesh não se lembre desse evento, ele é provavelmente o mais mortal dos genocídios ocorridos depois do Holocausto.

Armênios: 972 mil foram mortos em 1915 (ver “Primeira Guerra Mundial” para detalhes).

Os turcos não admitem que tenham perpetrado esse massacre, e ninguém os pressiona porque a Turquia é muito importante como uma encruzilhada estratégica e cultural entre o Oriente e o Ocidente. A versão turca dos eventos é que os armênios se revoltaram, desencadearam uma guerra étnica com os curdos locais e mataram dezenas de milhares de muçulmanos, antes que a rebelião fosse sufocada. Os turcos explicam o desaparecimento de 1 milhão de armênios alegando que eles fugiram para o exterior depois de derrotados.

Tutsis: 937 mil foram mortos pelos hutus em Ruanda, em 1994 (ver “Genocídio em Ruanda” para detalhes).

Ciganos: 500 mil foram mortos de 1940 a 1945 (ver “Segunda Guerra Mundial” para o contexto).

Como os ciganos tinham uma reputação de ser criminosos natos, os nazistas os classificavam como sub-humanos e os exterminaram sistematicamente.5

Tibetanos: talvez 350 mil tenham sido mortos.6

Desde a reconquista do Tibete pelos chineses, em 1950, a República Popular tem sistematicamente tentado erradicar o povo tibetano, demolir seus locais de veneração e apagar sua cultura. Imigrantes chineses substituíram os tibetanos nativos como uma maioria na maior parte das cidades daquele país.

Sérvios: 300 mil foram mortos7 de 1940 a 1945 (ver “Segunda Guerra Mundial” para o contexto).

Depois de conquistar a Iugoslávia na Segunda Guerra Mundial, os alemães estabeleceram um Estado croata títere, sob a organização fascista local, a Ustase. O governo títere não apenas cooperou alegremente com os programas de exterminação nazista dirigidos contra os judeus e ciganos, mas também fez um esforço especial para erradicar os sérvios.8

Assírios: talvez 275 mil tenham sido mortos pelos turcos,9 começando em 1915 (ver “Primeira Guerra Mundial” para detalhes).

Aborígines australianos: 240 mil desapareceram completamente entre 1788 e 1920.

Numa fase da história que tem como paralelo a conquista das Américas, os aborígines, com população original provavelmente de 300 mil,10 possivelmente de 750 mil,11 foram colhidos pelos dentes da colonização branca, e destruídos pela violência, doença e fome. Sobraram apenas 60 mil em 1920. Talvez 20 mil aborígines e 2.500 brancos tenham morrido diretamente por causa dos conflitos.12

Chechenos, inguches, karaalpacks, balcares, calmucos: 230 mil morreram no exílio entre 1943 e 1957 (ver “Josef Stálin” para o contexto).

Durante a Segunda Guerra Mundial, Stálin erradicou nacionalidades inteiras que haviam sido conquistadas pelo avanço alemão porque não confiava na lealdade daqueles soviéticos. Foram despachados para leste, onde centenas de milhares morreram.

Gregos asiáticos: de 100 mil a 350 mil morreram nas mãos dos turcos entre 1919 e 1923 (ver “A guerra greco-turca” para detalhes).

Curdos: mais de 200 mil foram mortos nas décadas de 1970, 1980 e 1990, em diversos países.

Os curdos passaram a maior parte do século XX vivendo como minorias oprimidas em três nações: Irã, Iraque e Turquia. O pior período contínuo de genocídio a eles infligido foi em 1987-88, quando Saddam Hussein mandou massacrar 180 mil membros dessa etnia no Iraque.

Darfur: 200 mil já morreram desde o ano 2000 (ver “A guerra no Sudão” para detalhes).

Cartagineses: 150 mil morreram na queda de Cartago em 146 a.C.13

Durante a terceira e última guerra entre Roma e Cartago, os romanos capturaram a cidade-mãe e a incendiaram totalmente. Massacraram os homens e venderam as mulheres como escravas. Como apenas matar e escravizar a população toda é uma coisa ordinária, mais tarde a lenda acrescentou que os romanos araram a terra com sal, de modo que nada crescesse de novo no local.

Hutus: 125 mil foram mortos no Burundi em 1972-7314 (ver “Genocídio em Ruanda” para o contexto).

Timor-Leste: 102.800 morreram15 entre 1975 e 1999.

A Indonésia invadiu e conquistou essa ex-colônia de Portugal, matando até um terço da população.

Cananeus: talvez 100 mil tenham sido mortos por volta de 1200 a.C.

De acordo com a Bíblia, os israelitas, sob o comando de Josué, atravessaram de roldão o rio Jordão, invadindo Canaã. Seguindo as ordens diretas de Jeová, chacinaram sistematicamente os habitantes de cada cidade que conquistavam, começando com Jericó. A Bíblia menciona especificamente que todos os 12 mil residentes de uma única cidade foram mortos, e depois continua, listando oito cidades que foram inteiramente destruídas durante a mesma campanha.16

Dácios: numa estimativa grosseira, 100 mil podem ter sido mortos de 101 a 106 d.C.

Depois de conquistar a pátria dessas 800 mil pessoas, os romanos esvaziaram a terra, levando embora meio milhão de cativos e substituindo-os por colonos romanos. A Dácia cessou de existir, e o lugar tornou-se a “Romênia”, a terra dos romanos, com os habitantes que hoje falam uma língua derivada do latim. A conquista está orgulhosamente mostrada em seus detalhes sangrentos na Coluna de Trajano, em Roma.

Guanches: todos os 80 mil foram eliminados entre 1402 e 1520.

Esses nativos, habitantes das ilhas Canárias, têm sido chamados de “o primeiro povo a ser empurrado para a borda da extinção pelo imperialismo moderno”.17

Hereros e namas: 75 mil foram mortos de 1904 a 1907.

Ao sufocar uma rebelião na sua colônia no sudoeste da África, atualmente a Namíbia, os alemães empurraram essas tribos para o deserto, e a levaram quase à extinção.18

Midianitas: mais de 60 mil mulheres e meninos foram mortos por volta de 1250 a.C.

Sob as ordens de Moisés, os israelitas mataram todo homem, menino e mulher casada entre os midianitas, deixando 32 mil moças solteiras para serem distribuídas como butim de guerra.19

Troianos: 10 mil?

Será que isso realmente aconteceu? As lendas nos contam que, quando a cidade foi conquistada pelos gregos, homens velhos, como Príamo, e jovens, como Astyanax, foram assassinados, enquanto as mulheres ou foram escravizadas, como Cassandra, ou morreram durante o saque, como Creusa.

Eries: talvez 5 mil tenham sido mortos de 1654 a 1656.

A tribo indígena do vale do rio Ohio foi varrida do mapa pelos vizinhos iroqueses.

Tasmanianos: 5 mil foram mortos depois de 1803.

Num dos mais completos genocídios da história, todo nativo puro-sangue da ilha da Tasmânia foi caçado e assassinado por colonos brancos. Um punhado sobreviveu penosamente, sob a proteção de instituições de caridade, mas o último indígena dessa etnia morreu em 1877.20

Norugueses da Groenlândia: 3 mil morreram (?) no início do século XV.

Por diversos séculos, 3 mil a 5 mil colonos noruegueses viveram no litoral da Groenlândia, mas então, sem explicação, todos desapareceram, ficando esquecidos, esgotados e absorvidos pela cruel natureza selvagem do norte. Embora muitos estudiosos modernos prefiram colocar a culpa num ato de Deus, como uma peste ou uma nova era do gelo, ou nas próprias vítimas, como uma teimosa recusa em se adaptar às durezas do meio ambiente, os poucos registros remanescentes descrevem claramente lutas com nativos hostis, os skraelings. No século XIV, um visitante norueguês, Ivar Bardarson, relatou ao bispo de Bergen que “agora os skraelings [destruíram] toda a colônia ocidental. Sobraram apenas cavalos, cabras, vacas e carneiros, todos selvagens, mas nenhum habitante, nem cristão nem pagão”. Logo depois a colônia oriental sofreu um ataque, e por fim visitantes vindos da Europa não encontraram sobreviventes.21

Ilha de Chatham: 2 mil mortos.

Invasores maoris da Nova Zelândia capturaram essa ilha do Pacífico Sul em 1835, matando, comendo ou escravizando o povo moriori. Apenas 101 indivíduos da etnia estavam vivos em 1862, e o último moriori puro-sangue morreu em 1933.22

Ilha de Páscoa: 2 mil mortos.

Em 1862, mercadores de escravos chilenos sequestraram mil nativos rapanuis, metade da população, a maioria dos quais morreria logo depois. Doença, assassinato e trabalho excessivo ajudaram a reduzir o número de nativos remanescentes a apenas 110 em 1877.23

Banu Qurayza: 600 foram mortos em cerca de 624 d.C.

Maomé acusou de traição essa tribo de judeus-árabes. Todos os homens foram mortos, e as mulheres e crianças vendidas como escravas.24

Melos: cerca de 500 foram mortos ou escravizados em 478 a.C.

Os atenienses varreram do mapa completamente essa colônia espartana durante a Guerra do Peloponeso. Esse não foi o primeiro genocídio registrado na história, mas talvez tenha sido o primeiro a ser lembrado com arrependimento e vergonha pelos perpetradores.25 O antigo historiador Xenofonte relatou que, quando os atenienses finalmente perderam a guerra para Esparta, “houve lamentações e tristeza por aqueles que haviam morrido, mas a lamentação pelos mortos foi mesclada a uma tristeza ainda mais profunda pelos próprios gregos, quando imaginavam os males que iriam sofrer, semelhantes aos que eles haviam infligido aos homens de Melos”.26

a Na Convenção para a Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio, de 1948, a ONU define genocídio como “quaisquer atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:

  1. Matar membros do grupo;
  2. Causar danos corporais ou mentais sérios a membros do grupo;
  3. Impor deliberadamente a um grupo condições de vida calculadas para ocasionar sua destruição física no todo ou em parte;
  4. Impor medidas com a intenção de evitar nascimentos dentro do grupo;
  5. Transferir à força crianças do grupo para outro grupo”.

Tenha em mente que essa definição foi criada com propósitos legais, não acadêmicos. Foi promulgada para permitir processos judiciais, não para compreender o fenômeno.

Para meus propósitos, a definição da ONU é ampla demais em teoria, pois quase todo conflito na história pode ser descrito como “intenção de destruir… em parte, um grupo… nacional… infligindo sérios danos corporais… aos membros”. É também restrita demais na prática, pois toda decisão para considerar uma atrocidade, oficialmente, um genocídio tem de superar uma quase intransponível série de barreiras. Apenas o Holocausto e os assassinatos em massa da Bósnia e de Ruanda foram reconhecidos por tribunais internacionais como genocídios.