O COLAPSO DA DINASTIA MING
Número de mortos: 25 milhões
Posição na lista: 5
Tipo: colapso do Estado
Linha divisória ampla: cada homem por si
Época: 1635-62
Localização: China
Quem geralmente leva a maior culpa: dois rebeldes, Li Zicheng e Zhang Xianzhong, um general bandido, Wu Sangui, e Dorgon, o Bárbaro
Outra praga: a dinastia chinesa em colapso
Para muitas pessoas no Ocidente, a dinastia Ming é conhecida principalmente de comédias-pastelão como produtores de vasos caros e frágeis, mas historicamente eles foram produtores de tudo que é refinado: porcelana, seda, arte e poesia. Embora hoje seja considerado de mau gosto entre os historiadores julgar o passado, a dinastia Ming (“Brilhante”) é amplamente considerada o clímax da civilização chinesa. Foi a era mais avançada, cultural e tecnologicamente, antes da interferência dos europeus, e a última vez em que a China foi governada por um imperador de uma etnia chinesa.
Covil de ladrões
Li Zicheng teve problemas em encontrar uma carreira que lhe servisse antes de se decidir em ser um chefe guerreiro. Depois de passar a infância pastoreando carneiros, ele trabalhou algum tempo numa loja de vinhos; depois foi aprendiz de ferreiro. Mais tarde foi despedido do cargo de auxiliar numa agência de correios. Finalmente, em 1630, ele se alistou no exército chinês.
Na época, o norte da China lutava contra uma terrível epidemia de fome. Até mesmo o exército vivia à beira da inanição, de modo que, um dia, quando os suprimentos não chegaram, como acertado, a unidade de Li Zicheng se revoltou e passou para a bandidagem. No final o governo capturou diversos renegados, Li entre eles, em 1634. Eles conseguiram um acordo para voltar às fileiras do exército da fronteira, mas o magistrado local adiantou-se e executou 36 rebeldes. Li e seus homens deram o troco e depois fugiram para as colinas.
Muitas gangues infestavam as colinas chinesas na época, e as maiores eram virtualmente soberanas. Finalmente Li Zicheng tornou-se o chefe renegado de três províncias nos altiplanos que se encontram com a borda norte do platô tibetano, estendendo-se do rio Yang-tsé até a Grande Muralha. Ele era conhecido como o “Rei Relâmpago”, não por ser especialmente vistoso, mas pela rapidez de seus ataques.
Li brigava com outros bandidos tanto quanto brigava com as autoridades. Diversas gangues saquearam as sepulturas da dinastia Ming e aprisionaram os homens que as guardavam. Enquanto dividiam o butim, Li exigiu os músicos eunucos como parte na divisão, e o rebelde rival Zhang Xianzhong acedeu, mas arrebentou com todos os instrumentos por simples despeito. Li então deu o troco e matou os músicos.1
Zhang também se tornara um bandido durante a fome de 1628. Andou saqueando um pouco e depois se deslocou para o grande vale interior de Sichuan, onde conquistou Chengdu, a capital provincial, com a chacina geral da população. Era conhecido pelo apelido de “Tigre Amarelo”. Por fim, Li e Zhang fizeram um trato que dividia a China entre os dois.
Li Zicheng partiu para expandir seu território para o oeste, entrando na região de Hunan com um exército que somava 60 mil a 100 mil soldados. Em abril de 1642, ele sitiou a cidade de Kaifeng durante vários meses, levando os defensores da cidade ao desespero e ao canibalismo. Finalmente um exército imperial chegou em setembro. Temeroso de se bater com Li numa batalha frontal, o exército tentou, em vez disso, afastá-lo do local arrebentando os diques que mantinham o rio Amarelo no seu curso. O plano funcionou de certa maneira; Li abandonou o sítio, mas a inundação resultante devastou a cidade. Dos 370 mil residentes de Kaifeng, só 30 mil sobreviveram.2
De qualquer forma, o desastre em Kaifeng não conseguiu diminuir a ambição de Li. No dia de Ano-Novo, 8 de fevereiro de 1644, ele se proclamou chefe da dinastia Shun, que certamente não se deu bem com o governante da China na época, imperador Chongzhen, da dinastia Ming.
O último imperador
No dia 22 de abril de 1644, cortesãos frenéticos encontraram a porta da suíte imperial misteriosamente fechada. Depois de arrombá-la, encontraram o imperador Chongzhen em lágrimas. Não apenas o exército de Li se aproximava da capital, Pequim, mas também o governo estava falido e não podia pagar os exércitos imperiais. Uma combinação de fome, epidemias, bandidos, piratas e guerras fronteiriças havia drenado os recursos do tesouro. Ao mesmo tempo uma guerra naval entre os portugueses católicos, que eram o principal parceiro comercial da China, e os holandeses e ingleses protestantes interrompera o influxo de prata e deixara o tesouro imperial sem dinheiro vivo.3
O imperador não conseguia decidir se fugia de Pequim para o sul, para a cidade de Nanquim, mais segura. Se fugisse, poderia perder a legitimidade, e o príncipe herdeiro encararia aquilo como uma abdicação, mas, se ficasse, um de seus parentes oportunistas poderia se apoderar das terras do sul e se declarar imperador. Dois dias mais tarde, o exército rebelde de Li entrava nos subúrbios de Pequim.
O pânico do imperador talvez fosse desnecessário. Aparentemente Li estava querendo aceitar a vassalagem, e não se apoderar do próprio trono. Li chegou mesmo a mandar uma mensagem, oferecendo desbordar a capital e lançar seu exército contra os mandchus, ao norte da Grande Muralha, se o imperador simplesmente reconhecesse e legitimasse o governo de Li nas províncias do sul. Aparentemente a mensagem não chegou ao imperador, que nunca a respondeu. Li continuou avançando.
Por fim, Chongzhen decidiu ficar e esperar pelo destino. Embebedou-se e saiu cambaleando pelo palácio com uma espada, matando sua principal concubina e as filhas mais novas, para evitar que caíssem nas mãos dos rebeldes. Depois tentou matar sua filha mais velha, mas conseguiu apenas cortar-lhe o braço, quando ela o levantou para aparar o golpe. A jovem correu pelo salão deixando um rastro de sangue.
Disfarçando-se como eunuco, o imperador tentou escapulir da capital, mas os seus próprios guardas atiraram nele quando se aproximava dos portões. Ele voltou a seus aposentos e tocou uma sineta para convocar os ministros, em busca de aconselhamento. Quando nenhum deles veio, ele calmamente saiu para o jardim e enforcou-se numa árvore ao pé de uma colina.4
Bárbaros aos portões
Vamos apresentar outro conjunto de personagens. Os mandchus eram um povo da etnia jurchen, estreitamente aparentados com diversos outros povos bárbaros que percorriam as terras ao norte da China, e que ocasionalmente batiam de frente com a Grande Muralha. Mas esses outros povos não pertenciam ao mesmo ramo dos jurchens que estabeleceram a dinastia Jin (“Dourada”) no norte do país no século XII, que mais tarde seria conquistada pelos mongóis (ver “Gêngis Khan”).
Se isso é confuso, pense nos jurchens como sendo australianos, neozelandeses, ingleses e escoceses. Para nós, é óbvio que esses povos anglófonos, brancos, são inteiramente diferentes, mas dentro de quatrocentos anos poucas pessoas se lembrarão ou se importarão que diferenças havia entre os americanos e os canadenses.
Na sua terra natal, os mandchus viviam como pastores nômades e lutavam como arqueiros montados, feito os mongóis antes. Com o tempo, porém, o contato com os chineses se fez sentir, e eles organizaram seus exércitos com pelotões maciços de piqueiros e mosqueteiros. Como essas forças exigiam menos treinamento e podiam ser recrutadas conforme necessário, eram mais adequadas a sociedades de camponeses.
Em 1584, um bárbaro de 25 anos chamado Nurhachi herdou a liderança de uma das quatro tribos subordinadas aos mandchus. Por meio da usual combinação de carisma, esperteza e crueldade, ele uniu as quatro tribos em uma poderosa federação. Depois Nurhachi embarcou numa vida inteira de guerras contra todo vizinho a seu alcance. Finalmente, sua invasão da tribo vizinha dos yehes o pôs em conflito direto com a dinastia Ming. Na época já um veterano de cabelos grisalhos, com 59 anos, Nurhachi derrotou os chineses em seu primeiro confronto, em Sahu, em 1619. Logo ele mergulhava na direção da capital, Pequim, até que bateu de frente com uma guarnição entrincheirada com artilharia. O chefe mandchu morreu logo depois de um ferimento de canhão que infeccionou.
Armas de fogo
Yuan Chonghuan, o general chinês que derrotou Nurhachi, conhecera as armas de fogo ocidentais por meio de seu cozinheiro, que estivera às voltas com europeus.5 Embora os chineses soubessem usar a pólvora havia séculos, uma nova invenção do Ocidente, o mosquete com mechas incendiárias, estava reforçando o papel da infantaria na batalha.
Embora inferior aos arcos e flechas em quase todos os aspectos, isto é, peso, precisão, alcance e velocidade de disparos, esses mosquetes primitivos tinham uma vantagem crucial. Seu manejo não exigia quase nenhuma habilidade, apenas carregar, apontar e acender o pavio. Travar uma batalha usando flechas, mesmo se você vencesse, desgastava seu efetivo de arqueiros treinados, e seriam necessários anos para treinar o substituto de cada um deles. Por outro lado, depois de vencer uma batalha usando mosqueteiros, um exército podia simplesmente recolher todas as armas espalhadas entre os atiradores mortos, e depois gastar uns poucos dias para treinar os camponeses substitutos a carregar, apontar e acender o pavio.
O general Yuan Chonghuan conseguira repelir temporariamente os mandchus, mas ele não permaneceria no caminho daqueles bárbaros por muito tempo. Num ataque de ciúme, ele mandara executar, recentemente, um talentoso subordinado, de modo que amigos do morto conspiraram com eunucos palacianos para dar o troco. Yuan foi acusado de traição, arrastado e executado pela maneira chinesa tradicional: ter seu corpo sistematicamente retalhado no mercado central de Pequim.
Novos chefes guerreiros estrangeiros
Diversas províncias tradicionalmente chinesas além da Grande Muralha, em território da Manchúria, eram separadas dos bárbaros que as circundavam pela chamada Paliçada do Salgueiro, a qual, como você provavelmente já imaginou pelo nome, nem se aproximava da Grande Muralha como uma barreira poderosa. Depois de Nurhachi ter conquistado aquelas terras, os mandchus ganharam algumas décadas de experiência governando os chineses.a
Entre as pequenas regras que se tornariam importantes mais tarde, Nurhachi exigiu que os súditos chineses masculinos raspassem a cabeça, mas que mantivessem uma longa trança, o tradicional símbolo mandchu de servidão. De utilidade mais imediata, os mandchus aprenderam a sagrada importância do imperador para os chineses, de modo que o filho e sucessor de Nurhachi, Hong Taiji, proclamou uma nova e apropriada dinastia, a de Qing, que se pronuncia “ching”, e que significa “pura”.
Hong Taiji conquistou mais territórios, como a Mongólia Interior em 1632, e a Coreia em 1638. Foram conquistas impressionantes, mas elas apenas acrescentaram mais bárbaros a seus domínios. Para colocar seu nome nos livros da história, um conquistador tem de dominar o centro do mundo civilizado. Embora os mandchus houvessem permanecido em constante guerra com a China por diversas décadas, eles não haviam sido capazes de romper definitivamente as defesas fronteiriças.
Em 1643, morreu Hong Taiji, e os sobreviventes de seu clã começaram a brigar por cargos. Um complexo acordo entre as facções produziu um khan-criança e dois corregentes rivais. Um desses, o 16º filho de Nurhachi, Dorgon, virou realmente o chefe de todos.b
As revoltas dos bandidos Li e Zhang, na China da dinastia Ming, ofereceram uma excelente oportunidade para a invasão dos mandchus, mas eles não tinham certeza se saqueavam e voltavam para casa a cavalo com as bolsas de sela carregadas com o produto do saque, ou se decidiam por uma longa e lucrativa estada. Dizem que Dorgon ofereceu a Li Zicheng um acordo, dividindo a China entre eles, mas nada resultou da oferta. Também é possível que o mensageiro se tenha perdido no caminho.
O exército renegado de Li acampou no palácio, aproveitou-se do harém do imperador e saqueou Pequim, enquanto a mais de trezentos quilômetros, ao longo da Grande Muralha, o último exército Ming no norte hesitava. O general chinês Wu Sangui estava dividido entre vingar seu falecido imperador ou conseguir promoções na sua carreira, reconhecendo Li como novo imperador da China. Afinal, seu dever maior era guarnecer a fronteira norte. Ele permaneceu no seu posto. Li descobriu o pai do general Wu, um cortesão idoso, entre os prisioneiros da corte Ming, e tentou negociar um acordo. Wu, o mais jovem, concordou em render-se em troca da libertação de seu pai, e cavalgou para o sul, na direção de Pequim; entretanto, Li ficou cansado de esperar. Executou a família de Wu, estuprou a concubina do general e marchou para o norte com seu exército. Quando soube das terríveis notícias, Wu voltou para a Grande Muralha e abriu seus portões para que os mandchus entrassem.6
Li encontrou-se com as forças de Wu em Shanhaiguan, onde a Grande Muralha alcança o mar. Wu alinhou suas tropas e trocou sem sucesso ataques frontais com os rebeldes de Li, por diversas e exaustivas horas. Então a cavalaria mandchu de Dorgon atacou subitamente o flanco esquerdo de Li, saindo de uma tempestade de areia cegante. A surpresa e a derrota dos rebeldes foram totais.
Li retirou-se em ordem algumas centenas de quilômetros, de volta à sua base de operações original, travando diversas grandes batalhas defensivas contra seus perseguidores. Por fim, o desgaste foi grande demais para os rebeldes, e seu exército se desintegrou. Li foi declarado morto no verão de 1645, ou por suicídio, ou por ter sido espancado até a morte por uns camponeses que ele tentava roubar, embora outras versões digam que ele escapou e foi viver anonimamente como monge.7
Em dezembro de 1644, o outro grande rebelde, Zhang Xianzhong, o Tigre Amarelo, voltou a entrar na região de Sichuan e fundou o Grande Reino Ocidental, com sede em Chengdu.8 Entregue à própria sorte, Zhang foi ficando cada vez mais cruel e caprichoso. Mutilou e decapitou milhares de estudiosos e suas famílias. Dizimou regimentos de seu próprio exército como punição por insultos imaginários. Sua crueldade era tão bem conhecida que, em 2002, quando escavavam os alicerces de um novo prédio em Chengdu, trabalhadores descobriram cem esqueletos muito antigos amontoados numa vala. O arqueólogo que investigava o sítio imediatamente suspeitou que fora Zhang quem fizera aquilo.9 O bandido abandonou aquela cidade no final de 1646, deixando-a quase que totalmente incendiada. Retirou-se para as montanhas do interior, devastando tudo por onde passava, até que os mandchus o pegaram e o mataram em janeiro de 1647.
Fazendo a faxina
Os Ming sobreviventes se reagruparam no sul, em Nanquim, a capital secundária, na China central. A princípio, Dorgon ofereceu dividir a China com eles, desde que os Ming renunciassem a suas pretensões sobre o norte. Não houve acordo.
Os exércitos mandchus puseram-se em marcha. No terminal sul do Grande Canal, a cidade enormemente rica de Yangzhou apresentou uma firme resistência quando os mandchus chegaram, de modo que a cidade foi total e cruelmente saqueada por dez dias, depois que finalmente caiu. Aprendendo uma lição com esse fato, Nanquim se rendeu sem qualquer luta em junho, e, por alguma razão, a cidade mudou de mãos sem um massacre, o que, como veremos, é algo incomum na longa e infeliz história de Nanquim. Os Qing levaram o imperador Ming da ocasião e ele desapareceu.
Entretanto, a realeza Ming havia tido rebentos como coelhos, de modo que os Qing foram forçados a caçar e executar uma longa série de príncipes que tentavam estabelecer reinos rivais no sul do país. O último membro da dinastia Ming era o neto mais jovem de um imperador anterior, o queridinho da mamãe, que fora paparicado e mimado durante toda a sua infância, de modo que você sabe que sua história terminará mal. Conhecido como o príncipe de Gui, ele estabeleceu uma corte rival bem ao sul, encheu-a com “todos os tipos de mascadores de noz de bétel, trabalhadores e proprietários de bordéis aborígines”.10 Por fim, começando em dezembro de 1650, os exércitos Qing caçaram-no por todas as terras fronteiriças do sul e depois entraram na Birmânia. Os birmaneses lhe prometeram santuário, mas depois mudaram de ideia e massacraram a maior parte da corte renegada. O príncipe foi aprisionado numa pequena propriedade até alguns anos depois, quando houve a invasão do general vira-casaca Wu Sangui. Os birmaneses subornaram o general entregando-lhe o último dos Ming. O príncipe de Gui e seu único filho foram levados de volta para a China e discretamente estrangulados em 1662.11
Com o desaparecimento final de seus senhores, o último almirante Ming, Zheng Chenggong,a reuniu sua frota e partiu para uma vida de pirataria. Em 1661, ele se apossou de Taiwan, então colônia holandesa, e provavelmente teria avançado contra os espanhóis das Filipinas, se não houvesse morrido logo depois. Esse foi o último estertor das gloriosas tradições marítimas da dinastia Ming, que já tivera enormes esquadras navegando por todo o mundo, até mesmo no leste da África. Depois da morte de Zheng Chenggong, os oceanos tornaram-se domínio exclusivo dos europeus.
Peste e pestilência
Quantas pessoas morreram nessa era de caos? Um indício da devastação pode ser encontrado no Ming Shi, a história oficial da época, escrita um século mais tarde, que acusava Zhang, o Tigre Amarelo, de matar 600 milhões de pessoas durante seu alucinado governo. Como isso é mais do que o número de pessoas que estavam vivas em todo o mundo naquela época, esse número impossivelmente grande é provavelmente um modo de dizer “muitas”.12
A estimativa mais comum dos modernos demógrafos, baseada em registros de impostos e na arqueologia, é que a população chinesa original de 150 milhões caiu de um sexto, isto é, 25 milhões, nos meados do século XVII.13 Como sempre, a fome e as doenças varreram a população saqueada e arruinada, matando grande número de civis anônimos.
Você talvez tenha notado que um número desproporcional dos meus cem maiores eventos ocorreu no final do século XVI e durante o século XVII. Na Europa, a Guerra dos Trinta Anos foi o conflito mais letal até a Primeira Guerra Mundial (ver “A Guerra dos Trinta Anos”). A Rússia mergulhou na caótica Época dos Distúrbios. A conquista da China pelos mandchus foi responsável por uma das maiores quedas de população da história do leste da Ásia, enquanto que a invasão de Aurangzeb do sul da Índia (ver “Aurangzeb”) foi responsável pela maior mortandade na história do sul da Ásia. Até mesmo nas ilhas menores, ao largo do continente, os cães de guerra fizeram ouvir seus latidos mais alto do que jamais acontecera. A Grã-Bretanha estava sendo despedaçada pela Guerra Civil Inglesa, e os shoguns do Japão lutavam pelo poder no que mais tarde viria a ser o tema de praticamente todos os filmes de Akira Kurosawa.14 Tudo isso varria um mundo com uma população de 500 milhões de habitantes, apenas um quinto do número de pessoas vivas nos meados do século XX. De fato, o século XVII é um sério concorrente para o pior século da história humana.
A principal causa disso foi um salto quântico na tecnologia militar. O desenvolvimento de mosquetes eficientes e da artilharia colocou civilizações inteiras sob o governo de uma dinastia única, criando os assim chamados “impérios da pólvora”. Embora nos séculos seguintes esses novos impérios constituíssem uma influência estabilizadora, eles começaram a destruir antigos equilíbrios de poder e a desencadear o caos.
É claro que os Quatro Cavaleiros do Apocalipse trabalham melhor quando cooperam, e o número de mortos no século XVII foi impulsionado por uma ressurgência da peste bubônica. O mais famoso surto foi a Peste de Londres de 1665, mas a doença também varreu todas as rotas comerciais da Eurásia, sempre que a população de ratos era bastante grande para suportá-la. Ela não foi tão mortal quanto a Peste Negra, trezentos anos antes, mas a China foi atingida com particular severidade. “A princípio, os cadáveres eram enterrados em caixões, depois na terra nua e finalmente deixados em seus leitos.” Uma testemunha ocular descreveu uma cidade devastada pela peste: “Havia poucos sinais de vida humana nas ruas, e tudo que se ouvia era o zumbido de moscas.”15
Essa época foi também o apogeu da Pequena Era do Gelo. As temperaturas do mundo vinham caindo havia alguns séculos, e não começariam a subir de novo por muitas décadas. Isso foi encurralando a agricultura em épocas de cultivo cada vez mais curtas e mais secas, resultando na fome.
Por outro lado, não importa quão fascinante seja estudar o impacto das doenças e do clima na história, podemos ser levados para longe tentando relacionar cada revolução histórica a um acontecimento natural concomitante. Em longo prazo, as sociedades se ajustavam aos novos padrões do tempo, e em curto prazo as mudanças climáticas eram esporádicas. O clima é sempre inconstante, de modo que, quando falamos, por exemplo, em verões mais secos, não queremos dizer que não chovia durante anos sem fim. Queremos dizer que, nesses anos, caía menos chuva do que a média na maioria dos anos, mas a pluviosidade era perfeitamente normal o restante do tempo. A seca e a fome têm sido sempre tão comuns na história humana que a maioria das sociedades tem planos de emergência e um bando de idosos que se lembram de como se safaram da última vez em que isso aconteceu. Apenas quando combinado com uma dose extra de má sorte ou de estupidez humana, o mau tempo destrói o tecido da sociedade.
a Esse é um importante aspecto da construção de impérios, frequentemente desconsiderado. A história é repleta de levantes que poderiam ter sido evitados se os conquistadores houvessem simplesmente conhecido, com antecedência, todos os estranhos pequenos tabus e peculiaridades da população dominada, evitando assim comportamentos ofensivos involuntários, tais como expor a parte errada do corpo ou tentar oferecer a carne errada de um animal a um nativo. É sempre uma boa ideia pegar alguma prática governando, para começar, uma pequena colônia, antes de partir para dominar o mundo.
b Estou tentando manter agradável esta narrativa, evitando nomear cada lugar ou agente da história. Não desejo sobrecarregar a leitura. Às vezes é difícil decidir se rotulamos “o primeiro-ministro” ou “a esposa do general” de modo genérico ou se lhes damos nomes.
De qualquer modo, a coisa mais importante de se lembrar sobre Dorgon é que, diferentemente de seus comparsas mandchus, ele é um grande nome para um chefe guerreiro bárbaro. Vamos, diga em voz alta: “Dorgon, o Bárbaro!”
c Zheng Chenggong é conhecido na literatura ocidental como Coxinga, baseado no seu apelido, Guoxingye (“Guardador de Nomes Imperial”).