A REBELIÃO TAIPING

Número de mortos: 20 milhões1

Posição na lista: 6

Tipo: revolta messiânica

Linha divisória ampla: rebeldes taiping versus dinastia chinesa Manchu

Época: 1850-64

Localização e principal Estado participante: China

Principais não Estados participantes: Adoradores de Deus, Taiping Tianguo, o Exército Sempre Vitorioso

Quem geralmente leva a maior culpa: Hong Xiuquan, a dinastia decadente Manchu

Outra praga: a revolta campesina chinesa

A pergunta importante que nunca se faz: E se Hong Xiuquan realmente fosse o filho de Deus?

Aresumida versão comum da rebelião Taiping parece ficção científica: viajantes espaciais humanos pousam num mundo primitivo, perturbando uma sociedade pacífica com suas armas avançadas, estranhas noções científicas e tecnologias mágicas. Os humanos violam a Diretiva Primária falando indiscretamente de muitas coisas estranhas, inclusive seu Deus Todo-poderoso que enviou o filho para salvar a humanidade, e que um dia retornará. No meio desses boatos confusos, um nativo cai com febre e tem visões delirantes de que ele próprio é esse novo filho de Deus aguardado por todos. Ele confia isso a seus amigos. Convoca seguidores e lança uma cruzada que convulsiona o planeta no mais destrutivo frenesi da sua longa história. A fim de restabelecer a ordem, os humanos precisam usar sua tecnologia superior para esmagar esse levante e devolver o mundo ao status quo anterior.

Prelúdio: a Guerra do Ópio

Durante grande parte da história registrada, um observador imparcial teria considerado a China a civilização tecnologicamente mais avançada no mundo. Os chineses eram autossuficientes, autocontidos e autossatisfeitos. Para restringir a contaminação alienígena ao mínimo, o governo Manchu da dinastia Qing confinava os ocidentais em poucos portos. Os mercadores europeus tinham de pagar no ato e em prata, se quisessem qualquer mercadoria chinesa – principalmente chá, sedas e porcelanas. Os chineses certamente não queriam nenhuma das mercadorias de qualidade inferior dos navegantes bárbaros de Portugal, Holanda ou Inglaterra. Em longo prazo, a China estava drenando moeda demais para fora da Europa, e o Ocidente precisava arranjar algo para vender aos chineses, a fim de recuperar seu dinheiro.

Ópio era a solução perfeita. A Inglaterra era abastecida regularmente pela Índia, e a demanda chinesa por narcóticos estava crescendo, à medida que o ataque violento das ideias e tecnologias estrangeiras minava sua estrutura social. Infelizmente para o Ocidente, o governo chinês bania completa e totalmente o ópio – a não ser quando ligado a uma propina conveniente. Isso não foi, a princípio, um grande problema. As propinas eram normalmente menores do que as taxas alfandegárias que os europeus teriam de pagar no comércio legal, mas, então, quase por acidente, a corte chinesa nomeou um comissário honesto para erradicar o vício do ópio. Diferentemente de seus predecessores, Lin Zexu usava sua autoridade para combater o ópio, em vez de extorquir os mercadores. Quando ele confinou a comunidade estrangeira e destruiu 10 mil arcas de ópio, os ingleses e franceses declararam guerra.

Embora a China houvesse passado grande parte da história como a mais avançada civilização da Terra, os europeus haviam ultrapassado os chineses, desde muito, no aspecto mais importante – a tecnologia militar. Na Primeira Guerra do Ópio, as forças anglo-francesas afundaram a frota chinesa e destruíram seu exército quase sem sofrer um só arranhão. Com o tratado de paz de 1842, os chineses legalizaram o comércio do ópio e estabeleceram relações diplomáticas com os europeus em um nível de igualdade; prometeram parar de chamar os europeus de bárbaros e permitiram que eles abrissem postos de comércio (“feitorias”) em portos designados ao longo da costa e de rios navegáveis. Junto com os mercadores seguiram os missionários cristãos, que se espalharam pelo interior.

O ópio das massas

Os ataques à sua sociedade estavam levando muitos chineses a reconsiderar antigas verdades espirituais, e o cristianismo começou a fazer avanços importantes. Isso não era completamente novo. Os cristãos vinham fuçando na China havia séculos. A variante nestoriana da religião chegara com as caravanas persas muito tempo antes. Os missionários jesuítas haviam chegado com os navegadores portugueses a partir de 1500. Ambas as tendências haviam tido sucesso limitado, mas, até a Guerra do Ópio, a cristandade nunca passara de um interessante culto estranho a que alguns excêntricos às vezes se convertiam.

Hong Xiuquan viria a ser um desses excêntricos. Ele morava no extremo sul, no interior de Hong Kong e Cantão (Guangzhou), onde se virava como mestre-escola. Uma noite, em 1837, enquanto Hong se recuperava de uma séria doença, um homem de cabelos dourados, vestido com um manto preto, apareceu-lhe numa visão, mandando que ele purificasse a Terra. Como a visão não fazia sentido, Hong a tirou da cabeça por alguns anos e continuou com sua vida. Então sua carreira empacou, depois que ele foi repetidamente reprovado no exame do serviço público que era exigido para progredir na sociedade chinesa.

Um dia, em 1843, enquanto vagava pela grande cidade depois de ter fracassado mais uma vez no exame do serviço público, Hong recebeu de presente uns panfletos protestantes. Converteu-se ao cristianismo e começou a estudar com os missionários batistas americanos. Logo reconheceu os elementos cristãos da sua quase esquecida visão. Percebeu que o próprio Deus era o homem na visão, e então lembrou que Deus declarara ser ele, Hong, Seu segundo filho, o irmão mais moço de Jesus.2

Algum tempo mais tarde, Hong fundou a Sociedade dos Adoradores de Deus. A princípio ele manteve sua adoração pelo Messias em segredo, e simplesmente pregava uma fusão salvadora entre Confúcio e os princípios cristãos, com uma forte ênfase nos Dez Mandamentos. Quando seus seguidores aumentaram, ele atacou os adoradores de ídolos, destruindo o confucionismo e os santuários ancestrais. Hong fundou comunidades na sua zona rural, batizando mais e mais convertidos, até que, em 1850, os Adoradores de Deus chegaram a 20 mil seguidores.3

Os Adoradores de Deus ganharam força entre o grupo étnico específico de Hong, os hakkas. Quem eram os hakkas? Deixe-me simplificar um problema complexo. O povo que a maioria dos estrangeiros chama de “chinês” não é realmente um grupo étnico; eles são mais um grupo cultural de pessoas que compartilham uma herança comum e uma língua escrita, mas não uma língua falada. Eles se chamam de Han. Como não é fonética, a escrita chinesa existe independentemente e é usada por diversas línguas, que são similares, mas basicamente ininteligíveis, uma para a outra, quando faladas. A mais amplamente usada e prestigiada das línguas Han é o mandarim. Tem raízes no norte e é o idioma oficial da China. O sul da China tem várias línguas Han, tais como o cantonês, que é comum entre as comunidades de imigrantes chineses espalhadas pelo mundo.

O povo hakka é formado por chineses da etnia Han, que no século XIII saíram do norte em direção ao sul, durante a conquista mongol, e se tornaram um enclave nortista na cultura sulista. Eles mantiveram uma porção de antigas tradições e evitaram novos costumes, tais como o uso de bandagens nos pés. Seu nome quer dizer “povo hóspede”.

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Se isso ajudar, pense nos hakkas como os amish ou cajuns – estrangeiros da área circundante, antiquados, mas não aborígines. A principal diferença entre os povos desses exemplos é que existem muitos milhões de hakkas. Embora os Adoradores de Deus de Hong ganhassem seguidores entre os chineses de todo tipo, os líderes principais eram hakkas, o que fazia com que eles parecessem um pouco estrangeiros para a maioria dos sulistas.4

Reino do céu

Podem os chineses ainda se considerar homens? Desde que os manchus envenenaram a China, a flama da opressão elevou-se para o céu, o veneno da corrupção maculou o trono do imperador, um odor ofensivo se espalhou pelos quatro mares e a influência de demônios angustiou o império, enquanto os chineses, com as cabeças abaixadas e os espíritos abatidos, voluntariamente tornaram-se súditos e vassalos.

– Panfleto Taiping5

Os Adoradores de Deus se afastavam tanto do comportamento tradicional chinês que os atritos se tornaram inevitáveis. Eles se organizaram como paramilitares, e o primeiro choque com as autoridades Qing foi em dezembro de 1850. Em janeiro de 1851, um exército dos Adoradores de Deus, com cerca de 10 mil homens, derrotou os Qing na Batalha de Jintian. Com a vitória, Hong se proclamou o Messias do Taiping Tianguo, ou seja, do “Reino da Grande Paz Celestial”. Promoveu cinco dos seus seguidores mais chegados a reis do leste, oeste, sul, norte e (depois de esgotar as direções) Wing. Hong assumiu o título de Rei Celestial e estendeu a condição de Messias ao seu filho ainda bebê.

Diante de um ataque imperial, os taipings abandonaram suas bases e começaram a se mover para o norte, tendo marchado, no fim, mais de 2 mil quilômetros por um território hostil. Quando capturaram Yongan, já contavam com 60 mil homens. O movimento continuou como uma bola de neve. Os mineiros convertidos trouxeram a experiência na construção de túneis e no uso de explosivos, o que ajudava no assalto a cidades muradas. Uma força de 120 mil taipings atacou Changsha em setembro de 1852. Já havia meio milhão de taipings no cerco a Wuchang, em janeiro de 1853. Eles romperam as linhas externas do exército Qing em abril de 1853 e, quando tomaram Nanquim, em setembro, os taipings já tinham 2 milhões de seguidores espalhados por todo o território.

Com a queda de Nanquim, os taipings perseguiram e massacraram os 40 mil manchus residentes na cidade, sendo que apenas 5 mil eram militares. Homens, mulheres e crianças manchus foram transpassados por lanças, cortados em pedaços, amarrados e atirados no rio ou queimados.6

Pouco depois, o ímpeto taiping diminuiu. Uma coluna de 70 mil homens foi enviada para tomar Pequim, porém foi repelida e perseguida rumo ao sul durante vários meses, entre 1853 e 1854 – fustigada, desgastada e, finalmente, eliminada pelas tropas Qing. Depois desse revés, Hong abandonou a ofensiva a fim de consolidar o controle do rio Yang-tsé e estabelecer uma corte adequada em Nanquim.

Os taipings não eram o único grupo em oposição aos manchus, mas não souberam fazer aliança com dois vizinhos revoltosos – os nians ao norte e os Turbantes Vermelhos ao sul. Algumas vezes, os taipings tentavam fazer parceria com bandidos e piratas fluviais que odiavam as autoridades e sabiam lutar; como os taipings tendiam ao asceticismo puritano, porém, inevitavelmente, as classes criminosas perdiam o interesse.

Os taipings proibiam o ópio, a prostituição, o homossexualismo e o álcool. Os homens e as mulheres eram mantidos completamente separados, embora ambos os gêneros fossem recrutados para o exército. A nova sociedade era estruturada segundo normas militares numa espécie de exército santo.

Todas as terras eram compartilhadas. A produção excedente de uma aldeia era usada para aliviar a deficiência em outra; “assim, todas as pessoas no império podiam usufruir juntas a felicidade abundante do Pai Celestial, Senhor Supremo e Grande Deus. Se há campos, que todos possam cultivá-los; se há comida, que todos possam comer; se há roupas, que todos possam se vestir; se há dinheiro, que todos possam gastá-lo, pois assim não existirá a desigualdade em nenhum lugar, e nenhum homem estará mal alimentado ou malvestido”. E isso valia para “trigo, sementes, cânhamo; fibras de linho, tecidos, sedas, aves, cachorros etc., e dinheiro, o mesmo é verdade; pois todo o império é a família universal do nosso Pai Celestial, o Senhor Supremo e Grande Deus”.7

Como cabia a um paraíso terrestre, “todos os meninos devem ir à igreja todos os dias, onde o sargento os ensinará a ler o Antigo Testamento e o Novo Testamento, assim como o livro de proclamações do verdadeiro Soberano ordenado. Toda semana os cabos devem levar os homens e as mulheres à igreja, onde ficarão separados em alas masculina e feminina. Ali ouvirão os sermões, cantarão louvores e oferecerão sacrifícios ao nosso Pai Celestial, o Senhor Supremo e Grande Deus”.8

O novo movimento aboliu a bandagem nos pés, pela qual os pés das garotas eram apertados em pequenas, delicadas e pouco práticas formas, o que era considerado bonito entre os chineses. Aboliu também a trança que todos os homens chineses até então eram obrigados a usar como um sinal de servidão a seus mestres manchus. Isso deu aos exércitos taiping uma aparência selvagem, quando tanto os homens quanto as mulheres entravam em combate com pés desafiadoramente grandes e cabeleiras assustadoras.

Apesar de todos os ideais utópicos da sociedade taiping, a hipocrisia existia em abundância. Para a maioria dos membros do movimento, homens e mulheres eram mantidos completamente separados, mas os lideres tinham haréns dignos dos reis do Antigo Testamento, para não mencionar servidores, criados e toda uma pompa apropriada às suas posições.

As pessoas que você encontra no céu

Em 1853, Hong começou a se retirar dos aspectos seculares do seu Reino Celestial e a se devotar ao crescimento espiritual. Embora o rei do Oeste e o rei do Sul houvessem sido mortos nas batalhas que levaram o Reino da Grande Paz Celestial ao poder, ainda havia três reis menores para lidar com o dia a dia do império.

Um deles, Yang Xiuqing, o rei do Leste, começara como um órfão carvoeiro, mas possuía um instinto para táticas militares que garantira muitos dos sucessos dos taipings. Yang começou a ter suas próprias visões de Deus e, se você sabe qualquer coisa sobre messias, poderá imaginar a natureza dessas visões. Aparentemente Deus estava completamente desiludido com Hong, e queria promover Yang ao seu lugar messiânico.

Em setembro de 1856, rumores sobre a ambição de Yang chegaram a Wei Changhui, o rei do Norte, e, então, ele voltou com seu exército da frente de batalha e atacou o palácio real, trucidando Yang e sua família. As tropas de Wei triunfantemente desfilaram com a cabeça de Yang numa estaca pelas ruas de Nanquim, até que Hong emergiu de sua reclusão para denunciar a atrocidade. Hong prendeu Wei e sentenciou que ele fosse publicamente açoitado até morrer. Convidou os sobreviventes do clã de Yang para assistir. Depois que as testemunhas chegaram, entretanto, caíram numa armadilha. Acontece que Hong e Wei estavam em conluio e, agora que os Yangs sobreviventes haviam saído do seu esconderijo e estavam juntos num lugar, Wei e Hong acabaram com eles.

Nessa época, Shi Dakai, o rei Wing, estava fora em campanha. Ele nascera em uma família rica e convencera muitos homens ricos a contribuírem com dinheiro e propriedades para o nascente movimento taiping. Depois de voltar a Nanquim, Shi expressou dúvidas a Wei sobre a propriedade de liquidar os Yang. Wei tomou essa crítica como um desafio, e Shi mal conseguiu escapar vivo da cidade. Mesmo assim, Wei prendeu e matou a mulher e a mãe de Shi. Depois de se refugiar com o seu exército, Shi marchou de volta para Nanquim com 100 mil soldados, louco por vingança. Hong rapidamente o comprou, dando-lhe de presente a cabeça de Wei.

Shi Dakai era agora o último dos reis menores e, provavelmente, o menos maluco. Satisfeito com a cabeça de Wei, ele voltou por algum tempo à corte de Hong, mas finalmente se separou completamente do movimento taiping. Levou seu exército para a bacia de Sichuan e estabeleceu seu próprio enclave independente.

Reação ocidental

O governo Qing, entretanto, trabalhava implacavelmente para conter a revolta. Os oficiais a mantiveram fora de Cantão, cortando a cabeça de mais de 32 mil suspeitos de simpatizarem com os taipings. Uma testemunha ocular relatou que “milhares morreram pela espada, centenas arremessados no rio, amarrados juntos em grupos de 12. Vi seus cadáveres pútridos flutuando rio abaixo, e de mulheres também. Muitos foram cortados em pedaços ainda vivos. Vi coisas horrorosas, cadáveres sem os membros, sem cabeça, só uma massa de pele esfolada… que jazia em grande número cobrindo todo o solo da execução”.9

Os taipings esperavam chegar a um acordo com os países do Ocidente. Não só compartilhavam um cristianismo nominal com os europeus, mas desde 1856 os anglo-franceses vinham travando uma Segunda Guerra do Ópio contra a China Qing. Quando a guerra terminou, em 1860, os europeus haviam invadido e destruído o Palácio de Verão do imperador fora de Pequim.

O Ocidente considerou suas opções. Talvez fosse hora de tomar o controle total da China e substituir a corrupta e xenofóbica dinastia Qing por fantoches ocidentalizados. Por vários anos, o Ocidente considerara os taipings como cristãos decentes, merecedores ao menos de apoio moral. Quando as estranhas heresias de Hong se tornaram mais aparentes, o Ocidente voltou a apoiar o demônio já conhecido, a dinastia Qing imperial. Eles aceitaram um tratado de paz que deixou a China inalterada.

Não foram só os estadistas ocidentais e o clero que mudaram de opinião sobre os rebeldes. Em Londres, Karl Marx também ficou desiludido. Em 1853, ele nutrira a esperança de que “a revolução chinesa lançasse a centelha dentro da mina sobrecarregada do atual sistema industrial e causasse a explosão da crise geral preparada havia tanto tempo”. (Marx, diante de uma metáfora, parecia um cão roendo osso – determinado a tirar tudo que pudesse daquilo.) Em 1862, entretanto, ele já considerava os taipings “uma abominação maior para as massas do que para os antigos soberanos [só capazes de] destruição sob grotescas formas detestáveis, destruição sem nenhum núcleo para uma nova construção”.10

Na esperança de conectar-se com seus presumidos simpatizantes no Ocidente, uma coluna de taipings saiu, em 1860, em direção a Xangai, que virara um protetorado internacional sob o controle ocidental, em 1854. Ignorando as constantes mudanças de vento nas atitudes dos ocidentais, os taipings ficaram surpresos ao encontrar as forças de segurança europeias atirando contra eles das fortificações externas da cidade. Pensando que tudo fosse um engano, trezentos taipings foram mortos sem nem mesmo revidar os tiros.

Logo, os europeus aderiram mais abertamente ao governo Qing. A cidade portuária de Ningbo caíra em poder dos taipings em 1861 sem oposição, e os moradores se adaptaram facilmente aos novos governantes. Em 1862, uma expedição anglo-francesa retomou a cidade e a devolveu às forças Qing, que se desforraram da cidade torturando e matando ao acaso seus habitantes, como um exemplo para o resto.11

Fornecedores independentes também ajudaram o governo chinês, treinando e equipando o seu exército com o armamento mais moderno. O Exército Sempre Vitorioso, um bando de mercenários recrutados nas docas de Manila sob o controle da Espanha, lutou sob o comando de um americano, Frederick Ward, contra os rebeldes.12 Quando Ward morreu, em combate, o comando passou para um comandante britânico veterano, Charles Gordon, que ganharia ainda maior fama muitos anos mais tarde, ao ser sitiado em Cartum pelos uivantes dervixes do Sudão (ver “A revolta Mahdi”).

Mais importantes do que os mercenários estrangeiros, entretanto, eram os exércitos chineses nativos, treinados e equipados como os exércitos ocidentais. A dinastia Qing colocou canhoneiras modernas nos seus rios para usar artilharia pesada contra as cidades muradas dos taipings. Os generais manchus atacaram o reino taiping durante a década de 1860 com tropas novas e modernizadas, mas a reconquista foi retardada pela política Qing de não fazer prisioneiros. Isso obrigava até mesmo os mais desiludidos dos taipings a lutar até o fim.

As forças Qing invadiram o enclave Sichuan de Shi Dakai, o primeiro rei Wing, em julho de 1863. Shi foi capturado e publicamente esquartejado, enquanto seus seguidores eram massacrados, apesar da promessa de que isso não aconteceria. Por fim, o exército Qing sitiou a própria Nanquim.

Hong Xiuquan adoeceu e morreu em maio de 1864, mas ninguém sabe como isso aconteceu. Veneno é a causa mais provável, e a maioria dos historiadores tende pelo suicídio, mas assassinato também é aventado. Outra possibilidade é que ele tenha acidentalmente se envenenado por alguma combinação letal de elixires e poções, que tomava para aumentar o seu vigor. De qualquer forma, sua morte prematura ocorreu apenas alguns meses antes da de seus seguidores.

A rendição de Nanquim às forças do governo se deu em julho de 1864, sendo seguida por um massacre geral de seus habitantes. De acordo com o general Qing no local: “Nenhum dos 100 mil rebeldes em Nanquim se rendeu, mas em muitos casos eles se reuniram, puseram fogo em si próprios e morreram sem arrependimento.”13

O filho de Hong, de 14 anos, que fora proclamado o novo Rei do Céu, conseguiu escapar após a queda de Nanquim, mas seus irmãos mais novos estavam entre os milhares de mortos, quando a cidade caiu. O jovem Hong tentou desaparecer no interior do país, mas foi capturado, feito prisioneiro e esquartejado.

Legado

O jogo de mah-jongg foi, provavelmente, inventado por guerreiros taipings entediados. Fora isso, a Rebelião Taiping caiu no esquecimento da história. Quando Hollywood começou a estudar a possibilidade de fazer um filme baseado em Devil Soldier, de Caleb Carr, a história do mercenário americano Frederick Ward na Rebelião Taiping, uma das primeiras coisas a ser mudada foi o cenário.14 As partes interessadas finalmente aproveitaram a ideia básica e fizeram o filme O último samurai, a história de um mercenário americano no século XIX, capturado em uma guerra civil no… bem… Japão, obviamente.

A Rebelião Taiping é o exemplo perfeito do velho adágio que diz que os livros de história são escritos pelos vencedores. A maioria dos escritores trata os taipings como pobres camponeses iludidos, que seguiam as alucinações de um louco, mas quando você vai mais fundo, é assim que a maioria das religiões começa (não a sua religião, obviamente, mas todas as outras). A única diferença entre Hong e os profetas bem-sucedidos da história é que se um professor, novelista ou cartunista desrespeitar Hong Xiuquan, multidões enfurecidas não irão pedir a sua cabeça.

Será o medo dos seus seguidores, realmente, o melhor teste da autenticidade de uma religião? Confesso que é o critério que eu uso, mas talvez fosse bom lembrar que, se houvessem vencido, os taipings poderiam hoje ser considerados absolutamente legítimos e tão cristãos quanto os mórmons (“quase sempre, mais ou menos”).