A REVOLTA MAHDI

Número de mortos: 5,5 milhões

Posição na lista: 21

Tipo: revolta messiânica

Linha divisória ampla: mahdistas (“dervixes”) versus todos os outros

Época: 1881-98

Localização: Sudão

Principal Estado participante: Mahdiyah (o Domínio de Mahdi)

Estados participantes secundários: Etiópia, Grã-Bretanha, Darfur, Egito

Quem geralmente leva a maior culpa: o Mahdi e o califa

Fator econômico: escravos, dívidas

A pergunta irrespondível que todo mundo faz: Por que tantos homens santos não veem problema algum na escravidão?a

A raiz de todo o mal

Em 1879, o governo do Egito cambaleava instavelmente em direção à bancarrota devido à habitual combinação de guerras insensatas com um governante dissoluto. Preocupados com a segurança do Canal de Suez, franceses e ingleses se juntaram para endireitar as finanças do Egito. Pouco depois, os nacionalistas dentro do exército egípcio se rebelaram contra essa intrusão estrangeira. Como a França não conseguiu chegar lá a tempo, a revolta foi abafada exclusivamente pelas tropas inglesas. Isso transformou um protetorado internacional em uma colônia inglesa, com fortes reverberações diplomáticas que terão de esperar até o próximo capítulo (ver “Estado Livre do Congo”).1

Para este capítulo, tudo que você precisa saber é que os britânicos estavam, de repente, governando o Egito. Eles só queriam receber seus empréstimos de volta e manter o canal seguro, de modo que tentaram evitar chamar a atenção sobre si próprios e supervisionar discretamente, nos bastidores, o governo local. Infelizmente, o governo egípcio já incomodava os tradicionalistas árabes de muitas maneiras. O Cairo era corrupto e decadente. Os habitantes bebiam álcool abertamente e tocavam música. Em suas escolas, a classe alta estudava línguas ocidentais, ciência e medicina. Agora, o Egito estava sob o domínio dos senhores europeus. A última gota veio quando o Cairo – por sugestão dos britânicos – tentou abolir o comércio de escravos, que era o principal suporte econômico dos árabes na província egípcia do Sudão. Os sudaneses se rebelaram em 1881.

O guia

O Sudão se agrupou em volta de Muhammad Ahmed, um homem santo errante que desafiava as autoridades havia anos. Nascido e criado nas nascentes do Nilo, ele preferiu o estudo do islamismo ao negócio de carpintaria da família. Ainda adolescente, seguiu os dervixes – místicos sufis. Ao longo do tempo, foi se juntando ao séquito de vários dos homens mais santos do Sudão, até decidir que era mais santo do que todos os outros juntos. Afastou-se e começou a congregar seus próprios discípulos. Logo sugeriu – e finalmente declarou – que ele era o Mahdi, “O Guiado”, um título messiânico. O calendário muçulmano estava se aproximando da virada do século (1882/1883 = 1300 após a Hégira) e inquietações apocalípticas permeavam a sociedade.

Inicialmente, as autoridades egípcias da capital interiorana de Cartum tentaram o suborno, mas, quando Muhammad Ahmed provou ser absolutamente sério e incorruptível, enviaram soldados para prendê-lo. Duas companhias de tropas egípcias correram, durante toda a noite e por caminhos diferentes, para ver quem seria a primeira a capturar Mahdi e receber a recompensa. Perto da madrugada, chegaram ao seu destino simultaneamente, vindo de direções contrárias, e acabaram acidentalmente atirando uns nos outros, até que o exército de Mahdi apareceu e os liquidou.2

A força seguinte – 4 mil homens sob o comando de Yusef Pasha – era tão indisciplinada e tão confiante de que podia derrotar os selvagens que nem mesmo designou sentinelas. Os mahdistas atacaram à noite e liquidaram o bem equipado exército até o último homem, usando pouco mais que lanças e espadas.

Uma força egípcia melhor, formada por 8 mil homens sob o comando de Hicks Pasha, um mercenário inglês convertido ao islamismo, atacou o território mahdista de Cartum, mas ficou perseguindo a esmo o inimigo deserto adentro. Depois de várias semanas, os rebeldes cortaram a linha de suprimentos dos egípcios. Logo a coluna começou a cambalear, sucumbindo ao calor e à sede, até que os dervixes montaram uma emboscada e mataram todos. A cabeça de Hicks foi levada ao Mahdi, e seu corpo abandonado, para ser atravessado, vezes sem conta, pelas lanças dos dervixes triunfantes.3

Com falta de soldados, o governo egípcio cedeu e enviou Charles Gordon, o mercenário inglês que ajudara a vencer os taipings na China (ver “A Rebelião Taiping”), para Cartum em fevereiro de 1884, com ordens para evacuar todos os europeus e egípcios da cidade – 7 mil soldados e 27 mil civis. Chegando lá, decidiu que seria cruel deixar as guarnições remotas egípcias à mercê dos dervixes, de modo que ficou esperando que as guarnições recuassem até Cartum. Em maio, enquanto ainda esperava, os mahdistas cercaram a cidade. Gordon ficou preso ali.

Quando o povo inglês soube do apuro heroico de Gordon, insistiu que seu governo se apressasse e o resgatasse. Em outubro, uma força expedicionária de 10 mil homens comandada por lorde Garnet Wolseley se formou no Cairo, cruzando 1.300 quilômetros em direção a Cartum e ao centro da rebelião.

Despachos enviados à Inglaterra excitavam os leitores dos jornais, à medida que a coluna avançava, mas veio o dia em que Wolseley chegou ao seu destino e se deparou com os dervixes já dentro dos muros de Cartum. Dois dias antes, em 25 de janeiro de 1885, com a chegada iminente dos britânicos, o Mahdi ordenara um assalto suicida a Cartum. A cidade caiu, e a isso seguiu-se uma pilhagem geral, com o massacre da população indefesa. As mulheres foram distribuídas pelos haréns da elite mahdista. A cabeça de Gordon foi oferecida a Mahdi, embora ele não houvesse pedido isso.

O califado

O resgate fracassado de Gordon derrubou o governo liberal de William Gladstone, na Grã-Bretanha. Nesse meio-tempo, o general Wolseley abandonou o Sudão à sua própria sorte e levou seu exército para casa.

A maioria dos livros de história pula os 15 anos seguintes, porque os britânicos não estavam envolvidos, mas o Sudão sob os mahdistas se deu mal. Só as mortes nas guerras anglo-sudanesas não bastariam para colocar esse evento na minha lista, mas com as guerras em todas as frentes, a fome e a intensificação da captura de escravos, a população do Sudão diminuiu. Dos 8 milhões de sudaneses antes da rebelião restaram apenas 2,5 milhões para serem computados pelo governo egípcio, depois da reconquista.4

Cartum foi deixada em ruínas, tomada pelo mato, coberta de ossos e despojada de tudo que fosse aproveitável, enquanto uma nova capital crescia rapidamente do outro lado do rio em torno do quartel-general de Mahdi, em Omdurman, que passou a contar com 150 mil habitantes.

Os mahdistas impuseram rigorosas leis muçulmanas. Açoitamentos, mutilações e decapitações tornaram-se crescentemente comuns. A assistência aos pobres, que o islamismo pregava como um objetivo virtuoso, virou um imposto obrigatório, cuja maior parte era destinada a manter o dispendioso modo de vida dos líderes do movimento.

O Mahdi baniu tudo o que fosse estranho à cultura árabe, como a educação, a indústria e a medicina europeias, mesmo usando um fez que lhe dava um aspecto turco. Em junho de 1885, pouco depois de proibir a medicina ocidental e expulsar ou executar todos os médicos, o Mahdi adoeceu com tifo e morreu. A liderança do Mahdiyah foi para um seu companheiro próximo, o califa (“vice”) Abdullahi.5

Os nômades Baqqarah (em árabe: criadores de gado) de Kordofan, especialmente do clã Taaisha do Abdullahi, formavam a espinha dorsal do califado de Abdullahi. Sua pretensão à sucessão, entretanto, foi contestada pelos familiares de Mahdi, que achavam que um deles mereciam o título, e essa rivalidade levou a uma guerra civil de grau baixo. Nessa época, o Sudão era ainda uma sociedade tribal. Muitos clãs se mantinham dentro de seus próprios territórios, mas outros alimentavam rixas sangrentas com seus vizinhos havia gerações; entretanto, as únicas armas modernas de que dispunham eram os milhares de rifles recolhidos dos egípcios mortos que o califa distribuía apenas para seus amigos.

Abdullahi conseguiu dominar todo o Sudão. Ele matou os árabes kababish de Kordofan, que haviam rejeitado o Mahdi e vendido camelos para Gordon. Massacrou os juhainas do Nilo Azul (o braço oriental que se une ao Nilo Branco em Cartum), pouco ligando para o fato de que, até então, eles produziam a maior parte dos cereais de Omdurman. Uma rebelião em Darfu causou a fúria dele, bem como dois anos de lutas selvagens na região.6 A captura de escravos no território pagão recomeçou.

Quando os árabes batahins se rebelaram, Abdullahi ordenou que todos os homens da tribo fossem caçados e arrastados até Omdurman para serem punidos. Dezenas morreram na prisão antes que os setenta sobreviventes fossem sentenciados à execução pública. Como a corda se rompeu quando o 18º foi enforcado, Abdullahi decidiu decapitar os seguintes. Por fim, ele ordenou que os últimos 27 tivessem as mãos e os pés cortados, sendo em seguida libertados, para sangrarem até a morte ou mendigar no mercado.7

O califa proibiu a tradicional peregrinação muçulmana a Meca e passou a insistir que a peregrinação à tumba de Mahdi, em Omdurman, era o novo dever sagrado.

Quando, em 1888, as chuvas falharam, a escassez de cereais, criada pelo massacre dos juhainas e pela guerra implacável, causou uma fome generalizada. Sob as ordens do califa, os soldados sudaneses percorriam as áreas rurais, confiscando os cereais que achavam e levando tudo para a capital. Lá redistribuíam a carga entre a população, de acordo com a lealdade de cada um. Quando a fome dominou o país, ficou difícil manter as ruas de Omdurman livres de cadáveres.

Em 1887, os mahdistas invadiram o império cristão da Etiópia (também chamada Abissínia na época) e devastaram as províncias fronteiriças. Quando o imperador Yohannes IV da Etiópia enviou seu exército para expulsá-los, uma força mahdista veio por trás e tomou a sua capital, em Gondar. Os sudaneses estupraram e mataram os habitantes, incendiando depois a cidade.

Em 1889, Yohannes encontrou o exército sudanês estacionado na cidade de Metema, na fronteira com o Sudão, e atacou. Essa foi a última grande batalha da história travada, primariamente, com o poder de músculos e armas afiadas. Embora o ataque dos etíopes houvesse começado bem, Yohannes foi mortalmente ferido e carregado de volta ao acampamento. Isso abateu o moral das tropas etíopes, e seu ataque fracassou.b Enquanto os etíopes preparavam o corpo do imperador para o funeral, seus parentes começaram a brigar pelo trono, e todos eles correram para casa a fim de se prepararem para a próxima guerra civil. Aproveitando a confusão, os mahdistas atacaram Metema, dispersando os etíopes remanescentes, que abandonaram o caixão incrustrado de joias com o corpo do imperador. Depois de acharem esse troféu no acampamento deserto, os mahdistas enviaram a cabeça do imperador para Omdurman, onde foi exibida orgulhosamente na ponta de uma estaca e acrescentada à coleção.8

Reconquista

Depois de uma década e meia ignorando o Sudão, os britânicos ficaram preocupados com os franceses, que vinham consolidando um império no interior da África e já estavam se aproximando do Nilo. Isso não podia ser permitido. Se os franceses conseguissem se instalar no Alto Nilo, os ingleses temiam que eles usassem técnicas de engenharia moderna a fim de desviar toda a sua água preciosa para fora do Egito.

Em 1898, um exército de 17 mil egípcios e 8 mil ingleses marchou para retomar o Sudão, liderados por Sir Herbert Kitchener. Dono de um bigode impressionante e fluente em árabe, Kitchener fora um oficial subalterno na campanha de Wolseley em 1884-85. Como não havia compatriotas sitiados para resgatar, ele agora podia se mover com um passo menos acelerado do que o de Wolseley.

Os britânicos mataram 3 mil mahdistas no primeiro choque em abril, quando uma coluna de dervixes tentou destruir a ferrovia que estavam construindo em Atbara, para dar apoio à sua ofensiva. Os mahdistas tinham reputação de serem impossíveis de deter, e fanaticamente impermeáveis à dor, o que levou os carabineiros britânicos a usarem balas dundum, projéteis de chumbo que se expandiam, fragmentando partes inteiras do corpo e deixando buracos abertos onde quer que acertassem. Os britânicos, frequentemente, atiravam nos dervixes feridos, achando que isso era melhor do que se arriscar a serem mortos por eles numa última e teimosa demonstração de força. Nunca foram perdoados pelos sudaneses por isso.

Depois de uma metódica marcha em direção a Cartum, o exército britânico foi atacado em setembro, nos arredores de Omdurman, pela totalidade do exército mahdista. Os britânicos haviam trazido uma maravilhosa invenção nova – a metralhadora Maxim – e, assim, quando os ruidosos dervixes atacavam, eram derrubados aos milhares. Omdurman foi uma das batalhas mais desiguais da história. Dez mil dervixes foram mortos; outros 20 mil ficaram tão feridos que não conseguiram fugir. Os britânicos perderam apenas meio por cento disso, 48 mortos, a maioria deles quando um oficial da cavalaria, buscando a glória, liderou, sem autorização, seus homens num ataque totalmente desnecessário e sem apoio contra o inimigo. Foi a última carga de cavalaria que o exército britânico empreendeu.

Os britânicos explodiram o túmulo do Mahdi e jogaram seus ossos no Nilo, com exceção do crânio, que foi oferecido a Kitchener, depois a um museu na Inglaterra, e finalmente foi reenterrado com todos os ritos muçulmanos, depois que a rainha Vitória ouviu falar do caso e, enojada, ordenou que suas tropas deixassem os restos mortais do homem em paz.

O último sinal do Estado mahdista foi finalmente extinto quando o fugitivo califa Abdullahi foi perseguido e morto em combate, no mês de novembro de 1899.

a Duas explicações possíveis seriam a cínica e a teológica. Cinicamente, podemos dizer que as grandes religiões fazem parte da classe dominante e, assim, é claro que ajudam a manter cada um em seu lugar. Teologicamente, as religiões geralmente enfatizam que todos nós somos servos de Deus, sem distinguir a nossa posição aqui na Terra – reis ou escravos, isso não importa. Somos todos igualmente humildes aos olhos de Deus.

b Preocupados com a derrota em Metema, os europeus começaram a equipar o exército etíope com armas modernas para fazer frente aos mahdistas. O efeito colateral disso é que os etíopes ficaram tão bem armados que conseguiram lutar contra a usurpação europeia, tornando-se o único estado nativo a sobreviver à luta pela África (C.1880-1900).