ESTADO LIVRE DO CONGO
Número de mortos: 10 milhões
Posição na lista: 14
Tipo: exploração comercial
Linha divisória ampla: europeus explorando nativos
Época: 1885-1908
Localização: bacia do Congo, África central
Principais Estados participantes: nenhum
Principais não Estados participantes: Estado Livre do Congo
Quem geralmente leva a maior culpa: o rei Leopoldo II da Bélgica
Fatores econômicos: borracha, madeira, marfim
Nessa época, (a África) não era mais um espaço vazio. Enchera-se, desde a minha infância, de rios, lagos e nomes. Deixara de ser um espaço vazio deliciosamente misterioso – um pedaço em branco para um menino sonhar gloriosamente. Virara um lugar de escuridão. Mas lá dentro havia principalmente um rio, um poderoso rio grande que você podia ver no mapa, semelhante a uma imensa serpente desenrodilhada, com a cabeça no mar, o corpo em descanso curvado sobre um vasto país, e o rabo perdido nas profundezas da terra. E, quando olhei para o mapa na vitrine de uma loja, isso me atraiu como a serpente atrairia um pássaro – um pássaro tolo e pequeno. Então lembrei que havia ali uma grande empresa, uma companhia comercial naquele rio. Com a breca!, pensei, eles não podem fazer comércio sem usar alguma espécie de embarcação nessa grande quantidade de água doce – navios a vapor! Por que eu não deveria tentar comandar um vapor? Fui andando pela rua Fleet, mas não conseguia esquecer a ideia. A serpente me enfeitiçara.
– Joseph Conrad, Heart of Darkness
O homem que colocou o rio Congo no mapa foi o famoso explorador e jornalista Henry Stanley. Depois de ganhar fama por presumivelmente descobrir o dr. Livingstone em 1871, Stanley voltou à África para esclarecer todas as grandes dúvidas geográficas. Levando Lady Alice, um bote dobrável, pelo interior de Zanzibar, seguindo as rotas escravagistas dos árabes na África oriental, ele primeiro circum-navegou o lago Tanganica, depois o lago Vitória, e, com isso, determinou a nascente do Nilo de uma vez por todas. Tendo resolvido o grande mistério geográfico da época, Stanley lançou seu barco portátil – junto com canoas compradas ali mesmo – em um grande rio misterioso que nascia no lado ocidental dos lagos, e que vinha a ser o rio Congo. Sua lendária expedição pelo rio trouxe o moderno poder de fogo à exploração da África, explodindo qualquer oposição nativa que ele encontrasse. Quando Stanley emergiu do Congo na costa do Atlântico, em 1870, a idade de ouro da exploração africana terminara.
Seus despachos da África atiçaram a imaginação do Ocidente. Infelizmente, em cartas que aguardavam pacientemente por ele havia vários anos, Stanley recebeu a terrível notícia de que sua noiva, Alice, cuja lembrança o animara e inspirara enquanto viajava com o barco homônimo dela pela misteriosa África, casara-se com outro, um ano depois que Stanley desaparecera. Ele ficou inconsolável, e publicou seus diários sob a forma de um campeão de vendagem sobre suas aventuras no Continente Negro.
Impressionado com a vasta riqueza do país, Stanley nutrira a esperança de convencer o governo britânico a estabelecer uma colônia ali, mas não obteve êxito. Ele era apenas o mais recente grande explorador que falhava ao tentar interessar um governo na bacia do Congo. Esses advogados viviam promovendo reuniões e escrevendo editoriais apaixonados sobre o valor de ter mercados para as mercadorias da Europa, o número de almas pagãs que precisavam ser salvas, os ricos recursos naturais prontos para serem tomados, os selvagens canibais que precisavam de uma reforma dietética, ou o ignóbil mercado de escravos que precisava ser abolido.
Ninguém estava interessado. Os governos europeus preferiam a atitude sensata da classe média: as colônias custavam mais do que valiam. Em 1870, os únicos funcionários do norte da Europa ao sul do Saara estavam na África do Sul – onde o clima era agradável para a colonização branca – e nas cidades costeiras, como Libreville e Freetown, fundadas como parte do movimento antiescravagista. Os missionários vagueavam pelo coração da África, mas faziam isso por sua própria conta, sem a proteção dos governos.
Um homem de dinheiro e bom gosto
Entre os que falharam em convencer um governo a assumir o “fardo do homem branco” estava o rei Leopoldo II da Bélgica, um hedonista e uma pessoa perigosamente hábil, que procurava por terras sem dono para conquistar. Nascido em 1835, ele era apenas cinco anos mais jovem do que seu pequeno país, mas tinha grandes ambições.
“Não há nações pequenas”, dizia Leopoldo, “apenas mentes pequenas.” Concordaria a Espanha em vender as Filipinas? Ninguém parece estar usando aquele desolado pedaço da Argentina – que tal nos dar isso? Talvez Bornéu esteja disponível, ou a Nova Guiné. Infelizmente, o Parlamento da Bélgica não estava mais interessado em adotar colônias do que seu correspondente britânico. As ambições de Leopoldo estavam dando em nada.
Depois de ler o livro de Stanley, Leopoldo tentou interessá-lo em uma parceria, mas encontrou relutância por parte do autor. Quando viajava pela Europa promovendo seu livro, Stanley recebia inúmeros convites amáveis do rei para almoçar e tomar chá, sempre que este se encontrava na mesma cidade. Leopoldo estava namorando a ideia de passar por cima dos governos da Europa e criar uma colônia independente, o Estado Livre do Congo. Ele tomava como modelo a comunidade menor e mais antiga dos primeiros escravos na Libéria. O Estado Livre do Congo proibiria a importação de armas e álcool. Imporia a paz entre todas as tribos, aboliria o comércio de escravos e estabeleceria uma zona protegida de livre comércio onde os três “c” – comércio, cristianismo e civilização – poderiam florescer.
Leopoldo patrocinou uma conferência em Bruxelas, em setembro de 1876, em que trabalhos científicos e antropológicos sobre a África foram apresentados, e então criou uma organização não oficial, chamada Association Internationale Africaine. Esse grupo se encontrou uma segunda vez, um ano depois, e desapareceu. Pouco importava. Já servira a seu propósito. Durara tempo suficiente para convencer o mundo de que Leopoldo estava falando sério.
Stanley concordou em voltar ao Congo e construir uma estrada que contornasse Livingstone Falls, a longa extensão de despenhadeiros e cataratas que separava o estuário litorâneo do vasto e preguiçoso trecho de rio navegável que penetrava 1.500 quilômetros até o coração da África. Começando em 1879, ele estabeleceu postos ao longo do rio e negociou com os chefes locais, trocando mercadorias pelo direito de passagem.
Selo de borracha
A ocupação britânica do Egito, em 1879, fez mais do que enfurecer os nativos e provocar a revolta descrita no capítulo anterior (ver “A revolta Mahdi”). Também aborreceu o restante da Europa.
Embora ninguém na Europa estivesse realmente querendo a África, tampouco deixariam alguém ficar com ela; assim, logo que os ingleses fizeram sua tentativa, o restante da Europa se levantou e exigiu o seu quinhão. Com a Inglaterra controlando o Egito, todos os outros países – França, Alemanha, Portugal, Itália – queriam participar da festa. Em 1884, os representantes de uma dúzia de nações se reuniram em Berlim para dividir a África imparcialmente entre todos os pretendentes. É claro que nenhuma nação representada na conferência era africana, mas eu realmente preciso lhe dizer isso? Mesmo os Estados africanos ocidentalizados, como o Transvaal e a Libéria, foram barrados.
Além de dividir as esferas nacionais de influência, os delegados endossaram formalmente o plano de Leopoldo. O Congo seria uma colônia privada sob o controle pessoal do rei – e não uma possessão do Estado da Bélgica. Em parte, Leopoldo recebeu o Congo como um acordo. Nenhuma grande potência queria deixar que aquilo caísse nas mãos de outra grande potência, mas doar tudo ao rei da pequena e neutra Bélgica parecia ser seguro.
Durante aquela era de capitalismo desenfreado, permitir que corporações funcionassem como nações soberanas tinha precedentes sólidos. A Companhia das Índias Orientais holandesa, nos séculos XVII e XVIII, administrara colônias e esquadras no Extremo Oriente sem supervisão de governo. A Companhia Britânica das Índias Orientais conquistara a Índia e governara independentemente, até a Coroa assumir, em l858. A Companhia da Baía de Hudson controlara um sexto da América do Norte até 1868. O Estado Livre do Congo era apenas mais uma colônia privada.
Borracha vermelha
A princípio, o Estado Livre não foi uma operação bem-sucedida. Como os céticos no Parlamento belga haviam prognosticado, as colônias custavam mais e produziam menos do que Leopoldo imaginara. Depois de dez anos, o Estado Livre caminhava para a bancarrota e Leopoldo estava quase pedindo ao governo belga para tirar aquilo de suas mãos. Ele foi salvo por uma onda mundial de demanda por borracha. Em 1888, Dunlop inventara o pneu de borracha com câmara de ar para bicicletas e, em 1895, Michelin fez o mesmo para os automóveis. De repente, Leopoldo possuía algo que todo mundo queria.1
Sob muitos aspectos, o Estado Livre funcionava por meio de elaborados passes de mágica. No papel, era uma organização incrivelmente complexa, com um organograma cheio de quadrados e flechas, que só serviam para disfarçar o fato de que todo o dinheiro estava sendo afunilado diretamente para o bolso de Leopoldo.
Sua colônia era dividida em duas partes. A menor era considerada uma zona de livre-comércio, na qual aos investidores eram outorgados contratos que garantiam direitos comerciais exclusivos sobre um serviço, um produto, uma região ou uma indústria especificamente. A um sindicato foi vendido o contrato para construir a ferrovia em torno de Livingstone Falls. A outro foram garantidos direitos exclusivos para explorar os minerais em Katanga, e a outro para explorar os campos de diamantes de Katai. Leopoldo quase sempre conseguia obter substancial participação nessas operações, tais como os 50% que ele detinha na Anglo-Belgian India-Rubber Company.2
A parte maior da colônia era considerada propriedade privada do Estado (o Domínio Privado). Os funcionários do governo ganhavam salários baixos, mas recebiam lucrativas comissões baseadas no que conseguiam arrancar dos seus distritos. O dinheiro que enviavam para cima voltava ao tesouro do Estado para cobrir as despesas operacionais.
Uma vez cobertas as despesas, uma terceira zona (o Domínio da Coroa) era estabelecida como propriedade pessoal do próprio Leopoldo. Funcionava nos mesmos moldes do Domínio Privado, mas o dinheiro ia direto para Leopoldo.
Além dos recursos naturais da bacia do Congo, o Estado Livre explorava a abundante mão de obra local. Toda a população de qualquer cidade próxima podia ser recrutada para abrir uma estrada ou assentar trilhos cortando a selva. Os habitantes podiam ser recrutados como carregadores por quanto tempo a companhia precisasse deles e, se morressem de exaustão, haveria muitos outros na próxima parada da trilha.
As cidades recebiam cotas regulares de borracha, marfim ou madeira a serem extraídas da selva. Qualquer trabalhador que não produzisse sua cota de borracha ficava passível de castigo. Uma forte vergastada com um chicote de couro de hipopótamo era só o começo. A mulher dele podia ser sequestrada, e seu resgate exigido em borracha.3 A maioria dos postos avançados da companhia exibia um número de mulheres sujas, emaciadas e acorrentadas aguardando os maridos trazerem sua cota de borracha ao comandante do posto. Quando os pelotões de segurança da companhia eram enviados em expedições punitivas, eram advertidos para não desperdiçar munição – uma bala, um morto. Não deviam usar a munição da companhia caçando grandes presas por esporte. Como prova de sua moderação, deviam trazer de volta uma mão decepada para cada bala disparada.4
Uma testemunha descreveu soldados voltando de um ataque:
Na proa da canoa há um mastro, e nele, pendurado, um saco com algo dentro. São as mãos (mãos direitas) de 16 guerreiros que eles mataram. “Guerreiros?” Você não vê entre elas as mãos de criancinhas e meninas? Eu vi. Vi onde o troféu foi cortado, enquanto o pequeno coração batia forte o bastante para espirrar o sangue das artérias seccionadas a mais de um metro de distância.5
Mãos amputadas tornaram-se uma espécie de moeda corrente – prova de que as ordens estavam sendo obedecidas. Uma cesta de mãos defumadas cobria qualquer perda na produção e, se a borracha não chegasse, as forças de segurança do Estado Livre, a Force Publique, sairiam para coletar uma cota de mãos em seu lugar. Os nativos rapidamente aprenderam que concordar em sacrificar uma das mãos podia salvar uma vida.
E não apenas mãos. Depois que um comandante rosnou que seus homens estavam sacrificando apenas mulheres e crianças, os soldados voltaram do ataque seguinte com cestas cheias de pênis.
As notícias das atrocidades não chegavam à Europa, porque qualquer viagem que envolvesse o Estado Livre era extremamente regulada. Se um empregado cansado e insatisfeito tentasse escapar, “provavelmente nunca sairia do país com vida, pois as rotas de comunicação ou abastecimento estão nas mãos da administração, e escapar numa canoa nativa é fora de questão – toda canoa nativa, se o seu destino não é conhecido e seus movimentos são transmitidos de posto para posto, está sujeita a ser parada imediatamente, pois os nativos não podem se movimentar livremente nos cursos d’água controlados”.6
A história vaza
Em 1899, um polonês exilado, escrevendo em inglês sob o nome de Joseph Conrad, publicou em capítulos sua novela Coração das trevas numa revista literária inglesa. Baseado no ano em que Conrad passara como piloto de uma embarcação pluvial no rio Congo, o livro conta a história do agente de uma companhia que viajava por um rio africano escuro e misterioso para levar de volta à civilização um velhaco mercador de marfim. A aterrorizante história de Kurtz, adorado como um deus colérico pelos habitantes locais, e aquartelado em um acampamento cercado por uma paliçada com cabeças espetadas nas pontas, fez enorme sucesso quando começou a sair. Os leitores achavam que aquilo era ficção.
Os antiquados humanistas do período antiescravagista haviam escutado e relatado, durante anos, histórias terríveis sobre o Congo, mas ninguém os levava a sério. Eles eram demasiadamente alinhados com os radicais no Parlamento inglês, e seus apelos pela moralidade e boa vontade eram ignorados ou ridicularizados. Então alguém de dentro botou a boca no trombone sobre o Estado Livre do Congo.
Em 1890, Edmund Morel, de ascendência anglo-francesa, virara, aos 17 anos, um escriturário da companhia de navegação Elder Demster Shipping. Operando fora de Liverpool – no distante centro de comércio da África –, a Elder Demster tinha um contrato de navegação com o Congo. Por dez anos, Morel trabalhou diligentemente como escriturário, enquanto fazia um bico como jornalista de mercado. Sua reputação como especialista em oportunidades de investimento na África cresceu, e ele, habilmente, passou a defender o Estado Livre do Congo de todas aquelas aborrecidas acusações de crueldade que perseguiam toda aventura colonial.7
Então, em 1900, ainda trabalhando como escriturário da empresa de navegação, Morel finalmente reparou na escassez de exportações para o Congo. A balança comercial era muito boa, os lucros eram fáceis. Toda aquela borracha estava indo para a Europa, mas nada estava saindo para pagar por isso – só munição. A única conclusão possível era que as companhias de comércio estavam roubando. Notou, também, que os livros oficiais eram adulterados para esconder isso.8
Ele escreveu uma denúncia anônima que atraiu a atenção dos idealistas reformadores sociais profissionais que todo mundo ignorara. Morel lhes recomendou esquecer a filantropia e atacar Leopoldo por criar monopólios, violando os acordos de Berlim que regulavam o livre-comércio. Também os aconselhou a incitar o ressentimento pela exclusão da Grã-Bretanha do lucrativo comércio. Uma vez que conseguissem fazer as pessoas olharem para o Congo, elas veriam por si mesmas as atrocidades.9
Em 1903, Morel fundou seu próprio jornal e começou, também, a publicar uma série de livros, começando por Borracha vermelha. Não conseguiu permissão para ir ao Congo, mas logo denúncias começaram a chegar até ele. Como o correio para fora do Congo era censurado, seus informantes precisavam aguardar o retorno à Europa para poder conversar com ele.
A pressão foi compensada quando o Ministério das Relações Exteriores britânico pediu ao seu cônsul na África central, Roger Casement, para preparar um relatório. Um irlandês de 38 anos, Casement vinha perambulando pelo Congo havia uns dez anos, trabalhando por algum tempo com Stanley, trabalhando para a Elder Demster Shipping, transportando marfim, acompanhando missionários batistas, às vezes desaparecendo na selva com seus cachorros para longas excursões.10
“Ele tem coisas para contar!”, dizia sobre Casement seu amigo Joseph Conrad. “Coisas que eu tento esquecer, coisas que eu nunca soube.”11 Mas ninguém fora do Congo parecera interessado no que Casement vira, até aquele momento. Como cônsul inglês no Congo, Roger Casement emitiu um relatório, cuidadosamente baseado em depoimentos de testemunhas oculares confiáveis, que revelava atrocidades maciças.
Em 1904, Morel e Casement fundaram a Associação pela Reforma do Congo, que rapidamente se tornou a causa da moda entre as celebridades ativistas da época. Anatole France, Arthur Conan Doyle, Booker T. Washington e Mark Twain fizeram conferências e escreveram sobre o assunto. William Cadbury, o milionário do chocolate Quaker, contribuiu com dinheiro.
Leopoldo revidou. Logo após a denúncia, um convidado de um jantar puxou Morel para um lado. Mais tarde, ele relatou a conversa:
O que eram os nativos no Congo para mim? Eu era um jovem. E tinha uma família – certo? Eu estava correndo sérios riscos. E então, uma sugestão delicadamente velada de que meus legítimos interesses seriam mais bem servidos se… “Uma propina?” Oh, não, nada tão vulgar ou aviltante. Mas sempre havia meios de arranjar essas coisas. Tudo podia ser arranjado com honra para os dois lados. Foi um encontro muito agradável e durou até tarde da noite. “Então nada abalará a sua determinação?” “Temo que não.” Nós nos separamos com sorrisos recíprocos.12
Todos os inimigos de Leopoldo logo se sentiram pressionados. Morel foi acusado de ser pago pelos rivais dos negócios de Leopoldo. Vários jornais importantes da Alemanha pararam, de repente, de criticar as condições no Congo e começaram a apresentar um ponto de vista mais ambíguo. Ninguém sabia explicar essa mudança surpreendente, até que Leopoldo, acidentalmente, deixou de reembolsar seu “homem da mala” pelo suborno que ele vinha pagando aos jornais. Uma série de telegramas confusos, trocados sobre quem deveria pagar quem, logo veio a público.
Um jornalista militante foi descoberto passando férias com sua amante, e Leopoldo convidou os dois para jantar. Apesar do seu grande charme, o rei não conseguiu desencorajar esse jornalista de falar sobre o Congo, de modo que denunciou o segredo do homem com um toque sutil. O rei simplesmente enviou flores à esposa do homem, e um bilhete explicando como fora agradável ter o prazer da companhia dela no jantar. Não é preciso dizer o que poderia ter acontecido se Leopoldo houvesse descoberto que Casement era um homossexual enrustido, pois isso aconteceu apenas alguns anos depois de Oscar Wilde ser preso pela mesma ofensa.13
O rei visitou a América para se relacionar com os líderes do Congresso e da indústria. Doou 3 mil produtos manufaturados do Congo para o Instituto Smithsoniano e ofereceu enormes concessões para empresas americanas que operassem no Estado Livre. Embora o presidente Theodore Roosevelt fosse a favor de Morel e dos reformistas do Congo, o Congresso resistiu quando ele tentou enviar investigadores ao país.
Leopoldo cometeu um grande erro ao contratar Henry Kowalsky, o mais famoso advogado de San Francisco, para melhorar sua imagem pública e fazer um lobby generoso no Congresso. Quando começou a perceber que Kowalsky era perigosamente excêntrico, o rei tentou se afastar dele. Zangado e traído, Kowalsky vendeu as cartas de Leopoldo para William Randolph Hearst, que então adotou a causa do Congo na sua rede de jornais.14
O amado explorador, Henry Stanley, morreu em 1904. Embora estivesse havia muito tempo afastado da vida pública, sua reputação como herói e visionário blindara o Estado Livre do Congo da desaprovação. Já que Stanley defendia Leopoldo, isso bastava para muitas pessoas. Quando Stanley morreu, Leopoldo ficou desprotegido.
Em 1908, já ficara inegável que o povo do Congo fora miseravelmente explorado, e o clamor foi estrondoso. A comunidade internacional finalmente forçou Leopoldo a entregar o país. O Parlamento belga relutantemente comprou o Congo do seu rei a um preço exorbitante, e prometeu administrá-lo justa e honestamente. Leopoldo morreu um ano depois.
Número de mortos
Quando Casement viajou pelos distritos produtores de borracha preparando seu relatório, ficou óbvio o quanto aquelas aldeias haviam sofrido na década anterior, desde que ele passara a primeira vez por ali. Como anotou no seu diário:
5 de junho: O país, um deserto, nenhum nativo restou.
25 de julho: Andei pelas aldeias e vi na mais próxima – a população terrivelmente diminuída – apenas 93 pessoas sobreviventes de muitas centenas.
6 de agosto: Fiz copiosas anotações a partir dos nativos… Eles são cruelmente açoitados por se atrasarem com as cestas [de borracha]…
22 de agosto: Bolongo quase às moscas. Eu me lembro muito bem da aldeia em novembro de 1887, cheia de gente; agora 14 adultos ao todo… às 6:30 passei por um lado deserto de Bokuta… Mouzede diz que as pessoas foram levadas à força para Mampoko. Pobres almas infelizes.
30 de agosto: Dezesseis homens, mulheres e crianças amarrados em uma aldeia Mboye perto da cidade. Infame. Os homens foram para a prisão, e as crianças, libertadas com a minha intervenção. Infame. Sistema vergonhoso, infame.15
O relatório original de Casement estimava que 3 milhões de congoleses houvessem morrido. Morel estimou que a população do Congo era originalmente de 20 a 30 milhões, mas depois entrou em colapso e caiu para meros 8 milhões. Isso se tornou o número de mortes mais comumente cotado por quase todo o século XV.16 Em 1977, o jornalista Peter Forbath, no The River Congo, calculou o número de mortes em 5 milhões.17 Hoje, o consenso segue a estimativa oferecida por Adam Hochschild no Leopold’s Ghost, de que a população original do Congo de 20 milhões foi cortada pela metade devido às atrocidades.18
Tudo que se pode dizer com certeza é que a população do Congo caiu terrivelmente nas duas décadas do Estado Livre. A maioria das mortes foi causada por doenças que se espalhavam à medida que as populações eram arrastadas por ali, famintas e esfalfadas. A varíola, originalmente endêmica no litoral, espalhou-se pelo interior. A doença do sono, endêmica no interior, espalhou-se para fora. A opressão direta também cobrou seu preço. Em apenas um ano, e em apenas um dos distritos da borracha, foi registrado que os soldados gastaram 40 mil cartuchos de munição, para os quais, presumivelmente, tiveram de produzir um número igual de mãos decepadas, a fim de provar que não estavam desperdiçando balas.