A GUERRA CIVIL CHINESA
Número de mortos: 7 milhões, sendo 5 milhões na primeira fase mais 2 milhões na segunda fase, sem incluir os 10 milhões mortos na guerra sino-japonesa
Posição na lista: 19
Tipo: guerra civil ideológica, colapso do Estado
Linha divisória ampla: chefes guerreiros versus comunistas versus nacionalistas versus japoneses
Época: 1926-37 e 1945-49
Localização: China
Estados com participação quântica: República Popular da China, Manchúria
Principal Estado participante: Império do Japão
Quem geralmente leva a maior culpa: Chiang Kai-Shek e o Japão
Resumida em 25 palavras ou menos: “Todo o Poder Político Emana do Cano de um Fuzil” – Mao Tsé-tung
Outra praga: o colapso da dinastia chinesa
Sai o dragão
No início do século XX, o Império Chinês agonizava. A corrupção endêmica do governo imperial, combinada com o ávido frenesi colonial das potências ocidentais, havia minado a credibilidade da dinastia mandchu governante. A única coisa que mantinha o governo unido era a vontade férrea da imperatriz-viúva Cixi, uma ex-concubina, que vinha governando o império como regente de uma fieira de imperadores-criança que ela escolhia a dedo, por sua subserviência. Quase que sozinha, Cixi foi a responsável por impedir o império de naufragar depois das rebeliões do século XIX, mas, quando ela morreu, em 1908, o novo imperador-criança foi levado de roldão por um mundo hostil.
Em outubro de 1911, enquanto o movimento reformista ainda se debatia sobre os detalhes de como facilitar a transformação de um império em um país republicano moderno, uma bomba que estava sendo construída por uma célula de revolucionários na cidade de Wuhan explodiu acidentalmente nos rostos daqueles homens. Quando foi investigar, a polícia descobriu extensos arquivos e listas de revolucionários. Defrontados com a possibilidade de serem presos por seus nomes constarem dessas listas, republicanos dentro da guarnição do exército na cidade se amotinaram e se apoderaram do governo local. Logo guarnições de toda a China aderiram ao motim, levando os governos provinciais com elas. Finalmente, o imperador Puyi abdicou, embora ele provavelmente fosse jovem demais para até mesmo saber o que isso significava.
O primeiro presidente da República deveria ser Sun Yat-sen, um cristão educado nos Estados Unidos, intelectual e líder espiritual do movimento republicano. Entretanto, como o exército iniciara a revolução, foi o comandante da guarnição de Pequim, general Yuan Shikai, que terminou no cargo.
Durante algum tempo, Yuan governou como um presidente, com uma legislatura nacional, mas, com o decorrer de poucos anos, ele foi acumulando cada vez mais poder, até que se tornou um ditador em toda a extensão da palavra. É claro, quanto mais ele tentava dominar os governos provinciais, mais esses o ignoravam. O Tibete e a Mongólia declararam abertamente sua independência. Quando Yuan morreu, em 1916, de câncer, o governo central se tornara grandemente fictício.
Começou então a época dos chefes guerreiros, mas o panorama não deve ter sido tão ruim quanto parece. Aqueles chefes raramente combatiam uns contra os outros em batalhas ferozes. O cidadão chinês médio ainda pagava os mesmos impostos, subornos e dinheiro para proteção, aos mesmos funcionários municipais, para a mesma precariedade de serviços, como sempre haviam feito. Os funcionários municipais passavam parte do dinheiro para seu chefe provincial, como sempre. A única diferença era que, agora, o chefe provincial guardava todo o quinhão para si, em vez de dividi-lo com alguém em Pequim.
Mas uma China falida era pior do que um império estável, não importa quão corrupto fosse. A desintegração do governo central permitiu que bandidos fossem ficando mais ousados em saquear o interior do país. Um relato oficial observou que 10 mil cidades e vilarejos num distrito na província de Honan haviam sido mantidos reféns, e que mil deles haviam sido saqueados. “Quando eles capturam uma pessoa para pedir resgate, eles primeiro furam suas pernas com um arame e as atam juntas, como se fossem peixes pendurados num fio. Quando voltam para seus esconderijos, os cativos são interrogados e cortados com foices para que revelem onde guardam seus pertences escondidos.”1
A expedição do norte
Enquanto o restante do mundo travava a Primeira Guerra Mundial, o Japão tentava colocar a China como seu protetorado. O governo de Pequim, tal como era, tentou resistir, mas por fim teve de ceder. Quando o acordo veio a público, em 1919, estudantes enraivecidos saíram em marcha e enfrentaram a polícia no dia 4 de maio, entre eles um estudante que era bibliotecário na Universidade de Pequim, Mao Tsé-tung, que começava a mostrar um interesse pela política.
Montado na onda de nacionalismo do Movimento Quatro de Maio, Sun Yat-sen foi eleito chefe de um governo medíocre. Seu Partido Nacionalista (Kuo-mintang) estabeleceu um regime rival na cidade meridional de Cantão (Guang-zhou). Então, em 1925, Sun Yat-sen morreu de câncer, e o governo Kuomintang passou para o comandante do exército e cunhado póstumo, Chiang Kai-shek.a
Em julho de 1926, o exército de Chiang Kai-shek enviou várias colunas para o norte a partir de Cantão, com o objetivo de unificar a China. Depois de um ano de batalhar contra todos os chefes guerreiros que se interpunham no seu caminho, o exército de Chiang Kai-shek chegou ao rio Yang-tsé, onde estacionou durante o inverno para se recompor.2
Na foz do Yang-tsé ficava Xangai, o coração industrial da China. O exército nacionalista precisava se aproximar da cidade cautelosamente, porque os enclaves estrangeiros que cobriam grande parte da cidade eram considerados territórios soberanos. Em março de 1927, tropas nacionalistas indisciplinadas haviam roubado e matado diversos estrangeiros em Nanquim, de modo que navios de guerra ocidentais estavam se preparando para o confronto.3
Xangai respondia por metade do setor manufatureiro do país, o que significava que a cidade abrigava também metade do proletariado industrial da China. O Kuomintang na época chefiava uma ampla coalizão que incluía os comunistas, que na ocasião declararam uma greve geral em março, de apoio ao exército nacionalista que se aproximava. Enquanto a cidade parava, Chiang Kai-shek assumia o controle do setor chinês de Xangai e assegurava aos ocidentais que a vida logo voltaria ao normal; entretanto as facções partidárias começaram a brigar por causa do butim, e a coalizão se desfez quando as tropas nacionalistas atiraram com metralhadoras contra participantes de um comício comunista de protesto.4
Essa ruptura da coalizão em 1927 é considerada o início formal da Guerra Civil Chinesa. A Esquerda se separou e estabeleceu um regime rival em Wuhan, e os comunistas se rebelaram nas ruas de Cantão. Chiang Kai-shek levou algumas semanas para sufocar a revolta, matando milhares de perturbadores da ordem nas ruas das cidades, por todo o sul da China. Depois ele extorquiu dinheiro para proteção da comunidade estrangeira em Xangai, dinheiro que financiou o próximo passo da Expedição do Norte, além do rio Yang-tsé.
Quando entraram em Pequim, em junho de 1928, as colunas nacionalistas ou haviam vencido os chefes guerreiros ou feito alianças convenientes. Depois que Ching Kai-shek estabeleceu em Nanquim a nova capital desse país teoricamente unificado, o nome Beijing, que significa “capital do norte”, em chinês, teve de ser modificado para seu nome antigo, Beiping, significando “paz do norte”.
Com o governo do Kuomintang assentado firmemente em Nanquim, seu domínio se estendia apenas ao vale do rio Yang-tsé. Os chefes guerreiros que haviam se escondido quando o exército nacionalista passava por seus territórios agora punham a cabeça para fora, de novo e cautelosamente, reassumindo o governo de suas províncias. Os comunistas das zonas rurais constituíram enclaves em zonas remotas e organizaram seus camponeses em sovietes. As canhoneiras ocidentais patrulhavam os rios para proteger o comércio e os missionários.
O Sol Nascente
Entre as porções da China sob controle estrangeiro estavam as ferrovias. A maior parte delas fora construída com capital estrangeiro, de modo que soldados estrangeiros patrulhavam os trilhos para evitar a ação de bandidos. Os japoneses possuíam e guarneciam as linhas que cortavam a Manchúria, uma região para o nordeste, mais afastada.
Durante os sessenta anos anteriores, os japoneses vinham fazendo tudo que podiam para se tornar iguais aos ocidentais. Construíram fábricas e navios de guerra, e vestiam terno e usavam gravatas. Elegeram um Parlamento e tentaram conquistar todos os povos nativos ao longo do litoral asiático do oceano Pacífico. Exatamente como seus mentores europeus, os japoneses tinham postos de abastecimento de carvão, colônias e concessões dispersas por toda a China.
Embora os liberais no Parlamento japonês se opusessem à conquista automática de todos os países vizinhos, as facções militares tendiam a assassinar qualquer um que falasse demais abertamente contra sua ânsia de construir um império. Logo os líderes remanescentes da oposição aprenderam a manter a cabeça baixa e a boca fechada. De muitos modos, entretanto, o debate em Tóquio não interessava. O exército estava fazendo o que era necessário para aumentar a glória do imperador, com ou sem permissão.
Em 1931, uma misteriosa explosão destruiu uns poucos metros de uma linha ferroviária em Mukden, atualmente Shenyang, de modo que os soldados japoneses imediatamente se apoderaram de todos os centros nervosos críticos da Manchúria e declararam a independência do novo país, Mandchuko. Instalaram Puyi, o ex-imperador mandchu da China, na época desempregado, como governante dessa nova nação e deixaram suas tropas lá, para ter certeza de que ele faria o que lhe fosse ordenado. Embora fosse suspeita geral de que o exército japonês plantara a bomba que causou a explosão a fim de criar uma desculpa para agir pela força, o resto do mundo reclamou com veemência e se enraiveceu, mas sem muito efeito.5
A longa marcha
Em 1927, Mao Tsé-tung abandonou sua segunda esposa e seus três filhos e partiu para o interior a fim de incitar uma rebelião de camponeses. Sua esposa, Yang Kaihui, nunca mais o viu. Ela começara com uma compaixão comunista pelos pobres, mas foi ficando gradualmente desiludida pelas realidades da guerra civil. Abandonou a política e tentou dar sentido a seu mundo escrevendo suas memórias. “Matem, matem, matem! Tudo que eu ouvia era esse som nos meus ouvidos!”, escreveu ela no final. “Por que os seres humanos são tão maus? Por que são tão cruéis?” Em 1930, com a idade de 29 anos, um ano depois que escreveu essas palavras, as atividades de guerrilha de seu marido chegaram perto demais de sua casa, de modo que os funcionários locais a levaram e fuzilaram.6
Chiang Kai-shek tentou erradicar a infestação comunista do interior do país lançando diversas campanhas de aniquilação, cada uma maior do que a anterior, mas não foi senão na quinta dessas campanhas que a principal força dos comunistas, o Soviete Jiangxi, foi destruída. Em outubro de 1934, todos os comunistas fisicamente capazes, em número de 100 mil, iniciaram uma longa e lendária retirada para uma base de operações mais segura, bem para o norte e o oeste. Os comunistas abandonaram os fracos, os doentes e os feridos, entre eles o irmão mais moço de Mao, que estava com febre, e que subsequentemente foi morto pelo Kuomintang. Também foi abandonado o filho de Mao, ainda criança, de sua terceira esposa, que se extraviou e simplesmente desapareceu na massa de crianças anônimas, desenraizadas, que a guerra jogava de cá para lá.7 Os Vermelhos conseguiram escapar do cerco do Kuomintang e foram recuando a duras penas, tendo por fim cruzado 18 cadeias de montanhas, 24 rios e 9.600 quilômetros num ano. Apenas 8 mil chegaram a seu novo santuário, numa alça poeirenta e montanhosa do rio Amarelo, em outubro de 1935.
Será que a Longa Marcha faz jus a seu nome? Como ela se compara com outros deslocamentos militares? A marcha do general Sherman através dos estados da Geórgia e Carolina do Norte e do Sul mal cobriu com suas botas lamacentas 1.120 quilômetros.8 A invasão da Itália por Haníbal, atravessando os Alpes, foi um curto passeio no parque, de uns meros 1.600 quilômetros. A jornada do Corpo do Descobrimento, de Lewis e Clark, mal passou dos 12.800 quilômetros até o Pacífico, ida e volta, assim como a caminhada de Stanley na África, 11.200 quilômetros, costa a costa.
A importância da Longa Marcha não é que ela tenha salvado o comunismo na China, pois havia muito mais Vermelhos no local de onde ela partiu. Mais importante é que ela filtrou as fileiras com uma forte seleção natural. Fracassos e erros nos primeiros meses deram origem a uma luta pelo poder entre os líderes dos vários ramos e facções. Quando a retirada começou, Mao Tsé-tung era um dos 12 líderes mais proeminentes, mas ele não era membro do comitê que governava a marcha. No final ele emergiu como o líder inquestionável do partido. Apenas os mais indestrutíveis, duros de coração e dedicados revolucionários sobreviveram à Longa Marcha, e esses homens formaram o núcleo em torno do qual o movimento cresceria novamente. Com essa gente no comando, não haveria meias medidas e concessões.
A guerra sino-japonesa
Em 1937, Mao escreveu Da guerra de guerrilhas, o livro-texto que todo movimento insurgente estuda para aprender como derrotar uma força avassaladora. “Na guerra de guerrilhas, escolha a tática de parecer que vem do leste e ataque do oeste; evite o grosso, ataque o vazio; ataque; retire-se; desfeche um golpe relâmpago, procure uma decisão relâmpago. Quando se defrontam com um inimigo mais forte, os guerrilheiros recuam quando o inimigo avança; fustigam-no quando ele para; atacam-no quando ele está esgotado; perseguem-no quando ele recua. Na estratégia da guerrilha, a retaguarda, os flancos e outras partes vulneráveis do inimigo são os pontos vitais, e ali ele deve ser fustigado, atacado, dispersado, exaurido e aniquilado.”
A publicação veio na hora certa. Um poderoso novo inimigo atacara bem dentro do coração da China.
Em julho de 1937, ao longo do rio Yongding, nos arredores de Pequim, soldados do Kuomintang trocaram tiros com soldados japoneses que realizavam manobras do outro lado do rio. Embora ninguém houvesse morrido, um soldado japonês foi dado como desaparecido quando foi feita a chamada no dia seguinte. Os japoneses acusaram os chineses de manterem seu soldado em custódia e colocaram suas forças em alerta total. Quando o soldado desaparecido voltou, de uma visita a um bordel local, e perguntou por que aquele barulho todo, o serviço de inteligência japonês já havia descoberto tropas nacionalistas chinesas marchando para a fronteira.9 Houve algum tiroteio, e, depois de algumas semanas, o exército japonês avançou sobre o território chinês propriamente dito cruzando a ponte Marco Polo.10
Comunistas e nacionalistas logo pararam de guerrear uns com os outros a fim de focalizar sua ação sobre os invasores. Mês após mês, os japoneses foram empurrando as forças de Chiang Kai-shek para o sul. Em agosto de 1937, a linha de batalha chegara a Xangai, depois de uma campanha dura, na qual as tropas nacionalistas perderam 250 mil homens, mortos ou feridos, enquanto os japoneses tiveram 40 mil baixas. Até mesmo com uma grande população de onde tirar seus conscritos, uma proporção de seis para um era mais do que o exército nacionalista podia suportar. Quando os japoneses aumentaram a pressão, as tropas do Kuomintang foram expulsas atabalhoadamente de sua capital, Nanquim.11
A chacina geral de civis e prisioneiros depois que os japoneses tomaram Nanquim, em dezembro de 1937, talvez seja o mais sangrento massacre individual bem documentado da história. Quase todos os chineses tomados como prisioneiros de guerra dentro e nos arredores da cidade foram chacinados, alguns fuzilados por metralhadoras ao lado do rio, para facilitar o descarte dos cadáveres, enquanto outros foram amarrados e baionetados para treinar e divertir os recrutas japoneses.
Durante os dois meses que se seguiram, os cidadãos de Nanquim defrontavam-se diariamente com a morte enquanto eram assaltados na rua, reunidos, fuzilados, espancados, esfaqueados, afogados e queimados sem misericórdia. Mulheres às dezenas de milhares foram estupradas por grupos, muitas vezes mortas em seguida, mutiladas e deixadas no local para aterrorizar os habitantes. Qualquer homem chinês de idade militar era tido como um prisioneiro em fuga e abatido. Testemunhas ocidentais relataram ter visto cadáveres jogados em cada quarteirão, juntamente com ocasionais pilhas de cabeças. A coisa ficou tão feia que até os nazistas pediram ao Japão para mostrar alguma misericórdia, e um homem de negócios alemão trabalhando na cidade, John Rabe, estabeleceu uma zona de segurança onde refugiados chineses podiam se esconder sob a proteção internacional.
As instituições de caridade de Nanquim registraram o enterro de 155 mil vítimas, e dezenas de milhares não registradas foram atiradas no rio ou em covas coletivas, sob a supervisão japonesa. De acordo como o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, que julgou os japoneses depois da guerra, 260 mil civis e prisioneiros foram mortos no chamado Estupro de Nanquim. Embora alguns japoneses desconsiderem as provas e se recusem a reconhecer muito mais do que o esporádico fuzilamento de guerrilheiros, saqueadores e prisioneiros em fuga, até mesmo eles geralmente admitem cerca de 40 mil mortos, o que torna o acontecimento tão cruel quanto qualquer outro massacre de judeus, tomado individualmente, por parte dos nazistas.
Para diminuir o avanço avassalador japonês em 1938, os nacionalistas chineses explodiram os diques que represavam o rio Amarelo e inundaram a terra por onde seguia o inimigo. O rio saltou para um novo curso, correndo para um trecho de mar completamente diferente, a centenas de quilômetros de sua antiga foz. As águas torrenciais destruíram 11 grandes cidades e 4 a 5 mil vilarejos, deixando 2 milhões de pessoas desabrigadas. Embora os camponeses chineses tivessem recebido com antecedência o aviso da enchente, e foram mandados sair do caminho das águas, a evacuação foi atabalhoada e acompanhada da fome, com a perda de vidas estimada em centenas de milhares.12
Em outubro de 1938, o governo chinês retirou-se para Sichuan, na bacia do Alto Yang-tsé, cercada de montanhas, que foi o último refúgio dos derrotados em tantos capítulos anteriores. Ali os nacionalistas estabeleceram sua nova capital, na cidade de Chongqing. O resto do mundo tentou salvar o Kuomintang o melhor que pôde, sem se engajar na guerra propriamente dita. Os britânicos construíram a estrada da Birmânia para deslocar suprimentos da Índia para Chongqin. Os pilotos soviéticos e americanos formaram a espinha dorsal da Força Aérea chinesa, não oficialmente, é claro. Os britânicos renegociaram os injustos tratados comerciais que tanto haviam prejudicado os governos chineses anteriores, concordando então em dar à China um justo quinhão. Se Chiang Kai-shek pudesse se safar, a China poderia ter uma chance de se tornar uma parceira igual nos negócios do mundo. No momento, esse era um grande “se”.
Com os chineses derrotados, os japoneses dividiram o território conquistado em quatro Estados fantoches, para manter a ordem, e depois começaram a pensar em novas áreas de crescimento. Bem ao norte, a grande e vazia Sibéria, com sua madeira e minas de ouro, estava apenas pedindo para ser conquistada. Os japoneses já haviam tentado isso antes, durante a Guerra Civil Russa, e agora tentaram de novo. O exército japonês fez uma finta, atravessando a fronteira com a Manchúria para ver se Stálin fazia realmente questão daquele território. Ao que parece, sim, Stálin queria conservar a Sibéria. Um grande contra-ataque soviético em 1939 convenceu os japoneses de que deviam procurar em outro lugar as oportunidades de expansão. Os dois países assinaram um pacto de não agressão a fim de se concentrarem em suas próprias crises, em outro lugar.
Quando atacaram as potências ocidentais, em dezembro de 1941, entrando na Segunda Guerra Mundial e arrastando com eles os americanos, os japoneses se apossaram das concessões estrangeiras em Hong Kong e Xangai. Depois os japoneses desviaram a atenção para a guerra no Pacífico contra o Ocidente, e a frente chinesa ficou imobilizada. A principal contribuição dos chineses para o esforço global da guerra foi manter engajados dois quintos do efetivo disponível do Japão, e fornecer campos de pouso para os bombardeiros americanos de longo alcance.13
Como um parceiro completo da grande aliança contra o Eixo, a coalizão dos países fascistas, Chang Kai-shek recebeu dinheiro, armas e um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; entretanto, conforme a guerra prosseguia, a missão americana na China foi ficando revoltada com a corrupção e incompetência do governo nacionalista. Embora a desilusão tivesse pouco impacto no auxílio americano durante a Segunda Guerra Mundial, ela deu um banho de água fria no entusiasmo para apoiar os nacionalistas mais tempo do que o necessário.
Com a queda da Alemanha em maio de 1945, os soviéticos declararam guerra ao Japão, e transportaram suas unidades para o leste. Cerca de 1 milhão de veteranos, que haviam acabado de derrotar Hitler, se concentraram ao longo da fronteira da Manchúria, defrontando uma guarnição que fora desfalcada de suas melhores tropas, enviadas para a guerra no Pacífico. No dia 9 de agosto, depois de um curto, mas devastador bombardeio, o Exército Vermelho avançou contra os japoneses e conquistou a Manchúria em uma semana, fazendo 600 mil prisioneiros. Esse avanço coincidiu com os ataques atômicos simultâneos feitos pelos americanos contra o território japonês, o que levou o imperador Hirohito a perceber que qualquer resistência seria inútil. Contra as objeções dos militares, ele comandou a nação na rendição aos americanos.
A Guerra Civil Chinesa, segunda fase
A queda do Japão deixou a Manchúria nas mãos dos soviéticos, que foram levando as coisas até colocarem seu próprio pessoal no comando. Embora os russos tivessem uma história de cooperar e apoiar os nacionalistas, a oportunidade de colocar verdadeiros comunistas no controle do país era tentadora demais para deixar escapar. Com o encorajamento soviético, o exército de Mao Tsé-tung atacou para o norte em marcha forçada, visando estabelecer o controle comunista sobre o interior, o mais rápido possível. Os soviéticos permitiram que todo o armamento capturado aos japoneses caísse nas mãos dos chineses Vermelhos, inclusive centenas de aviões e tanques, e milhares de peças de artilharia e metralhadoras.14
Mesmo sem esse acréscimo de armamento, os comunistas haviam se saído muito bem na guerra com o Japão. Apelando para o patriotismo e livres do fustigamento por parte dos nacionalistas, eles haviam conseguido que o partido crescesse de 100 mil para 1,2 milhão de membros entre 1937 e 1945.
Como parte dos termos da rendição dos japoneses, os americanos ordenaram aos militares na China que só se rendessem para as forças nacionalistas. Para acelerar essa medida, os americanos transportaram tropas nacionalistas para as grandes cidades, via aérea, enquanto fuzileiros navais americanos desembarcavam em Tianjin, e seguiam apressadamente para o interior a fim de tomar Pequim para os nacionalistas. Os Estados Unidos adiantaram empréstimos para Chiang Kai-shek e venderam para ele armamento a preços muito baixos, mas a antiga frustração da corrupção do tempo de guerra havia desgastado seriamente a simpatia do Ocidente. A Missão Americana que coordenava a ajuda militar foi fechada em 1947, deixando efetivamente a China à própria mercê.
Os comunistas mantiveram as cidades nacionalistas da Manchúria sob um frouxo cerco durante uns poucos anos, sem levar grandes privações às populações. Depois os Vermelhos levaram a empreitada a sério e cortaram as ferrovias que abasteciam aquelas cidades.
Em maio de 1948, os comunistas isolaram a cidade mandchu de Changchun num cerco desapiedado, encurralando meio milhão de habitantes, e apenas 170 mil deles sobreviveram no final.15 Conforme mais cercos foram sendo montados por todo o norte da China, os soldados do Kuomintang encurralados foram forçados a baixar suas expectativas. A casca de árvores era uma boa refeição, e um rato morto: “Delicioso! Era carne.” Em Changchun, onde quinhentos civis morriam de fome todo dia, a carne humana era vendida por cerca de 1,20 dólar meio quilo.b16
A guerra na Manchúria produziu 30 milhões de refugiados que fluíram para o sul, para longe das linhas de batalha. Um repórter da revista Time traçou o longo e cruel caminho que muitos tiveram de percorrer até a segurança. Aqueles que fugiam de Changchun eram aplaudidos pelos nacionalistas porque isso reduzia a pressão sobre os suprimentos de comida, mas apenas depois que os refugiados eram revistados para ver se não levavam sal, dinheiro vivo e quaisquer objetos de metal que pudessem ser derretido para fabricar balas. Depois eles passavam pelos ninhos de metralhadoras montados nas linhas de defesa exteriores, para então entrar na terra de ninguém, chamadas de san-pu-kuan, ou “três-não-se-importam”, onde nem os comunistas, nem os nacionalistas, nem os governos locais se importavam em manter a ordem. Ali, bandidos, geralmente desertores, atacavam os refugiados e roubavam tudo de útil ou valioso, até mesmo roupas, desde que não estivessem esfarrapadas. Aqueles que resistiam, ou eram descobertos tentando esconder uma pulseira ou brinco numa costura de fazenda, eram espancados e mortos a tiros. Por fim os refugiados chegavam às linhas nacionalistas na cidade sitiada de Mukden, onde eram registrados e revistados, dessa vez para ver se carregavam ópio, armas ou dinheiro comunista. Amontoados em vagões de transporte de gado, eles eram despachados para o sul. Depois do fim da linha ferroviária havia outra zona “três-não-se-importam”, onde os refugiados eram aliviados de qualquer coisa valiosa que pudesse se soltar. Bandidos frustrados deixavam mais gente morta a tiros ou espancada. Finalmente, surgia à frente o rio Daling, a última barreira antes do fim da zona de guerra. Para evitar a infiltração comunista, os soldados do Kuomintang atiravam em barcos, nadadores e refugiados tentando vadear o rio, permitindo apenas que estes caminhassem por sobre as vigas retorcidas de uma ponte explodida. Finalmente, em Shanhaiguan, onde a Grande Muralha encontra o mar, os refugiados ficavam em segurança, amontoados num acampamento propriamente dito.
“O sanitário é de terra batida coberta com uma lona para evitar a chuva. O banheiro é um cano de onde escorre água. Uma sala de vestir remendava roupas ou trocava por farrapos melhores aquelas que não dava mais para consertar. Uma fila para receber leite grátis servia meia tigela a cada criança abaixo de 5 anos; então, se a criança não vomitava por causa do estômago desacostumado, ela recebia mais meia tigela.”17
Finalmente, em outubro, os dois exércitos nacionalistas que defendiam Changchun planejaram romper o cerco. O Sétimo Exército, formado por veteranos treinados por americanos da frente da Birmânia, atacou, mas os desanimados conscritos yunnaneses, do Sexto Exército do Kuomintang, se amotinaram, em vez de atacar. Quando o Sétimo Exército fracassou na tentativa de romper as linhas comunistas, e recuou para a cidade, o Sexto Exército abriu fogo sobre eles e depois entregou a cidade aos Vermelhos. Mukden rendeu-se depois de um mês.
A perda das guarnições urbanas dos nacionalistas destruiu algumas das melhores unidades de combate, que já não eram grande coisa, para começar. Os comunistas então avançaram sobre Pequim, conquistaram a cidade em janeiro de 1949, e avançaram para o sul. Entre abril e novembro, os comunistas conquistaram a maioria das cidades da China, sem encontrar muita resistência. Chiang Kai-shek fugiu de Nanquim para se refugiar na ilha de Taiwan, enquanto Mao proclamava a República Popular da China na restaurada capital, Pequim.
No espaço de um ano, os chineses Vermelhos haviam varrido do mapa a maioria dos chefes guerreiros e os enclaves quase independentes do velho império. Avançaram sobre o Tibete em 1950, mas reconheceram de má vontade a independência da Mongólia comunista, atualmente um protetorado soviético. Também ignoraram Taiwan durante algum tempo.
Número de mortos
Ninguém sabe quantas pessoas morreram no interregno chinês, mas folheando a literatura a respeito tem-se uma clara ideia de 1 milhão aqui, 1 milhão ali, jogados quase casualmente. Entre os pedaços:
O Kuomintang admitiu que 1 milhão de civis foram mortos ou morreram de fome na quinta campanha de aniquilação.18
A população da Szechwan setentrional foi reduzida de 1,1 milhão por causa da guerra de 1932 a 1934.19
Consta que a população da província de Hubei diminuiu em 4 milhões em 1925-30, com muito pouca emigração e sem crise prolongada de fome natural.20
De acordo com um banco de dados estatísticos sobre guerras, a guerra entre os comunistas e os nacionalistas, em 1930-35, matou 200 mil em combate. Uma rebelião de muçulmanos contra o governo em 1928 matou outros 200 mil.21 Uma versão anterior desse banco de dados estimou que a guerra entre comunistas e nacionalistas tenha matado 500 mil.22
Ao todo, seria razoável supor que algo como 5 milhões de chineses morreram como resultado da primeira guerra civil.23
O número de mortos na guerra sino-japonesa é de qualquer número que você escolher. Abra três livros sobre o mesmo assunto e provavelmente verá três números diferentes, indo de 2 a 15 milhões.24 A média dessas estimativas parece ser de 8 milhões de civis mortos.
Como os exércitos mantêm um registro melhor de seus próprios soldados do que fazem com os danos colaterais, temos números melhores para as mortes de militares do que para as de civis. O total de mortos na guerra sino-japonesa, em 1937-45, chega a cerca de 2,5 milhões de soldados.
Nacionalistas: 1.310.224.25
Comunistas: 446.736.26
Aliados chineses do Japão: 240 mil.27
Japoneses: 388.600 mortos na China.28
Durante a segunda fase da Guerra Civil Chinesa, 263 mil soldados comunistas foram mortos. Os nacionalistas perderam 1.711.110, tanto mortos quanto feridos, com, talvez, um quinto desses mortos, isto é, 370 mil.29 Eu encontro estimativas ocasionais de totais entre 1 e 3 milhões de mortos, militares e civis, durante a segunda fase, mas nenhuma estimativa se destaca como fortemente verdadeira.30 Vamos dividir a diferença e ficar com 2 milhões ao todo.
a Sun e Chiang casaram-se com duas irmãs da família Soong, uma dinastia rica e poderosa dos hakkas cristãos, educados nos Estados Unidos.
b Só para comparar: a carne de cernelha para assar era vendida por cerca de 95 centavos de dólar o quilo em Illinois, em 1947.