MAO TSÉ-TUNG
Número de mortos: 40 milhões
Posição na lista: 2
Tipo: ditador comunista
Época: 1949-76
Localização: China
Linha divisória ampla: o novo versus o velho
Principal Estado participante: República Popular da China
Quem geralmente leva a maior culpa: Mao, pessoalmente, e o comunismo, em geral
Outra praga: a república popular insana
Como a maior parte das pessoas que fizeram dos meados do século XX um tempo tão perigoso para se viver, a vida de Mao Tsé-tung é entrelaçada com diversos dos meus principais multicídios, mas ele tem a segunda posição na lista puramente como governante da China por um quarto de século. Mao é quase que certamente o indivíduo mais mortal da história a ter semeado o horror dentro de um único país.
Ele foi um autêntico ideólogo. Em vez de acomodar-se e gozar o prazer de ser o único senhor de tudo o que conseguira, estava constantemente remexendo no modo como seu país funcionava. É óbvio que isso o torna mais perigoso do que um ditador que simplesmente reserva para si um percentual dos contratos do governo ou leva para a cama as mulheres de bajuladores ambiciosos. Em vez disso, ele desorganizou a agricultura num país que pairava perigosamente perto da inanição, e incitou multidões enfurecidas a atacar qualquer um que não mostrasse o devido entusiasmo com as suas políticas.
A vitória da revolução
Em abril de 1949, Chiang Kai-shek fugiu da China continental para o exílio em Taiwan (ver “A Guerra Civil Chinesa”), e, depois de algum tempo limpando o terreno, Mao Tsé-tung proclamou a nova República Popular da China no dia 1º de outubro. Durante o primeiro ano dessa nova era, a China foi governada por uma camada de cães de guarda comunistas, colocados acima da velha burocracia nacionalista, mas era claro que isso não poderia durar para sempre. A guerra da Coreia deu a Mao tanto um motivo como uma desculpa para aumentar a segurança.1
A década de 1950 viu uma fieira de movimentos políticos estabelecidos com o objetivo ostensivo de moldar a nova China de acordo com as linhas marxistas, mas principalmente para deixar todo mundo inquieto e evitar que estruturas rivais criassem raízes. Os objetivos de cada campanha foram reduzidos a listas numeradas e colocadas nos quadros de avisos. Certas classes eram escolhidas como alvos durante alguns meses, com acusações, traições, prisões, suicídios, expurgos e espancamentos, até que Mao se cansasse de estar indo naquela direção. Então ele começava uma outra campanha. Novos inimigos eram vilipendiados e perseguidos. Os presos sobreviventes da campanha anterior podiam ser soltos e reabilitados, enquanto seus perseguidores tornavam-se subitamente o novo foco das denúncias de Mao.2
A primeira salva de tiros foi a campanha de Supressão dos Contrarrevolucionários, de outubro de 1950 a outubro de 1951, que eliminou todos os traços do antigo regime nacionalista. “Bandidos” e “espiões” foram caçados, geralmente por alguém que apoiara ativamente o antigo governo. Simpatizantes aposentados dos nacionalistas foram arrastados à humilhação pública, espancados ou exilados. Em 9 de maio de 1951, um relatório interno observava com orgulho que a população fora amedrontada, “a boataria diminuíra e a ordem social fora estabelecida”.3 Todas as armas que haviam se acumulado durante um quarto de século de guerra civil foram recolhidas, e era proibido a qualquer pessoa mudar de residência sem permissão. O crime organizado foi virtualmente eliminado enquanto os verdadeiros gângsteres, piratas e bandidos eram mortos ou presos com poucas formalidades.
A Reforma Agrária simultânea ocasionou a destruição da classe de proprietários de terras. Os camponeses foram encorajados a se apoderarem das terras e a atacar os proprietários. Mao preferia matanças públicas para produzir o máximo impacto. “Uma jovem meio chinesa, da Grã-Bretanha, assistiu a um comício no centro de Pequim quando cerca de duzentas pessoas foram obrigadas a desfilar e depois fuziladas com um tiro na cabeça de modo que seus miolos se espalharam pelos espectadores.”4 Milhões de prisioneiros foram obrigados a trabalhar nos recém-estabelecidos campos laogai, que quer dizer “reforma por meio do trabalho”. A maioria das autoridades calcula que esses primeiros expurgos mataram entre 1 e 3 milhões de pessoas.
A campanha dos Três Antis, entre o final de 1951 e maio de 1953, visava eliminar o mau uso do dinheiro governamental por funcionários civis. As palavras-chave eram anticorrupção, antidesperdício e antiburocratismo. Quase 4 milhões de funcionários do governo foram presos e interrogados com brutalidade. Mao estabeleceu uma quota que previa que pelo menos 10 mil fraudadores deveriam ser condenados à morte, mas aconteceu que ele superestimou o grau de corrupção do antigo regime, e relativamente poucos fraudadores foram descobertos. De qualquer modo, o propósito subjacente da campanha era colocar as finanças do governo firmemente sob o controle de Mao, e isso funcionou.
Em seguida, veio a campanha dos Cinco Antis, entre janeiro de 1952 e maio de 1953. Os homens de negócios foram, coletivamente, acusados de solapar a integridade fiscal do Estado, enquanto os comunistas se dedicavam a fazer cessar, primeiro anti, a sonegação de impostos; segundo anti, o suborno; terceiro anti, a corrupção nos contratos governamentais; quarto anti, o furto de informações econômicas; e quinto anti, o roubo de bens governamentais. A princípio, os homens de negócios eram reunidos em sessões de crítica em grupo, durante as quais eram encorajados a confessar seus crimes e denunciar os rivais. Depois os comitês de trabalhadores desfilavam com tambores e estandartes para encorajar mais ações. Os homens de negócios eram então levados a reuniões públicas para serem insultados. Embora poucos tenham sido mortos ostensivamente, a humilhação, os insultos e o assédio levaram muitos ao suicídio.
A campanha das Cem Flores
Em fevereiro de 1956, três anos depois que Stálin morrera, o novo líder da União Soviética, Nikita Khrushchov, se sentiu seguro no poder para poder denunciar Stálin. Mao decidiu fazer ainda melhor. Em fevereiro de 1957, estimulou abertamente as críticas ao partido e à direção que tomava a sociedade. “Deixemos que brotem cem flores”, anunciou ele, pedindo que fossem apresentadas novas ideias. Ele queria que os intelectuais da China discutissem a política. Encorajou as pessoas a abrir suas mentes. Queria sugestões e críticas. De verdade. Não era um truque. Cartazes criticando o regime foram colados por toda parte e lá permaneceram. Depois que algumas vozes cautelosas se atreveram a falar, sem que houvesse punição, as pessoas foram percebendo aos poucos que talvez Mao tivesse realmente boas intenções. Começaram a oferecer algumas sugestões. Logo irromperam todos os tipos de ressentimentos que as pessoas vinham recalcando por oito anos.5
Ou talvez aquilo fosse um truque. Mao considerava Khrushchov fraco, por ele ter aberto a sociedade soviética e arrastar na lama o bom nome de Stálin. Em abril, o governante chinês disse para uns poucos escolhidos que “os intelectuais estão começando a… modificar seu ânimo de cauteloso para mais aberto… Um dia a punição cairá sobre suas cabeças… Nós queremos que falem abertamente. Aguentem firme e deixem que eles ataquem!… Que todos esses demônios-boi e demônios-serpente… nos agridam durante alguns meses”. Como ele mais tarde explicou: “Como podemos pegar a serpente se não a deixarmos sair de sua toca? Queremos que esses filhos de tartaruga se contorçam e cantem e peidem… de modo que possamos pegá-los.”6 Os críticos de Mao dizem que esse era seu plano diabólico desde o início; os defensores de Mao explicam que ele começou com as melhores intenções, mas se sentiu surpreendido, insultado e, francamente, um pouco ofendido quando as pessoas começaram a criticá-lo, de modo que fez com que todos fossem punidos. Eu não sei por que isso é melhor do que “esse era seu plano diabólico desde o início”.7
As cem flores foram atingidas por uma ceifadeira quando começou a campanha Antidireitista, em junho de 1957. Agora que o governo sabia exatamente quais eram os insatisfeitos, a classe intelectual começou a ser expurgada. Os cientistas, é claro, especialmente os cientistas nucleares, ficaram de fora. Mas todo mundo mais que se pronunciara foi despachado para campos de trabalho forçado para cortar madeira ou labutar em depósitos de minérios radioativos.
Mao também usou a campanha Antidireitista para enfraquecer os membros de seu círculo mais chegado, que estavam ganhando uma força perigosa. Ele encorajou fanáticos a desafiar a lealdade dos moderados dos altos escalões do poder. Sobre a pressão que borbulhava embaixo, antigos aliados, como Zhou Enlai e Liu Shaoqi, foram forçados a se humilhar defronte do Congresso do Partido. Todos os amigos deles os renegaram, e os aliados os denunciaram. Embora não tenham sido expurgados, perderam todo o poder, e Mao ficou livre, por algum tempo, de suas pérfidas manobras.
Estilo de vida
Mao tirou o máximo proveito de ser senhor de um quarto da humanidade. Ele tinha grupos de lindas mulheres selecionadas e destinadas para seu prazer. Possuía mais de cinquenta villas na zona rural. Montanhas e beiras de lago inteiras foram isoladas com cercas para seu desfrute pessoal. Era comum que cada cidade importante tivesse uma opulenta propriedade destinada especificamente para seu uso.8
Sua falta de higiene era conhecida. Preferia roupas velhas, confortáveis, e por fim impôs seu estilo de vestir a todo o país. Nunca escovava os dentes, mas, em vez disso, bochechava com chá e mastigava as folhas. Seus dentes eram cobertos com uma película verde, e ligeiramente frouxos, balançando nas gengivas que frequentemente exsudavam uma secreção purulenta. Dizem que ele passou 25 anos sem tomar banho. “Uma perda de tempo”, alegava. Em vez disso, fazia com que um criado o esfregasse com uma toalha quente. Essa ausência de banho não era devido à sua aversão pela água. Ele adorava nadar, até mesmo nos esgotos flutuantes de rios perigosamente poluídos. Gostava especialmente de nadar em poços particulares, com seus grupos de mulheres nuas, para lhe dar prazer.9
Política externa
Por volta de 1953, quase todos os estrangeiros não soviéticos já haviam sido expulsos da China. Os missionários foram mandados embora. Médicos e engenheiros fugiram. Professores, jornalistas e comerciantes também foram expulsos. Os turistas não ousavam viajar para lá. Durante os próximos vinte anos a China estaria fechada para o escrutínio estrangeiro.
Mao era um pária no cenário internacional. Até a década de 1970, as Nações Unidas e o Ocidente continuavam a reconhecer o fugitivo governo nacionalista em Taiwan como o governo legítimo da China. Isso não era teimosia da parte dos capitalistas. Uma oferta britânica de reconhecer a República Popular foi rejeitada de pronto por ela própria porque o Reino Unido se recusava a romper completamente as relações com Taiwan.10
Em 1950, Mao lançou alguns milhões de soldados na guerra da Coreia, contra os Estados Unidos e o Reino Unido, tornando essa ação a última guerra aberta entre grandes potências na história, até agora. Entre as centenas de milhares de chineses mortos estava um dos filhos de Mao.11 Depois da morte de Stálin, em 1953, Mao começou a se afastar do bloco comunista também. Em 1964, depois de um imenso esforço de pesquisa que consumiu os recursos econômicos do país, os chineses explodiram uma bomba atômica. Em 1969, a China travou uma pequena guerra de fronteira com os soviéticos. Defrontado com a primeira guerra aberta entre potências nucleares, o mundo prendeu a respiração, até que os combates terminaram sem que fossem detonadas quaisquer bombas nucleares.
O resultado de tudo isso foi que, durante muitos anos de turbulência, o país mais populoso da Terra ficou em ebulição, retirado do mundo, uma nação secreta, xenofóbica e fanática, armada com as mais poderosas armas conhecidas do homem.
O Grande Salto à Frente
Começando em 1958, Mao tentou ultrapassar a produção industrial do restante do mundo num piscar de olhos. Ele assegurou a assessores preocupados que a China tinha alimento bastante, mais do que bastante, na verdade alimento demais, de modo que os camponeses podiam facilmente ser transferidos para trabalhar nas fábricas.
A teoria comunista não confiava nos camponeses. Eles eram considerados atrasados demais para compreender as forças históricas que acionavam a revolução, e tímidos demais para quebrar suas cadeias. Transformá-los em verdadeiros proletários industriais aprofundaria a revolução.
Mao agrupou os vilarejos agrícolas em gigantescas comunas. Toda a terra, animais, casas e árvores deveriam ser cedidos à comuna. A casa de uma família poderia ser desmembrada em partes, se necessário. Os residentes tinham de comer em cantinas comunitárias, em vez de fazê-lo em casa. Toda a população da China foi levada a usar os uniformes feios, folgados que Mao usava, os quais escondiam toda a individualidade. Durante algum tempo, o ditador tentou fragmentar as famílias, e fazer toda a nação viver em alojamentos, separados por idade e sexo.
Como acreditava que os números da produção de ferro e aço eram a medida verdadeira da força de uma nação, decretou que todas as pessoas deveriam fazer com que a produção desses metais dobrasse no período de um ano. Se não houvesse uma fábrica perto, elas deveriam derreter os metais em casa. Para atingir quotas arbitrárias de produção, as comunas arrecadavam as ferramentas, utensílios de cozinha, grampos de cabelo e maçanetas de portas para serem derretidos. Por meio desse esforço gigantesco, a produção de aço saltou de 5,3 milhões de toneladas para 10,7 milhões de toneladas em um ano, mas apenas as usinas de aço já existentes produziam alguma coisa que pudesse servir. Esses milhões de toneladas de aço novo, feito em casa, ficaram inúteis.12
A urbanização maciça tirou das fazendas 90 milhões de camponeses, privando a terra não apenas de sua mão de obra, mas também da experiência e da sabedoria popular que eles tinham.13 Desapareceram gerações de aprendizado em como cultivar a terra, enquanto ideólogos em Pequim ditavam a política agrícola. A quantidade de hectares cultivados caiu juntamente com o número de camponeses que saíram das fazendas. Então veio uma seca.
A combinação criou a pior crise de fome da história, na qual dezenas de milhões de pessoas morreram. A produção de cereais caiu de 200 milhões de toneladas em 1958 para 144 milhões em 1960. O número de suínos caiu 48% entre 1957 e 1961. As pessoas se viravam como podiam, comendo tortas de damasco, palha de arroz e sabugos de milho, enquanto Pequim se recusava a admitir que alguma coisa estava errada. Para provar ao mundo que o Grande Salto era um sucesso, a China exportou cerca de 5 milhões de grãos em 1959.14
Será que a fome foi realmente culpa de Mao? Foi maldade, negligência teimosa ou apenas a falta de cuidado que matou 30 milhões de chineses? Devese admitir que nenhuma dessas razões fará com que ele mereça uma avaliação satisfatória no desempenho de suas funções como governante, mas faz diferença se os historiadores o relacionam entre as mais cruéis personalidades da história, ou simplesmente entre os dez mais incompetentes.
Maurice Meisner: “Mao Tsé-tung, o principal autor do Grande Salto, carrega obviamente a maior responsabilidade moral e social pelo desastre humano ocasionado por sua aventura. Mas isso não o torna o assassino em massa, da ordem de um Hitler ou um Stálin, como é atualmente moda retratá-lo… Há uma vasta diferença moral entre consequências não intencionais e não previstas decorrentes de ações políticas, de um lado… e, de outro lado, genocídio deliberado e premeditado.”15
Amartya Sen: “O fato particular de que a China… experimentou uma gigantesca fome no período 1958-61… teve muito a ver com a ausência de liberdade de imprensa e de oposição política. As políticas desastrosas que pavimentaram o caminho para a fome não foram alteradas durante três anos, enquanto a falta de alimentos se alastrava, e isso só foi possível com a quase total supressão de notícias sobre a fome, e a total ausência de críticas da imprensa para o que estava acontecendo na China.”16
Jung Chang e John Halliday: “O Salto de quatro anos foi um monumental desperdício tanto de recursos naturais quanto de esforço humano, único dessa escala na história do mundo. Uma grande diferença entre outros regimes perdulários e ineficientes e o regime de Mao é que a maioria dos regimes predatórios rouba suas populações depois de um trabalho de intensidade relativamente baixa, enquanto Mao primeiro fez todo mundo trabalhar incansavelmente, depois se apossou de tudo e por fim malbaratou o que pegou.”17
Os erros do Grande Salto à Frente continuaram a matar muitos anos depois do encerramento oficial do programa. Uma enorme rede de represas e reservatórios mal-planejados e construídos sem técnicas apropriadas foi feita nos rios da província de Henan em 1961. Um engenheiro que criticou o projeto e a construção desse sistema foi expurgado como um “oportunista da ala direita”. Depois, em agosto de 1975, chuvas fortes fizeram transbordar os dois principais reservatórios. Quando as águas avançaram avassaladoramente pelo leito do rio, toda a rede de 62 represas entrou em colapso. Oitenta e cinco mil, número oficial, ou 230 mil, número extraoficial, de pessoas morreram nesse desastre.18
O Tibete
Embora a antiga nação do Tibete houvesse sido ocupada imediatamente depois da Guerra Civil Chinesa, em 1950, a cultura nativa foi deixada praticamente intocada até março de 1959, quando a fome e os confiscos ocorridos durante o Grande Salto à Frente desencadearam distúrbios nacionalistas na capital, Lhasa. As tropas chinesas enviadas para esmagar os insurgentes tinham ordens de erradicar qualquer foco de nacionalismo tibetano. Os chineses demoliram incontáveis templos e destruíram sistematicamente estátuas, pinturas e livros.
Muitos séculos de história pristina foram apagados em poucos anos. Dos 2.500 monastérios existentes no país antes de 1959, apenas setenta estavam de pé dois anos depois. O número de monges e monjas caiu de 100 mil para 7 mil, mas apenas 10 mil dos desaparecidos conseguiram escapar em segurança para o exterior. Quando a resistência foi eliminada, incontáveis milhares de tibetanos haviam morrido em mãos dos chineses.19 A população do Tibete caiu de 2,8 milhões em 1953 para 2,5 milhões em 1964.20
A Grande Revolução Cultural do Proletariado
O fracasso do Grande Salto à Frente afrouxou o controle férreo de Mao sobre o governo e deu aos moderados mais força. Mao foi afastado do verdadeiro centro do poder e transformado numa figura de proa, enquanto os postos governamentais importantes eram entregues a diversos moderados. Liu Shaoqi ficou sendo o chefe de Estado, e Deng Xiaoping, o presidente do partido. Em vez de aceitar essa aposentadoria imposta, Mao usou a única arma de que ainda dispunha, sua influência espiritual sobre o povo chinês. Desencadear uma nova onda de entusiasmo revolucionário poderia alijar os moderados do poder. Como os principais centros do poder haviam se voltado contra ele, Mao apoiou-se na sua quarta e última esposa, Jiang Qing, e o círculo de amigos dela. Entre os mais importantes deles estava Lin Biao, comandante do exército.21
O tiro inicial da Revolução Cultural foi fraco e provisório. Em novembro de 1965, um crítico literário arrasou com uma peça popular que continha uma sátira evidente a Mao, sob o disfarce de um imperador Ming.22 Dentro de seis meses, cartazes nas grandes cidades já haviam denunciado os principais moderados do país. Com a máquina do partido nas mãos dos moderados, Mao açulou os quadros ideológicos de estudantes para fazer o trabalho sujo. Ele mesmo ficou à parte das lutas.
A primeira morte registrada por tortura aconteceu no dia 5 de agosto de 1966. Um enxame de estudantes denunciou e acossou a diretora de uma prestigiosa escola de moças destinada a filhas de importantes figuras do governo. Eles a cobriram de pontapés e a pisotearam, forçando-a a carregar tijolos até que ela desmaiou e finalmente os estudantes a surraram com seus cintos e com paus até que ela morreu.23
Duas semanas mais tarde, Mao, envergando o uniforme do exército pela primeira vez desde a guerra civil, postou-se de pé no alto do portão Tiananmen para passar em revista uma parada da nova organização de entusiásticos estudantes, os Guardas Vermelhos. Mais tarde, naquela mesma semana, os Guardas Vermelhos reuniram trinta dos mais conhecidos escritores, músicos e artistas da nação numa biblioteca para insultá-los e espancá-los, enquanto livros, objetos de arte e outros artefatos culturais eram queimados numa fogueira.
Apenas em Pequim, durante agosto e setembro, 34 mil casas foram invadidas. Manuscritos antigos foram queimados, quadros receberam cortes, instrumentos musicais foram quebrados. Cerca de 1.800 pessoas foram espancadas ou torturadas até a morte, e antes que tudo terminasse, 5 mil dos 7 mil monumentos históricos registrados foram destruídos.24
Durante a Revolução Cultural, os Guardas Vermelhos foram encorajados a correr desembestados, destruindo todos os vestígios de um passado proibido, agitando na mão o livrinho vermelho com as citações de Mao, e que todo mundo na China tinha de comprar. Pensadores desviados da linha oficial foram arrastados e obrigados a desfilar pela ruas com chapéus de burro. Qualquer traço da influência ocidental ou da tradição confuciana deveria ser erradicado.25 Homens eram espancados pelo mero fato de possuírem gravatas.26
Em janeiro de 1967, o ministro do carvão tornou-se o primeiro funcionário de primeiro escalão na China a ser torturado até a morte. Ele foi retalhado, espancado e esmagado contra um chão de concreto. O chefe de Estado do país, Liu Shaoqi, e sua esposa foram publicamente espancados e torturados em um auditório cheio de vociferantes Guardas Vermelhos, e mais tarde o marido foi morto na prisão. Dois de seus filhos também foram mortos. Deng Xiaoping foi mandado para um campo de trabalhos forçados. Zhou Enlai sobreviveu aos expurgos apenas porque permanecera amigo da mulher de Mao, Jiang Qing, quando ela ficou malvista na década de 1950.27
Na província meridional de Guangxi, multidões fanáticas estraçalharam e comeram pelo menos uma centena de inimigos do Estado. As lanchonetes tinham cadáveres pendurados nos ganchos para carne e os serviam aos trabalhadores. Os estudantes mataram, cozinharam e comeram seus diretores.28
Um estudo sugeriu que os Guardas Vermelhos mais fanáticos eram os filhos de pais de classe média vítimas de expurgos prévios. Ou eles estavam tentando provar sua lealdade, ou tirar revanche, fica a critério de cada um acreditar; provavelmente um pouco de cada motivo. Como regra, no entanto, famílias inteiras era arrancadas de suas casas e punidas por quaisquer crimes de autoria de alguém da casa.
Mao começou a refrear as forças da destruição depois de 1968. Como aconteceu com tantos de seus planos ardilosos, ficou óbvio depois de alguns anos que a Revolução Cultural estava solapando a viabilidade da China. Como a maioria das escolas chinesas ficara fechada durante o movimento, uma geração inteira entraria na idade adulta com uma evidente baixa escolaridade. Agora que os Guardas Vermelhos haviam eliminado os moderados, era hora de frear os fanáticos. Eles foram dispersos no interior, para trabalhar nas fazendas e revigorar suas identidades de classe trabalhadora. Foi uma bem-sucedida desculpa para diluir o poder concentrado dos guardas. Os Guardas Vermelhos que tentaram permanecer nas cidades foram depois caçados e mortos pelos soldados de Lin Biao.29
Crepúsculo
Embora Lin Biao fosse reconhecido como eventual sucessor de Mao, houve uma época, no início da década de 1970, durante a qual observadores externos perceberam que não o viam havia algum tempo. Decorreu quase um ano antes que o governo chinês oferecesse uma explicação concisa e umas poucas fotografias inúteis.
Aparentemente Mao sentira que Lin estava ficando um pouco impaciente para que ele, Mao, morresse de causa natural. A desconfiança mútua foi subindo de tom, e, por volta de 1971, Lin percebeu que o chefe iria virar de bordo de novo. Ele planejou um golpe, mas a conspiração foi descoberta, possivelmente pela esposa de Mao, uma proeminente figura radical, que se movimentava nos mesmos círculos que Lin, mas que perderia seus privilégios se seu marido fosse deposto. Quando Lin tentava fugir para a Rússia, seu avião caiu antes da chegada àquele país, matando, convenientemente, toda a família e o grupo de seguidores.30 Talvez tenha sido um acidente, talvez não.
Com a facção radical manchada com a traição de Lin, os moderados de Zhou Enlai voltaram. Os sobreviventes dessa facção foram sendo gradualmente libertados dos campos de trabalhos forçados, lavados, engordados e empossados de novo nas posições de poder. O mais notável entre eles era Deng Xiaoping, que no final se tornaria o líder da China durante a fase de descomunização do país, nas décadas de 1980 e 1990. A facção radical, agora sob a liderança da esposa de Mao, Jiang Qing, perdeu sua primazia, mas ainda estaria segura enquanto Mao vivesse. Logo depois da sua morte, eles seriam presos, sendo conhecidos como a notória Gangue dos Quatro.
No início da década de 1970, a idade avançada começou a pesar em Mao. Durante essa fase, ele se retirou da vida pública, e sua própria existência começou a ser posta em dúvida, a menos que se apresentasse periodicamente e fosse colocado defronte das câmeras. Seu regime se arrastou por mais uns poucos anos, esperando sua morte, o que finalmente aconteceu em 1976.
Número de mortos
Ninguém saberá ao certo até a República Popular cair e seus arquivos ficarem disponíveis, mas o consenso é que o governo de Mao foi responsável por dezenas de milhões de mortes. O Relatório Walker de 1971, para o Congresso Norte-Americano, calculava que cerca de 32 a 59,5 milhões de pessoas foram mortas durante o governo da República Popular.31 Em 1997, o Black Book of Communism [O livro negro do comunismo] estimou em 65 milhões as mortes sob o governo de Mao.32 The Unknown Story [A história desconhecida], de Jung Chang e John Halliday, pôs a cifra total em 70 milhões.33 Os defensores de Mao, e, espantem-se, mas ele tem defensores, lembrarão que essas três fontes dificilmente podem ser consideradas imparciais, o que é verdade, mas é óbvio que muitas pessoas bem equilibradas consideram um número alto de mortos bem plausível.
Os números de mortos em matanças em massa específicas são também incertos:
Esses primeiros expurgos, o Grande Salto à Frente e a Revolução Cultural representam os três picos da taxa de mortalidade sob Mao, mas quantos morreram na tirania de seu governo, no dia a dia, em eventos não excepcionais? Cálculos quanto ao número de mortos nos campos de trabalhos forçados têm variado de 15 milhões, de Harry Wu,38 passando por 20 milhões, de Jean-Louise Margolin,39 e chegando a 27 milhões, de Jung Chang e John Halliday,40 mas esses cálculos são grandemente baseados em presumidas populações dos campos de trabalho e presumidas taxas de mortes anuais extrapoladas de pequenas amostras de relatos não oficiais. São palpites demais, enfileirados, para inspirar confiança. Realisticamente, a taxa anual de mortes oriundas da repressão do dia a dia provavelmente não excedeu a taxa anual de mortes dos maus, realmente maus, anos durante os primeiros expurgos (1 a 2 milhões em quatro anos), e a Revolução Cultural (também 1 a 2 milhões em quatro anos). Isso significa que deveríamos esperar consideravelmente menos do que meio milhão de pessoas mortas em cada ano vagaroso, nos dando, no máximo, 9 milhões de mortes adicionais associadas com os 1,5 a 5 milhões de mortos durante os grandes movimentos relacionados anteriormente.
Em resumo, o melhor palpite seria de 30 milhões de mortos pela fome, talvez mais 3 a 4 milhões executados, massacrados, levados ao suicídio ou mortos na prisão durante os grandes movimentos, e talvez duas vezes isso para cobrir os expurgos menores e as mortes nos campos de trabalho, num total geral em torno de 40 milhões.