PLATÃO
Platão nasceu em Atenas em 428 a.C. Foi discípulo de Sócrates e após a morte deste deixou Atenas e empreendeu algumas viagens. De volta, fundou em 387 a.C. sua escola filosófica, a Academia, e até sua morte, em 347 a.C., desenvolveu a maior parte de sua obra.
Alguns dos pontos centrais do debate de Platão sobre o tema que nos interessa neste livro são a oposição entre linguagem e conhecimento e a visão da linguagem como fonte de erro. Em grande parte devido à sua influência, esse modo de considerar a linguagem se encontrará em quase toda a tradição filosófica e reaparecerá de modo bastante explícito no pensamento moderno, sendo questionado de forma mais direta apenas no período contemporâneo, após a assim chamada “virada linguística”.
Os textos aqui selecionados procuram apresentar diferentes aspectos da discussão de Platão acerca da linguagem, desde o significado do nome (onoma, ou substantivo comum) no Crátilo, passando pela proposição (logos) como podendo ser verdadeira ou falsa por relação ao real no Sofista, até a crítica ao uso retórico da linguagem no Górgias e à oposição entre escrita e fala no Fedro.
CRÁTILO
O problema da convencionalidade do signo
Encontramos em várias histórias da filosofia e das ciências da linguagem1 a afirmação de que o diálogo Crátilo, de Platão, deu início à filosofia da linguagem, sendo o primeiro estudo sistemático sobre o tema em nossa tradição. Contudo, essa é em grande parte uma visão em retrospecto, a partir da filosofia da linguagem contemporânea, buscando seus antecedentes. Como veremos, a questão de Platão no Crátilo é bastante diferente das questões contemporâneas sobre a linguagem.
Esse diálogo tem como subtítulo “Sobre a correção dos nomes”, e a discussão nele desenvolvida estabelece as linhas definidoras do tratamento posterior das naturezas da linguagem e do significado, influenciando fortemente a tradição. A pergunta fundamental de Platão aqui é: a linguagem (no caso, as palavras) pode contribuir para o conhecimento da realidade? Em consequência disso, do modo como essa questão é formulada, a discussão filosófica sobre o significado das palavras estará irremediavelmente atrelada ao problema do conhecimento como definidor da preocupação filosófica – o assim chamado projeto epistemológico, que aproxima filosofia e ciência e entende a primeira como um tipo de ciência mais geral e mais fundamental.
Platão examina duas respostas possíveis à questão, levando em conta as posições já na época tradicionais entre os filósofos que o antecederam, incluindo os mobilistas e os sofistas: o naturalismo (defendido pelo personagem de Crátilo) e o convencionalismo (defendido por Hermógenes). O naturalismo caracteriza-se por defender que há uma relação natural entre o signo e a coisa significada: o signo deveria possuir uma natureza comum com a coisa que significa, contribuindo assim para o conhecimento desta.
O convencionalismo, enquanto alternativa ao naturalismo, consiste em uma tese mais fraca sobre a relação entre palavras e coisas, segundo a qual não há nada em comum entre elas: são apenas convenções estabelecidas em uma determinada sociedade. Em consequência disso, conclui-se que não há contribuição por parte do signo para o conhecimento da realidade a que se refere e, assim sendo, a linguagem torna-se pouco relevante para a filosofia.
No confronto entre as duas posições Platão formula alguns argumentos importantes para essa discussão, que se tornaram influentes na tradição. Destacaremos apenas os mais significativos.
O problema da variação linguística, isto é, de que em diferentes línguas se usam palavras diferentes para se referir às mesmas coisas, leva a uma tentativa, por parte do naturalismo, de defesa da relação natural entre palavras e coisas não através das línguas comuns, faladas pelos diferentes povos, mas de uma língua originária, uma língua ideal (390b-d) que representaria, esta sim, a verdadeira natureza das coisas. Teria havido um legislador ideal (o nomothetes, 389a, literalmente “o legislador de nomes”), um ser mítico, semidivino, que teria contemplado a verdadeira natureza das coisas, relacionando-as então às palavras e estabelecendo as convenções. Esse legislador teria efetivamente um conhecimento da realidade, e com base nesse conhecimento teria estabelecido as convenções fixando o significado das palavras. Temos aí uma concepção sobre a origem da linguagem que remete ao mito de Babel (Gênesis, 11, 1). A dificuldade, contudo, consiste em saber como passaríamos dessa linguagem ideal, mesmo supondo que ela existisse, para a língua falada usualmente. E como saber se a relação natural teria sido preservada nessa passagem? Grande parte do Crátilo é dedicada em seguida a uma análise da etimologia das palavras, ou seja, do estudo de sua origem e de seu processo de formação, porque essa poderia ser uma forma de recuperar o seu sentido originário. No entanto, com isso encontramos na melhor das hipóteses a origem de uma palavra composta na língua específica examinada, sem jamais chegar a essa linguagem ideal originária.
Além disso, temos o argumento de que a tese da mimese, ou imitação, segundo a qual as sílabas que compõem as palavras imitariam características das coisas, por exemplo em onomatopeias, está sujeita a muitos contraexemplos. O mais famoso deles, dado por Sócrates no diálogo, é a palavra skleros, que em grego quer dizer “duro” ou “endurecido”, mas que contém a letra l, cujo som simbolizaria a “maciez” ou a “suavidade” (434e-435b). A busca das etimologias termina, assim, por fracassar.
O naturalismo tem dificuldade em explicar a relação natural palavra–coisa, já que as línguas faladas contradizem isso e a procura pela língua ideal não é bem-sucedida. O convencionalismo, por sua vez, tem dificuldade em explicar a origem das convenções: como poderíamos estabelecer convenções anteriormente à linguagem se precisamos dela para isso?
Grande parte dessas questões acompanhará a discussão sobre a linguagem na tradição que foi fortemente influenciada por Platão, praticamente até o período moderno. Encontramos em toda tradição temas como: a busca da linguagem ideal, aliás presente também na tradição judaica, como vimos no mito de Babel; o problema da origem das convenções e de como teriam sido estabelecidas em primeiro lugar, num momento anterior à linguagem, já que esta é convencional; e a tentativa pela análise das etimologias de chegar a um significado primordial, que ocupa boa parte do diálogo (397c-421e).
O Crátilo é um diálogo aporético, isto é, termina em um impasse, já que as duas alternativas que examina revelam-se insatisfatórias. Contudo, sua influência foi muito grande em toda a tradição filosófica e, mais ainda, nos estudos da linguagem em geral. A tradição herdou em grande parte a posição platônica acerca da linguagem formulada nesse diálogo, ou seja, o dilema entre uma concepção naturalista, que seria relevante para o conhecimento mas que não se sustenta, e o convencionalismo, que, embora mais plausível e mais próximo da experiência concreta da linguagem, não traz contribuição ao conhecimento. O dilema resulta da pergunta inicial sobre a contribuição da linguagem para o conhecimento, que, contudo, jamais foi questionada pela tradição.
Não houve portanto, nesse contexto, propriamente uma filosofia da linguagem, porque a investigação da linguagem, aqui entendida como o conjunto de signos (palavras) pertencentes a uma língua determinada, acabou por não ser considerada filosoficamente relevante. O conhecimento não poderia depender da linguagem, isto é, de signos linguísticos considerados como meramente convencionais. Com isso, a filosofia da linguagem, ou seja, a reflexão filosófica sistemática sobre a linguagem, não foi vista como parte central do trabalho do filósofo. Além disso, Platão, nesse diálogo, praticamente restringe-se à “correção dos nomes”, isto é, à relação entre palavras (nomes) e a realidade correspondente, ao que denominamos hoje problema da referência e que é apenas uma parte da filosofia da linguagem. Não chega a haver, por exemplo, um desenvolvimento da discussão sobre a sintaxe, ou melhor, sobre os aspectos lógicos da linguagem.
Dado o impasse, a solução para Platão consiste em ir além dos nomes. A definição de um nome através de seu significado simplesmente nos remeterá a outros nomes, o assim chamado círculo linguístico, “palavra puxa palavra” (394b-c). A linguagem pode apenas expressar um conhecimento prévio e independentemente adquirido (438a-b). Na conclusão do diálogo, Platão aponta, nas palavras de Sócrates, para a necessidade de se procurar a verdade para além das palavras.
“[384c-d] HERMÓGENES: Por minha parte, Sócrates, já conversei várias vezes a esse respeito tanto com ele [Crátilo] quanto com outras pessoas, sem que chegassem a convencer-me de que a correção dos nomes se baseia em outra coisa que não a convenção e o acordo (syntheke kai homologia). Para mim, seja qual for o nome que se dê a uma determinada coisa, esse é o seu nome certo.
[433e] SÓCRATES: Ou adotas de preferência o modo de ver de Hermógenes e de outros que afirmam não passarem os nomes de convenção, que só representam alguma coisa para os que convencionaram formá-los depois de terem o conhecimento dessa coisa, baseados precisamente na convenção, a correta formação dos nomes. Assim sendo, é de todo indiferente manter a convenção, tal como foi estabelecida, ou admitir outra inteiramente oposta, para dar o nome de grande ao que denominamos pequeno e o de pequeno ao que denominamos grande.
[435a-b] SÓCRATES: Mas ainda mesmo que o costume (ethos) não seja convenção (syntheke), não é certo dizer que a representação se firma na semelhança. É no costume, pois este, como já vimos, consegue representar tanto por meio do semelhante como do dissemelhante … Forçoso nos será concluir que a convenção e o costume contribuem igualmente para exprimir o que temos no pensamento quando falamos.
[438d-e] SÓCRATES: Nessa luta entre os nomes, em que uns se apresentam como semelhantes à verdade e outros afirmam a mesma coisa de si próprios, que critérios adotaremos e a quem devemos recorrer? Não, evidentemente, a outros nomes que não esses, pois não existem outros. É óbvio que teremos que procurar fora dos nomes alguma coisa que nos faça ver sem os nomes qual das duas classes é a verdadeira, o que ela demonstrará indicando-nos a verdade das coisas.”
SOFISTA
A natureza da proposição, o verdadeiro e o falso
O Sofista, cujo subtítulo é “Sobre o ser”, é um dos mais importantes diálogos de Platão, tratando da questão da distinção entre o verdadeiro e o falso e discutindo a polêmica tese de Protágoras segundo a qual todo discurso (logos) é verdadeiro. Enquanto no Crátilo a questão tratada é a da correção dos nomes, na passagem do Sofista que examinaremos (260a-264a), um diálogo entre um “estrangeiro de Eleia” e o matemático Teeteto, Platão discute a proposição (logos) como resultando de uma combinação de palavras que são o nome (funcionam como sujeitos) e o verbo (rhema, funcionando como predicados) (262a). Platão usa nessa passagem o termo logos tanto para discurso quanto para proposição, afirmando que a proposição é a forma mais curta de discurso (262c). No entanto, observa que uma lista de palavras não é ainda linguagem, não constitui um logos: “Nomes proferidos apenas de princípio ao fim não vêm a formar uma proposição, assim como verbos proferidos sem serem acompanhados de algum nome.” (262a)
A combinação entre nome e verbo é tornada possível por um princípio que Platão denomina symploké (entrelaçamento) e que podemos considerar uma primeira versão de um princípio sintático. Uma proposição é verdadeira quando a combinação que expressa corresponde ao que ocorre no real e falsa quando essa combinação não se dá (263a-b).
“[262d] ESTRANGEIRO: Vou proferir diante de ti uma proposição, unindo o sujeito a uma ação por meio de um nome e de um verbo, e me dirás do que trata essa proposição.
TEETETO: Assim farei, se puder.
ESTRANGEIRO: “Teeteto está sentado” é uma longa proposição?
TEETETO: Não, ao contrário, é bastante breve.
ESTRANGEIRO: Cabe a ti dizer sobre quem e do que fala.
TEETETO: Obviamente, sobre mim.
ESTRANGEIRO: E a seguinte?
TEETETO: Qual?
ESTRANGEIRO: “Teeteto, com quem estou conversando, voa.”
TEETETO: Também aqui a única resposta possível é a mesma, sobre mim.
ESTRANGEIRO: Mas cada uma dessas proposições deve ter uma característica.
TEETETO: Sim.
ESTRANGEIRO: E que qualidade devemos atribuir a cada uma dessas proposições?
TEETETO: Pode-se dizer que uma é verdadeira e outra, falsa.
ESTRANGEIRO: A verdadeira diz a seu respeito o que é.
TEETETO: Certo!
ESTRANGEIRO: E a falsa diz algo diferente do que é.
TEETETO: Sim.
ESTRANGEIRO: Portanto, diz aquilo que não é.
TEETETO: Sim, é o que diz.
ESTRANGEIRO: E diz a seu respeito coisas que não se aplicam, que não são como no real, pois como dissemos a respeito de qualquer coisa há muitas formas de as coisas serem e não serem.”
GÓRGIAS
Crítica à retórica
O Górgias é o principal diálogo de Platão sobre a retórica, questionando o papel dos sofistas como mestres desta arte e acusando-os de serem praticantes de uma mera téchne, ou seja, de uma habilidade prática, sem nenhum compromisso moral, servindo apenas para persuadir e não para ensinar e levar ao verdadeiro conhecimento. Seu alvo principal é Górgias, um dos mais famosos sofistas de seu tempo e grande mestre de retórica e de oratória. Os sofistas consideravam a linguagem um instrumento fundamental do discurso político, ou seja, do modo como as decisões eram tomadas nas assembleias, no contexto da democracia ateniense. A crítica de Sócrates aos sofistas nesse diálogo consiste em mostrar que com habilidade pode-se persuadir qualquer pessoa de qualquer coisa, mesmo de algo que não seja verdadeiro ou não seja do interesse dela. A filosofia, ao contrário, se caracteriza pelo compromisso com a verdade.
“[453a] GÓRGIAS: [Por oratória] quero dizer a habilidade de convencer por meio do discurso um júri num tribunal, membros de um conselho, votantes em uma assembleia e qualquer outra reunião de cidadãos. Pelo exercício dessa habilidade você terá o médico ou o treinador em suas mãos e o homem de negócios ganhará dinheiro não em proveito próprio, mas para outro, para você que de fato tem essa habilidade de falar e de convencer as massas.
[454d-455a] SÓCRATES: Que forma de convencer sobre o certo e o errado é produzida pela oratória nos tribunais e em outros lugares, aquela que produz conhecimento ou aquela que produz apenas crenças sem conhecimento?
GÓRGIAS: A que produz crenças, obviamente.
SÓCRATES: Parece então que o convencer que a oratória produz sobre o certo e o errado é do tipo que resulta da crença, não o que resulta do ensinar.
GÓRGIAS: Sim.
SÓCRATES: E o orador não ensina ao júri e outras comissões sobre o certo e o errado, apenas os persuade, dificilmente poderia ensinar a tantas pessoas em tão pouco tempo algo de tal importância.”
FEDRO
A origem da escrita
Nesse diálogo há uma passagem (274b-277d) em que Platão apresenta o mito de Theut, que narra a invenção da escrita por esse deus egípcio. Theut (ou Thot) apresenta sua invenção ao supremo deus Amon, como algo que auxiliaria a memória dos homens e os tornaria sábios. A resposta de Amon representa a posição platônica: ao contrário, diz ele, aquele que se fiar na escrita perderá a memória, passando a depender de um signo externo e não de sua própria capacidade de lembrar, e não se tornará mais sábio, mas receberá informações sem a instrução adequada, parecendo sábio quando na verdade será bem ignorante. E, finalmente, Sócrates conclui no diálogo, a palavra escrita parece conter o entendimento das coisas, porém quando interrogada simplesmente nos devolve a pergunta. Além disso, uma vez que algo é escrito, passa a circular entre aqueles que o entendem, mas também entre os que não o entendem. Uma coisa escrita não pode distinguir entre os bons e maus leitores; a palavra escrita é, assim, incapaz de defender-se contra o seu mau uso e necessita, portanto, de que o autor venha em seu socorro.
Platão opõe aqui a linguagem escrita e a linguagem falada, o diálogo, para ele a forma por excelência de realização da filosofia enquanto discussão, debate, por meio do qual se pode argumentar e contra-argumentar.
Em A farmácia de Platão, o filósofo francês contemporâneo Jacques Derrida comenta esse mito, que serve de ponto de partida para sua discussão sobre a linguagem e sobre a questão da leitura de textos (no caso de Platão), levando a uma releitura e reelaboração de suas questões. Derrida explora o uso da palavra pharmakon (“remédio”) no texto, quando Thot diz que a palavra escrita é um remédio para a memória, enquanto Amon (ou Thamus) inverte a questão dizendo que a palavra escrita poderia ser um veneno (para os gregos pharmakon pode ser remédio ou veneno, no fundo dependendo essencialmente da dosagem) que faria com que os homens se fiassem demais na escrita e perdessem o verdadeiro conhecimento.
Sócrates conclui dizendo o que é necessário para um discurso verdadeiro, na medida em que isso seria possível.
“[277c] SÓCRATES: Toda nossa discussão anterior mostrou que o discurso, seja o que pretende persuadir, seja o que pretende ensinar, não pode ser construído cientificamente, na medida em que sua natureza permite um tratamento científico, a menos que as seguintes condições sejam satisfeitas. Em primeiro lugar, deve-se conhecer a verdade sobre o assunto de que trata no discurso oral ou escrito, deve ser capaz de defini-lo genericamente, e sendo capaz disso deve dividi-lo nos vários tipos específicos até o limite da divisibilidade. Em seguida, deve-se analisar de acordo com os mesmos princípios a natureza da alma e descobrir que tipo de discurso é adequado a cada tipo de alma. Finalmente, deve-se organizar o discurso de tal maneira que os discursos simples sejam dirigidos às almas simples e os discursos mais complexos e abrangentes, às almas mais elevadas.”
QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO
LEITURAS SUGERIDAS
Derrida, Jacques. A farmácia de Platão, São Paulo, Iluminuras, 1991.
Paviani, Jaime. Escrita e linguagem em Platão, Porto Alegre, EDPUCRS, 1993.
Platão. Crátilo, Sofista, Górgias, Fedro, in Diálogos, Belém, Universidade Federal do Pará, 1973.
____. Sofista e Górgias, disponíveis online em www.dominiopublico.gov.br
Williams, Bernard. Platão: a invenção da filosofia, Col. Grandes Filósofos, São Paulo, Unesp, 2000.