SANTO AGOSTINHO

Na história do desenvolvimento dos estudos sobre a linguagem, o diálogo De magistro (Sobre o mestre), de Santo Agostinho, ocupa um lugar de destaque por suas inovações no tratamento do tema e por sua grande influência na tradição.

Santo Agostinho (354-430) foi sem dúvida o filósofo mais importante, devido à sua criatividade e originalidade, a aparecer no pensamento antigo desde Platão e Aristóteles. Pode ser considerado, na verdade, um pensador de transição do final do Período Antigo para o início do Medieval, da filosofia grega para o pensamento cristão latino, ainda profundamente ligado aos clássicos mas já refletindo, em sua visão de mundo e em suas preocupações, as grandes mudanças em sua época, num prenúncio do papel que o cristianismo terá na formação da cultura ocidental – para o que sua obra contribuiu de forma decisiva. A aproximação que Agostinho elaborou entre a filosofia de Platão, que conhecia através dos intérpretes da Escola de Alexandria e de traduções latinas, e o cristianismo constituiu a primeira grande síntese entre o pensamento cristão e a filosofia grega: o assim chamado platonismo cristão. Seus comentários aos livros do Antigo e do Novo Testamento são os principais pontos de partida da tradição exegética e hermenêutica ocidental, ou seja, dos métodos de interpretação desses textos. Sua relevância filosófica e teológica estendeu-se até o período moderno, sendo que o século XVII chegou a ser conhecido como “o século de Agostinho”, por sua influência sobre filósofos como Descartes, os mestres de Port-Royal e Pascal, que recorrem a noções agostinianas como “luz natural” e “interioridade”.

Aurélio Agostinho nasceu em Tagaste, na Numídia, província romana no norte da África, hoje parte da Argélia, e faleceu na cidade próxima de Hipona, da qual era bispo, durante a invasão da região pelos vândalos. Foram tempos conturbados os de sua vida: os últimos anos do Império Romano, já então em fase de decadência e dissolução. Agostinho estudou em várias cidades de sua região e tornou-se mestre de retórica em Cartago, tendo escrito uma obra sobre esse assunto intitulada Principia dialecticae. Tornou-se professor de retórica em Roma e, posteriormente, em Milão, onde ouviu os sermões de santo Ambrósio, bispo da cidade, a quem passou a admirar como pregador. Em 386 converteu-se ao cristianismo e em 387, após um período de recolhimento e de meditação, foi batizado. De volta à África no ano seguinte, dedicou-se à vida monástica, redigindo então algumas de suas principais obras, dentre as quais se destaca o diálogo De magistro (Sobre o Mestre), dirigido a seu filho Adeodato.

A filosofia de Santo Agostinho elabora-se com base em uma aproximação do neoplatonismo de Plotino e Porfírio com os ensinamentos de são Paulo e do Evangelho de são João. O platonismo é visto, na linha da Escola de Alexandria, como antecipando o cristianismo, este sim, agora, a “verdadeira filosofia”. No tratado Sobre a doutrina cristã (Livro II), Agostinho defende que a filosofia antiga consiste em uma preparação da alma, útil para a compreensão da verdade revelada; porém a “sabedoria do mundo”1 é limitada, e é necessário, portanto, quanto aos ensinamentos religiosos, primeiro acreditar para depois compreender, tomando por base o versículo de Isaías 7, 9, “A menos que creias, não compreenderás”. Para Santo Agostinho, a verdadeira e legítima ciência é a teologia, e é a seus ensinamentos que o homem deve se dedicar, porque eles preparam sua alma para a salvação e para a visão de Deus que é a sua recompensa. Essa posição foi interpretada posteriormente, no início do período medieval, como desvalorizando o conhecimento do mundo, inclusive a ciência, explicando em parte o desinteresse do cristianismo pela ciência natural naqueles primeiros séculos da Idade Média.

Santo Agostinho se pergunta então como pode a mente humana, mutável e falível, atingir uma verdade eterna com certeza infalível. Sua resposta se encontra em sua teoria da iluminação divina, elaborada com base na teoria platônica da reminiscência.

SOBRE O MESTRE

A natureza do signo, o inatismo

O diálogo De magistro (c.389) nos permite compreender bem a posição agostiniana a respeito da questão do inatismo. Seu ponto de partida e seu desenvolvimento são semelhantes em muitos aspectos ao diálogo Ménon, de Platão, em que se discute o que é a virtude (areté) e se ela pode ser ensinada. A resposta de Platão é negativa, a virtude não pode ser ensinada: ou já a trazemos conosco, ou nenhum mestre será capaz de introduzi-la em nossa alma, uma vez que é uma característica da própria natureza humana. Para Platão, a função do filósofo é precisamente a de despertar essa virtude adormecida na alma de todos os indivíduos e trazer a lembrança (anamnese) desse conhecimento. Na mesma linha, Santo Agostinho começa se interrogando sobre o que é ensinar e apreender – o que torna esse diálogo, em sua parte inicial, um dos textos clássicos da pedagogia. Indaga-se, em seguida, sobre o papel da linguagem e da comunicação no processo de ensino e de aprendizagem, fazendo do diálogo também um dos clássicos da teoria da linguagem e do significado, assunto de que Santo Agostinho se ocupou frequentemente em várias de suas obras, sendo sua teoria do signo de grande influência na tradição filosófica e linguística (foi retomada, por exemplo, na Lógica de Port-Royal, no século XVII. Ver o capítulo sobre Port-Royal).

Após uma detalhada consideração da natureza do signo e do processo de comunicação (De magistro I-VIII), Santo Agostinho conclui, na linha das concepções tradicionais na Antiguidade (Platão, Aristóteles, os estoicos), que dada a sua convencionalidade – isto é, as palavras variam de língua para língua e são sinais arbitrários das coisas –, o signo linguístico não pode ter qualquer valor cognitivo mais profundo. Portanto, não é através das palavras que conhecemos, e assim sendo não podemos transmitir conhecimento pela linguagem. A possibilidade de conhecer supõe algo de prévio, que torna inteligível a própria linguagem, ou seja: a luz interior. Sua posição é, assim, na mesma direção da platônica, inatista, supondo que o conhecimento não pode ser derivado inteiramente da apreensão sensível ou da experiência concreta, mas necessita de um elemento prévio que sirva de ponto de partida para o próprio processo de conhecer. Santo Agostinho apelará então ao “mestre interior”, Cristo, que representa, nesse sentido, nossa capacidade inata de conhecer.

Esse diálogo forneceu elementos fundamentais para o desenvolvimento da discussão sobre a natureza e o funcionamento da linguagem em toda a tradição. Desde sua definição do signo até sua discussão sobre o caráter reflexivo da linguagem e o papel da metalinguagem, a filosofia da linguagem agostiniana constituiu o ponto de partida de diferentes linhas de discussão até o pensamento contemporâneo, bastando citar as referências que a ela fazem Ludwig Wittgenstein e Umberto Eco.

Cap. I: Finalidade da linguagem

AGOSTINHO: O que te parece que fazemos quando falamos?

ADEODATO: Segundo me ocorre agora, ensinar ou aprender. …

AGOSTINHO: Afirmo que a finalidade da palavra é dupla: ensinar ou evocar recordações nos outros ou em nós mesmos.

… Quem fala, pois, manifesta exteriormente o sinal [signum] de sua vontade através da articulação do som. … mesmo sem proferir nenhum som, falamos quando intimamente pensamos as palavras em nossa mente, deste modo, por meio das palavras o que fazemos é chamar a atenção para algo; contudo, a memória a que as palavras estão relacionadas traz à mente as próprias coisas de que as palavras são sinais.

Cap. III: Se é possível indicar alguma coisa sem o uso de um sinal

ADEODATO: … Tu indagas sobre coisas que sejam quais forem não podem ser consideradas de modo nenhum palavras, contudo também sobre elas tu me indagas com palavras. Começa agora a interrogar-me sem palavras para que eu possa responder-te do mesmo modo.

AGOSTINHO: Confesso que tens razão, contudo se me perguntares o significado dessas três sílabas pa-re-de [latim paries] não poderias mostrar-me com o dedo, fazendo com que eu visse a coisa mesma de que é sinal essa palavra de três sílabas, mostrando-a e indicando-a sem usar nenhuma palavra? …

ADEODATO: Mas também isso não pode ser indicado sem um sinal. Pois o ato de apontar o dedo com certeza não é a parede, mas apenas um modo de usar um sinal pelo qual a parede pode ser vista. Portanto, não vejo nada que possa ser indicado sem sinais.

Cap. IX: Se devemos dar preferência às coisas, ou a seu conhecimento, e não aos seus sinais

AGOSTINHO: … Concedes-me então que o conhecimento das coisas é mais valioso que os sinais delas, e portanto deve-se preferir o conhecimento das coisas significadas ao conhecimento dos sinais, não te parece? …

Cap. X: Se algo pode ser ensinado sem sinais. As coisas não são aprendidas pelas palavras

AGOSTINHO: … De fato, se me for apresentado um sinal e eu não souber de que coisa é sinal, esse nada me poderá ensinar, porém, se já sei de que é sinal, o que aprendo com ele? Assim, quando leio “E suas coifas não se deterioraram” [Et saraballae eorum non sunt immutatae], essa palavra “coifa” não me indica a coisa que significa. … A palavra era para mim apenas um som, e aprendi que era um sinal quando encontrei a coisa de que era sinal, o que aprendi não pelo significado dela, mas pela visão direta. Portanto, é mais pelo conhecimento da coisa que se aprende o sinal do que se aprende a coisa após ter o sinal. … Nesse sinal [caput, cabeça] há duas coisas: o som e o significado; ora, o som não foi certamente percebido enquanto sinal de uma coisa, mas como simples sonoridade no ouvido; o significado, por sua vez, foi apreendido pela visão da coisa significada. Como o apontar do dedo não pode significar senão aquilo para o que o dedo está apontando e o dedo não está apontando para o sinal, mas para aquela parte do corpo que se chama cabeça [caput], com esse gesto não posso conhecer a coisa, que já conhecia, nem o sinal para o que o dedo estava apontando. …

Se eu no momento em que as vejo por acaso fosse avisado pelas palavras “Eis as coifas” [Ecce sarabellae], então aprenderia algo que não sabia, não através das palavras proferidas, mas pela visão da própria coisa, pela qual conheci e gravei também o valor do nome.

Cap. XI: Não aprendemos através das palavras que repercutem exteriormente, mas da verdade que ensina interiormente

AGOSTINHO: Até este ponto chega, pois, o valor das palavras, isso porque desejo atribuir-lhes muito valor dizendo que tão somente nos incitam a buscar as coisas, sem porém mostrá-las para nosso conhecimento. … Com palavras não aprendemos senão palavras, propriamente o som e o ruído das palavras, porque se o que não é sinal também não pode ser palavra, não sei tampouco como pode ser palavra aquilo que ouço proferido como palavra antes de lhe conhecer o significado. Só após o conhecimento das coisas se alcança o conhecimento completo das palavras; mas, ao contrário, ouvindo apenas as palavras, não aprendemos sequer elas próprias. … No que se refere a tudo que compreendemos, não o fazemos por meio da voz de quem fala, que apenas soa exteriormente, mas da verdade que em nosso interior preside à própria mente, levados talvez pelas palavras a consultá-la. Cristo é aquele que é consultado e que ensina verdadeiramente, e Cristo habita, como dissemos, o homem interior.

Cap. XII: Cristo é a verdade que ensina em nosso interior

AGOSTINHO: Quando se trata daquilo que percebemos por nossa mente, isto é, por meio do intelecto e da razão, nos referimos ainda a coisas que temos presentes na luz interior da verdade que ilumina o homem interior, mas mesmo nesse caso quem nos ouve conhece o que dizemos por meio de sua própria visão, e não através das palavras que proferimos, desde que ele também possa ver por si a mesma coisa através de olhos interiores e simples. Portanto, nem mesmo a este que vê coisas verdadeiras ensino algo ao dizer-lhe a verdade, porque aprende não através de minhas palavras, mas das próprias coisas que Deus a ele revela interiormente.

SOBRE A DOUTRINA CRISTÃ

A natureza do signo e o problema da interpretação

Esse texto, iniciado em 397 e concluído por volta de 427, é um dos mais importantes e influentes de Santo Agostinho, inclusive por sua defesa da aproximação entre a filosofia grega e o cristianismo. Na passagem que se segue, temos uma definição da noção de signo (signum, aqui traduzido por “sinal”) possivelmente inspirada no estoicismo grego. Retomando a definição inicial no Capítulo I, Santo Agostinho caracteriza o signo como tudo aquilo que serve para indicar outra coisa; assim, algo é um signo não por sua natureza intrínseca, mas por sua função. Os sinais naturais não dependem do ser humano, por exemplo a fumaça produzida naturalmente pelo fogo, mas a fumaça é sinal quando a interpretamos como indicando a presença do fogo.

Livro II, Capítulo 1: “Definição de sinal”

O sinal é, portanto, toda coisa que, além da impressão que produz em nossos sentidos, faz com que nos venha ao pensamento outra ideia distinta. Assim, por exemplo, quando vemos uma pegada, pensamos que foi impressa por um animal. Ao ver fumaça, percebemos que embaixo deve haver fogo. Ao ouvir a voz de um ser animado, damo-nos conta do estado de seu ânimo. Quando soa a corneta, os soldados sabem se devem avançar, retirar-se ou fazer alguma outra manobra, exigida pelo combate.

Sinais naturais

Entre os sinais, alguns são naturais e outros convencionais. Os naturais são os que, sem intenção nem desejo de significação, dão a conhecer, por si próprios, alguma outra coisa além do que são em si. Assim, a fumaça é sinal de fogo. Ela o assinala sem ter essa intenção, mas nós sabemos, por experiência, observando e comprovando as coisas, que ao aparecer a fumaça haverá fogo embaixo.

A esse gênero de sinais pertence a pegada do animal que passa. O rosto de um homem irritado ou triste traduz o sentimento de sua alma, ainda que ele não tivesse nenhuma intenção de exprimir essa irritação ou tristeza. Da mesma maneira acontece com qualquer outro movimento da alma que é revelado e traduzido no rosto, sem que nada tenhamos feito para o manifestar.

Não é meu propósito discorrer agora sobre esses tipos de sinais. Mas como pertencem à distinção que fizemos acima, não pude de modo algum deixá-los passar sob silêncio. É suficiente, entretanto, o que até aqui foi dito a esse respeito.

QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO

  1. Qual a função da linguagem para Santo Agostinho?
  2. Como se pode entender, segundo Santo Agostinho, a natureza e o papel dos sinais?
  3. Como Santo Agostinho define a relação entre linguagem e conhecimento?
  4. Em que sentido o “mestre interior” pode ser entendido como representando uma concepção inatista de conhecimento?

LEITURAS SUGERIDAS

Gilson, Étienne. A filosofia na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes, 2007.

Libera, Alain de. A filosofia medieval, São Paulo, Loyola, 2004.

Matthews, Gareth B. Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo diante de seu tempo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.