HUMBOLDT
Wilhelm von Humboldt (1767-1835) foi um político e diplomata alemão, um dos iniciadores da ciência da linguagem (que denominou Sprachkunde) no século XIX. Destacou-se também como fundador da Universidade de Berlim (hoje denominada Humboldt-Universität zu Berlin), criada em 1810 como uma instituição de ensino, mas também, sobretudo, de pesquisa. Era irmão de Alexander von Humboldt (1769-1859), importante naturalista que empreendeu uma viagem científica à região amazônica em 1800.
O pensamento de Humboldt foi influenciado pelos estudos sobre a linguagem em sua época, mas também, de um ponto de vista filosófico, pela obra de Kant, segundo o próprio Humboldt admite em sua correspondência (aspecto este analisado sobretudo pelo filósofo neokantiano alemão Ernst Cassirer em sua obra Filosofia das formas simbólicas (vol.1: Linguagem, 1923). É de Kant que Humboldt parece derivar sua concepção de “forma linguística interna” (innere Sprachform), que pode ser considerada o equivalente, de um ponto de vista linguístico, da estrutura conceitual do pensamento subjetivo.
Seu trabalho pioneiro em linguística teve uma influência imensa sobre autores como Franz Boas e Edward Sapir (ver capítulo sobre Sapir e Whorf), que defendem uma interpretação cultural das línguas, e, contemporaneamente, Noam Chomsky (ver capítulo correspondente), como ele próprio admite, embora na perspectiva de uma gramática universal e da relação entre linguagem e mente. Isso porque os interesses de Humboldt foram bastante amplos, cobrindo todos esses aspectos. Seu pensamento procura exatamente conciliar a diversidade cultural que as diferentes línguas expressam com uma unidade da natureza humana que corresponderia à estrutura geral dessas línguas e que seria de natureza mental; Humboldt fez um estudo comparativo de enorme erudição entre línguas do Oriente – como o sânscrito e o chinês – e línguas europeias.
Em uma carta a Schiller de outubro de 1800, Humboldt escreve que “a linguagem é o meio, se não absoluto, ao menos sensível, pelo qual o homem dá forma [bildet] ao mesmo tempo a si mesmo e ao mundo, ou melhor, torna-se consciente de si mesmo projetando um mundo que lhe é externo”.
SOBRE A DIFERENÇA DE ESTRUTURA DAS LÍNGUAS HUMANAS
O sistema fônico das línguas / Distribuição dos sons entre os conceitos
Nessa obra, cujo título integral é Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwickelung des Menschengeschlechts, literalmente “Sobre a diferença das línguas humanas e sua influência no desenvolvimento mental da humanidade”, publicada postumamente entre 1836-1839 por seu irmão Alexander, Humboldt analisou o desenvolvimento interno das línguas levando em conta a influência de fatores externos, dando início ao que se pode considerar o estudo da filologia comparada. Seu ponto de partida foi o estudo da língua kawi, de Java, que, conforme Humboldt mostrou, pertence a um grupo de línguas de grande parte da Oceania. Esse texto de caráter mais teórico, cuja primeira versão é de 1827-29 e a segunda, com título semelhante, de 1830-35, é na verdade a introdução ao seu monumental estudo do kawi.
“17. Denominamos palavra o signo correspondente a um conceito. A sílaba forma uma unidade sonora; só se transforma em palavra quando obtém uma significatividade própria, o que frequentemente requer a união de várias sílabas. Por isso, a palavra apresenta uma unidade dupla, a do som e a do conceito. É assim que as palavras se transformam nos verdadeiros elementos da fala, já que as sílabas carentes de significação própria não podem ser realmente consideradas como tais.
Se imaginarmos a língua como um segundo mundo, objetivado pelo indivíduo desde si mesmo a partir das impressões que ele recebe do mundo verdadeiro, as palavras serão os objetos individuais desse mundo e, por isso, podem ser consideradas indivíduos, já que sua forma também deve ser preservada. É verdade que a fala discorre numa continuidade sem cesuras e, sem a intervenção de uma reflexão voltada expressamente para a linguagem, o falante só se concentra no conjunto da ideia que procura expressar. Não é possível imaginar a origem da linguagem começando pela designação de objetos através de palavras e passando disso à integração da expressão. Na realidade, não é a fala que é composta por palavras que a precedem; ao contrário, são as palavras que nascem do conjunto do discurso. Entretanto, elas são percebidas mesmo sem o intermédio de uma verdadeira reflexão; isto ocorre inclusive nas línguas mais rudes e incultas, pois a formação de palavras é uma necessidade essencial da comunicação.
A palavra é o limite até o qual a língua exerce espontaneamente seu trabalho criador. A palavra simples é a flor perfeita que dela brota. Na palavra, o produto concluído pertence à própria língua. Por outro lado, em relação à frase e ao discurso, a língua se limita a prescrever uma forma reguladora; a configuração individual fica ao arbítrio do falante. É certo que, frequentemente, as palavras também aparecem isoladas dentro do discurso, mas sua real elucidação a partir do continuum é obra da argúcia de um senso linguístico consideravelmente desenvolvido. E este é justamente um desses pontos nos quais as vantagens e os inconvenientes das diversas línguas se manifestam com particular clareza.
Visto que as palavras correspondem a conceitos, acaba sendo natural designar conceitos afins com sons afins. Se o espírito percebe com maior ou menor nitidez a procedência dos conceitos, esta deverá estar de acordo com a procedência dos sons, de forma que a afinidade dos conceitos e a dos sons convirjam. A afinidade sonora, que não deve ser confundida com a identidade dos sons, só pode se tornar perceptível se uma parte da palavra sofre uma alteração quando submetida a certas regras enquanto o restante da palavra permanece invariável, ou ao menos é alterado somente na medida em que não impeça o fácil reconhecimento. Essas partes fixas das palavras e das formas das palavras costumam ser denominadas radicais e, quando enumeradas isoladamente, constituem as raízes da própria língua. Em sua forma nua, essas raízes só aparecem raras vezes dentro da fala concreta de algumas línguas; em outras, jamais aparecem assim. Inclusive, se os conceitos forem examinados e analisados atentamente, a última situação será a regra. Pois, em consonância com sua maneira de aparecer no discurso, também na ideia elas adotam uma categoria que corresponde às conexões nas quais aparecem, de modo que já não contêm o conceito radical nu e sem forma.
Contudo, também não é conveniente considerar a raiz em todas as línguas como mero fruto de reflexão e como o resultado último da análise das palavras; em suma, como tarefa do gramático. Nas línguas que possuem determinadas leis de derivação associadas a uma grande profusão de sons e expressões, na fantasia do falante os sons radicais devem ser facilmente destacados como os responsáveis originais e autênticos da designação e, devido à sua recorrência constante em tantas gradações e matizes dos conceitos, como os responsáveis pela designação geral. Se, nesta condição, chegam a ser profundamente impressos no espírito, o discurso trabalhado também os introduzirá com facilidade e sem muitas alterações, e assim pertencerão à língua verdadeiramente também na forma de palavras. Mas é igualmente possível que, na ascensão paulatina da língua até sua forma, já estivessem em uso dessa maneira, tendo efetivamente precedido as derivações e sendo fragmentos de uma língua posteriormente ampliada e transformada. É assim que podemos explicar, por exemplo, o fato de que, em sânscrito, quando recorremos aos sistemas de escrita que conhecemos, constatamos que no discurso só determinadas raízes são integradas habitualmente. Pois nessas coisas o acaso também tem seu papel nas línguas, e, quando os gramáticos indianos afirmam que cada uma de suas supostas raízes pode ser utilizada de um determinado modo, esse fato não foi extraído da língua e sim de uma lei imposta arbitrariamente sobre ela. Com efeito, parece que, no que concerne às formas, não só foram reunidas as que estão em uso, mas todas as formas foram aplicadas a todas as raízes. Esse sistema de generalizações também deve ser levado em conta atentamente em outras partes da gramática sânscrita. Os gramáticos se dedicaram preferencialmente a registrar raízes, e a coleção completa das mesmas é seu mérito indiscutível.1 Porém, também existem línguas que realmente carecem de raízes no sentido entendido aqui, pois não têm leis de derivação e de transformação dos sons a partir de conjuntos sonoros mais simples. Em casos como esses, raízes e palavras vêm a ser o mesmo, como no chinês, visto que as palavras não se deixam analisar em formas nem serem por elas expandidas: a língua só possui raízes. Poder-se-ia pensar que a partir de tais línguas tenham nascido outras novas, adicionando-se às palavras essas transformações fonéticas de modo que as raízes expostas encontradas nestas últimas constituiriam o vocabulário de uma língua anterior, total ou parcialmente desaparecida no discurso. Contudo, apresento este quadro apenas como uma possibilidade – se realmente ocorreu ou não em alguma língua é algo que deverá ser demonstrado historicamente.
Atendo-nos ao mais simples, distinguimos aqui as palavras das raízes. Porém, descendo novamente rumo ao mais complexo, podemos distingui-las também das formas gramaticais propriamente ditas. Pois, para poderem ser incorporadas ao discurso, as palavras devem indicar diversas circunstâncias, e a designação destas pode ter lugar nelas mesmas, o que dá origem a uma terceira forma fonética, geralmente mais ampla. Se a distinção aqui indicada possuir nitidez e precisão suficientes em uma língua, as palavras não poderão prescindir da designação de tais circunstâncias; se estas estiverem atreladas a diferenças sonoras, as palavras não poderão entrar no discurso sem alterações, mas aparecerão no máximo como partes de outras palavras que incluam esses signos. Quando isso ocorre numa língua, denominamos tais palavras “palavras básicas”; a língua possuirá agora realmente uma forma fonética que se expandirá em três etapas, e é nesse estágio que o sistema fônico de uma língua alcança sua máxima expansão.”
QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO
LEITURAS SUGERIDAS
Robins, R.H. Breve história da linguística, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1973, capítulo 7, “Linguística comparativa e histórica no século XIX”.