SAUSSURE
Ferdinand de Saussure (1857-1913), nascido em Genebra, foi um dos mais influentes linguistas do século XX. Sua teoria, que ficou conhecida como estruturalismo, embora ele não use especificamente o termo “estrutura”, marcou profundamente o desenvolvimento não só da linguística, mas das ciências humanas contemporâneas, incluindo a antropologia (por exemplo com Claude Lévi-Strauss), a história, a teoria literária (com Tzvetan Todorov) e a psicanálise de Jacques Lacan. Sua obra mais importante, o Curso de linguística geral, foi publicada postumamente.
Saussure, que em seu doutorado estudou o sânscrito, discute inicialmente com as teorias de sua época nos campos da gramática geral, da filologia e dos estudos comparativos entre as línguas, sobretudo as indo-europeias. Mas a importância de sua obra está na originalidade da proposta e na defesa da necessidade de se estudar a língua como um sistema de signos. Essa proposta consiste em analisar a linguagem não como representação mental do real, nem como comunicação, mas sim primordialmente como um sistema dotado de uma organização interna a partir da qual o significado dos signos se constitui, tornando então possíveis a referência e a comunicação. O signo é arbitrário e se define pela diferença em relação aos outros signos no interior do sistema.
A primeira distinção fundamental que Saussure formula é entre língua, (langue) enquanto sistema de signos e fala (parole), enquanto ato individual, consistindo de elementos fisiológicos e acústicos (fonemas). Conceitos podem ser considerados entidades linguísticas apenas enquanto relacionados a sons. Segundo Saussure, “o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”.
É nesse sentido que deve ser entendida a distinção entre significado (signifié) e significante (significant), que unidos constituem o signo, sendo que essa união é arbitrária, ou seja, não há nada em comum entre o conceito e o conjunto de sons que constitui o significante.
Saussure define a semiologia como “a ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social”, e considera a linguística apenas uma parte da semiologia, embora não tenha chegado a desenvolver essa visão mais ampla.
CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL
O estruturalismo linguístico: a ideia de sistema
Essa obra, publicada postumamente em 1916, é o resultado da edição por dois discípulos de Saussure, Charles Bally e Albert Sechehaye, das notas de três cursos que Saussure deu na Universidade de Genebra entre 1906 e 1911. Posteriormente, em 1957, Robert Godel reavaliou as fontes manuscritas da obra, e em 1968 Rudolf Engler preparou uma edição crítica do texto. Para Saussure, o objeto de estudo da linguística geral é a língua enquanto sistema, considerada primordialmente em um sentido sincrônico ou descritivo, e não diacrônico ou evolutivo como era então predominante. Ele defende que esses dois eixos, como os denomina, devem ser considerados separadamente. O Curso começa por introduzir sua concepção do papel da linguística, incluindo uma discussão da fonologia; em seguida, na Primeira Parte formula os princípios fundamentais de sua proposta e elabora as distinções que introduz; na Segunda Parte temos a linguística sincrônica; na Terceira, a diacrônica; e na Quarta Parte o que ele denomina linguística “geográfica”, incluindo uma análise do surgimento dos dialetos. A Quinta Parte é dedicada a questões filológicas e históricas. Publicações recentes de notas manuscritas de Saussure, por exemplo os Écrits de linguistique générale por Simon Bouquet e Rudolf Engler (2001), têm levado a uma reavaliação das teorias do Curso.
“CAPÍTULO III: OBJETO DA LINGUÍSTICA
§1 A língua: sua definição
Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto, da linguística? A questão é particularmente difícil: veremos mais tarde por quê. Limitemo-nos, aqui, a esclarecer a dificuldade.
Outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se podem considerar, em seguida, de vários pontos de vista; em nosso campo, nada de semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra “nu”: um observador superficial será tentado a ver nela um objeto linguístico concreto; um exame mais atento, porém, nos levará a encontrar no caso, uma após outra, três ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme a maneira pela qual consideramos a palavra: como som, como expressão duma ideia, como correspondente ao latim nūdum etc. Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas maneiras de considerar o fato em questão seja anterior ou superior às outras.
Além disso, seja qual for a que se adote, o fenômeno linguístico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma não vale senão pela outra. Por exemplo:
1o As sílabas que se articulam são impressões acústicas percebidas pelo ouvido, mas os sons não existiriam sem os órgãos vocais; assim, um n existe somente pela correspondência desses dois aspectos. Não se pode reduzir, então, a língua ao som, nem separar o som da articulação vocal; reciprocamente, não se podem definir os movimentos dos órgãos vocais se se fizer abstração da impressão acústica.
2o Mas admitamos que o som seja uma coisa simples: é ele quem faz a linguagem? Não, não passa de instrumento do pensamento e não existe por si mesmo. Surge daí uma nova e temível correspondência: o som, unidade complexa acústico-vocal, forma por sua vez, com a ideia, uma unidade complexa, fisiológica e mental. E ainda mais:
3o A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro. Finalmente:
4o A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre esses sistemas e sua história, entre aquilo que ele é e o que foi; na realidade, a relação que une ambas as coisas é tão íntima que se faz difícil separá-las. Seria a questão mais simples se se considerasse o fenômeno linguístico em suas origens; se, por exemplo, começássemos por estudar a linguagem das crianças? Não, pois é uma ideia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condições permanentes; não se sairá mais do círculo vicioso, então.
Dessarte, qualquer que seja o lado por que se aborda a questão, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da linguística. Sempre encontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas de cada problema e nos arriscamos a não perceber as dualidades assinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da linguística nos aparecerá como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a várias ciências – psicologia, antropologia, gramática normativa, filologia etc. –, que separamos claramente da linguística, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos.
Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas dificuldades: é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito.
Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade.
A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.
A esse princípio de classificação poder-se-ia objetar que o exercício da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a língua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinarse ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele.
Eis o que pode se responder.
Inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é, que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os linguistas estão longe de concordar nesse ponto. Assim, para Whitney, que considera a língua uma instituição social da mesma espécie que todas as outras, é por acaso e por simples razões de comodidade que nos servimos do aparelho vocal como instrumento da língua; os homens poderiam também ter escolhido o gesto e empregar imagens visuais em lugar de imagens acústicas. Sem dúvida, esta tese é demasiado absoluta; a língua não é uma instituição social semelhante às outras em todos os pontos. …
PRIMEIRA PARTE – PRINCÍPIOS GERAIS
CAPÍTULO I: NATUREZA DO SIGNO LINGUÍSTICO
§1 Signo, significado, significante
Para certas pessoas, a língua, reduzida a seu princípio essencial, é uma nomenclatura, vale dizer, uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas. Por exemplo:
Tal concepção é criticável em numerosos aspectos. Supõe ideias completamente feitas, preexistentes às palavras; ela não nos diz se a palavra é de natureza vocal ou psíquica, pois arbor pode ser considerada sob um ou outro aspecto; por fim, ela faz supor que o vínculo que une um nome a uma coisa constitui uma operação muito simples, o que está bem longe da verdade. Entretanto, esta visão simplista pode aproximar-nos da verdade, mostrando-nos que a unidade linguística é uma coisa dupla, constituída da união de dois termos.
Vimos …, a propósito do circuito da fala, que os termos implicados no signo linguístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação. Insistamos neste ponto.
O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica.1 Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato.
O caráter psíquico de nossas imagens acústicas aparece claramente quando observamos nossa própria linguagem. Sem movermos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recitar mentalmente um poema. E, porque as palavras da língua são para nós imagens acústicas, cumpre evitar falar dos “fonemas” de que se compõem. Esse termo, que implica uma ideia de ação vocal, não pode convir senão à palavra falada, à realização da imagem interior no discurso. Com falar de sons e de sílabas de uma palavra, evita-se o mal-entendido, desde que nos recordemos tratar-se de imagem acústica.
O signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser representada pela figura:
Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro. Quer busquemos o sentido da palavra latina arbor ou a palavra com que o latim designa o conceito “árvore”, está claro que somente as vinculações consagradas pela língua nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e qualquer outra que se possa imaginar.
Esta definição suscita uma importante questão de terminologia. Chamamos signo a combinação do conceito e da imagem acústica: mas, no uso corrente, esse termo designa geralmente a imagem acústica apenas, por exemplo uma palavra (arbor etc.). Esquece-se que, se chamamos a arbor signo, é somente porque exprime o conceito “árvore”, de tal maneira que a ideia da parte sensorial implica a do total.
A ambiguidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica, respectivamente, por significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro.
O signo linguístico assim definido exibe duas características primordiais. Ao enunciá-las, vamos propor os princípios mesmos de todo estudo desta ordem.
§ 2 Primeiro princípio: A arbitrariedade do signo
O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário.
Assim, a ideia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf [“boi”] tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro.
O princípio da arbitrariedade do signo não é contestado por ninguém; às vezes, porém, é mais fácil descobrir uma verdade do que lhe assinalar o lugar que lhe cabe. O princípio enunciado acima domina toda a linguística da língua; suas consequências são inúmeras. É verdade que nem todas aparecem, à primeira vista, com igual evidência; somente ao cabo de várias voltas é que as descobrimos e, com elas, a importância primordial do princípio.
Uma observação de passagem: quando a semiologia estiver organizada, deverá averiguar se os modos de expressão que se baseiam em signos inteiramente naturais – como a pantomima – lhe pertencem de direito. Supondo que a semiologia os acolha, seu principal objetivo não deixará de ser o conjunto de sistemas baseados na arbitrariedade do signo. Com efeito, todo meio de expressão aceito numa sociedade repousa em princípio num hábito coletivo ou, o que vem a dar na mesma, na convenção. Os signos de cortesia, por exemplo, dotados frequentemente de certa expressividade natural (lembremos os chineses, que saúdam seu imperador prosternando-se nove vezes até o chão), não estão menos fixados por uma regra; é essa regra que obriga a empregá-los, não seu valor intrínseco. Pode-se, pois, dizer que os signos inteiramente arbitrários realizam melhor que os outros o ideal do procedimento semiológico; eis por que a língua, o mais completo e o mais difundido sistema de expressão, é também o mais característico de todos; nesse sentido, a linguística pode erigir-se em padrão de toda semiologia, se bem a língua não seja senão um sistema particular.
Utilizou-se a palavra símbolo para designar o signo linguístico ou, mais exatamente, o que chamamos de significante. Há inconvenientes em admiti-lo, justamente por causa do nosso primeiro princípio. O símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro por exemplo.
A palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a ideia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (ver-se-á, mais adiante, que não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez que esteja ele estabelecido num grupo linguístico); queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade.
Assinalemos, para terminar, duas objeções que poderiam ser feitas a este primeiro princípio:
1o O contraditor se poderia apoiar nas onomatopeias para dizer que a escolha do significante nem sempre é arbitrária. Mas elas não são jamais elementos orgânicos de um sistema linguístico. Seu número, além disso, é bem menor do que se crê. Palavras francesas como fouet [¨chicote”] ou glas [“dobre de sinos”] podem impressionar certos ouvidos por sua sonoridade sugestiva; mas para ver que não têm tal caráter desde a origem, basta remontar às suas formas latinas (fouet derivado de fāgus, “faia”, glas = classicum); a qualidade de seus sons atuais, ou melhor, aquela que se lhes atribui, é um resultado fortuito da evolução fonética.
Quanto às onomatopeias autênticas (aquelas do tipo glu-glu, tic-tac etc.), não apenas são pouco numerosas, mas sua escolha é já, em certa medida, arbitrária, pois que não passam de imitação aproximativa e já meio convencional de certos ruídos (compare-se o francês ouaoua e o alemão wauwau). Além disso, uma vez introduzidas na língua, elas se engrenam mais ou menos na evolução fonética, morfológica etc. que sofrem as outras palavras (cf. pigeon, do latim vulgar pīpiō, derivado também de uma onomatopeia): prova evidente de que perderam algo de seu caráter primeiro para adquirir o do signo linguístico em geral, que é imotivado.
2o As exclamações, bastante próximas das onomatopeias, dão lugar a observações análogas e não constituem maior ameaça para a nossa tese. É-se tentado a ver nelas expressões espontâneas da realidade, como que ditadas pela natureza. Mas, para a maior parte delas, pode-se negar que haja um vínculo necessário entre o significado e o significante. … ”
QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO
LEITURAS SUGERIDAS
Bouquet, Simon. Introdução à leitura de Saussure, São Paulo, Cultrix, 2000.
Carvalho, Castelar de. Para compreender Saussure, Petrópolis, Vozes, 10a ed. 2000.
Culler, Jonathan. As ideias de Saussure, São Paulo, Cultrix, 1979.
Saussure, Ferdinand de. Curso de linguística geral, São Paulo, Cultrix, 1969.