3. A intuição lenta

EM 10 DE JULHO DE 2001, Ken Williams, um agente de campo do FBI do Arizona, enviou uma “comunicação eletrônica” aos seus superiores em Washington e Nova York, usando o sistema Automated Case Support, o antiquado repositório eletrônico por meio do qual a agência compartilhava informações sobre investigações em curso. O documento de seis páginas começava com esta frase profética: “O objetivo desta comunicação é informar a agência e Nova York sobre a possibilidade de um esforço coordenado da parte de Usama Bin Laden (UBL) para enviar estudantes aos Estados Unidos para frequentar universidades e faculdades de aviação civil.”

Era o hoje lendário “Phoenix memo”, um tiro de advertência disparado – e quase totalmente ignorado – durante os preguiçosos meses de verão que antecederam o 11 de Setembro. (Ironicamente, no próprio dia em que Williams enviou seu memorando, o New York Times publicou na página de opinião um artigo intitulado “The Declining Terrorist Threat” [A ameaça terrorista em declínio].) O agente havia sido inspirado a escrever o memorando por um padrão que detectara durante o ano anterior: um “número excessivo” de pessoas de “interesse investigativo” tinha se matriculado em várias escolas de pilotagem e faculdades de aviação civil no Arizona. Ele entrevistara vários desses indivíduos, entre os quais Zakaria Mustapha Soubra, um estudante de engenharia aeronáutica vindo do Reino Unido com um visto para estudantes F-1. Soubra, que tinha fotografias de Bin Laden em casa, disse a Williams acreditar que forças e embaixadas dos Estados Unidos atacadas no Golfo Pérsico e na África tinham sido “alvos militares legítimos do Islã”. Williams também sugeriu que mais nove estudantes da Argélia, do Quênia, da Índia, da Arábia Saudita e de outros países do Oriente Médio haviam se matriculado em escolas de pilotagem e possuíam amplas ligações com movimentos islâmicos radicais. Dois deles, ao que parece, eram conhecidos de Hani Hanjour, que iria estar no controle do voo 77 da American Airlines quando ele se chocou com o Pentágono na manhã de 11 de setembro.

Williams não foi capaz de prever o caráter imediato da ameaça; o memorando sugere haver um plano a longo prazo que poderia “estabelecer um quadro de indivíduos que um dia estarão trabalhando na comunidade da aviação civil no mundo todo. No futuro esses indivíduos estarão em condições de conduzir atividades terroristas contra alvos da aviação civil.” Ele pensou que a Al-Qaeda podia estar tramando uma infiltração paulatina da indústria da aviação; não conseguiu imaginar os sequestros à força bruta prestes a acontecer exatos dois meses depois. Mas suas recomendações foram extremamente válidas: o FBI deveria montar uma lista completa de todas as escolas de pilotagem e outras instituições de aviação em todo o país e identificar qualquer pessoa que tentasse obter um visto para frequentar uma delas.

Apesar de ter sido endereçado a vários departamentos de alto nível, entre os quais a Radical Fundamentalist Unit (RFU), em Washington, D.C., chefiada por David Frasca, o memorando de Williams logo entrou no que os investigadores apelidaram mais tarde de “buraco negro” no quartel-general do FBI. Por quase três semanas permaneceu num limbo, antes de ser finalmente encaminhado para um analista. Este o classificou como “rotineiro” em vez de “urgente”. Outro agente em Nova York o qualificou de “especulativo e não muito importante”. Embora em geral os analistas costumassem passar relatórios desse tipo a seus superiores, ele nunca chegou a Frasca.

Quando a notícia do memorando vazou pela primeira vez em 2002, as autoridades do serviço secreto e da polícia apressaram-se a desqualificar a advertência de Williams, dizendo que não passara de um palpite. “Ele recomendou que iniciássemos um programa para observar as escolas de pilotagem, o que foi aceito no quartel-general do FBI”, declarou o chefe do FBI Robert Mueller. “A recomendação ainda não havia sido posta em prática em 11 de setembro. A propósito, eu deveria dizer que, mesmo que tivéssemos seguido as sugestões naquele momento, isso não nos teria permitido, em vista do que sabemos desde 11 setembro, evitar os ataques daquele dia.”

É possível demonstrar que essas duas afirmações sobre o memorando Phoenix são verdadeiras. O agente de campo teve uma intuição sobre grupos terroristas e escolas de pilotagem, e essa intuição por si só não teria sido suficiente para evitar os ataques de 11 de setembro. Mas desqualificá-la com base nisso é sem dúvida passar ao largo do problema. Williams se deparou com uma ideia provocativa e surpreendente, ainda que incompleta. Se essa intuição tivesse se conectado com outra ideia igualmente provocativa, a qual emergiu três semanas mais tarde a oitocentos quilômetros de distância, o memorando Phoenix poderia ter transformado a história do início do século XXI.

PODEMOS APRENDER MUITO sobre a história da inovação examinando grandes ideias que mudaram o mundo. De fato, a maioria das histórias intelectuais está estruturada exatamente dessa maneira, uma narrativa de grandes descobertas, momentos de insights e estalos que tiveram um impacto transformador na sociedade humana. Como essas ideias foram, por definição, bem-sucedidas, é tentador atribuir seu sucesso a causas intrínsecas: o puro brilho delas próprias ou da mente que as descobriu. Mas essas causas intrínsecas podem facilmente eclipsar o papel do ambiente na criação e na difusão dessas ideias. Por isso é igualmente útil examinar as faíscas que fracassaram, as ideias que conseguiram chegar a uma região promissora do possível adjacente, mas de alguma maneira malograram ali. O memorando Phoenix foi exatamente um desses casos. Ele continha grande sabedoria e presciência – em julho de 2001, Ken Williams estava provavelmente mais próximo da conspiração do 11 de Setembro que qualquer outro ser humano no planeta, exceto os próprios perpetradores –, mas essa informação acabou se provando inútil. Por quê?

A resposta simples é que ninguém implementou as recomendações de Williams, em parte porque o próprio memorando não havia conseguido convencer os analistas de médio escalão de sua importância, em parte porque uma falha na comunicação dentro do FBI impediu que ele chegasse às autoridades máximas da Divisão de Contraterrorismo e da RFU. Mas, mesmo que tivesse chegado a David Frasca em meados de julho e conseguido de algum modo persuadi-lo de que Ken Williams atinara com algo importante, o memorando quase certamente não teria sido capaz de deter a conspiração do 11 de Setembro. De fato, teriam sido necessários meses para correlacionar todos os pedidos de visto com os registros de matrícula em escolas de pilotagem em todo o país. Detectar padrões tão sutis em tempo real era a meta não realizada do muito criticado projeto Total Information Awareness, liderado pelo almirante John Poindexter nos anos que se seguiram imediatamente ao 11 de Setembro. Em 2001, porém, os agentes do FBI mal conseguiam enviar e-mails uns para os outros, muito menos correlacionar pedidos de visto com registros de frequência em escolas de pilotagem. Foi esse detalhe técnico que permitiu a Robert Mueller afirmar que seguir as recomendações do memorando Phoenix em nada teria ajudado a impedir os ataques. A busca de pedidos de visto, incomuns entre alunos de escolas de pilotagem, poderia por certo ter levado o FBI aos sequestradores, mas não havia nenhuma arquitetura de informação montada capaz de levar a cabo esse tipo de investigação em questão de semanas. Assim, por esse padrão, a intuição de Ken Williams não foi suficiente por si só para evitar o 11 de Setembro.

Mas o memorando Phoenix poderia perfeitamente ter sido útil para impedir os ataques, caso tivesse seguido um padrão recorrente ao longo de toda a história das ideias que transformaram o mundo. Era uma intuição que precisava colidir com outra.

EXATAMENTE UM MÊS DEPOIS que Ken Williams enviou seu memorando, Zacarias Moussaoui matriculou-se na Pan Am International Flight Academy nos arredores de St. Paul, Minnesota, onde começou a ser treinado para pilotar um Boing 747-400 num simulador de voo. Instrutores e outros funcionários da escola de pilotagem sentiram uma desconfiança imediata em relação a esse novo aluno, que pagou os 8.300 dólares pelo curso completo em dinheiro vivo. Moussaoui demonstrava um interesse excessivo pela operação das portas da cabine de comando e pelas comunicações com a torre de controle, embora afirmasse não ter nenhum interesse em pilotar um avião real algum dia. Os funcionários da Pan Am entraram em contato com o FBI, e, após uma rápida verificação de seus antecedentes, Moussaoui foi preso no dia 16 de agosto, num motel, por violações da lei de imigração. Um interrogatório convenceu os agentes de campo, chefiados por Harry Samit e Greg Jones, de que Moussaoui representava uma ameaça ativa e poderia ser parte de uma conspiração mais ampla. O escritório do FBI em Minnesota iniciou então uma tentativa frenética, e por fim malograda, de obter um mandado de busca para examinar os arquivos do laptop de Moussaoui. No dia 21 de agosto, o requerimento de um mandado de busca foi formalmente negado, sob a alegação de que as evidências de uma causa provável eram “duvidosas”, apenas mais um palpite vindo do interior. Durante a semana seguinte, o escritório de Mineápolis implorou em vão ao quartel-general permissão para ter acesso ao laptop de Moussaoui. Em certa altura o agente Jones advertiu que Moussaoui poderia “tentar pilotar alguma coisa em direção ao World Trade Center”. O mandado de busca só seria concedido na tarde de 11 de setembro, depois que a visão de Jones se revelara mais do que presciente.

Esta é a história de duas intuições. A intuição de Ken Williams de que uma conspiração envolvendo múltiplos fundamentalistas islâmicos radicais poderia ser interceptada mediante o controle de pedidos de visto e registros de matrículas em escolas de pilotagem; e a intuição dos agentes de campo de Mineápolis de que Moussaoui queria jogar um avião contra o World Trade Center. (Esta última nasceu, é claro, de uma outra intuição: a dos instrutores de voo da escola da Pan Am de que Zacarias Moussaoui não estava sendo sincero com relação a seu interesse em usar um simulador de 747.) Por si sós, elas de fato não passavam de intuições e tinham uma validade realmente duvidosa. Mas, quando consideramos as duas juntas, seu poder de persuasão é poderosamente ampliado. Ligar os pontos entre elas teria com certeza fornecido causa provável suficiente para justificar o exame dos conteúdos do laptop de Zacarias Moussaoui. E, se os agentes tivessem examinado os pertences dele, teriam descoberto conexões diretas com onze sequestradores do 11 de Setembro, bem como números de transferência eletrônica via Western Union que permitiriam rastrear pagamentos recentes feitos por Ramzi bin al-Shibh, um dos principais coordenadores do ataque. Não podemos saber ao certo se apenas essa informação teria levado as autoridades a tempo até Mohamed Atta, ou se um interrogatório mais agressivo de Moussaoui poderia ter extraído dele uma confissão que desenredaria o plano. Isso está, sem dúvida, na esfera das possibilidades. O inegável é que no final de agosto de 2001 a única esperança real de impedir os ataques residia na conexão dessas duas intuições.

A faísca malograda do memorando Phoenix sugere uma resposta para o mistério do escalamento superlinear nas cidades e na web. Uma metrópole compartilha uma característica fundamental com a web: ambos os ambiente são redes líquidas e densas em que a informação flui facilmente ao longo de caminhos múltiplos e imprevisíveis. Essas interconexões alimentam grandes ideias, porque as grandes ideias em geral vêm ao mundo mal-acabadas, mais intuições que revelações. Insights genuínos dificilmente acontecem; é desafiador imaginar um plano terrorista para jogar aviões de passageiros contra prédios, ou inventar um computador programável. Por isso, a maioria das grandes ideias se configura primeiro de uma forma parcial, incompleta. Elas têm a semente de algo profundo, mas falta-lhes um elemento decisivo que pode transformar o palpite em algo de fato poderoso. E muitas vezes esse elemento que falta está em algum outro lugar, vivendo sob a forma de uma intuição na cabeça de outra pessoa. As redes líquidas criam um ambiente em que essas ideias parciais podem se conectar; formam uma espécie de agência de encontros para intuições promissoras. Elas facilitam a disseminação de boas ideias, é claro, mas também fazem algo mais sublime: ajudam a completar ideias.

O verdadeiro problema da intuição de Ken Williams não foi ter falhado em imaginar os detalhes exatos ou a iminência da conspiração do 11 de Setembro, nem o fato de que as recomendações feitas por ele teriam sido incapazes de evitar os atentados, caso tivessem sido seguidas. O problema foi ambiental: em vez de circular através de uma rede densa, o memorando Phoenix foi jogado no buraco negro do sistema Automated Case Support. Em vez de encontrar novas conexões, ele foi depositado no equivalente a um arquivo trancado. Intuições que não se conectam estão fadadas a continuar sendo intuições.

HÁ, PORÉM, UMA DIFERENÇA FUNDAMENTAL entre as intuições do Phoenix e de Minnesota: o tempo. Os instrutores de voo tiveram um mau pressentimento em relação a Moussaoui numa questão de horas; alguma coisa no comportamento do rapaz e nas perguntas que fazia parecia simplesmente inquietante. Ken Williams, por outro lado, desenvolveu sua intuição sobre a ameaça ligada às escolas de pilotagem ao longo de anos de investigação. O memorando Phoenix não foi o resultado de um mero palpite, mas uma ideia que ganhou forma pouco a pouco ao longo do tempo, um padrão detectado após inúmeras horas de observação e investigação.

A intuição de Minnesota vem sendo intelectualmente valorizada nos últimos anos: o instinto visceral, a avaliação imediata de uma situação pelo “cérebro emocional”, que desafia os cálculos da lógica – mas que, não obstante, vem a se revelar misteriosamente precisa. O interesse por esse tipo de intuição remonta aos anos 1980 e aos experimentos de António Damásio com pacientes com lesões cerebrais cuja incapacidade de fazer julgamentos instantâneos produzia como resposta comportamentos irracionais. O best-seller de Malcolm Gladwell Blink: a decisão num piscar de olhos concentra-se de maneira quase exclusiva no poder (e no perigo ocasional) do palpite instantâneo: o historiador da arte que percebe num segundo que uma escultura antiga é falsa; o policial do Departamento de Polícia de Nova York que faz o desastroso julgamento instantâneo de que um suspeito está sacando uma arma, quando na verdade ele está pegando a carteira.

Mas os julgamentos intuitivos instantâneos – por mais poderosos que sejam – são raridades na história das ideias que transformaram o mundo. A maioria das intuições que se transformam em inovações importantes se desdobra ao longo de intervalos de tempo muito mais longos. Elas começam como uma sensação vaga, difícil de descrever, de que há uma solução interessante para um problema que ainda não foi proposta, e persistem nas sombras da mente, por vezes durante décadas, reunindo novas conexões e ganhando força. E então, um dia, se transformam em algo mais substancial; por vezes despertadas por um novo acúmulo de informações, ou por outra intuição que perdura numa outra mente, ou por uma associação interna que finalmente completa o pensamento. Como precisam de muito tempo para se desenvolver, essas intuições lentas são criaturas frágeis, que se perdem com facilidade em meio às necessidades mais prementes do dia a dia. Mas esse longo período de incubação é também a sua força, porque insights verdadeiros exigem que pensemos alguma coisa que ninguém pensou exatamente da mesma maneira antes. Julgamentos instantâneos muitas vezes são apenas isso – julgamentos. Esse sujeito é ou não confiável? Aquela escultura é uma falsificação? Uma ideia nova é algo maior que isso: é uma nova maneira de considerar um problema ou o reconhecimento de uma nova oportunidade inexplorada até aquele momento. Descobertas desse tipo em geral levam tempo para se desenvolver. Quando o cientista do século XVIII Joseph Priestley decidiu isolar um raminho de hortelã num vidro hermeticamente fechado em um engenhoso experimento que provou que as plantas geravam oxigênio – uma das descobertas que fundaram a moderna ciência dos ecossistemas –, baseavase numa intuição cultivada por vinte anos, desde sua obsessão de infância por capturar aranhas em frascos de vidro. Ele tivera a intuição de que havia algo de interessante no modo como os organismos pereciam quando os isolávamos em recipientes fechados, algo que apontava para uma verdade maior. E manteve essa intuição viva até ser capaz de lhe atribuir um significado. Não é que tenha perseguido com obstinação uma única linha de investigação. Durante aqueles vinte anos, Priestley se interessou por uma dúzia de áreas diferentes, inventou centenas de novos experimentos em seu laboratório caseiro, envolveu-se em longas conversas com importantes intelectuais da época. Uma minúscula porcentagem desse tempo foi dedicada diretamente ao problema da respiração das plantas. Ele apenas o manteve vivo no fundo de sua mente. Manter uma intuição lenta é menos uma questão de transpiração que de cultivo. Há que lhe dar alimento suficiente para mantê-la crescendo e plantá-la em solo fértil, onde suas raízes possam fazer novas conexões. Depois, basta lhe dar tempo para florescer.

AO OLHAR PARA O PASSADO, a visão turva tende a desfigurar as intuições lentas, fazendo-as parecer momentos de estalo. Inventores, cientistas, empresários, artistas – todos gostam de contar as histórias de suas grandes descobertas como epifanias, em parte pelo caráter emocionante da narrativa desse momento em que uma lâmpada se acende, proporcionando súbita iluminação, e em parte porque é mais difícil transmitir a preguiçosa evolução em segundo plano da intuição lenta. Mas, se examinarmos com atenção os registros fósseis da inteligência, a intuição lenta é a regra, não a exceção.

Numa passagem famosa de sua Autobiografia, Darwin descreve a grande revelação que teve quando, ainda jovem, tentava compreender a evolução da vida.

Em outubro de 1838, isto é, quinze meses depois de começar minha investigação sistemática, li por acaso, por diversão, o ensaio de Malthus sobre população, e, estando bem-preparado para compreender a luta pela sobrevivência que se dá em toda parte, graças à contínua observação de animais e plantas, ocorreu-me de imediato que, sob essas circunstâncias, variações favoráveis tenderiam a ser preservadas, e as desfavoráveis, destruídas. O resultado disso seria a formação de novas espécies. Eu conseguira ali, por fim, uma teoria com que trabalhar.

Esta é a versão da maçã de Newton na esfera da evolução: Malthus cai da árvore, bate na cabeça de Darwin e – voilà – nasce a seleção natural. Em parte, o atrativo dessa história de eureca deriva da simples elegância da própria teoria. Diferentemente de descobertas científicas de maior complexidade técnica, parece de certa maneira apropriado que o algoritmo evolucionário básico de fato tenha pipocado na mente num momento de reconhecimento. (Consta que o maior defensor de Darwin, T.H. Huxley, teria exclamado, ao ouvir a tese da seleção natural pela primeira vez: “É uma incrível burrice não pensar nisso.”) O relato de Darwin também possui uma simetria estranhamente poética, porque anos depois, quando chegou de maneira independente à teoria da seleção natural, Alfred Russel Wallace afirmou que sua descoberta também havia sido inspirada por Malthus.

Por quase um século, a epifania malthusiana foi a história canônica das raízes do darwinismo. No início dos anos 1970, porém, o psicólogo e historiador das ideias Howard Gruber decidiu reexaminar os copiosos cadernos de Darwin naquele período, reconstruindo a complexa dança de especulação, ordenação de fatos e debate interno que conduziu à descoberta que ele fez no outono de 1838. O que Gruber encontrou nos cadernos foi uma história muito diferente da que Darwin conta na Autobiografia. Todos os elementos essenciais da teoria da evolução estão presentes muito antes da epifania malthusiana, que nos cadernos datam explicitamente de 28 de setembro de 1838. Darwin compreendia a importância da variação; a relação entre seleção natural e artificial; a disputa pela sobrevivência entre diferentes espécies; as claras relações fisiológicas entre espécies; a escala épica do tempo evolucionário. Todos esses conceitos-chave são longamente discutidos nos cadernos a partir de 1837. Não é apenas que ele possuísse as peças do quebra-cabeça mas não conseguisse juntá-las na configuração correta. Em várias passagens notáveis, escritas muitos meses antes do insight malthusiano, ele parecia estar descrevendo a teoria da seleção natural quase pronta e acabada. Exatamente um ano antes de ler Malthus, ele pergunta, num inglês taquigráfico: “Se no curso das eras cada animal produz 10 mil variedades (influenciado talvez pelas circunstâncias) e só aquelas preservadas que são bem-adaptadas?” Para cimentar uma teoria em construção da seleção natural, basta apenas modificar a fórmula muito ligeiramente, esclarecendo que a preservação de formas “bem-adaptadas” decorre de seu sucesso reprodutivo. No entanto, de certa forma Darwin não compreende que tem a solução na palma das mãos e continua sua investigação por mais um ano antes de “conseguir uma teoria com que trabalhar”.

Mesmo depois do insight malthusiano, Darwin parece incapaz de compreender todas as consequências da teoria que estabeleceu. As entradas do diário no dia 28 de setembro são adequadamente entusiasmadas e parecem de fato se engalfinhar com os elementos fundamentais da teoria:

Povoar é aumento em razão geométrica num intervalo de tempo MUITO MAIS CURTO que 25 anos … O motivo final de todo esse apinhamento deve ser escolher a estrutura apropriada e adaptá-la à mudança – fazer isso pela forma, o que Malthus mostra ser o efeito final (por meio, contudo, da volição) dessa superpopulação sobre a energia do homem. Podemos dizer que há uma força como 100 mil cunhas tentando forçar todo tipo de estrutura adaptada para dentro das brechas da economia da natureza, ou melhor, formando brechas ao expulsar os mais fracos.

Mas, nos dias e nas semanas que se seguem, os apontamentos de Darwin não sugerem um espírito que transpôs um divisor de águas intelectual. Como Gruber observa, já no dia seguinte Darwin escreve um longo verbete sobre a curiosidade sexual dos primatas que parece nada ter a ver com sua nova descoberta. Mais de um mês se passa antes que ele tente registrar as regras que governam a seleção natural.

Tudo isso indica que não podemos afirmar de maneira taxativa que Darwin encontrou a ideia para sua teoria da seleção natural no dia 28 de setembro de 1838. O máximo que podemos dizer é que ele não a possuía quando iniciou sua investigação no verão de 1837, e que já a tinha de uma forma consolidada em novembro de 1838. Não se trata de uma questão de lacunas no registro histórico. É difícil apontar o momento exato em que Darwin teve a ideia simplesmente porque ela não lhe ocorreu num lampejo; penetrou em sua consciência pouco a pouco, em ondas. Nos meses anteriores à leitura de Malthus, talvez se possa dizer que Darwin tinha a ideia da seleção natural na mente, mas ao mesmo tempo era incapaz de pensá-la por completo. É assim que muitas vezes intuições lentas amadurecem: de maneira sub-reptícia, em pequenos passos. Assomam paulatinamente.

Esse padrão se repete em outra história iconográfica da jornada intelectual de Darwin: os meses formativos que passou observando a estranha diversidade das ilhas Galápagos durante a viagem do Beagle. Com certeza a exploração inicial dos princípios da seleção natural por Darwin baseou-se fortemente nos impressionantes desvios que ele vira entre espécies próximas no arquipélago de Galápagos. Não é à toa que os tentilhões de Darwin são famosos. Mas nos cadernos preenchidos durante a exploração das ilhas em outubro de 1835 não há quase nenhum sinal da teoria transformadora do mundo que eles iriam finalmente inspirar. Na verdade, a maioria esmagadora das anotações de Darwin durante sua estada nas ilhas Galápagos é de natureza geológica, muito mais preocupada com a teoria uniformitarianista de Lyell do que com as aves e os répteis do arquipélago. (Um inventário dos cadernos encontrou 1.383 páginas de anotações geológicas contra 368 páginas sobre zoologia.) Ele fazia extensos apontamentos à sua maneira “naturalista”, mas toda a energia especulativa dos diários do Beagle é gerada pela geologia. Para o Darwin biólogo, os dias em Galápagos eram uma missão de descoberta de fatos; o Darwin geólogo, porém, estava processando e interpretando conscientemente os fatos à medida que os colhia.

Segundo seu próprio relato, Darwin só fixou de fato a atenção no intrigante enigma dos tentilhões e seus vizinhos exóticos na primavera seguinte, no momento exato em que o Beagle encontrava um porto seguro nas ilhas Cocos. Seu diário de 1837 inclui a frase: “Em julho abri primeiro caderno sobre ‘Transmutação de Espécies’ – Havia ficado muito impressionado desde o mês de março anterior com o caráter dos fósseis sul-americanos – e espécies no arquipélago de Galápagos. Esses fatos originam (especialmente mais tarde) todas as minhas ideias.” Ele testemunhara em primeira mão a maravilhosa diversidade de espécies em Galápagos, documentara-a com uma precisão que nenhum ser humano ousara tentar antes. Mas levou cinco meses para perceber por que isso era importante.

MANTER VIVA UMA INTUIÇÃO LENTA envolve desafios em múltiplas escalas. Em primeiro lugar, temos de preservar a intuição em nossa memória, na rede densa de nossos neurônios. A maior parte das intuições lentas nunca dura o bastante para se transformar em algo útil, porque entra e sai de nossa memória depressa demais, justamente por apresentar certa obscuridade. Temos a impressão de que há uma possibilidade interessante a explorar, um problema que poderia nos levar um dia a uma solução, mas depois nos distraímos com assuntos mais prementes e a intuição desaparece. Por isso, parte do segredo de cultivar intuições é simples: anote tudo.

Podemos rastrear a evolução das ideias de Darwin com tamanha precisão porque ele se dedicava a uma prática rigorosa de manter cadernos em que citava outras fontes, improvisava novas ideias, questionava e rejeitava pistas falsas, desenhava diagramas e, de maneira geral, deixava sua mente divagar na página. Podemos acompanhar a evolução das ideias de Darwin porque num nível básico a plataforma do caderno cria um espaço de cultivo para suas intuições. Não que o caderno fosse uma mera transcrição das ideias que aconteciam em algum lugar nos bastidores de sua mente. Ele estava sempre relendo suas anotações, descobrindo novas implicações. Suas ideias se formam como uma espécie de dueto entre o cérebro pensante do presente e todas aquelas observações passadas registradas no papel. Em algum lugar no meio do oceano Índico, uma cadeia de associações o compele a reexaminar o que anotara sobre a fauna do arquipélago de Galápagos cinco meses antes. E, quando ele lê suas observações, começa a ganhar forma em sua mente um novo pensamento que provoca toda uma nova série de anotações que só farão pleno sentido dois anos depois, a partir do episódio de Malthus.

Os cadernos de Darwin situam-se na extremidade de uma longa e frutífera tradição que chegou ao auge na Europa na era do Iluminismo, em particular na Inglaterra: o costume de manter um livro de “citações”. Eruditos, cientistas amadores, aspirantes a homens de letras – praticamente todas as pessoas com ambição intelectual nos séculos XVII e XVIII tinham um livro de citações. As grandes cabeças do período – Milton, Bacon, Locke – eram entusiastas dos poderes desses livros para avivar a memória. Em sua forma mais comum, a prática envolvia a transcrição de passagens interessantes ou inspiradoras das obras lidas, reunindo uma enciclopédia personalizada de citações. Há um nítido caráter de autoajuda nas primeiras descrições das virtudes desses livros: mantê-los permitia à pessoa “armazenar um fundo de conhecimento, a partir do qual poderá selecionar a qualquer momento o que for útil nas várias atividades da vida”.

John Locke começou a usar um livro de citações em 1652, o primeiro ano que passou em Oxford. Ao longo da década seguinte, ele desenvolveu e aprimorou um sistema elaborado para indexar o conteúdo do livro. Locke julgou seu método importante o suficiente para inseri-lo como apêndice a uma impressão de sua obra canônica, Ensaio sobre o entendimento humano. A abordagem que propõe é de uma complicação quase cômica, mas era uma resposta a um conjunto específico de requisitos: criar um índice funcional em apenas duas páginas, que pudesse ser expandido à medida que o livro acumulasse mais citações e comentários.

Quando encontro algo que me parece apropriado pôr em meu livro de citações, penso primeiro num tópico adequado. Suponhamos, por exemplo, que o tópico seja EPÍSTOLA. Procuro no índice pela primeira letra e pela vogal seguinte, que nesse caso são E.i.; se no espaço marcado E.i. houver algum número que me dirija para a página destinada a palavras que comecem com E e cuja primeira vogal após a letra inicial seja I, devo então escrever nessa página, sob a palavra Epístola, o que tenho a comentar.

O método de Locke tornou-se tão popular que um século mais tarde John Bell, um editor arrojado, publicou um caderno intitulado Bell’s Common-Place Book, Formed Generally upon the Principles Recommended and Practised by Mr Locke. O livro incluía oito páginas de instruções sobre o método de indexação de Locke, um sistema que não só tornava mais fácil encontrar passagens, como também servia ao propósito mais elevado de “facilitar o pensamento reflexivo”. O volume de Bell seria a base para um dos livros de citações mais famosos do final do século XVIII, mantido de 1776 a 1787 por Erasmus Darwin, avô de Darwin. Bem no fim de sua vida, quando trabalhava numa biografia do avô, Charles obteve do primo Reginald o que chamava de “o grande livro”. Na biografia, o Darwin mais jovem capta a maravilhosa diversidade do livro: “Há projetos e esboços para uma lâmpada aperfeiçoada, como as ‘lâmpadas moderadoras’a atuais; castiçais com suportes de telescópio para serem erguidos à vontade até qualquer altura desejada; uma espécie de papel-carbono; um tear para tricotar meias; uma balança; uma máquina topográfica; uma ave voadora, com um engenhoso escapamento para o movimento das asas; e ele sugere o uso de pólvora ou ar comprimido como força motora.”

A tradição do livro de citações encerra uma tensão central entre ordem e caos, entre o desejo de arranjo metódico e o de surpreender novos elos de associação. Para alguns defensores do Iluminismo, a indexação sistemática do livro de citações tornou-se uma metáfora do que as pessoas aspiravam para a própria vida mental. O pregador dissidente John Mason escreveu em 1745:

Não considere suficiente abastecer esse Depósito da Mente com bons Pensamentos, mas armazene-os ali em Ordem, sumariados ou organizados sob Assuntos ou Classes adequados. Que qualquer Assunto sobre o qual você tenha Ocasião de pensar ou falar possa se valer imediatamente de um bom Pensamento, que você armazenou ali sob aquele Assunto. De modo que a mera Menção dele possa pôr o Pensamento ao alcance; assim você carregará um Livro de Citações completo na Memória.

Outros, entre os quais Priestley e ambos os Darwin, usavam seus livros de citações para registrar uma vasta miscelânea de intuições. O historiador Robert Darnton descreve essa confusa mistura de escrita e leitura:

Diferentemente dos leitores modernos, que seguem o fluxo de uma narrativa do começo ao fim, os ingleses do início da Idade Moderna liam aos trancos e barrancos e pulavam de um livro para outro. Eles quebravam textos em fragmentos e os reuniam em novas configurações, transcrevendo-os em diferentes seções de seus livros de citações. Depois reliam as cópias e rearranjavam as configurações, acrescentando mais trechos. Ler e escrever eram, portanto, atividades inseparáveis. Elas pertenciam a um esforço contínuo para interpretar as coisas, pois o mundo estava cheio de sinais: era possível orientar-se nele pela leitura; e, ao manter um registro de suas leituras, as pessoas podiam fazer seu próprio livro, estampado com sua personalidade.

Cada releitura do livro de citações torna-se um novo tipo de revelação. Vemos os caminhos evolutivos de todas as nossas intuições passadas: as que se revelaram pistas falsas; as que se revelaram óbvias demais para ser escritas; até aquelas que se transformaram em livros inteiros. Mas cada encontro encerra a promessa de que alguma intuição há muito esquecida se conectará de uma nova maneira com alguma obsessão emergente. A beleza do arranjo de Locke estava em proporcionar a ordem suficiente para podermos encontrar fragmentos quando os procuramos, mas ao mesmo tempo permitia ao corpo principal do livro de citações ter seus próprios meandros indisciplinados, não planejados. Impor ordem demais é correr o risco de deixar uma intuição promissora órfã num projeto mais amplo que morreu, e torna difícil para essas ideias misturarem-se e procriarem quando as revisitamos. Precisamos de um sistema para capturar intuições, mas não necessariamente categorizá-las, porque categorias podem erigir barreiras entre ideias díspares, restringi-las às suas próprias ilhas conceituais. Esta é uma das maneiras pelas quais a história humana da inovação desvia-se da história natural. Novas ideias não florescem em arquipélagos.

NA HISTÓRIA BIBLIOGRÁFICA da miscelânea épica, outro título inglês merece menção, ao lado do livro de citações de Erasmus Darwin: um guia vitoriano de conselhos práticos bastante popular com o título memorável Enquire Within upon Everything [algo como “Informe-se aqui sobre tudo”]. O texto que se lia na folha de rosto do livro, publicado pela primeira vez em 1865, insinua o imenso acúmulo de recursos domésticos que continha:

Quer você deseje modelar uma flor em cera; estudar as regras da etiqueta; servir um aperitivo para o desjejum ou a ceia; preparar uma deliciosa entrée para a mesa de jantar; planejar um jantar para um grupo grande ou pequeno; curar uma dor de cabeça; fazer um testamento; casar-se; sepultar um parente; ficarei feliz em ajudá-lo em qualquer coisa que você queira fazer, promover ou desfrutar, contanto que seu desejo tenha relação com as necessidades da vida doméstica; por isso espero que não deixe de se informar aqui. – O editor.

Foram publicadas mais de cem edições desse guia, que permaneceu um item muito comum nos lares britânicos até boa parte do século XX. Um exemplar mofado da obra subsistiu até os anos 1960 na casa de um casal de matemáticos que morava num subúrbio de Londres. Eles tinham um filho que se sentiu atraído pela “sugestão de magia” presente no título do livro e passava horas explorando esse “portal para o mundo da informação”. O título ficou gravado no fundo da sua mente, junto com a maravilhosa sensação de explorar um imenso tesouro de dados. Mais de uma década depois, quando trabalhava como consultor de software num laboratório de pesquisa suíço, ele se viu esmagado pelo fluxo de informação e pela rotatividade do pessoal na organização. Como projeto paralelo, começou a brincar com a montagem de um aplicativo que lhe permitiria acompanhar todos esses dados. Na hora de dar nome ao programa, sua mente recuou até a curiosa enciclopédia doméstica vitoriana da sua infância. Batizou seu aplicativo de Enquire.

O programa permitia ao usuário armazenar pequenos blocos de informação sobre pessoas ou projetos como nós numa rede conectada. Era fácil fixar ponteiros bidirecionais entre os nós, de modo que se o usuário clicasse no nome de uma pessoa, poderia ver num instante todos os projetos em que ela estava trabalhando. O aplicativo provou-se verdadeiramente informativo, mas o programador logo mudou de função e abandonou o código. Passados alguns anos, ele deu início a uma nova versão, que chamou de Tangle, mas ela nunca decolou. Um belo dia, porém, quase dez anos depois de ter programado o Enquire, ele começou a esboçar um aplicativo mais ambicioso, capaz de estabelecer conexões entre documentos armazenados em diferentes computadores, usando links de hipertexto. Durante algum tempo, andou à cata do nome certo para essa plataforma nascente, chamando-a de “mina” ou “malha” de informações. Finalmente descobriu uma metáfora diferente para a rede densa da plataforma. Batizou-a de World Wide Web.

Em seu próprio relato das origens da web, Tim Berners-Lee não tenta condensar a evolução de sua maravilhosa ideia numa única epifania. A web nasceu como uma intuição lenta arquetípica: da exploração de uma enciclopédia centenária por uma criança, passando pelo projeto paralelo de um freelance ocioso para ajudá-lo a acompanhar as atividades dos colegas, até a tentativa deliberada de montar uma nova plataforma de informação que pudesse conectar computadores ao redor de todo o planeta. Como a grande compreensão de Darwin da rede emaranhada da vida, a ideia de Berners-Lee precisou de tempo – pelo menos uma década – para amadurecer:

Os jornalistas sempre me perguntam qual foi a ideia decisiva, ou o evento singular, que permitiu à web nascer um belo dia. Ficam frustrados quando lhes digo que não houve nenhum momento “Eureca!” … A invenção da World Wide Web envolveu minha crescente compreensão de que havia um grande poder em se organizar ideias de maneira livre, como uma teia. E essa percepção me chegou aos poucos, precisamente através desse tipo de processo. A web surgiu como resposta a um desafio em aberto, por meio da mistura de influências, ideias e descobertas vindas de muitos lados, até que, graças aos extraordinários ofícios da mente humana, um novo conceito ganhou forma. Foi um processo de acréscimo, não a solução linear de um problema após outro.

O desenvolvimento lento, por acréscimo, da web de Berners-Lee nos leva à escala de inovação seguinte. O cultivo de intuições estende-se para além do domínio privado da memória e do livro de citações. Muitas pessoas não podem se dar ao mesmo luxo que Darwin e dedicar uma vida inteira a seus devaneios intelectuais. Para a maioria, ideias surgem dentro de seus ambientes de trabalho e em torno deles, com todas as pressões, distrações e responsabilidades cotidianas, além da constante supervisão que a vida profissional tantas vezes envolve. Nesse aspecto, Berners-Lee teve enorme sorte no tocante ao ambiente de trabalho em que tinha se estabelecido, o laboratório franco-suíço de física das partículas Cern. Foram-lhe necessários dez anos para cultivar sua intuição lenta relacionada a uma plataforma de informação em hipertexto. Ele passou a maior parte desses anos trabalhando no Cern, mas só em 1990 – uma década depois de começar a trabalhar no Enquire – o laboratório o autorizou oficialmente a desenvolver o projeto de hipertexto. Durante o dia, ele trabalhava em “aquisição e controle de dados”; construir uma plataforma global de comunicação era seu hobby. Como as duas atividades tinham alguns atributos em comum, os superiores de Berners-Lee permitiram que tocasse o projeto paralelo ao longo dos anos. Graças a alguns grupos de discussão na internet, ele pôde conversar com outros inovadores pioneiros do hipertexto e assim suplementar e aprimorar suas ideias. Essa combinação de flexibilidade e conexão lhe deu apoio crítico para sua ideia. Ele precisava de um ambiente de trabalho que lhe proporcionasse um espaço para intuições lentas, à margem de todas as exigências imediatas dos compromissos diários. E precisava de redes de informação que permitissem a essas intuições propagar-se a outras mentes, nas quais poderiam ser ampliadas e aperfeiçoadas.

Se há uma antimatéria para a matéria fomentadora de intuições do Cern, poderia sem dúvida ser o FBI no verão de 2001. Duas redes fundamentais deixaram de fazer as conexões apropriadas nos meses que antecederam o 11 de Setembro: a rede de informações do sistema Automated Case Support e as redes neurais nos cérebros dos principais participantes. Mesmo em 2001, recuperar documentos com uma combinação improvável de termos – digamos, por exemplo, “escolas de pilotagem” e “fundamentalistas islâmicos radicais” – era uma questão rotineira; milhões de usuários do Google, criado três anos antes, faziam buscas semelhantes pela web inteira, com resultados quase instantâneos. Se a rede de informações tivesse sugerido de maneira automática aos funcionários da Radical Fundamentalist Unit a leitura do memorando Phoenix depois que o escritório de Minnesota começou sua investigação sobre Moussaoui, as últimas semanas do verão poderiam ter transcorrido de maneira muito diferente. Mas, por mais inteligente que a própria rede fosse, ainda teria sido necessário que uma conexão comparável se estabelecesse nas mentes dos participantes. Se David Frasca tivesse lido o memorando que Ken Williams lhe remetera, provavelmente teria sido capaz de conectar os dois palpites, usando a avançada tecnologia de reconhecimento de padrões que o cérebro humano possui.

O fracasso dessas duas redes em conectar as intuições de Phoenix e de Minnesota pode ser atribuído em parte à tecnologia de informação quase medieval empregada pelo FBI. Mesmo que a agência tivesse milagrosamente atualizado sua rede no verão de 2001, é provável que as duas intuições permanecessem separadas, porque a falta de conexões no sistema Automated Case Support era um princípio do projeto, não mero resultado de tecnologia obsoleta. No linguajar da ciência da computação, era uma característica, não um bug. A rede de informações do FBI era uma clássica rede fechada: além de impedir que intrusos acessassem informações nela contidas, o sistema fora projetado de modo a proteger com cuidado os documentos de outros membros do órgão, o legado de uma instituição baseada em segredos e na extrema restrição do acesso aos dados. O relatório final da investigação do Comitê Judiciário sobre as falhas do serviço secreto nos meses anteriores ao 11 de Setembro citou explicitamente esse princípio do projeto da rede de informação do FBI como um dos principais culpados, chamando-o de “‘mentalidade de silo’, que leva ao engavetamento de informações vitais numa unidade, impedindo que seja compartilhada com outras”.

Num sentido real, durante os meses que conduziram ao 11 de Setembro, o FBI foi um sistema aniquilador de intuições, o que é bastante irônico, dado o papel importante que elas desempenham na maioria das descrições – reais ou ficcionais – do trabalho de grandes investigadores. Na cultura do FBI, o fato de um analista rotular um relatório de “especulativo” foi suficiente para impedir que ele avançasse pela cadeia de comando, ao mesmo tempo que a antiquada arquitetura de silo impediu que a intuição de Williams circulasse entre outros agentes de campo que trabalhavam com base em suas próprias intuições. A visão monumental que Berners-Lee teve no Cern foi uma rede emaranhada de dados, uma “mistura de influências, ideias e descobertas vindas de muitos lados”. O sistema Automated Case Support não foi apenas incompetente em promover um emaranhado criativo; havia sido explicitamente projetado para eliminá-lo.

EM 1980, ALUDIR A Enquire Within upon Everything no nome de um pacote de software era uma audácia e tanto; Berners-Lee só estava tentando se manter a par do que faziam seus colegas no Cern, não pretendia organizar toda a informação do mundo. Mas “informe-se aqui…” bem poderia ser o slogan do Google, razão pela qual é bastante apropriado que essa empresa, em seu ambiente corporativo, tenha feito o máximo para adotar e expandir o tipo de inovação por intuição lenta que, afinal de contas, criou a web. No início de sua história, o Google instituiu o famoso programa “20-percent time” para todos os seus engenheiros: para cada quatro horas que passam trabalhando em projetos oficiais da companhia, eles são obrigados a dedicar uma hora a projetos pessoais, guiados apenas pelas próprias paixões e instintos. (Inspirado num programa semelhante adotado em caráter pioneiro pela 3M, conhecido como “the 15-percent rule”, o nome oficial do sistema do Google é “Innovation Time Off” [tempo livre para inovação]). A única exigência é que forneçam informações mais ou menos regulares sobre seus progressos aos superiores. Boa parte dos engenheiros acaba passando de uma ideia para outra, e a vasta maioria dessas ideias nunca se transforma num produto oficial da empresa. De vez em quando, porém, uma dessas intuições dá origem a algo significativo. O AdSense, a plataforma que permite a blogueiros e editores da web exibir anúncios do Google em seus sites, foi em parte gerado durante os 20% de tempo livre. Em 2009, o AdSense proporcionou ao Google um lucro de mais de 5 bilhões de dólares, quase um terço do total da empresa no ano. O Orkut, um dos maiores sites de rede social na Índia e no Brasil, originou-se no Innovation Time Off de um engenheiro turco do Google chamado Orkut Büyükkökten. A requisitada plataforma de e-mail do Google, o Gmail, também teve raízes num projeto desenvolvido no tempo livre. Marissa Mayer, vice-presidente de Produtos de Busca e Experiência de Usuário da empresa, afirma que mais de 50% dos novos produtos lançados provêm de intuições desenvolvidas no Innovation Time Off.

O contraste mais significativo entre o Google e o FBI está na história de Krishna Bharat, que hoje detém o título de “principal cientista” da empresa. Nas semanas que se seguiram ao 11 de Setembro, Bharat viu-se esmagado pela quantidade de novas informações disponíveis sobre os ataques e a guerra iminente no Afeganistão. Ocorreu-lhe que seria útil criar um software que pudesse organizar aquelas notícias em grupos de relevância, permitindo ver num relance todas as últimas notícias oriundas da web sobre a procura de Bin Laden, ou sobre os esforços para a limpeza do Ground Zero, ou sobre a defesa da retaliação militar pelo governo Bush. Bharat decidiu usar seus 20% de tempo livre para construir um sistema chamado StoryRank – modelado com base no algoritmo original PageRank em que o mecanismo de busca do Google se baseia – para organizar e agrupar itens de notícia. O StoryRank floresceu, por fim, no Google News, uma das mais populares (e controversas) fontes de notícias e comentários na web.

Em certo sentido, a narrativa da evolução do StoryRank é a imagem especular exata da história das vicissitudes do memorando Phoenix. Como Tim Berners-Lee, Bharat teve a sorte de fazer parte de uma cultura organizacional que estimulava intuições e lhes dava o espaço e o tempo de que precisavam para se desenvolver. E Bharat se apossou desse ambiente favorável e o usou para construir uma ferramenta que pudesse reunir de maneira automática grupos de relevância e associação entre documentos – certamente o tipo de sistema que teria ligado os pontos entre o memorando Phoenix e a investigação de Moussaoui. Bharat intuiu que havia uma maneira melhor de organizar a rede de notícias, e construiu o que veio a ser uma ferramenta que poderia ser usada para ajudar intuições relacionadas a se completar umas às outras.

O Google News foi lançado em setembro de 2002, o que significa que o StoryRank levou um ano para passar de uma intuição na mente de Krishna Bharat a produto acabado. Nove anos depois do 11 de Setembro, o FBI ainda estava usando o sistema Automated Case Support.

a “Moderator lamps”, tipo de lâmpada a óleo vegetal inventado por M. Franchot por volta de 1836. (N.T.)