4. Serendipidade

COMO QUALQUER OUTRO PENSAMENTO, uma intuição nada mais é que uma rede de células acendendo-se dentro de nosso cérebro num padrão organizado. Para algo mais substancial florescer, porém, essa rede tem de se conectar com outras ideias. Precisa de um ambiente em que conexões surpreendentemente novas possam ser forjadas: os neurônios e sinapses do próprio cérebro e o ambiente cultural mais amplo que o cérebro ocupa.

Durante muitos anos grassou um debate sobre a natureza dessas conexões neurais. Seriam elas de natureza química ou elétrica? Haveria sopas químicas no cérebro, ou faíscas? A resposta, por fim, foi: ambas as coisas. Os neurônios enviam sinais elétricos pelos longos cabos de seus axônios, que se conectam com outros neurônios por meio de pequenas lacunas sinápticas. Ao chegar à sinapse, a carga elétrica libera um mensageiro químico – um neurotransmissor, como a dopamina ou a serotonina – que flutua até o neurônio receptor e desencadeia finalmente outra carga elétrica, que viaja até outro neurônio no cérebro.

A natureza híbrida, eletroquímica, da comunicação nervosa foi estabelecida pela primeira vez em outra das mais célebres experiências do século XX. No início dos anos 1920, o cientista alemão Otto Loewi isolou dois corações de rã, ainda pulsando, em recipientes separados que continham uma solução salina. Em um coração, prendeu um eletrodo no nervo vago, que num corpo intacto começa no tronco cerebral e se estende por todo o organismo. Como o nervo vago ajuda a regular o sistema parassimpático, sua estimulação com uma carga elétrica diminuiu a velocidade dos batimentos cardíacos. Em seguida, Loewi retirou parte da solução que envolvia o coração e derramou-a sobre o segundo coração. No mesmo instante este passou a bater mais devagar também, embora seu nervo vago não tivesse sido eletricamente estimulado. O engenhoso experimento de Loewi demonstrou que a instrução para a desaceleração dos batimentos cardíacos havia passado através da sopa química da solução salina. Ao estimular uma parte diferente do nervo vago da rã, ele conseguiu também acelerar os batimentos de ambos os corações da mesma maneira. Sabemos hoje que a estimulação elétrica estava liberando duas moléculas diferentes na sopa: a acetilcolina (que desacelerava o coração) e a adrenalina (que o acelerava).

Por mais influente que tenha sido, o experimento de Loewi é lembrado hoje igualmente pela maneira curiosa como ele o concebeu. A ideia lhe veio num sonho – em dois sonhos, para ser exato:

Na noite anterior ao domingo da Páscoa daquele ano, acordei, acendi a luz e fiz algumas anotações numa tirinha de papel fino. Depois voltei a dormir. Às seis horas da manhã, eu me lembrei de que escrevera algo de extrema importância, mas não consegui decifrar meus rabiscos. Na noite seguinte, às três horas, a ideia voltou. Era o projeto de um experimento para determinar se a hipótese da transmissão química que eu formulara dezessete anos antes estava correta. Levantei-me no mesmo instante, fui para o laboratório e realizei um experimento simples com um coração de rã, de acordo com o projeto noturno.

Costumamos associar a inspiração onírica às artes criativas, mas o cânone das grandes descobertas científicas contém muitas ideias revolucionárias que se originaram em sonhos. O cientista russo Dmitri Mendeleev criou a tabela periódica dos elementos depois que um sonho lhe sugeriu que ela poderia ser ordenada por peso atômico. Foi num sonho, em 1947, que o ganhador do prêmio Nobel John Carew Eccles concebeu sua teoria da ação inibitória sináptica, que ajudou a explicar como neurônios conectados podem entrar em atividade sem desencadear uma cascata interminável de trabalho cerebral. De maneira curiosa, a intuição inicial de Eccles envolvia um sistema puramente elétrico, mas experimentos posteriores provaram que a substância química GABA era central para a inibição sináptica, fazendo-o ir ao encontro do experimento realizado décadas antes por Loewi.

Não há nada de místico no papel dos sonhos na descoberta científica. Embora a atividade onírica continue sendo um terreno fértil para pesquisas, sabemos que, durante o sono REM, células do tronco cerebral que liberam acetilcolina se excitam de forma indiscriminada, enviando ondas crescentes de eletricidade através do cérebro. Lembranças e associações são desencadeadas de maneira caótica, semialeatória, gerando a característica alucinatória dos sonhos. A maior parte dessas conexões neuronais é desprovida de sentido, mas por vezes o cérebro topa no sonho com um elo valioso que escapara à consciência em vigília. Nesse sentido, Freud compreendeu a coisa ao contrário com sua noção de interpretação dos sonhos: o sonho não está revelando de algum modo uma verdade reprimida. O que ele faz é explorar, tentando encontrar novas verdades por meio da experimentação com novas combinações de neurônios.

Um experimento recente conduzido pelo neurocientista alemão Ullrich Wagner demonstra o potencial que os estados oníricos têm de desencadear novos insights conceituais. Sujeitos experimentais receberam uma tarefa matemática entediante que envolvia a transformação repetitiva de oito dígitos num número diferente. Com a prática, eles ficavam cada vez mais eficientes no desempenho da tarefa. Mas havia um padrão oculto no enigma de Wagner, uma regra que governava as transformações numéricas. Uma vez descoberto, esse padrão permitia aos sujeitos completar a tarefa muito mais depressa, mais ou menos como nossa atividade aumenta rapidamente quando estamos prestes a completar um quebra-cabeça, e todas as peças se encaixam de repente. Wagner descobriu que, após uma exposição inicial ao teste numérico, “consultar o travesseiro” numa noite de sono mais do dobrava a capacidade dos participantes de descobrir a regra oculta. As recombinações mentais do sono ajudavam a explorar toda a gama de soluções para o enigma, detectando padrões que haviam escapado à percepção no período inicial de treino. O trabalho do sonho mostra-se uma maneira particularmente caótica, mas produtiva, de explorar o possível adjacente.

Em certo sentido, os sonhos são a sopa primordial da mente: o meio que facilita as colisões serendipitosas do insight criativo. E as intuições se assemelham àqueles primeiros átomos de carbono, buscando novos tipos de conexões para ajudá-los a formar novas cadeias e anéis de inovação. O sonho de Loewi, do experimento do coração de rã, é muitas vezes evocado como um caso de súbita epifania – uma versão do século XX da maçã de Newton –, mas na verdade ele vinha matutando havia dezessete anos sobre a possibilidade de haver uma comunicação química entre os neurônios. Em parte, sua epifania foi possibilitada pelas conexões aleatórias do sono REM, mas em parte ocorreu graças à intuição lenta que subsistira no fundo de sua mente por quase duas décadas.

Esse padrão da consolidação de uma intuição lenta numa epifania inspirada por um sonho se repete no que talvez seja o devaneio mais famoso da história da ciência. Em 1865, sonhando acordado junto a um fogo crepitante, o químico alemão Friedrich August Kekulé von Stradonitz teve uma visão do Uróboro, a serpente da mitologia grega que devora a própria cauda. Kekulé havia passado os dez anos anteriores de sua vida explorando as ligações de moléculas baseadas no carbono. A imagem da serpente no devaneio deu-lhe uma súbita apreensão da estrutura molecular do hidrocarboneto benzeno. A molécula de benzeno, ele percebeu, era um anel de carbono perfeito, com átomos de hidrogênio circundando suas bordas externas. A intuição lenta de Kekulé havia armado o palco para o insight, mas para que essa intuição se tornasse uma ideia transformadora do mundo, ele precisava da mais improvável das conexões: uma imagem icônica da mitologia antiga. E a visão de Kekulé provou-se de fato uma descoberta de proporções épicas: a estrutura de anel da molécula de benzeno tornou-se a base para uma revolução na química orgânica, abrindo uma nova perspectiva da fascinante série de anéis, treliças e cadeias formada pelo mais conectivo de todos os elementos, o carbono. Foi necessária a serendipidade combinatória de um devaneio – todos aqueles neurônios acendendo-se em novas e improváveis configurações – para nos ajudar a entender o poder combinatório do carbono, o qual, por sua vez, foi crucial para a compreensão das inovações originais da própria vida.

O CÉREBRO ACORDADO também tem apetite para o caos produtivo que reina no estado onírico. Os neurônios compartilham informações transmitindo substâncias químicas através da lacuna sináptica que os conecta, mas se comunicam também por meio de um canal mais indireto: sincronizam os ritmos em que se excitam. Por razões ainda não inteiramente compreendidas, grandes agrupamentos de neurônios passam a se excitar regularmente na mesma frequência exata. (Imagine uma banda de jazz dissonante, cada membro seguindo uma indicação de compasso e um tempo diferentes, que de súbito começa a tocar uma valsa a precisas 120 batidas por minuto.) É isso que os neurocientistas chamam de phase-locking, o qual é caracterizado por uma espécie de bela sincronia – milhões de neurônios pulsando num ritmo perfeito. Mas o cérebro também parece precisar do oposto: períodos regulares de caos elétrico, nos quais os neurônios estão em total falta de sincronia entre si. Quando acompanhamos as várias frequências da atividade elétrica cerebral por meio de um eletroencefalograma, obtemos um efeito semelhante ao de girar o dial num rádio AM: períodos de padrões estruturados, rítmicos, interrompidos por estática e ruído. Os sistemas do cérebro são “sintonizados” para ruído, mas só em rajadas controladas.

Em 2007, Robert Thatcher, um neurocientista da University of South Florida, decidiu estudar a variação entre sincronia de fase e ruído nos cérebros de dezenas de crianças. Embora tenha constatado que os períodos de ruído duravam, em média, 55 milissegundos, ele também detectou uma variação estatisticamente significativa entre as crianças. Alguns cérebros tendiam a ficar mais tempo em sincronia de fase [phase-locking], outros tinham intervalos de ruído que se aproximavam sempre de sessenta milissegundos. Ao comparar os resultados referentes às ondas cerebrais com o QI das crianças, Thatcher encontrou uma correlação direta entre os dois conjuntos de dados. Cada milissegundo extra passado no modo caótico acrescentava nada menos que vinte pontos aos QIs dessas crianças. Intervalos mais longos em sincronia de fase subtraíam pontos de QI, embora de maneira menos acentuada.

O estudo de Thatcher sugere uma noção contrária à do senso comum: quanto mais desorganizado for o seu cérebro, mais inteligente você será. Isso contraria o senso comum em parte porque tendemos a atribuir à crescente inteligência do mundo tecnológico uma coreografia eletromecânica cada vez mais precisa. A Intel não anuncia seus últimos microprocessadores com o slogan “A cada 55 milissegundos, nossos chips irrompem numa torrente de ruído!”. No entanto, de alguma maneira os cérebros que buscam esse ruído parecem prosperar, pelo menos pela medida do teste de QI.

A ciência ainda não tem uma explicação consistente para os estados de caos do cérebro, mas Thatcher e outros pesquisadores acreditam que o ruído elétrico do modo de caos permite ao cérebro fazer experiências com novas ligações entre neurônios que não se conectariam em cenários mais ordenados. O modo de sincronia de fase (segundo a teoria) é aquele em que o cérebro executa um plano ou hábito estabelecido, enquanto o modo de caos é aquele em que ele assimila novas informações e explora estratégias para responder a situações alteradas. Nesse sentido, o modo de caos é uma espécie de devaneio em segundo plano: uma camada de ruído que torna novas conexões possíveis. Verificou-se que até nas horas de vigília nosso cérebro gravita para o ruído e o caos do sonho, por 55 milissegundos de cada vez.

Escrevendo no final dos anos 1880, William James não tinha meios para medir a excitação sincronizada de neurônios, mas sua descrição da “ordem mais elevada das mentes” capta algo do modo de caos:

Em vez de pensamentos de coisas concretas seguindo-se pacientemente uns aos outros, temos os mais abruptos atalhos e transições de uma ideia para outra, as mais refinadas abstrações e distinções, as mais inauditas combinações de elementos … um caldeirão fervilhante de ideias, em que tudo está chiando e se agitando num estado de desnorteante atividade, em que parcerias podem ser estabelecidas ou rompidas num instante, a rotina monótona é desconhecida e o inesperado parece ser a única lei.

O ATO DE REPRODUÇÃO SEXUAL é ele próprio uma espécie de atestado do poder das conexões aleatórias, até nas relações mais monogâmicas. A esmagadora maioria dos seres vivos não microscópicos na Terra gera descendentes compartilhando genes com outro organismo. Mas a evolução dessa estratégia reprodutiva permanece um tanto misteriosa. Teria sido muito mais fácil para a vida evitar as complicadas trocas genéticas da meiose e da fertilização. (Pense no elaborado sistema que as plantas floríferas tiveram de desenvolver, atraindo insetos para assumir a tarefa de carregar pólen de uma flor para outra.) A reprodução sem sexo é uma simples questão de clonagem: você toma suas próprias células, copia-as e passa isso para seus descendentes. Não soa muito divertido aos nossos ouvidos mamíferos, mas essa estratégia funcionou muito bem por bilhões de anos para as bactérias. A reprodução assexual é mais rápida e demanda menos energia que a sexual: não é preciso se dar o trabalho de encontrar um parceiro para criar a próxima geração.

Se a seleção natural recompensasse os organismos apenas pela pura capacidade reprodutiva, a reprodução sexual talvez nunca tivesse se desenvolvido. Organismos assexuados se reproduzem em média de maneira duas vezes mais rápida que os sexuados, em parte porque, sem uma distinção macho/fêmea, todo organismo é capaz de gerar prole por si só. Mas a evolução não é apenas um jogo de quantidade. A superpopulação, afinal, gera seus problemas, e uma comunidade de organismos com DNA idêntico constitui um alvo perfeito para parasitas e predadores. Por essas razões, a seleção natural também recompensa a inovação, a tendência da vida de descobrir novos nichos ecológicos, novas fontes de energia. Foi isso que Stuart Kauffman reconheceu quando formulou pela primeira vez a ideia do possível adjacente: que a biosfera tem algo como uma tendência essencial a se diversificar em novas maneiras de subsistir. Misturar dois conjuntos distintos de DNA a cada geração resultava numa estratégia reprodutiva muito mais complexa, mas muito vantajosa quanto à taxa de inovação. O que perdemos em velocidade e simplicidade ganhamos em criatividade.

A pulga-d’água, Daphnia, vive em muitas lagoas de água doce e pântanos. Seus movimentos espasmódicos na água são responsáveis pelo nome “pulga”, mas na realidade Daphnia é um pequenino crustáceo, com poucos milímetros de comprimento. Em condições normais, a espécie se reproduz de maneira assexuada, com as fêmeas produzindo uma ninhada de cópias idênticas de si mesmas numa minúscula bolsa. Nessa modalidade, a comunidade de Daphnia compõe-se inteiramente de fêmeas. Tal estratégia reprodutiva alcança assombroso sucesso: nos meses quentes de verão, Daphnia é muitas vezes um dos organismos mais abundantes no ecossistema de uma lagoa. Mas quando as condições ficam severas, e secas ou outros distúrbios ecológicos ocorrem, ou quando o inverno chega, as pulgas-d’água fazem uma notável transformação: começam a produzir machos e passam a se reproduzir sexualmente. Parte dessa mudança pode ser atribuída aos ovos mais robustos produzidos por reprodução sexual, que têm mais chances de sobreviver aos longos meses de inverno. Os cientistas acreditam, entretanto, que a súbita adoção do sexo é também uma espécie de estratégia de inovação biológica: em tempos difíceis, um organismo precisa de novas ideias para fazer face aos desafios. A reprodução assexual faz pleno sentido durante períodos prósperos: se a vida está boa, continue fazendo a mesma coisa. Não interfira no sucesso introduzindo novas combinações genéticas. Porém, quando o mundo se torna mais desafiador – com recursos escassos, predadores, parasitas –, é preciso inovar. E o caminho mais curto para a inovação é estabelecer novas conexões. Essa estratégia de alternar entre a reprodução sexual e a assexual recebe o nome de “heterogenia”, e, embora não seja comum, muitos diferentes organismos a adotaram. Fungos, algas e pulgões, todos desenvolveram estratégias reprodutivas heterogênicas. Em cada organismo, o padrão de Daphnia se repete: as recombinações genéticas do sexo emergem quando as condições ficam difíceis. Trocar genes com outro organismo é mais difícil que a simples clonagem, mas as recompensas do sexo em termos de inovação superam seus riscos. Quando a natureza se vê necessitada de novas ideias, ela se esforça para conectar, não para proteger.

A LÍNGUA INGLESA é abençoada com uma palavra maravilhosa que exprime o poder da conexão acidental: “serendipity”. Cunhada pelo romancista inglês Horace Walpole em uma carta escrita em 1754, a palavra provém de um conto de fadas persa intitulado “Os três príncipes de Serendip”, cujos protagonistas estavam “sempre a descobrir, por acidente e sagacidade, coisas que não procuravam”. O romancista contemporâneo John Barth descreve isso em termos náuticos: “Você não chega a Serendip traçando um caminho para lá. Tem de partir com convicção para outro lugar e perder o rumo serendipitosamente.”

Mas a serendipidade não é apenas uma questão de abraçar encontros fortuitos por puro deleite. Ela é feita de felizes coincidências, sem dúvida, porém o que as torna felizes é o fato de a descoberta ser significativa para quem a fez. A serendipidade completa uma intuição ou abre uma porta para o possível adjacente que não havíamos percebido. Se um geólogo está explorando a web ao acaso, e a ilha de Serendip em particular com que depara é um ensaio sobre a reforma do sistema de saúde, essa descoberta poderá lhe parecer interessante e informativa, mas não será de fato serendipitosa, a menos que o ajude a encaixar uma peça num enigma sobre o qual vinha se debruçando. Isso não significa que geólogos só possam fazer descobertas serendipitosas em textos de geologia – na verdade, muito pelo contrário. Descobertas serendipitosas muitas vezes envolvem trocas entre as disciplinas tradicionais. Pense no modo como a serpente mítica de Kekulé levou a uma revolução na química orgânica. Foi verdadeiramente serendipitoso que seu cérebro adormecido evocasse a imagem do Uróboro naquele momento. Mas, se ele não tivesse passado anos se engalfinhando com a estrutura da molécula de benzeno, a forma da serpente poderia não ter despertado nenhuma associação útil em sua mente. (Por vezes, como diria Freud, uma serpente engolindo a própria cauda é apenas uma serpente engolindo a própria cauda.) A serendipidade requer colisões e descobertas improváveis, mas também algo em que ancorá-las. Caso contrário, nossas ideias são como átomos de carbono a colidir a esmo uns com os outros na sopa primordial, sem jamais formar os anéis e treliças da vida orgânica.

O desafio, claro, é saber como criar ambientes que fomentem conexões serendipitosas em todas as escalas apropriadas: no espaço privado de nossa mente; no âmbito de instituições mais amplas; e através das redes de informação da própria sociedade.

À primeira vista, a ideia de provocar descobertas serendipitosas em nossa própria mente parece uma contradição em termos. Não seria algo como nos perdermos na nossa própria garagem? Ainda assim, era exatamente isso que Kekulé fazia ao pé do fogo. Ele estava conectando dois pensamentos distintos, cada um dos quais ocupava um escaninho em seus bancos de memória: o enigma da estrutura molecular do benzeno e o Uróboro que devora a própria cauda. A verdade é que nossa mente contém um número quase infinito de ideias e memórias que a qualquer momento se esconde de nossa consciência. Uma pequenina fração desses pensamentos é como a serpente de Kekulé: compõe-se de conexões surpreendentes que poderiam nos ajudar a abrir uma porta no possível adjacente. Mas como levar esses aglomerados particulares de neurônios a se acender no momento certo?

Uma maneira é sair para dar uma volta. A história da inovação está repleta de relatos sobre boas ideias que ocorreram quando as pessoas estavam fazendo um passeio. (Um fenômeno semelhante acontece quando passamos um longo tempo debaixo do chuveiro ou mergulhados numa banheira; na verdade, o momento “eureca” original – quando Arquimedes atinou com uma maneira de medir o volume de formas irregulares – ocorreu numa banheira.) O banho ou o passeio nos tiram do foco centrado em tarefas da vida moderna – pagar contas, responder a e-mails, ajudar as crianças com o dever de casa – e nos inserem num estado mais associativo. Se nos for dado tempo suficiente, nossa mente irá deparar muitas vezes com alguma velha conexão que não notávamos havia muito, proporcionando aquela deliciosa sensação de serendipidade íntima: por que não pensei nisso antes?

Em Science and Method, o matemático e físico francês Henri Poincaré dedica um capítulo autobiográfico à questão da criatividade matemática. O texto tem início com uma descrição detalhada de como Poincaré descobriu a classe das funções de Fuchs, um dos primeiros conceitos matemáticos influentes de sua carreira. Ele começou tentando provar que essas funções não existiam; durante quinze dias lutou sem sucesso à sua escrivaninha. Depois, certa noite, contrariando seus hábitos, tomou café preto. Incapaz de dormir, viu sua mente fervilhar com intuições promissoras. “Ideias surgiram em abundância”, escreveu. “Senti que se entrechocavam, até que pares se entrelaçaram, por assim dizer, formando uma combinação estável. Na manhã seguinte, eu havia estabelecido a existência de uma classe de funções de Fuchs, aquelas que derivam da série hipergeométrica.” Seu insight seguinte – uma conexão entre essas funções e a geometria não euclidiana – ocorreu várias semanas depois, quando viajava de ônibus em uma expedição geológica na Normandia. Ao voltar para casa, começou a trabalhar numa questão aritmética não relacionada e se atrapalhou durante vários dias. “Aborrecido com meu fracasso”, escreveu ele, “fui passar alguns dias à beira-mar e pensar em outra coisa. Uma manhã, caminhando sobre um penhasco, ocorreu-me a ideia, com exatamente as mesmas características de brevidade, instantaneidade e certeza imediata, de que as transformações aritméticas de formas quadráticas ternárias indeterminadas eram idênticas àquelas da geometria não euclidiana.” Mais uma vez, Poincaré voltou para casa e se dedicou às implicações desse achado, mas deparou com um novo obstáculo. Por imposição do serviço militar, teve de viajar para o Fort Mont-Valérien, nos subúrbios de Paris, onde quase não teve tempo para dedicar alguma reflexão à matemática. Isso não o impediu, contudo, de encontrar a última peça que faltava. “Um dia, andando pela rua, a solução para a dificuldade que havia me detido apareceu de repente. Não tentei aprofundá-la de imediato, e só retomei a questão após concluir meu serviço. Eu tinha todos os elementos e precisava apenas organizá-los e reuni-los. Assim escrevi minha dissertação de um só golpe e sem dificuldade.”

Esse relato de Poincaré talvez seja a anedota mais “prosaica” sobre criatividade científica de que se tem notícia. Sempre que ele se senta à sua mesa, as inovações parecem se estancar. Quando se levanta, as ideias “surgem em abundância”. Para tentar explicar o fenômeno, ele recorre a uma metáfora atômica, em que cada ideia parcial ou intuição é representada por um átomo colado a uma parede. Em situações normais, os átomos permanecem no lugar, presos numa configuração estável. Quando a mente divaga, porém (e, no caso de Poincaré, quando seu corpo físico divaga), os átomos se desprendem. “Durante um período de aparente repouso e trabalho inconsciente, alguns deles de desprendem da parede e se põem em movimento. Movem-se como coriscos em todas as direções através do espaço … no qual estão encerrados, como o faria, por exemplo, uma nuvem de mosquitos ou, se preferirem uma analogia mais culta, como o fariam as moléculas de gás na teoria cinética dos gases. Assim, suas colisões mútuas podem produzir novas combinações.”

Embora o passeio criativo ajude a gerar novas combinações serendipitosas de ideias já existentes em nossas mentes, podemos também cultivar a serendipidade no modo como absorvemos ideias do mundo exterior. Os livros continuam sendo um veículo insuperável para a transmissão de novas ideias e perspectivas interessantes. Mas aqueles que não são acadêmicos ou não estão envolvidos no mercado editorial só conseguem encontrar tempo para os livros fora do horário de trabalho: ouvindo um audiolivro no carro a caminho do escritório ou devorando um capítulo depois que as crianças dormem. O problema com a assimilação de novas ideias nas franjas da rotina diária é que as combinações potenciais são limitadas pelo alcance de sua memória. Se você leva duas semanas para terminar um livro, quando chega ao livro seguinte já esqueceu muito do que havia de tão interessante ou provocativo no primeiro. Podemos mergulhar na perspectiva de um único autor, mas nesse caso é mais difícil criar colisões serendipitosas entre as ideias de múltiplos autores. Uma maneira de contornar essa limitação é estabelecer períodos especiais para a leitura de uma grande e variada série de livros e ensaios num intervalo restrito de tempo. Bill Gates (e seu sucessor na Microsoft, Ray Ozzie) são famosos por tirar férias anuais dedicadas à leitura. Durante o ano, acumulam deliberadamente uma pilha de material de leitura – grande parte sem relação com seu foco diário na Microsoft –; depois se afastam por uma ou duas semanas e mergulham a fundo nos textos que acumularam. Ao concentrar sua absorção em poucos dias, dão a novas ideias oportunidades adicionais de se conectar entre si, pela simples razão de que é mais fácil nos lembrar de algo que lemos ontem que de algo que lemos seis meses atrás.

Na linguagem de Poincaré, o mergulho profundo, como a longa caminhada, desprende os átomos das paredes e os põe em movimento. A maioria de nós não pode se dar ao luxo de tirar férias sabáticas para mergulhar na leitura; e nem todo mundo acha que ler alguns milhares de páginas corresponde à ideia de férias divertidas. Mas não há razão para que as organizações não reconheçam o valor de períodos sabáticos destinados à leitura, assim como muitas estimulam os empregados a se afastar do trabalho para aprender novas habilidades. Se o Google dá a seus engenheiros um dia por semana para trabalhar no que bem entenderem, sem dúvida outras organizações podem descobrir uma maneira de dar a seus empregados um tempo exclusivo para mergulhar numa rede de novas ideias.

A SERENDIPIDADE PRIVADA pode ser cultivada também por meio da tecnologia. Há mais de uma década, venho organizando um arquivo digital de citações que me pareceram intrigantes, minha versão do século XXI do livro de citações. Algumas dessas passagens envolvem pesquisa muito focada num projeto específico; outras são descobertas mais aleatórias, intuições à espera de uma conexão. Algumas são passagens que transcrevi de livros ou artigos; outras foram pinçadas diretamente de páginas da web. (Nos últimos anos, graças ao Google Books e ao Kindle, copiar e armazenar citações interessantes de um livro tornou-se muito mais simples.) Mantenho todas essas citações num banco de dados usando um programa chamado DEVONthink, onde guardo também meus próprios escritos: capítulos, ensaios, posts publicados em blogs, anotações. Pela combinação de minhas próprias palavras com passagens de outras fontes, a coleção se torna algo mais que um mero sistema de armazenagem de arquivos. Passa a ser uma extensão digital de minha memória imperfeita, um arquivo de todas as minhas velhas ideias e das ideias que me influenciaram. Hoje há mais de 5 mil entradas diferentes nesse banco de dados e mais de 3 milhões de palavras – o equivalente a sessenta livros em citações, fragmentos e intuições, tudo recolhido individualmente por mim e armazenado num único banco de dados.

Ter toda essa informação ao alcance das mãos não é apenas uma questão quantitativa de localizar minhas anotações mais depressa. Sim, quando procuro um artigo que escrevi muitos anos atrás, agora é muito mais fácil recuperá-lo. Mas a mudança qualitativa consiste em outro aspecto: é possível encontrar documentos dos quais havia me esquecido por completo e alguns que eu não sabia estar procurando. O que torna o sistema realmente poderoso é a maneira como promove a serendipidade.

O DEVONthink contém um algoritmo que detecta conexões semânticas sutis entre passagens de texto distintas. Essas ferramentas são inteligentes o bastante para evitar o defeito dos mecanismos de busca clássicos, a excessiva especificidade: procurar “cachorro” e perder todos os artigos que só mencionam a palavra “cão”. Softwares de indexação modernos como DEVONthink aprendem associações entre palavras individuais acompanhando a frequência com que elas aparecem perto umas das outras. Isso pode criar conexões quase líricas entre ideias. Alguns anos atrás, eu estava trabalhando num livro sobre o cólera em Londres e busquei no DEVONthink informação sobre sistemas de esgoto vitorianos. Como o software havia detectado que a palavra “resíduos” é frequentemente usada ao lado de “esgoto”, ele me remeteu para uma citação que explicava a maneira como os ossos se desenvolveram nos organismos vertebrados: dando um novo uso para os resíduos de cálcio gerados pelo metabolismo das células. À primeira vista, poderia parecer um resultado desviante, mas isso me lançou numa longa e frutífera tangente sobre o modo como sistemas complexos – quer sejam cidades ou corpos – encontram usos produtivos para o lixo que produzem. Essa ideia tornou-se um tema organizador central para um dos capítulos do livro sobre o cólera. (Na verdade, ela reaparecerá neste livro sob outro viés.)

Agora, a rigor, quem foi responsável por essa ideia inicial? Fui eu ou foi o software? Parece uma pergunta jocosa, mas formulo-a a sério. É óbvio que o computador não estava consciente da ideia que ganhava forma, e eu forneci a cola conceitual que ligou os esgotos de Londres ao metabolismo das células. Mas não estou nem um pouco convicto de que teria feito a conexão inicial sem a ajuda do software. A ideia foi uma verdadeira colaboração, dois tipos diferentes de inteligência enfrentando-se, uma baseada em carbono, a outra em silício. Quando selecionei pela primeira vez aquela citação sobre o cálcio e a estrutura óssea, não tinha ideia de que ela acabaria se conectando à história do sistema de esgotos de Londres (ou a um livro sobre inovação). Mas houve alguma coisa naquele conceito que me intrigara o suficiente para que eu o armazenasse no banco de dados. Ele permaneceu ali durante anos, na sopa primordial do software, uma intuição lenta à espera de sua conexão.

Uso o DEVONthink também como uma ferramenta de improvisação. Escrevo um parágrafo sobre algum tema – digamos, a extraordinária facilidade do cérebro humano para interpretar expressões faciais. Depois jogo esse parágrafo no software e peço ao DEVONthink que encontre em meu arquivo outras passagens semelhantes. Num instante, uma lista de citações aparece na minha tela: algumas investigando a arquitetura neural que deflagra expressões faciais, outras explorando a história evolutiva do sorriso, ou tratando da expressividade de nossos parentes próximos, os chimpanzés. Invariavelmente, uma ou duas delas desencadeiam uma nova associação em minha cabeça – talvez eu tivesse me esquecido da relação com os chimpanzés –, e assim seleciono essa citação e peço ao software para encontrar um novo grupo de passagens similares a ela. Em pouco tempo, uma ideia mais ampla ganha forma em minha mente, baseada na trilha de associações que a máquina traçou para mim.

Compare isso à maneira tradicional como exploramos nossos arquivos, em que o computador é como um mordomo obediente, mas burro: “Encontre para mim aquele documento sobre os chimpanzés!” Essa é a busca. A outra parece radicalmente diferente, tão diferente que não temos um verbo adequado para exprimi-la: é investigar ou explorar. Há inícios falsos e pistas enganosas, mas há um número igualmente grande de felizes coincidências e descobertas inesperadas. Na verdade, a obscuridade dos resultados é parte do que torna o software tão poderoso. A serendipidade do sistema é fruto de duas forças distintas. Primeiro, há o poder conectivo do algoritmo semântico, que é inteligente, mas também um pouco imprevisível, criando assim uma pequena quantidade de ruído randomizante que torna os resultados mais surpreendentes. Mas essa força randomizante é mantida sob controle pelo fato de eu mesmo ter selecionado essas passagens, o que torna muito mais provável que cada conexão individual me seja útil de alguma maneira. Quando começo uma nova busca no DEVONthink e vejo os resultados iniciais, à primeira vista eles podem parecer confusos e desconectados, mas depois os examino melhor e inevitavelmente algo intrigante me chama a atenção. “Confusas” e “desconectadas” são também, é claro, as palavras que usamos para descrever as estranhas explorações de nossos sonhos; e a comparação é bastante apropriada. O DEVONthink toma as combinações estranhas mas férteis do estado onírico e as transforma em software.

QUANDO VOCÊ CONSULTA o verbete “serendipity” na Wikipédia em inglês, está a um clique de distância de verbetes sobre LSD, Teflon, mal de Parkinson, Sri Lanka, Isaac Newton, Viagra e cerca de duzentos outros tópicos de diversidade comparável. Esse ecletismo é mais acentuado na Wikipédia que em qualquer outro lugar, é claro, mas resulta da natureza fundamentalmente “emaranhada” da arquitetura de hipertexto original de Tim Berners-Lee. Nenhum meio na história jamais ofereceu tantas trilhas improváveis de conexão e acaso de maneira tão intuitiva e acessível. Nos últimos anos, porém, um memea difícil de entender apareceu com estranha insistência nas páginas de opinião dos jornais: a ascensão da web, sustentam seus proponentes, levou ao declínio da descoberta serendipitosa. Considere esta representativa elegia à “alegria ameaçada da serendipidade”, de autoria de um professor de jornalismo chamado William McKeen:

Pensemos na biblioteca. Alguém ainda folheia livros? Tornamo-nos pessoas muito diretas. Podemos mirar no que queremos, graças à internet. Insira um par de palavras-chave num mecanismo de busca e encontrará – afora um achado casual irritante aqui e ali – exatamente o que procura. É eficiente, mas tedioso. Perdemos o costume demorado, mas enriquecedor, de inspecionar estantes, puxando um livro porque o título ou a encadernação nos interessa … Procurar alguma coisa e ser surpreendidos pelo que encontramos – mesmo que não seja aquilo que buscávamos – é um dos grandes prazeres da vida, e até agora não existe nenhum software capaz de reproduzir essa experiência.

Num texto semelhante, Damon Darlin, editor de tecnologia do New York Times, queixou-se de que a “era digital está acabando com a serendipidade”. Darlin reconheceu o vasto influxo de sugestões de leitura que chegam hoje à nossa tela a cada manhã por meio de serviços de rede social como o Twitter e o Facebook, mas, segundo ele, esses links não constituem serendipidade: “[Eles são] na verdade pensamento de grupo”, afirmou Darlin. “Tudo que precisamos saber nos chega filtrado e avaliado. Estamos descobrindo o que todos os outros estão aprendendo, e em geral a partir de pessoas que selecionamos porque compartilham nossos gostos.”

Quando se queixam do declínio da serendipidade, os críticos costumam apontar dois mecanismos da “mídia antiga” que supostamente não têm nenhum equivalente direto na web. McKeen menciona o primeiro: vasculhar as estantes de uma biblioteca (ou livraria), “puxando um livro porque o título ou a encadernação nos interessa.” Folhear os livros à maneira antiga de fato levava a descobertas não planejadas. Mas, graças à natureza conectiva do hipertexto e à fome exploratória da blogosfera por coisas novas, é muito mais fácil nos sentarmos diante de nosso navegador e topar com algo absolutamente brilhante e surpreendente do que percorrer uma biblioteca examinando lombadas de livros. Será que todos usam a web dessa maneira? É claro que não. Mas trata-se de uma atividade muito mais comum do que o hábito de explorar as estantes de uma biblioteca ao acaso, puxando livros por gostar da lombada. Esta é a ironia do debate sobre a serendipididade: chora-se a perda de algo que, na verdade, se transformou de experiência marginal em prática corrente na cultura.

O segundo mecanismo da era analógica que estimula a serendipidade tem a ver com as limitações físicas do jornal impresso, que nos forçam a passar por uma serie de notícias engenhosamente selecionadas a respeito de uma variedade de assuntos, antes de abrirmos a seção que corresponde às paixões e aos conhecimentos que já temos. O jurista Cass Sunstein refere-se a isso como um exemplo da “arquitetura da serendipidade”. A caminho da seção de esportes, dos quadrinhos ou da página de negócios, você esbarra numa notícia sobre maus-tratos físicos nas minas de diamante na África e alguma coisa na manchete lhe chama a atenção. Mil palavras depois, você aprendeu algo importante sobre pessoas que vivem do outro lado do mundo, cuja existência jamais lhe ocupara os pensamentos. E talvez se produza algum tipo de clique serendipitoso nessa colisão: você estava à procura de uma nova causa filantrópica para apoiar ou pensando em comprar um anel de diamante para sua mulher. Então essa matéria cai no seu colo e o ajuda a completar o pensamento. Você não estava à procura de uma notícia sobre minas de diamantes, mas era exatamente disso que precisava.

Esse é um excelente exemplo de serendipidade, e não há dúvida de que, quando estavam no auge, os jornais inúmeras vezes facilitaram descobertas acidentais semelhantes ao serem lidos em incontáveis cafés da manhã. A questão é se a transição para a web torna esse tipo de descoberta mais ou menos frequente. Se compararmos as primeiras páginas das versões impressa e on-line de um jornal, a web parece na verdade levar a melhor. O estudioso da internet Ethan Zuckerman comparou a capa do New York Times com a de seu primo na web e descobriu que na versão impressa havia 23 referências a artigos contidos no jornal (seja na forma de artigos principais ou de breves resumos para despertar a curiosidade do leitor abaixo da dobra). A primeira página do NYTimes.com, no estudo de Zuckerman, continha 315 links para artigos e outras formas de conteúdo. Se a arquitetura da serendipidade reside em tropeços com conexões surpreendentes ao examinar a primeira página, então a web é mais de dez vezes mais serendipitosa que o jornal impresso clássico.

Sunstein sem dúvida retrucaria que muita gente ignora a primeira página de um jornal on-line, indo diretamente para a página de esportes ou de negócios marcadas de antemão como favoritas, ou para algum assunto filtrado segundo seus interesses preexistentes. Certamente milhões de pessoas lançam mão de filtros parecidos toda manhã. É razoável questionar se pessoas assim, que se dão o trabalho de evitar o “panorama geral” da primeira página do jornal, teriam tido alguma probabilidade de deparar com a notícia sobre a mina de diamantes à mesa do café da manhã em um jornal impresso ou de perambular em torno das estantes de sua biblioteca local. Sunstein, Darlin e McKeen de fato têm razão ao afirmar que a internet nos dá filtros tópicos impensáveis no tempo da mídia analógica. Mas esses filtros são apenas parte da história. Eles reduzem a serendipidade (a menos que nosso interesse particular consista em sermos surpreendidos, o que é parte do atrativo de blogs maravilhosamente variados como Boing Boing). Com exceção dos favoritos, os filtros são uma adição de segunda geração à arquitetura da web. Não são inerentes a ela. O que é inerente à arquitetura da Web são duas características essenciais que têm sido grandes aliadas da serendipidade: um meio global e distribuído, no qual todos podem ser editores; e uma estrutura de documentos de hipertexto, em que é muito simples saltar de um artigo de jornal para um ensaio acadêmico ou para um verbete de enciclopédia em questão de segundos. A diversidade da informação na web assegura que haja uma oferta interminável de informações surpreendentes com que podemos nos deparar, e os links de hipertexto asseguram que podemos obtê-las na velocidade de um raio, ou seguir trilhas de associação improvisadas que teriam sido penosas de acompanhar na era da mídia impressa. Ironicamente, o problema da web é que há ruído demais, caos demais – foi por isso que os filtros foram inventados. Temos filtros porque a rede propiciou diversidade e surpresa demais, não de menos.

Pessoalmente, acredito que a web como meio impulsionou a cultura na direção de mais encontros serendipitosos. O simples fato de “navegar” e “surfar” em busca de informação serem agora atividades comuns confirma que houve um aumento da serendipidade em relação a culturas dominadas por livros ou pelos meios de comunicação de massa. Mas, quer se aceite ou não a premissa de que, em geral, o consumidor comum de mídia experimenta mais descobertas serendipitosas graças à web, é quase inquestionável que ela é um meio sem igual para a serendipidade quando estamos buscando isso ativamente. Se você quiser montar uma lista diária de leituras com perspectivas ecléticas e diversas, pode alinhavar uma em seu leitor de RSS ou em sua barra de favoritos em questão de minutos, a custo zero, sentado no sofá. Igualmente importante, você pode usar a web para completar o contexto quando depara com algum novo assunto interessante. O grande oráculo da era digital, o Google, é muitas vezes evocado como um destruidor da serendipidade porque as consultas funcionam como uma espécie de filtro por solicitação, que elimina 99,999% das informações que não são relevantes para o interesse atual do usuário. Mas, quando os críticos incluem o Google entre os filtros, eles supõem que as consultas são em sua maioria variações em torno do tema: “Estou apaixonadamente interessada por x e gostaria de saber mais a respeito disso.” Sem dúvida um número inconcebivelmente grande de usuários do Google faz consultas que assumem esse formato básico todos os dias. Mas há outro tipo de consulta igualmente valioso: “Acabo de ouvir falar sobre x e não sei nada a respeito, mas parece interessante. Conte-me mais.” É dessa maneira sutil que o Google reforça os aspectos serendipitosos da web. Sim, é verdade que ao digitar algo na caixa de busca do Google você já está envolvido com o tema. (É por isso que o pioneiro da web John Battelle o chama de o “banco de dados de intenções”.) Porém, com frequência esse envolvimento está diretamente correlacionado com nossa ignorância sobre o assunto em questão: alguém menciona por acaso a poesia de John Ashbery, ou a série de televisão Arrested Development, ou o Uróboro que devora a própria cauda, e você pensa: “Que história é essa? Parece interessante.” Imagine que estamos em 1980 e você está à mesa do café da manhã, lendo o jornal matinal, e, a caminho da página de esportes, encontra um artigo na primeira página sobre a intrigante ideia do aquecimento global, da qual nunca ouvira falar. Você pode ler o artigo, é claro, mas o que vai fazer se este o deixar ansioso por mais informação e contexto? Liga a televisão e torce para que uma das três redes de televisão privadas ou a PBS esteja transmitindo uma notícia ou um documentário sobre o assunto naquele exato segundo? Entra no carro e dirige durante quinze minutos até a biblioteca pública para consultar um livro sobre o assunto? Examina todas as revistas que tem em casa, percorrendo os sumários em busca de algum artigo relacionado à mudança do clima?

Suponhamos que você more numa casa particularmente rica em fontes de informação para os padrões de 1980 e por acaso tenha um exemplar da Encyclopaedia Britannica. Mas a edição que você comprou é na verdade de 1976, e o aquecimento global só entrou na Britannica em 1994, embora a expressão fosse comum na linguagem corrente a partir da década de 1990.

Hoje, é claro, você consultaria o Google ou a Wikipédia usando o termo de pesquisa “aquecimento global”. E teria num segundo mais informação (e até mais perspectivas) ao alcance da mão do que teria podido imaginar quando folheava a Britannica em 1980. Sim, esses resultados estão relacionados ao seu interesse expresso por um assunto específico, mas esse interesse é muitas vezes algo com que você acaba de topar, mais uma alusão que uma paixão. E, como essas páginas são construídas com hyperlinks, apenas alguns cliques podem transportá-lo para um campo de interesse inteiramente novo, que você jamais teria sonhado visitar. O Google e a Wikipédia dão a essas alusões passageiras algo a que se prender, uma espécie de âncora da informação que o permite se instalar em torno de um tema e explorar a área circundante. Eles transformam alusões e coincidências em informação. Se a tradição do livro de citações nos diz que a melhor maneira de cultivar intuições é registrar tudo, o mecanismo de serendipidade da web sugere uma instrução paralela: consulte tudo.

A PREMISSA DE QUE A INOVAÇÃO PROSPERA quando ideias podem se conectar e se recombinar serendipitosamente com outras, quando intuições podem topar com outras capazes de preencher suas lacunas, talvez pareça uma obviedade, mas o fato estranho é que grande parte da sabedoria jurídica e popular sobre inovação buscou justamente o oposto, construindo muros entre as ideias, evitando que estabelecessem conexões de tipo aleatório, serendipitoso, típicas dos sonhos e dos compostos orgânicos da vida. Ironicamente, esses muros foram erguidos com a finalidade explícita de estimular a inovação. Eles têm muitos nomes: patentes, gestão de direitos digitais, propriedade intelectual, segredos comerciais, tecnologia proprietária. Mas compartilham um pressuposto básico: se impusermos restrições à propagação de ideias novas, no final das contas a inovação aumentará, porque tais restrições permitirão aos criadores obter grandes compensações financeiras com suas invenções, o que estimulará outros inovadores a seguir o mesmo caminho.b

O problema desses ambientes fechados é que eles inibem a serendipidade e reduzem a totalidade da rede de mentes que podem se envolver potencialmente com um problema. É por isso que um número crescente de grandes organizações – empresas, entidades sem fins lucrativos, escolas, órgãos governamentais – começaram a experimentar ambientes de trabalho que estimulam a arquitetura da serendipidade. Tradicionalmente, organizações com forte demanda de inovação criaram uma espécie de cercadinho fechado para as intuições: o laboratório de pesquisa e desenvolvimento. Por ironia, os laboratórios de P&D funcionaram historicamente como uma espécie de caixa-forte de ideias; as intuições que neles se desenvolviam tendiam a ser os segredos mais bem-guardados de toda a organização. Se fosse permitido que essas ideias iniciais para produtos circulassem de maneira mais ampla, firmas concorrentes poderiam copiá-las e explorá-las. Algumas empresas – inclusive a Apple – fizeram grandes esforços para manter os experimentos de P&D isolados de outros empregados dentro da própria organização.

Mas esse sigilo, como vimos, tem um preço alto. Quando protegemos ideias contra imitadores e concorrentes, elas ficam protegidas também de outras ideias que poderiam aperfeiçoá-las e transformá-las de palpites e intuições em verdadeiras inovações. E de fato há um movimento crescente em algumas companhias progressistas para virar seus laboratórios de P&D pelo avesso e torná-los muito mais transparentes que o modelo tradicional. Na última década, organizações como a IBM e a Procter & Gamble, que têm uma longa história de lucros com inovações patenteadas, protegidas, abraçaram plataformas de inovação abertas, compartilhando sua pesquisa de ponta com universidades, parceiros, fornecedores e clientes.

No início de 2010, a Nike anunciou um novo mercado baseado na web que chamou de GreenXchange, no qual divulgou mais de quatrocentas de suas patentes que envolvem tecnologias ou materiais ecológicos. O mercado é uma espécie de híbrido entre interesse comercial e bem cívico. Tornando suas ideias públicas, a Nike permitiu a outras empresas aperfeiçoar essas inovações, criando um novo valor que ela própria poderá por fim usar em seus produtos. Em certo sentido, ela estava ampliando a rede de mentes ativamente empenhadas em descobrir como tornar essas ideias mais úteis, sem precisar incluir mais ninguém em sua folha de pagamento. Mas os valores organizacionais da Nike também incluem um compromisso com a sustentabilidade ambiental, e a companhia reconheceu que muitas de suas patentes ecológicas poderiam ser úteis em contextos diferentes. A Nike é uma grande empresa, com muitos produtos em muitas categorias, mas seu alcance tem limites. Algumas de suas inovações poderiam sem dúvida se mostrar vantajosas para indústrias ou mercados em que ela não tem envolvimento competitivo algum. Ao manter suas ideias ecológicas sob um véu de sigilo, ela ocultava – sem nenhuma justificativa comercial real – ideias que poderiam, em outro contexto, contribuir para um futuro sustentável. Em parceria com a Creative Commons, a Nike tornou suas patentes disponíveis sob uma licença modificada, permitindo seu uso em ramos “não competitivos”. (Eles também criaram um contrato-padrão, pré-negociado, para as patentes, reduzindo assim os custos da negociação individual de cada uma delas.) O cenário evocado como exemplo por ocasião do lançamento do GreenXchange teria empolgado Stephen Jay Gould: uma borracha ambientalmente saudável inventada para uso em tênis de corrida que poderia ser adaptada por uma companhia de mountain bike para criar pneus sustentáveis. Ao que parece, o princípio da transformação de pneus em sandálias, de Gould, funciona nos dois sentidos. Por vezes fabricamos um calçado dando um novo uso a pneus, outras vezes fabricamos pneus dando um novo uso a calçados. O GreenXchange está tentando dar às multinacionais um pouco da mesma liberdade para reinventar e reciclar de que gozam os fabricantes de sandálias de Gould, que vasculham os ferros-velhos de Nairóbi.

A outra técnica organizacional para facilitar conexões serendipitosas é a sessão de “brainstorming”, abordagem proposta pela primeira vez pelo executivo publicitário Alex Osborn nos anos 1930. A técnica abre o fluxo de ideias e intuições de maneira mais criativa do que é habitual numa reunião de trabalho disciplinada. Vários estudos recentes, contudo, sugeriram que o brainstorming é menos eficaz do que querem crer seus praticantes. Um de seus senões é ser finito tanto no tempo quanto no espaço: um grupo se reúne por uma hora numa sala ou durante um dia todo de retiro corporativo, todos os participantes jogam um bando de ideias malucas na mesa e em seguida a reunião se dispersa. Às vezes uma conexão útil emerge, mas com frequência as intuições pertinentes não estão em sincronia umas com as outras. Um empregado tem uma intuição promissora numa sala e, dois meses depois, outro descobre a peça que faltava para transformá-la num verdadeiro insight. O brainstorming poderia reunir esses dois fragmentos, mas isso é muito pouco provável. Imagine uma situação hipotética em que o FBI promove um retiro corporativo no final de agosto de 2001 e convida os agentes de campo do Arizona e de Minnesota para se sentar juntos numa sala e fazer um brainstorming sobre ameaças potenciais aos Estados Unidos. Na certa teria sido o primeiro retiro corporativo de que se tem registro a realmente mudar o destino da história mundial. Porém, com mais de 10 mil agentes de campo no país todo, as probabilidades de uma reunião na hora certa das pessoas certas do Arizona e de Minnesota seriam mínimas. Mas imagine se o FBI estivesse usando, em vez do arcaico sistema Automated Case Support, uma versão em rede do DEVONthink. Isso não teria impedido que a alta cúpula da Radical Fundamentalist Unit lesse a solicitação de um mandado de busca para o laptop de Moussaoui e pensasse: “Isso parece um palpite muito duvidoso.” No entanto, uma rápida consulta ao DEVONthink os teria encaminhado para o memorando Phoenix, ou para algum outro palpite sobre curso de pilotagem e terrorismo. Essas duas ideias improváveis teriam colidido, sem que os agentes de campo em Phoenix e Minnesota tivessem sequer conversado entre si, muito menos se sentado juntos para uma sessão de brainstorming.

O segredo para a inspiração organizacional é construir redes de informação que permitam às intuições persistir, dispersar-se e recombinar-se. Em vez de enclausurar suas intuições em sessões de brainstorming ou laboratórios de P&D, crie um ambiente em que o braistorming é algo sempre em curso em segundo plano, no âmbito de toda a organização, uma versão coletiva do conceito de 20% do tempo, que se provou tão bem-sucedido para o Google e a 3M. Uma maneira de fazer isso é criar um banco de dados de intuições aberto, a versão web 2.0 da tradicional caixinha de sugestões. Um banco de dados público torna cada ideia passageira visível para todas as outras pessoas na organização, não apenas a gerência. Outros empregados podem comentá-las ou expandi-las, conectando-as com suas próprias intuições sobre novos produtos, prioridades ou mudanças organizacionais internas. Alguns sistemas permitem até aos empregados votar nas sugestões dos colegas, mais ou menos como as classificações dos usuários que alimentam sites de notícias coletivos como Digg ou Reddit. O Google tem uma lista de e-mail no âmbito da companhia em que os funcionários podem sugerir novas características ou produtos; depois cada sugestão é classificada numa escala de o (“Perigoso ou prejudicial”) a 5 (“Excelente ideia! Ponha-a em prática”). A Salesforce.com mantém a popular Idea Exchange, um espaço no qual seus clientes podem sugerir novas características para os produtos de software da companhia. A Idea Exchange não permite apenas que intuições interessantes circulem e se conectem. Também acompanha a maturação delas em códigos de envio: a porta da frente da Idea Exchange inclui links em destaque para as ideias propostas que estão sendo consideradas no momento para inclusão em versões futuras, bem como aquelas que já foram integradas com sucesso a lançamentos passados. Com muita frequência, as caixas de sugestão do mundo real funcionam como um buraco negro: você coloca a sua ideia na ranhura e nunca mais ouve falar nela. Num fórum público como Idea Exchange, você não só consegue ver e aperfeiçoar as sugestões dos outros, como obtém provas concretas de que as suas podem fazer diferença.

Esses tipos de redes de informação podem fazer um excelente trabalho ao tirar bom proveito da inteligência tanto individual quanto coletiva: o empregado individual tem uma intuição provocativa e útil, e o grupo ajuda-o a completá-la ao associá-la a outras ideias que circularam através do sistema; assim separa-se essa intuição de milhares de outras menos úteis, elegendo-a como uma das melhores. Ao divulgar as ideias e assegurar que permaneçam armazenadas no banco de dados, esses sistemas criam uma arquitetura para a serendipidade organizacional. Dão às boas ideias novas maneiras de se conectar.

a Termo utilizado por Richard Dawkins para designar a unidade mínima da memória, análogo ao que gene significa para a genética. (N.T.)

b Na verdade, as patentes têm uma relação histórica complexa com a ideia de redes abertas de informação. Embora em geral sejam de natureza exclusiva – proibindo os que não a possuem de usar um “método” patenteado sem permissão por um período determinado de tempo –, as leis de patentes costumam envolver também um elemento de divulgação, obrigando o inventor a revelar a natureza de sua criação em detalhes técnicos. Essa revelação é obviamente destinada a ajudar na imposição de restrições em caso de violação da patente, mas pretende também estimular a disseminação mais livre de boas ideias, tornando-as parte do registro público. Infelizmente, o atual surgimento dos grileiros e trolls de patentes, apoiados por advogados especialistas em propriedade intelectual excessivamente zelosos, demonstra que o aspecto protetor da lei tem dominado o aspecto conectivo.